Volume 4, Número 2, Mai/Ago - 2000
ARTIGOS DE PESQUISA
Nascendo para aprender: entendendo o cuidado em saúde e enfermagem
Born to learn: understanding health and nursing care
Nacer para aprender: entender el cuidado en salud y enfermería
Nébia M. A. FigueiredoI; Iraci dos SantosII
IDoutora em Enfermagem e Titular do Departamento de Enfermagem Fundamental - EEAN/UNI-RIO
IIDoutora em Enfermagem e Titular da Faculdade de enfermagem, UERJ. (Aposentada)
RESUMO
Neste trabalho descreveu-se a construção teórico-prática e o desenvolvimento da Oficina "o Cuidar em Saúde", realizada na Bahia em 1997. Para estimular a reflexão e contribuir para a construção do conhecimento sobre o cuidar em saúde, as autoras propuseram aos 22 participantes da Oficina um espaço de expressão, onde a aplicação da abordagem sócio-poética e o método do grupo-pesquisador de Gauthier e Santos (1996) promoveriam a liberação do imaginário grupal. Através da imaginação incentivada, vivenciaram ser útero, canal vaginal, feto (ser cuidado) e ser cuidador. A partir desta experiência, considerou-se o cuidado como dependente de quem o aplica, levando-se em conta as implicações dos profissionais na instituição de trabalho, além das implicações pessoais (psico-afetiva, histórico-existencial e estrutural / profissional).
Palavras-chave: Cuidados de enfermagem - Sóciopoética
ABSTRACT
This paper describes the theoretical and practical construction of the workshop entitled "Health Care", held in Bahia in 1997. In order to stimulate reflection and to contribute to knowledge construction about health care, the authors proposed to the 22 participants of the workshop a space designed for expression and liberation of the group's imaginary. The Sociopoetics approach as well as the Researcher Group Method by Gauthier and Santos (1996) were used in order to achieve this goal. By encouraging imagination, the participants experienced being uterus, birth canal (vagina), fetus (being cared for) and the one who cares. From this experience, care was seen as dependent on those who deal with it. Implications for the professionals at the work place, besides personal implications (psychological/emotional, historical/existential and structural/professional) were also taken into consideration.
Keywords: Nursing care - Sociopoetics
RESUMEN
Este trabajo describe la construcción teórica y práctica y el desarrollo del taller "El Cuidar en Salud", realizado en el Estado de Bahia, en 1997. Para estimular con la reflexión y contribuir a la construcción del conocimiento sobre el cuidar en salud, las autoras hubieron propuesto a los 22 participantes del taller un espacio de expresión, donde la aplicación del abordaje sociopoético y el método del grupo investigador de Gauthier y Santos (1996) producirían la liberación del imaginario en grupo. A través de la imaginación estimulada, los participantes tuvieron la experiencia como útero, vagina, feto (ser cuidado) y el ser cuidador. A partir de dicha experiencia, juzgamos el cuidado como dependiente de quien lo aplica, teniendo en cuenta las implicaciones de los profesionales en la institución de trabajo, además de las implicaciones personales (psicoafectiva, histórico-existencial y estructural/profesional).
Palabras claves: Cuidado en enfermería - Sociopoética
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
"Nascer é entrar num mundo onde seremos submetidos à obrigação de aprender, da qual ninguém escapa, pois o sujeito, para ser no mundo, precisa viver e deixar viver, ou seja, se apropriar do mundo". (Charlot, 1997)
Apresentamos a construção teórico-prática do desenvolvimento da Oficina "O Cuidar em Saúde", oferecida no II PARTRANSE, nos dias 21 e 22 de novembro de 1997, em Vitória da Conquista - Bahia, bem como os resultados desta que se transformou numa pesquisa de campo.
Assim, para refletir, pesquisar e discutir o tema proposto pelos organizadores do citado evento, propusemos aos inscritos (22) nessa Oficina um espaço de expressão onde a aplicação da abordagem sóciopoética e o método do grupo-pesquisador de Gauthier e Santos (1996) promoveriam a liberação do imaginário destas pessoas.
Referente à sóciopoética, lembramos que os autores propõem esta abordagem no conhecimento do ser humano como a introdução de um novo discurso, uma nova linguagem nas pesquisas, a qual possibilita construir textos criativos nas áreas das ciências da saúde, sociais e humanas. Uma de suas características e finalidades é promover um processo de criação/desestabilização, nos grupos e nas pessoas.
Por outro lado, a aplicação do método do grupo-pesquisador possibilita, entre os pesquisadores institucionais, os pesquisados e/ou culturas supostamente dominadas, a abertura de diálogo para a discussão de assuntos, problemas, hipóteses e objetivos do interesse de ambos.
Admite-se, portanto, conforme a assertiva de Gauthier e Santos (1996), que o conhecimento não é privilégio apenas dos pesquisadores, pois pode-se incentivar nas pessoas a livre expressão dos seus saberes implícitos, num sentido crítico.
Desse modo, conforme o preconizado na sóciopoética, a união do corpo e intelecto, a convocação da sensibilidade, sensualidade, sexualidade, memória, intuição e criatividade facilitará:
- a expressão verbal, escrita e representada por imagens, em desenhos, das coisas reprimidas, escondidas e recalcadas sobre o tema referido.
Partimos do pressuposto de que cuidado e saúde nas instituições de ensino e de saúde são "instituições" para o bem e/ou mal-estar do ser humano.
Comumente, estes temas são discutidos ou apresentados de um modo muito objetivo, ou seja, apenas racional, onde o sujeto "conhecedor" do assunto nem sempre dá oportunidade ao ouvinte de refletir e poder discordar dele.
O modo de trabalhar com o apoio da abordagem Sóciopoética tem-nos mostrado ser este o caminho mais rico e agradável de pesquisar.
Para que isto acontecesse, nesta Oficina, promoveu-se uma dinâmica de sensibilização à criatividade como estratégia de estímulo aos participantes.
Nela eles viveriam e se deixariam viver com a obrigatoriedade de aprender para se situar e estar no mundo, como afirma Charlot (1997); de aprender com ele mesmo; com os outros e através da comunicação entendida como: o olhar, o tocar, o sentir, o ouvir e o cheirar.
Sobre o Cuidar em Saúde, descrevemos nosso entendimento sob o ponto de vista de enfermagem. É uma ação envolvendo a aplicação dos conhecimentos científicos de: microbiologia, anatomia, fisiologia, patologia, farmacologia, antropologia, psicologia, sociologia, física, matemática, estética e arte; conhecimentos específicos sobre os métodos e técnicas para o desenvolvimento do cuidado; comunicação verbal e não-verbal; ecologia ambiental e humana para o apoio teórico-prático na implementação do cuidado. Cuidado é o resultado ou atividade fim da ação de cuidar. Envolve o contato direto ou indireto da pessoa que cuida com a que é cuidada; lugar onde os corpos são os intermediadores do toque com todos os seus sentidos: - tocar com: o pegar, o olhar, o escutar, o cheirar, o falar, os gestos e jeitos de cuidar, conforme defende Figueiredo (1996).
SAÚDE - é bem-estar como modo de sentir de cada pessoa, modo de viver e de estar no mundo como uma situação pessoal, específica e particular... