Volume 18, Número 4, Out/Dez - 2014
PESQUISA
Homens e cuidado à saúde nas representações sociais de
profissionais de saúde
Bruna Paula de Jesus Siqueira
1
Jules Ramom Brito Teixeira
1
Paulo da Fonseca Valença Neto
1
Eduardo Nagib Boery
1
Rita Narriman Silva de Oliveira Boery
1
Alba Benemérita Alves Vilela
1
1 Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Jequié - BA, Brasil
Recebido em 28/10/2013
Aprovado em 03/07/2014
Autor correspondente:
Bruna Paula de Jesus Siqueira
E-mail:
enfabrunapaula@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Descrever as representações sociais dos profissionais de saúde sobre homens e
cuidado à saúde, a partir do conteúdo e da estrutura dessas representações.
MÉTODOS:
Trata-se de um estudo descritivo, qualitativo, que teve como referencial
teórico-metodológico a Abordagem Estrutural da Teoria das Representações Sociais.
Realizado com 104 profissionais de saúde da atenção básica do Município de Aracaju
- SE, utilizou-se a Técnica de Evocação Livre de Palavras para coleta dos dados,
estes foram processados pelo software EVOC 2003.
RESULTADOS:
Foram evocadas 487 palavras em resposta ao termo indutor "homens e cuidado à
saúde". Os resultados evidenciaram que os trabalhadores têm uma representação
negativa acerca dos homens e o cuidado à sua saúde, sendo o desinteresse, medo e
descuidado os termos mais evocados.
CONCLUSÃO:
Dessa maneira, é importante sensibilizar profissionais de saúde, usuários e a
população para os efeitos negativos dessas concepções perpetuadas no imaginário
social que distancia o homem do cuidado a saúde.
Palavras-chave: Homens; Masculinidade; Comportamento; Atenção Primária à Saúde.
INTRODUÇÃO
Apesar de serem mais vulneráveis e morrerem mais precocemente, os homens quase não buscam os serviços de saúde, principalmente, a atenção básica, pois se consideram invulneráveis. Isso contribui para que se cuidem menos, os tornando mais propensos ao risco de adoecer. As causas apontadas por dificultar este acesso são inúmeras e dividem-se, basicamente, em dois grupos: as barreiras socioculturais e institucionais1.
As barreiras socioculturais estão relacionadas aos estereótipos de gênero que concebem o ser homem, como um ser forte, viril e invulnerável2. Essa ideia está vinculada a imagem de identidade de gênero e a questões culturais, pois há padrões de masculinidade que reprimem as necessidades e os cuidados com a saúde, alimentados no imaginário social, em que o cuidado não é tratado como uma prática da saúde masculina, de modo que amarras culturais e o imaginário do que é ser homem, aprisionam o indivíduo3,4,5.
Dentre as barreiras institucionais que comprometem a busca dos homens pelos serviços de saúde, pode-se citar o horário de funcionamento das unidades, coincidente com a jornada de trabalho; as equipes de saúde constituída, predominantemente, por mulheres; a demora em conseguir atendimento; o acolhimento deficiente; o despreparo dos profissionais; a ausência de programas voltados ao público masculino; a estrutura física que não permite uma privacidade no atendimento; a precarização e baixa resolutividade dos serviços de saúde, principalmente na atenção básica4,6,7,8,9.
Sendo esta imagem do ser homem reforçada por uma representação social reducionista dos profissionais de saúde, que também não percebem os homens como sujeitos de cuidado. Muitas vezes essa conduta se relaciona ao despreparo desses profissionais, para trabalhar com as novas demandas e necessidades de saúde específica da população masculina, pois cada modo de viver a vida traduz diferentes necessidades de saúde. Reforçando isso, a apreensão do imaginário social de masculinidade pelos profissionais de saúde, mobiliza afetos, resignifica e reproduzem representações sociais, o que reflete na forma de produzir saúde2,4,7,9.
Nesse contexto, a atual conformação tecnológica do modelo tecnoassistencial nos serviços de saúde, está centralizada no problema de saúde e na consulta médica, operando na lógica do modelo médico hegemônico, subordinando a dimensão cuidadora a um papel irrelevante e secundário10.
Paralelo a isso, foram desenvolvidos modelos tecnoassistenciais alternativos, como a Estratégia Saúde da Família (ESF), que tentam superar essa forma de produzir saúde instituída pelo modelo hegemônico10.
Para atender o indivíduo e a coletividade a ESF é operacionalizada por equipes multiprofissionais que têm na promoção, proteção da saúde, tratamento e reabilitação, os pilares do seu trabalho. Além do aumento dos procedimentos em nível individual, com a expansão da ESF, houve também o aumento da atenção à saúde direcionada a grupos específicos da população, tais como, mulheres, adolescentes, idosos e crianças. Entretanto, para alcançar todos os indivíduos é preciso desenvolver ações que resgatem a integralidade, o fortalecimento das redes e a participação social.
O trabalho desenvolvido na ESF, mesmo que voltado ao indivíduo e às coletividades, prioriza a atenção para grupos específicos e os homens mantêm-se, neste modelo de atenção, de certa maneira afastados de algumas abordagens da estratégia, quais sejam a prevenção e promoção da saúde.
Para reverter o distanciamento entre o homem e a atenção à saúde e incorporá-lo em todos os níveis de atenção, em especial, aqueles na faixa etária entre 20 e 59 anos, o Ministério da Saúde implantou, em 2009, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH). Nesse sentido, tal política reflete a necessidade de colocar os homens e suas demandas de saúde no foco dos programas de saúde pública, pois é sabido que muitos dos agravos que acometem os homens poderiam ser evitados se eles estivessem inseridos solidamente nos serviços de atenção à saúde1.
Entretanto, instituir políticas de saúde e fazê-las funcionar não depende apenas da elaboração, implantação e financiamento por parte dos gestores, pois existem os recursos humanos envolvidos nesse processo, os quais são os "instrumentos" necessários para o funcionamento e, consequentemente, o sucesso ou não dessas políticas.
As políticas e os programas de saúde instituídos na ESF tentam padronizar a prática cotidiana dos profissionais, mas o poder de influência dessas padronizações é limitado, uma vez que no cotidiano é a sua subjetividade e a sua relação com o usuário que vai definir como o cuidado será realizado. Ou seja, ainda que as equipes de saúde da família trabalhe orientadas por diretrizes normativas únicas, a atuação de cada profissional que compõe essas equipes será diferente e singular11. Diante disso, não se pode afirmar que a PNAISH está inserida na ação rotineira do profissional de saúde, pois durante muitos anos este não teve o seu olhar despertado à população masculina, seus determinantes e indicadores de saúde.
Nessa perspectiva, para mudar o modo de produção do cuidado é necessário haver uma desterritorialização dos profissionais de saúde e usuários, pois esses trabalhadores atuam a partir de territórios existenciais, organizados pela sua subjetividade e a partir disso, construir uma nova representação social dos homens para os profissionais de saúde. Ou seja, para modificar uma estrutura organizacional, um processo de trabalho, é preciso (re)construir uma subjetividade nesse trabalhador, para assim produzir essa desterritorialização e uma nova representação. Este processo é difícil e complexo, e envolve muito mais do que a implantação de uma nova política ou de uma nova estrutura organizacional11.
Dessa maneira, o homem e a questão do cuidado à saúde podem também configurar-se como fenômeno de representação social dentre esses profissionais, sendo este estudo pioneiro em demonstrar a relevância e a "espessura social" deste objeto, os quais servem de fundamento para a construção e solidez dessas representações12. Sendo assim, a forma como o profissional reconhece o usuário dentro do serviço de saúde e a representação social deste profissional, pode influenciar sua ação na produção do cuidado, uma vez que esta tem uma característica peculiar que é a subjetividade de cada profissional.
Nesse sentido, fundamentou-se na Teoria das Representações Sociais (TRS)13,14 para buscar compreender esse fenômeno na percepção dos sujeitos sociais que atuam na ESF, permitindo elucidar a subjetividade inerente aos cuidados que o homem tem com a sua saúde à luz de quem o acompanha. Ademais, uma representação social ancora-se na antecedência de uma ação, apoiando-se na guia do comportamento e, neste ínterim, o aporte teórico da TRS permitirá entender as dinâmicas dos profissionais da ESF frente a esta problemática14. Esta apreensão poderá nortear futuros estudos de intervenção social sobre a temática, as quais podem ser direcionadas no sentido de combater o estigma e preconceito que tantos profissionais de saúde têm sobre o homem e o cuidado à saúde.
Diante disso, nestes momentos que procedem à implantação da PNAISH, para a avaliação da efetividade de suas ações, torna-se importante conhecer a representação que os profissionais de saúde têm acerca do ser homem e do cuidado com a sua saúde. Nesse contexto, o objetivo, deste estudo, foi descrever as representações sociais dos profissionais de saúde sobre homens e cuidado à saúde, a partir do conteúdo e da estrutura dessas representações.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo descritivo, de abordagem qualitativa, que teve como referencial teórico-metodológico a TRS no qual se trabalhou com a Abordagem Estrutural ou núcleo central13 dessa TRS14. A Teoria do Núcleo Central direciona sua atenção às dimensões cognitivas e estruturais das representações sociais, haja vista que esta se estrutura e se organiza em torno de um núcleo central determinante da sua significação e organização interna, conferindo solidez e sustentação a essa representação13,14. A escolha pela Abordagem Estrutural no processo de produção e análise dos dados se deu pelo fato de a mesma permitir a identificação da estrutura interna e organização do conteúdo representacional13,14.
Este estudo é derivado do projeto mãe intitulado "Processo de trabalho das equipes de Saúde da Família que atuam na saúde do homem". A coleta de dados foi realizada entre janeiro e agosto de 2013, no Município de Aracaju, Sergipe, Brasil. Teve como lócus 12 Unidades de Saúde da Família (USF), as quais foram selecionadas, aleatoriamente, pelo critério de sorteio.
Distribuídas nestas USF atuam 36 equipes de saúde da família, sendo 36 médicos, 36 enfermeiros, 36 auxiliares de enfermagem, 28 dentistas, 28 auxiliares de consultório dentário e 180 agentes comunitários de saúde e de endemias. Desse total, participaram do estudo, 104 profissionais que atuam em uma dessas equipes.
A seleção desses participantes da pesquisa foi por conveniência e adotou-se o seguinte critério: os profissionais de saúde que estavam presentes nas USF sorteadas no momento da visita do pesquisador foram informados sobre a pesquisa e convidados a participar, voluntariamente, os que aceitaram foram incluídos no estudo.
Para a coleta dos dados foi utilizado um questionário composto por dois blocos, sendo o primeiro bloco correspondente aos dados sociodemográficos para caracterização dos participantes da pesquisa e o segundo, constituído pela Técnica de Evocação Livre de Palavras5, sendo utilizada como termo indutor a expressão "homens e cuidado à saúde".
Para execução da técnica de evocações, os informantes foram solicitados a evocar até cinco palavras que lhes viessem imediatamente à mente, após dado o estímulo indutor15. A partir desses dados, foi elaborado um dicionário de palavras, com todos os termos evocados e, posteriormente, realizou-se a análise semântica com aproximação dos termos. Em seguida, considerando a ordem espontânea de evocação, esses dados foram processados no software denominado Ensemble de Programmes Permettant L'Analyse dês Évocations (EVOC)16, versão 2003, sendo, posteriormente, organizados de acordo com a técnica de distribuição dos termos produzidos num Quadro de Quatro Casas15, o qual foi analisado segundo a abordagem estrutural da TRS.
No quadro de quatro casas distingue-se o conteúdo e a estrutura das representações sociais sobre um determinado objeto e é constituído a partir do cruzamento entre a frequência e a ordem hierarquizada das evocações. Para isso o EVOC estabelece a frequência de evocação por meio do somatório das frequências em que o termo foi evocado nas posições de 1 a 5. Posteriormente, calcula-se a ordem média de evocação através da realizada média aritmética ponderada, utilizando-se peso 1 à evocação feita em primeiro lugar, peso 2 em segundo e assim sucessivamente até a 5º posição. Por conseguinte, o programa calcula a ordem de evocação através da divisão entre o produto ponderado pelo somatório da frequência da palavra evocada nas diferentes posições e, por fim, calcula a média das ordens médias de evocação, que é obtida através da média aritmética da ordem média de evocação de cada palavra15,16.
De posse desses dados, o EVOC distribui os resultados do processamento nos quatro quadrantes, que constituem um diagrama semelhante a um sistema cartesiano, onde o eixo horizontal é representado pela ordem média de evocações e o eixo vertical a frequência de evocação. O quadrante superior esquerdo é constituído pelos termos mais frequentemente evocados e com menor ordem média, indicando o provável núcleo central; o quadrante inferior direito é formado pelos termos menos evocados e com maior ordem média, indicando o provável sistema periférico15,16.
Sendo assim, a construção do quadro considerou a frequência média de evocação das palavras e a média das ordens médias de evocação das palavras, descritas acima. Finalmente, o EVOC excluiu dos quadrantes todas as palavras cujas frequências encontravam-se abaixo da frequência mínima definida pelos pesquisadores e somente após esta distribuição dos termos produzidos é que se procedeu à interpretação do quadro15.
Esta pesquisa foi desenvolvida em conformidade com a Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde, sendo o projeto, previamente, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, sob protocolo nº 171.468 e CAAE 10251612.3.0000.0055.
RESULTADOS
A amostra do estudo foi caracterizada por 104 profissionais de saúde, sendo 79 (76%) do sexo feminino e os demais do sexo masculino, a idade média foi de 39,56 ± 10,90, variando de 23 a 68 anos, sendo que 98 (94,2%) são funcionários estatutários, e 6 (5,8%) contratados, com tempo de serviço médio de 7,64 ± 5,66 anos. Dos participantes, 47 (45,2%) são agentes comunitários de saúde, 17 (16,3%) enfermeiros, 16 (15,4%) médicos, 12 (11,5%) odontólogos, tendo participado também trabalhadores da saúde: 4 (3,8%) auxiliares de consultório dentário, 4 (3,8%) auxiliares de enfermagem, 3 (2,9%) agentes de endemias e 1 (1,0%) agente operacional.
A partir da análise do corpus constituído pelas evocações dos participantes, verificou-se que foram evocadas 487 palavras, as quais, após aproximação semântica, foram sintetizadas em 117 palavras ou expressões diferentes entre si, com frequência mínima (ponto de corte) de 8, a média de 17, sendo a média das ordens médias de evocações de 2,9. Desse modo, foram desprezadas 175 palavras ou expressões por terem sido evocadas com frequência abaixo do ponto de corte. De posse desses dados, as 117 palavras foram categorizadas em 18 grupos semânticos, por terem uma maior importância no esquema cognitivo dos participantes.
Ademais, através do segmento RANGMOT do EVOC 2003, que classifica as palavras em afluências léxicas e de acordo com a ocorrência das evocações, com base no cálculo das frequências simples e acumuladas, tornou-se possível organizar os 18 grupos semânticos evocados com maior frequência, na ordem da 1º à 5º evocação.
Levando em consideração o RANGMOT e o relatório TABRGFR, o EVOC apresentou como constructo final o Quadro de Quatro Casas16 (Quadro 1), o qual expressa o conteúdo e a estrutura das representações sociais dos profissionais de saúde sobre homens e cuidados à saúde. Para a constituição do quadro foi utilizada, para cada palavra ou expressão evocada, a frequência mínima de evocação (8), a frequência média (17) e a frequência ponderada da ordem das evocações ou rang (2,9)15.
Núcleo central | Primeira periferia | ||||
FM ≥ 17 | OME ≤ 2,9 | FM ≥ 17 | OME > 2,9 | ||
TE | F | OME | TE | F | OME |
Desinteresse | 45 | 2,489 | Doença crônica | 46 | 3,43 |
Medo | 31 | 2,613 | Atendimento imediato | 19 | 3,63 |
Descuidado | 24 | 2,208 | Machismo | 17 | 3,35 |
Falta de prevenção | 20 | 2,05 | |||
Câncer de próstata | 17 | 1,941 | |||
Zona de contraste | Segunda periferia | ||||
FM < 17 | OME ≤ 2,9 | FM < 17 | OME > 2,9 | ||
TE | F | OME | TE | F | OME |
DST | 11 | 2,36 | Cuidar | 14 | 3,00 |
Preconceito | 9 | 2,67 | Falta de tempo | 11 | 2,91 |
Dificuldade de acesso | 8 | 2,37 | Provedor | 8 | 4,37 |
Irresponsável | 8 | 2,62 | Saúde | 8 | 3,62 |
Tabagismo | 8 | 2,62 | |||
Vergonha | 8 | 1,87 |
Para a descrição e interpretação dos resultados categorizados no Quadro 1, adotou-se o método da abordagem estrutural proposta por Abric13, segundo a qual os termos que atendessem, simultaneamente, aos critérios de evocação com maior frequência e nos primeiros lugares, possivelmente, apresentariam maior importância no esquema cognitivo do profissional, tendo uma maior chance de se configurar como hipótese de núcleo central da representação social.
Assim, distinguem-se no Quadro 1 quatro importantes elementos para a apreensão das representações sociais dos profissionais sobre homens e cuidados à saúde: o núcleo central (quadrante superior esquerdo); os elementos da 1º periferia (quadrante superior direito) e 2º periferia (quadrante inferior direito); e os elementos de contraste da representação (quadrante inferior esquerdo)15.
Por conseguinte, o Quadro 1 foi analisado descritivamente, estabelecendo a correlação entre os termos evocados para a compreensão da organização estrutural da representação13. Assim sendo, as evocações que apareceram no quadrante superior esquerdo são consideradas mais significativas para os profissionais, constituindo o núcleo central e a provável representação do objeto estudo: desinteresse, medo, descuidado, falta de prevenção e câncer de próstata.
Os termos que compuseram o primeiro sistema periférico foram: doença crônica, atendimento imediato e machismo. Essas evocações atuam como elementos reforçadores dos elementos centrais, sendo caracterizados como elementos periféricos, flexíveis e tangíveis, tendo maior frequência e menor importância atribuída pelos profissionais.
Quanto à segunda periferia, localizada no quadrante inferior direito foram categorizadas as evocações: cuidar, falta de tempo, provedor e saúde. Esses termos léxicos são elementos mais claramente periféricos, tendo em vista que são menos frequentes e menos importantes para os profissionais em suas representações.
Por fim, verificou-se que os termos DST, preconceito, dificuldade de acesso, irresponsável, tabagismo e vergonha, são elementos com menor frequência, porém, com maior importância no esquema cognitivo, constituindo os elementos de contraste da representação, provendo a sustentação e solidez do núcleo central.
DISCUSSÃO
Os termos evocados, neste estudo, revelam uma representação negativa por parte dos profissionais de saúde acerca dos homens no cuidado à sua saúde e revelam, provavelmente, o quanto o pensamento social de gênero e os estereótipos estão (re)significando a práxis e produzindo afetos nesses profissionais, refletindo no cotidiano do processo de trabalho. Os principais termos evocados, núcleo central, reafirmam o imaginário social perpetuado através do modelo machista hegemônico que aprisiona o homem à ideia do ser forte, viril, invulnerável, provedor do lar e da família.
A associação entre esta imagem do ser homem ao cuidado com a saúde resulta em cuidado incipiente, desleixo, objetividade e praticidade no atendimento, valorizando ações, meramente, curativas e a medicalização do corpo, desvalorizando a prevenção e promoção à saúde. É nesse sentido que os termos desinteresse, descuidado e falta de prevenção aparecem no núcleo central desse estudo3,6.
Esta imagem é reforçada em função de uma representação reducionista de alguns profissionais de saúde em relação à saúde do homem, limitando-a a problemas prostáticos, de ordem sexual e ou doenças crônicas, além de não reconhecerem o cuidado como inerente ao ser masculino e, consequentemente, não estimularem ou mesmo desestimularem a prevenção e promoção da saúde5.
Muitas vezes essa conduta se relaciona ao despreparo desses profissionais para trabalhar com as novas demandas e necessidades de saúde específicas da população masculina, reflexo de uma significação social limitada, mobilizando poucos afetos no cuidado a esse publico6,7,9,17.
Entretanto, essa visão reducionista talvez esteja vinculada ao fato dos homens acessarem os serviços de saúde em busca do urologista, preocupados com a próstata, ou quando acometidos por problemas agudos, como a dor, ou por doenças crônicas, como hipertensão arterial e diabetes ou por questões de ordem sexual, como as doenças sexualmente transmissíveis5,8.
A despeito do descuido com a saúde, o medo de descobrir alguma doença grave, e/ou da morte, geralmente, está presente no imaginário masculino, acentuando o abismo que separa o homem do cuidado e dos serviços de saúde2,5,8. Estudo realizado com o público masculino constatou que 57,62% dos homens entrevistados revelaram esse sentimento18.
Além desse, a vergonha é outro sentimento que aparece na zona de contraste deste estudo, sendo objetivada pela vergonha de expor o corpo, principalmente, no tocante a prevenção do câncer de próstata, de partilhar espaços educativos com mulheres, de demonstrar sinal de fraqueza ao buscar os serviços de saúde, que historicamente é um comportamento feminino e, até mesmo, vergonha de expor suas necessidades a profissionais do sexo feminino, o que também aparece na literatura como forma de expressão da resistência masculina ao autocuidado17.
Atendimento imediato, elemento evocado na primeira periferia, reflete uma concepção que caracteriza o homem, dentro do serviço de saúde, de forma negativa em função da sua impaciência na espera por atendimento. Os homens buscam um atendimento imediato e, por isso, muitas vezes, prioriza os serviços de farmácias e prontos-socorros, ou mesmo a automedicação. Essa demora no atendimento é apontada como uma das dificuldades encontradas para o acesso aos serviços de saúde4-6,9.
Os homens atribuem à prontidão no atendimento como um indicador de satisfação dos usuários ao bom atendimento17. Além disso, o tempo dispensado para a marcação de consultas e para a espera pela consulta torna-se incompatível com os usuários inseridos no mercado de trabalho8.
Ainda na primeira periferia, o termo machismo está na essência das várias evocações deste estudo e reflete o pensamento social apreendido no que o homem não adoece, a imagem do ser masculino associada à adoção de comportamentos de risco, como o uso de álcool, drogas lícitas e ilícitas e os atos de violência (causas externas), desmobilizando afetos nesses profissionais que permitiriam buscar novas formas de resignificar o ser homem e o cuidado8,19.
Esses comportamentos são fatores que, possivelmente, agravam as condições de saúde do público masculino, pois além deste quase não dispensar tempo para o cuidado com a própria saúde, ou talvez, de não realizar um cuidado nos moldes que, atualmente, os modelos de atenção à saúde, principalmente a ESF, baseado na vigilância, prevenção e promoção à saúde, ele adota comportamentos que pode torná-lo ainda mais vulnerável.
Diante desse cenário machista que envolve o homem no cuidado à sua saúde, o preconceito, evocado pelos profissionais na zona de contraste, evidencia o sentido apreendido que os serviços de saúde, principalmente, a atenção primária à saúde, são espaços destinados às mulheres, crianças e idosos, causando certo incômodo, desconforto e receio aos homens presentes nesse ambiente. E, nesse sentido, a deficiência de especialistas, como urologistas, de programas, ações ou de atividades dirigidas, especificamente, as demandas da população masculina, contribuem para a perpetuação dessa concepção, assim como para a redução do acesso a esses serviços de saúde2,3,6,8.
A dificuldade de acesso, elemento da zona de contraste, foi evocada no sentido dos homens não buscarem os serviços de saúde ou serem invisíveis nestes. Essa ideia está, mais uma vez, vinculada à identidade de gênero e às questões culturais, pois há padrões de masculinidade que reprimem as necessidades e cuidados à saúde e desmobiliza os sinais de fraqueza e vulnerabilidade, reforçando a força e virilidade como representação social do ser homem na sociedade3-5,9.
Entretanto, apesar das barreiras que dificultam o acesso masculino aos serviços de saúde, eles têm buscado atendimento. Estudo destaca que nos serviços pesquisados foi notória a presença masculina, embora sejam predominantes os idosos e crianças6. Isso sugere que, mesmo de forma incipiente, está havendo a produção de novos afetos nos homens que vem mobilizando novas maneiras de significar o cuidado a saúde e o papel social do homem no cuidado a saúde.
A mencionada ausência nas unidades de saúde é fortemente influenciada pelo trabalho, coincidente com o horário de funcionamento das unidades, bem como pela cultura perpetuada na sociedade e no mundo do trabalho que desvaloriza a ausência laboral por questões de saúde/doença na população masculina4,8,9.
Pesquisa constatou a maior presença masculina em serviços de saúde que dispõem de horários alternativos para atendimento ao público, como terceiro turno (noite), aos sábados ou serviços que funcionam 24 horas, apontando a necessidade dos gestores avaliarem a representação social de trabalho e saúde para a sociedade e especialmente para os homens e com isso a possível expansão do horário de funcionamento dos serviços de saúde, com enfoque na prevenção e promoção à saúde, na tentativa de facilitar o acesso da classe trabalhadora ao cuidado com a saúde6.
Nessa perspectiva do trabalho, o termo provedor, presente na segunda periferia, é reconhecido, socialmente, como uma característica da identidade masculina, atitude que dignifica e confere valor moral ao homem e é o trabalho que o impulsiona ao reconhecimento e respeitabilidade social, permitindo-o cumprir com suas obrigações diante da família e da sociedade. É através do trabalho que o homem consegue significar o seu papel de chefe da família9. Entretanto, essa obrigação social que torna o homem o principal responsável pelo sustento da família, desobriga-o do papel de cuidar da própria saúde, forçando-o a priorizar na divisão do seu tempo o trabalho, ao invés da saúde.
