Volume 18, Número 4, Out/Dez - 2014
PESQUISA
A saúde do homem que vive a situação de infertilidade: um
estudo de Representações Sociais
Washington Ramos Castro
1
Maria Cristina de Melo Pessanha Carvalho
2
Renata Porto dos Santos Mohamed
1
Maria Aparecida Vasconcelos Moura
1
Ana Beatriz Azevedo Queiroz
1
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro - RJ, Brasil
2 Ministério da Saúde. Rio de Janeiro - RJ, Brasil
Recebido em 27/03/2014
Aprovado em 15/07/2014
Autor correspondente:
Ana Beatriz Azevedo Queiroz
E-mail:
anabqueiroz@oi.com.br
RESUMO
OBJETIVO:
Descrever as representações sociais dos profissionais de saúde sobre o homem
acerca da infertilidade e analisar as repercussões dessas representações na
assistência.
MÉTODOS:
Pesquisa qualitativa, sustentada na Teoria das Representações Sociais na
perspectiva processual. Cenário foram dois hospitais universitários do Rio de
Janeiro. Participaram profissionais de saúde da área biomédica e de ciências
humanas, trabalhadores em reprodução humana. Para análise utilizou-se a Análise de
Conteúdo de Bardin.
RESULTADOS:
Os resultados indicam que as representações dos profissionais de saúde estão
ancoradas nas questões de gêneros e a formação acadêmica interfere nesta
construção. A infertilidade no homem foi representada como um problema específico
da mulher, não considerando o homem como sujeito da assistência.
CONCLUSÃO:
Conclui-se que os profissionais se sentem despreparados para assisti-lo,
reconhecendo a precariedade dos serviços de saúde sexual e reprodutiva para
acolhê-lo, apesar da existência de movimentos de novas estratégias de
assistência.
Palavras-chave: Infertilidade Masculina; Saúde Sexual e Reprodutiva; Direitos Reprodutivos; Psicologia Social.
INTRODUÇÃO
Em virtude das modificações ocorridas nas diferentes sociedades e culturas, que influenciam na composição da família, na sexualidade e nas relações de gênero, o homem vem se tornando distinto da ordem social, anteriormente, estabelecida e difundida1. O homem de hoje difere da representação do ser masculino patriarcal dos tempos remotos.
Frente a esta contemporaneidade, não é mais possível compreender o modelo biológico de dois sexos opostos, homem e mulher; ao contrário, é necessário considerar as variações ocorridas na questão de gênero, fenômeno que vem ocorrendo ao longo dos tempos, desembocando hoje em alterações nos modelos antropológicos e sociológicos da própria construção social dos gêneros2. Nesta perspectiva, é necessário levar em conta toda a complexidade dos conceitos que abarcam as diferenças existentes entre homens e mulheres quando se trata das questões relacionadas à saúde sexual e reprodutiva dos indivíduos.
A sociedade sempre interferiu nos diferentes momentos da reprodução humana, desde a organização social das relações sexuais entre os gêneros, até a decisão sobre ter filhos, quer no quantitativo como na idade cronológica para tê-los3. Nesse contexto, vale lembrar que a reprodução da população humana é inseparável e, em grande parte, determinada pela reprodução da sociedade e dos sistemas sociais como um todo4. Necessário também ressaltar que é nesse contexto, que surge a medicalização da reprodução e a interferência e controle na capacidade de procriação dos indivíduos.
A reprodução humana em um contexto histórico cultural é entendida como um ícone da fertilidade e inscrita no mesmo espaço, onde se constrói o papel cristão de cada um dos indivíduos e tais constructos são elementos que interferem fortemente na sexualidade entre homens e mulheres5.
As referências ligadas à reprodução humana estiveram, e ainda hoje estão fortemente associadas ao elemento feminino, cujo foco está centrado no planejamento familiar, no ciclo gravídico-puerperal, em métodos contraceptivos e no aborto. Com relação ao masculino, sempre foi dado o domínio do sexo e do prazer, para que possa viver a plenitude de sua sexualidade, sem que necessite preocupar-se com as questões relacionadas à procriação, por ser algo focalizado apenas na mulher.
No entanto, o homem não ficou alheio às questões relativas à reprodução humana, considerando que esta reprodução está ligada ao senso comum de constructos como a masculinidade, paternidade e virilidade. Esses fatores proporcionam um status social, induzindo-o a condição de bom procriador e reprodutor2. Nesse pensamento, a dificuldade para procriar no homem traz um impacto social e pessoal, muitas vezes, comprometendo sua autoestima, a afetividade e sua compreensão do simbolismo do papel masculino no contexto social.
A trajetória em busca da reprodução para homens e mulheres são distintas. Esta constatação pode ser verificada inclusive nos serviços de reprodução humana, onde a figura masculina é reduzida apenas ao acompanhamento da mulher ou quando solicitado a realizar algum exame ou procedimento6.
Atualmente, a literatura sugere que a infertilidade seja compreendida como uma situação de casal, independente da etiologia ser masculina, feminina, de ambos ou idiopática. Nessa ótica, faz-se necessário dar relevância semelhante para cada membro de um casal que vive essa situação sem, contudo, deixar de levar em consideração as características peculiares de cada gênero. Fato este, que ainda não é uma realidade nos serviços de saúde no Brasil. Visto que, grande parte dos serviços especializados em reprodução humana surge da área da saúde da mulher, a exemplo do campo da ginecologia7.
O contato frequente neste tipo de atendimento remete, não só a existência de uma diversidade na assistência a esses homens pelas diferentes áreas de formação profissional, mas a forma assistemática que muitos desses profissionais os assistem. Verifica-se também, a aparente dificuldade ou até mesmo a incapacidade de muitos profissionais em lidar com o homem na situação de infertilidade. Acolher suas queixas, suas demandas específicas nos serviços de reprodução humana ainda é algo incipiente e conflitante, principalmente, pela pouca participação desse homem nos serviços de saúde reprodutiva8.
A falta de ações proativas à busca de cuidados especializados, como na reprodução humana, contribui para a redução do número de homens envolvidos na assistência à saúde. Os homens normalmente mobilizam menos energia para resolver questões que envolvem o emocional, como é o caso da situação de infertilidade9.
Entretanto, mesmo diante dessa escassa participação, verifica-se que a vivência da infertilidade no homem revela novas demandas para os profissionais que atendem na saúde sexual e reprodutiva. Circunstância esta, que vem suscitando discussões e requerendo novas atitudes, no sentido de reconfigurar a assistência prestada nessa área.
Nesse contexto, a infertilidade no homem se conforma como um objeto cultural e psicossocial, na medida em que essa situação conduz os profissionais de saúde a uma forma de pensar, promovendo um sentido mais concreto em suas ações para assisti-lo. Este processo de elaboração baseia-se nas experiências, no sistema de informações, na sua formação acadêmica, nos valores, atitudes e normas. A experiência com a infertilidade no homem assume uma espessura social para os profissionais de saúde pelo fato de ser a infertilidade, um problema de caráter da saúde pública, em que o profissional deve estar atento quanto à relevância cultural que perpassa por uma discussão que alcança conceitos como gênero, família, masculinidade, entre outros10.
Considerando o exposto sobre o pensar e o fazer dos profissionais de saúde que atuam na área da reprodução humana, este estudo tem como objetivos: descrever as representações sociais de profissionais de saúde sobre o homem que vive a situação de infertilidade e analisar as repercussões dessas representações frente à assistência prestada.
Este estudo justifica-se pela necessidade de se discutir a assistência oferecida pelos profissionais de saúde aos homens que vivenciam a dificuldade para procriar, possibilitando contribuir para a inclusão efetiva da atenção ao homem nos serviços de saúde sexual e reprodutiva.