A evocação falta de tempo, que aparece na segunda periferia, complementa o sentido da evocação provedor, pois o homem não prioriza a saúde, principalmente, nos aspectos que envolvem a prevenção. Como o horário de funcionamento das unidades de atenção básica, geralmente, é incompatível com o horário de trabalho, nessa disputa o trabalho é prioridade, consequentemente, o homem descuida da saúde. Os termos cuidado e saúde, que também aparecem na segunda periferia, são evocados nesse sentido, onde a população masculina precisa priorizar mais o cuidado com a própria saúde.
As transformações que ocorreram na sociedade ao longo do tempo, como a crescente inserção das mulheres no mercado de trabalho, muitas vezes, tornando-as chefes de família e provedoras do lar, atribuições ainda, hegemonicamente masculinas, mobilizaram afetos nos homens, produzindo novos significados e representações ao ideal de masculinidade construído e apreendido socialmente, deixando-os afetados quanto ao seu papel e frustrados com algumas instituições sociais, como o casamento e o trabalho7.
Assim, mesmo com as mudanças ocorridas na sociedade nos últimos anos, o homem quando tenta romper com essas barreiras impostas pelo modelo machista hegemônico e resignificar o cuidado com a própria saúde, ainda se torna alvo de críticas, pois a representação da sociedade frente ao ser homem ainda é algo limitado que merece diversas análises. É necessário agir intensamente no sentido de desconstruir a imagem de masculinidade vigente no imaginário social, numa tentativa de aproximar o universo masculino ao cuidado ativo com a saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os achados e conclusões desta pesquisa dizem respeito às representações sociais dos profissionais de saúde sobre homens e cuidados à saúde. Fundamentado na afirmação de que o homem mantém-se distante das ações de cuidado à saúde, convém ressaltar que este fato não é decorrente somente das questões de disponibilização de serviços, nem somente das nuances gerenciais do sistema, mas trata-se também de questões que envolvem a masculinidade, o ser homem na sociedade, as questões de gênero, a educação e os preconceitos que o envolvem.
Mesmo com a mudança da cultura e dos costumes frente à progressão do tempo, muitos dos paradigmas sociais que envolvem a masculinidade, oriundos das diferenças de gênero, se perpetuam no ambiente social e podem gerar consequências graves às condições de saúde masculina.
Como observado neste estudo, essas questões culturais ainda marcam presença e interferem negativamente na visão e, consequentemente, na conduta profissional, uma vez que o cuidado é influenciado pela subjetividade de quem o produz. Os profissionais de saúde ainda não reconhecem os homens como protagonistas do cuidado com a própria saúde, consequentemente, passam a não estimular esse cuidado, principalmente, no enfoque da prevenção e promoção à saúde, pois, de certa forma, já se acostumaram com esse comportamento masculino.
Com isso, é necessária maior sensibilização dos gestores, profissionais e trabalhadores da saúde, usuários dos serviços e da população em geral, no sentido de flexibilizar essas concepções que interferem negativamente na saúde masculina, pois os indicadores de morbimortalidade masculina mostram que é premente o desenvolvimento de estratégias de intervenções políticas, econômicas, sociais e organizacionais que possam modificar essa concepção de ser homem e o cuidado à saúde. Um passo importante já foi dado em 2009, com a implantação da PNAISH, entretanto, é preciso somar esforços para diminuir o abismo criado, ao longo dos anos, entre os homens e o cuidado à saúde.
Apesar da relevância em conhecer a representação social dos profissionais de saúde em relação à saúde do homem, principalmente, nesses anos que precedem a implantação da PNAISH, no sentido de fortalecer as estratégias para o efetivo funcionamento dessa política, esse estudo apresentou algumas limitações como: o número reduzido de profissionais incluídos na amostra, a não segregação das representações por sexo e por categoria profissional.
É interessante investigar as subjetividades que envolvem a atuação desses profissionais de saúde, assim como as possíveis justificativas para essa visão do ser homem e as estratégias que podem ser desenvolvidas para minimizar os efeitos dessa visão reducionista, assim como investigar as subjetividades que permeiam os próprios homens em relação a essa atitude dos profissionais de saúde.
REFERÊNCIAS