MÉTODOS
Pesquisa com abordagem qualitativa e descritiva, tendo como referencial a Teoria das Representações Sociais (TRS) na vertente processual, com o propósito de alcançar os conteúdos das representações sociais. A opção pela TRS se deve ao fato de ser capaz de fazer uma centralização do olhar na relação sujeito-objeto-sujeito, levando-se em consideração os fatores socioculturais e psicossociais11. A pesquisa foi desenvolvida em dois hospitais universitários do Rio de Janeiro, que possuem ambulatórios de reprodução humana e de assistência à infertilidade. Ambas as instituições são referências para esse tipo de tratamento e desfrutam de elevado conceito em função de seu compromisso com a assistência, ensino, pesquisa e extensão.
A entrada nos locais de investigação foi efetivada após aprovação do projeto pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery e Instituto de Atenção à Saúde São Francisco de Assis da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o parecer Nº 10/2010, e do Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com parecer: Nº 2637/2010, de acordo com a Resolução nº 466/2012, que regulamenta a pesquisa com seres humanos.
Os participantes do estudo foram 20 profissionais de saúde de nível superior que trabalham na área de reprodução humana. O universo que atendia aos critérios de inclusão à pesquisa nas duas instituições somou-se a 25 profissionais, sendo que cinco encontravam-se de férias e licença médica, totalizando 80% desses profissionais existentes nos dois cenários. Estes foram divididos em dois grupos de pertença com base em sua formação profissional: área biomédica onde foram agrupados os depoentes das profissões de enfermagem e medicina e, o segundo grupo, de profissionais da área de ciências humanas, compondo os da psicologia e serviço social, sendo 10 participantes de cada segmento. Essa classificação foi estipulada pela importância de destacar os diferentes grupos de profissionais que atuam frente ao homem com infertilidade. A TRS destaca que a diversidade dos indivíduos e as respectivas atitudes são ponto de partida, tendo como objetivo descobrir como os grupos podem construir um mundo estável e previsível a partir dessa diversidade11.
Os critérios de inclusão foram profissionais de saúde dos dois grupos de pertença que atendessem homens com diagnóstico médico de infertilidade classificadas como masculina ou dupla; isto é, quando os dois elementos do casal apresentam dificuldades para procriar, além de estar atuando com a especialidade da reprodução humana, pelo menos há um ano. Os critérios de exclusão foram profissionais de saúde que trabalham nessa área, na parte laboratorial, como os biólogos e biomédicos.
A técnica de coleta de dados foi a linguística verbal, utilizando-se um formulário com o intuito de caracterizar os profissionais de saúde e um roteiro para entrevista individual e semiestruturada, gravado em MP3, após autorização. A produção dos dados ocorreu entre os meses de outubro de 2010 a fevereiro de 2011, com aquiescência e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, respeitando aos critérios éticos, ao caráter sigiloso, privacidade e a possibilidade de interrupção da participação na pesquisa, sem qualquer prejuízo.
A análise dos resultados foi realizada por meio da Análise de Conteúdo de Bardin12. A organização desta análise foi orientada em três fases: pré-análise, exploração do material e tratamento, sendo utilizado o tema como Unidade de Registro. Na pré-análise, organizaram-se os dados produzidos, separando o material nos dois grupos de pertença para realizar a leitura flutuante e promover a familiarização desse material. A exploração possibilitou recortar os dados produzidos em unidades de contexto e de registro. Os dados foram organizados em categorias e subcategoriase analisados à luz do referencial teórico proposto.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Caracterização dos participantes
Os 20 participantes da pesquisa encontram-se na faixa etária entre 20 e 50 anos, sendo 14 do sexo feminino e seis do sexo masculino. Com relação à religião declarada, 10 referiram ser católicos. Quanto à situação conjugal, 13 se declararam em união estável, seis solteiros e um viúvo. No que se refere à conclusão de curso profissional, o tempo de bacharelato variou entre quatro e 24 anos, sendo que quatro tinham pós-graduação com título de doutor, cinco de mestre e nove de especialização. O tempo de trabalho no campo da reprodução humana variou entre um a sete anos. Do total desses participantes, 11 referiram ter algum parente próximo com problema relacionado à infertilidade, e um deles declarou ser a própria pessoa que vivencia essa situação.
Da análise dos dados com relação às Representações Sociais sobre o homem que vive a situação de infertilidade, emergiram três categorias: Infertilidade é coisa de mulher; Masculinidade/Virilidade em Cheque e O Homem Infértil: o silêncio. Na análise das repercussões dessas representações frente à assistência prestada emergiram duas categorias: o despreparo dos profissionais de saúde nos serviços para assistir ao homem infértil e a busca por novas estratégias para a assistência.
Representações Sociais sobre o homem que vive a situação de infertilidade
1º - Categoria - Infertilidade é Coisa de Mulher
De acordo com os discursos, evidenciou-se o fato que social e culturalmente construiu-se a ideia de que a infertilidade é um problema/culpa/responsabilidade feminina13. Essa representação deve-se, primordialmente, pelo fato da gestação, do parto e do nascimento serem fenômenos que ainda não transcenderam ao corpo feminino e, por esta razão, a incapacidade e/ou a dificuldade de procriar são aspectos inerentes ao gênero feminino.
Isso não é um problema importante para o homem, geralmente ele nem pensa nisso, só pensa se a mulher cobra, porque não é coisa inerente ao homem. A questão da infertilidade é mais importante para a mulher, porque é ela quem engravida, amamenta, que quer curtir a gravidez, sentir o filho em seu ventre.(Entrevista 2 - Profissional Área Biomédica).
A infertilidade é algo de maior responsabilidade para a mulher. A mulher gera, e não poder ter filho para a mulher é como ser deficiente. Para o homem fica mais observando, não tem tanto peso. (Entrevista 1 - Profissional Área Humana).
A maternidade ainda é, na atualidade, fator preponderante na identidade feminina no senso comum. Tanto é senso comum que esta representação apresentou-se fortemente em ambos os grupos de pertença, todos os depoentes da área das ciências Biomédica e seis dos profissionais das ciências Humanas. Esta representação assinala como todo pensamento humano é impregnado de significações, enriquecendo a tessitura do que é, para cada um, a realidade vivida11. Os profissionais da área biomédica acreditam que a infertilidade tem sua causa pautada em uma falha orgânica, restrita ao corpo biológico, enquanto os da área das ciências humanas atribuem a situação da infertilidade, também, às causas psicológicas.
2º - Categoria - Masculinidade/Virilidade em Cheque
Apesar de a infertilidade ter sido representada como um problema da mulher, alguns profissionais reconhecem que quando essa dificuldade é determinada pelo homem, existe um forte comprometimento da imagem masculina, colocando em xeque a sua masculinidade e virilidade, conforme os relatos abaixo:
Talvez seja até relacionada por eles à questão de potência enquanto macho, essa história da virilidade. (Entrevista 1 - Profissional da Área Humana).
Acho que, o quê incomoda o homem quando ele tem dificuldade de ter filho está muito mais ligado à garantia da sua autoimagem como homem do que com o problema em si. (Entrevista 2 - Profissional da Área Biomédica).
Se para o homem, a capacidade de procriar está relacionada ao status social da masculinidade e da virilidade, a ausência dessa capacidade o inscreve em uma classe de indivíduos que não tem o direito de compartilhar este status, em virtude do seu comprometimento10. A paternidade ainda parece ter um sentido de reconhecimento pelo grupo social numa esfera pública, onde a dificuldade de fecundar levaria a sensação de não pertencimento social e a negação da masculinidade pela incompetência para cumprir seu papel. E é exatamente essa identificação que envolve o conhecimento do grupo e o surgimento do senso comum, assim como, padrões justificatórios14.
Para os profissionais de saúde a incapacidade de gerar filhos, afeta, principalmente, o seu reconhecimento como homem. Sob este ângulo, há indicações de que o exercício da sexualidade masculina, na esfera doméstica, apresenta-se como refém da capacidade fecundante do macho. Este fato diz respeito não apenas aos profissionais do grupo de pertença da área biomédica, mas também, aos da área das ciências humanas, totalizando os 20 entrevistados. Dessa forma, há uma tendência majoritária nessa representação nesse grupo.
A capacidade para reprodução humana está muito associada à virilidade e à disposição sexual masculina. (Entrevista 3 - Área humana).
Problema muito sério para a maioria dos homens, porque diz respeito à sua condição de macho, de masculino. (Entrevista 4 - Área biomédica).
Socialmente, a dificuldade para procriar se encontra sob o signo do desvio, o que revela como estatuto biológico o seu estatuto social. O fato de a esterilidade ter sido considerada um problema ao longo da história em diversas culturas e sociedades indica que o desvio social precede a compreensão do desvio biológico3. Esse desvio passa a ser uma realidade social, estruturada nas relações entre indivíduos e grupos. O conceito de masculinidade na sociedade é um conceito que está relacionado a determinantes basilares de comportamentos sexuais, os quais, por sua vez, se acham localizados no arcabouço de um complexo conjunto de fatores de natureza, não só biológica e psicológica como também social e cultural2. Portanto, na visão dos depoentes, isto se deve à necessidade de atestar que a sexualidade e potência sexual do homem não estão comprometidas.
Sem dúvida, a dificuldade acaba refletindo em diversos aspectos da vida social do homem, principalmente em uma sociedade ainda tão machista como a nossa, na qual se confunde infertilidade com impotência. (Entrevista 6 - Área humana).
Outros fazem disso um motivo para pular a cerca e precisam provar que são homens. (Entrevista 7 - Área biomédica).
Possivelmente, devido achegada de um filho ser entendido como a concretização da prova da fecundidade e, consequentemente da masculinidade, por ter sido histórica e culturalmente atrelada ao ato sexual, a falta de sucesso dessa prova, determina interferência no campo social, cultural, da saúde e na vida sexual, podendo alterar o seu comportamento frente ao seu meio social15.
3º - Categoria - O Homem Infértil: o silêncio
Essa categoria derivou-se da afirmação dos participantes de que o homem pouco ou nada relata sobre os problemas de saúde de um modo geral, e, por decorrência, também não falam dos problemas relacionados à sua condição de infertilidade. Dessa forma, deu textura material às ideias, objetivando o homem infértil como o homem do silêncio.
O homem não fala da sua intimidade, principalmente, sobre a dificuldade de ter filhos. Ele é silêncio puro. (Entrevista 8 - Área biomédica).
Os homens são calados quando se trata desse assunto. Dificilmente um homem que não pode ter filhos sairá por aí dizendo isso. (Entrevista 1 - Área humana).
Este pensamento pode ser explicado quando se analisa que nas sociedades judaico-cristãs a proibição ao assunto infertilidade se dá, principalmente, quando o sujeito com comprometimento é o homem. A infertilidade, neste segmento populacional, alcança um aspecto vital na maneira como os homens se percebem, pois se sentem afetados nos dois impulsos ancestrais que vêm definindo as atitudes e os comportamentos masculinos ao longo dos séculos: sua virilidade e capacidade de procriar2. Este silêncio sobre a sexualidade e a masculinidade, também pode remeter ao interesse de expulsar, negar ou reduzir aquilo que não se quer assumir16. Essa situação pode explicar a negação e o distanciamento do homem, pois a apropriação de uma prática social depende de que esta apareça para o indivíduo como aceitável, no contexto de seus valores17. Esse simbolismo do silêncio está ancorado ao modelo da masculinidade ainda hegemônico, fortemente, identificado à imagem do homem heterossexual, viril, poderoso e infalível que ainda é vigente na sociedade. Essa categoria não apresentou distinção entre os grupos de pertença, uma vez que emergiu de oito profissionais das ciências biomédicas e de seis das ciências humanas.
Repercussão dessas representações frente à assistência prestada
1º - Categoria - Despreparo dos profissionais de saúde nos serviços para assistir ao homem infértil
Esta categoria foi a mais frequente no que se refere às repercussões das representações sociais dos profissionais de saúde sobre o homem na situação de infertilidade nos serviços de reprodução humana. Dos 20 depoentes, 13 estão nessa categoria, sendo sete da área das ciências Humanas e seis das ciências Biomédicas.
Em um espaço preparado para a mulher não é fácil fazer com que o homem se sinta muito a vontade. E homem não é instrumentalizado para pensar em reprodução. (Entrevista 8 - Área Humana).
Tenho dificuldade, sim. É muito difícil lidar com o homem, porque o serviço não está preparado e não é adequado para atender ao público masculino, a maioria aqui é ginecologista. Falar de reprodução com uma mulher é fácil. (Entrevista 9 - Área Biomédica).
O fato do homem, historicamente, não pensar sobre a saúde foi um dos elementos explicativos dados por esse grupo para o não comparecimento aos atendimentos ou para uma participação tímida nos serviços de reprodução humana. Esses depoimentos reforçam que os problemas reprodutivos do casal têm sido, desde sempre, atribuídos às mulheres, sendo difícil trabalhar com os homens quando se trata dessas questões3. Pelo fato da reprodução humana ter sido criada e desenvolvida até hoje no interior dos serviços de ginecologia, provoca um obstáculo na aproximação desses homens inférteis.
Além disso, os profissionais de saúde percebem uma inadequação da estrutura física dos serviços para atendimento aos homens, quando precisa ser examinado ou coletar seu esperma para exames ou procedimentos. Muitos dos depoentes indicaram a falta de acolhimento e adequação da rotina institucional como causas à sua ausência, incluindo outros fatores, como os horários de atendimento, que julgaram inadequados pelas questões trabalhistas.
A formação reificada desses profissionais se dá numa esfera do cuidado feminino, reforçando uma inferência da ineficácia dos serviços de saúde e da pouca capacitação do profissional do sexo masculino, o que reforça ser uma questão cultural do homem2,6.
Vejo os serviços muito despreparados para lidar com o homem. Acho que os únicos lugares onde se vê com mais frequência o homem são nas áreas de medicina do trabalho, urologia e ortopedia. Na área da reprodução temos que caminhar para tornar a figura do homem mais frequente, mas nem sei se é possível, porque teria que mudar o jeito do homem. Os homens não são construídos para procurar os serviços e isso se reflete na sua saúde. (Entrevista 4 - Área Biomédica).
Para os 13 profissionais que estão nessa categoria, a figura do homem é imperceptível, o que pode ser explicada pela sua histórica ausência nos serviços de saúde18. Estes relataram que o homem não foi feito para se cuidar, e seguindo esta linha de raciocínio, não esperam que o homem esteja nos serviços buscando o seu cuidado. As diferenças de papéis associadas ao imaginário social de gênero explicam por que os cuidados são próprios do universo do gênero feminino8. Trata-se da cultura do risco e da violência que permeia à vida de homens em que cuidar da saúde pode significar cuidar da doença18. Esta categoria desvela que, para esses profissionais, parece existir uma forte culpabilização dos homens, de modo a reforçar sua ausência quase que única e exclusivamente como sua responsabilidade, isentando tanto os serviços quanto os profissionais de saúde pela sua invisibilidade.
Frente a representação contida nas categorias: Infertilidade é coisa de mulher e O homem infértil: o silêncio, pode-se compreender o reconhecimento do despreparo dos profissionais da saúde nos serviços de reprodução humana, poiso homem sendo imperceptível aos olhos desses profissionais, mantém-se apenas como coadjuvante do atendimento prestado à mulher, não sendo sujeito da sua atenção.
2º - Categoria - Novas estratégias para o atendimento do homem infértil: uma questão de gênero
Esta categoria remete a uma representação contra-hegemônica ao que os depoentes relataram como o papel masculino e ao que se vê como assistência ao homem nos serviços de reprodução humana. Seis profissionais da área das ciências humanas expressaram ideias que levaram à formação desta categoria ao considerarem que o homem também seria afetado, quando possuísse o desejo de ser pai e tivesse dificuldade para procriar. Estes profissionais procuram agir em seus atendimentos de forma diferenciada, buscando construir estratégias que possibilitem atrair o homem para o serviço, oportunizando a promoção do acolhimento e uma assistência de qualidade.
A representação social reflete o pensamento e a ação humana em conformidade com uma norma estabelecida por um grupo ou coletividade11. Identifica-se que, neste grupo, o homem começa a ser visto de forma diferenciada, isto é, com um olhar que é capaz de entendê-lo como um indivíduo que necessita de cuidados e de receber assistência dentro da esfera da saúde sexual e reprodutiva7.
Esta categoria evidencia um movimento de mudança do grupo da ciência humana quanto à representação do homem que vive a situação de infertilidade. Esses profissionais encontram-se em fase de superação de valores arcaicos, que se transformam, paralelamente, com outras mudanças sociais em relação à paternidade e à masculinidade. Para esses profissionais, o homem faz parte do cenário da saúde sexual e reprodutiva, precisa ser acolhido nos serviços, e para tanto, há que se prepararemos profissionais, para assistir a este protagonista. Reconhecem que necessitam de maior capacitação profissional, de que os serviços de reprodução humana precisam adaptar-se ao homem, que as políticas governamentais exigem compromissos com as questões de gênero; entretanto, esses entraves não os paralisam. Apontam para necessidade da ruptura aos modelos tradicionais de atendimento, pautado na clássica lógica do processo saúde-doença e buscam estratégias de assistência, que envolvam a participação, promovam o empoderamento e a autonomia masculina:
O fato da gravidez acontecer no corpo da mulher é um elemento dificultador, porque o homem está fora deste contexto. Procuro burlar este fato, construindo métodos que aproximem o homem das decisões, seja referente à gravidez ou as intervenções médicas, de modo que se sinta coautor da decisão e se torne corresponsável da ação. (Entrevista 5 - Área Humana).
As políticas de saúde públicas, representadas, especialmente, pelo Programa Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem/PNAISH19, no que concerne à inclusão do homem nos serviços de saúde, observam as suas especificidades, devendo ser capazes de promover mudanças a partir da formação acadêmica e social que os profissionais recebem hoje e tendem a perpetuar esse quadro.
Considerando que homens e mulheres têm direito ao acesso aos serviços de saúde, disponibilizado de modo igualitário e equânime, proposto como direito humano universal e previsto no Sistema Único de Saúde, é necessário que se tenha condições de construir um e outro serviço, sem que haja comprometimento do que já foi conquistado pelas mulheres, em detrimento dos direitos dos homens.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As representações sociais dos profissionais de saúde que trabalham em reprodução humana, acerca do homem que vive a situação de infertilidade apontam, que tanto o conhecimento reificado como o senso comum interfere na formulação de suas representações sociais. Para os participantes da área biomédica, a origem da infertilidade no homem se assenta nas questões ligadas à incapacidade física, uma falha orgânica, ou seja, dentro de um processo de corporificação, apreendido na formação acadêmica. Entretanto, o senso comum de que a infertilidade é inerente ao gênero feminino ainda persiste na elaboração das representações desses profissionais.
Há um silêncio sobre as questões que envolvem a infertilidade masculina, em que nem amigos e nem familiares sabem das situações que acometem os homens. Todo esse silêncio da incapacidade de procriar é submerso pela representação que envolve o masculino, enquanto uma elaboração social e cultural de que o homem é um ser procriador e que isto reflete na sua masculinidade, força e capacidade.
Considerando que os profissionais da área biomédica representam a infertilidade como "coisa de mulher", eles não reconhecem o homem como sujeito do seu cuidado, sentindo-se despreparados para lidar com esse homem no que se refere à saúde sexual e reprodutiva, especialmente, frente à dificuldade de procriar.
Para o grupo de pertença dos profissionais da área das ciências humanas, a infertilidade tem sua origem nas questões físicas e corporais, demonstrando ser esta uma representação majoritária, pois aparece, fortemente, em ambos os grupos. Porém, este segmento associou o problema da falha orgânica aos aspectos psicológicos, tendo também a representação da infertilidade como algo feminino. No entanto, conclui-se que essa representação majoritária começa a ser questionada por esse grupo, visto que há, ainda que incipiente, uma representação que se desloca em direção a pensar o homem no ambiente de saúde, sobretudo relacionado à saúde sexual e reprodutiva.
Dessa forma, os resultados, desta pesquisa, apresentam indícios de uma trajetória de mudanças e rupturas dos modelos tradicionais de pensamentos e comportamentos, apesar de ainda não se identificar o abandono aos dogmas culturais da identidade masculina. Nesse contexto, os profissionais representam os homens com infertilidade como sujeitos que têm a masculinidade e a virilidade em cheque.
Reconhecem a precariedade dos serviços de saúde em reprodução humana para acolher o homem e o despreparo que os próprios profissionais têm em assisti-lo. Finalmente, verifica-se uma releitura e um reposicionamento em busca de novas estratégias de assistência no intuito de trazer este homem como protagonista no cenário da reprodução humana.
Os resultados oriundos, desta pesquisa, mostram que as representações sociais dos profissionais de saúde que trabalham na área da reprodução humana sobre o homem que vive a situação de infertilidade sofrem influência cultural das questões dos gêneros: masculino e feminino. Este fato fica evidente quando os profissionais de saúde, independente de sua categoria profissional, representam que a infertilidade no homem ainda está focada como um problema específico do feminino - a mulher, o que dificulta a aproximação dos mesmos para uma abordagem direta a essa clientela.
Essas representações formam-se, tanto nos meios sociais em que vivem os profissionais de saúde, como também, na sua formação acadêmica, numa construção simbólica alicerçada em valores culturais, crenças, experiências e em um universo reificado.
As Representações Sociais que esses profissionais de saúde têm desse homem infértil interferem na assistência prestada, muitas vezes, impedindo que os serviços de saúde sejam capazes de acolhê-los ou impedindo que aqueles que procuram os serviços se percebam como parte integrante do mesmo.
Vale ressaltar a necessidade de mudanças sob a perspectiva da formação profissional para o enfrentamento dos desafios quanto às questões de gênero na realidade social em que se assiste o homem. Entretanto, sabe-se que esta mudança não é algo simples, tampouco apenas uma troca de lugares de detentor do poder e de comportamento para um empoderamento sociocultural vigente nas sociedades ocidentais, em que não se beneficiam nem homens e mulheres.
Urge, portanto, que os profissionais que atuam na área da saúde do homem sejam capazes de romper com o paradigma da masculinidade definidora do gênero masculino, apenas como castrador e repressor da feminilidade, desde a sua formação até o seu cotidiano profissional. Estes se opõem a homens e mulheres unicamente por características corporais, transportando preconceitos, trazendo prejuízos à inclusão do homem nos espaços necessários ao cuidado à saúde.
A limitação do estudo ocorreu pelo universo incorporado nos dois cenários, requerendo ampliar para outras instituições de saúde privadas, onde existe a procura pela reprodução humana assistida.
REFERÊNCIAS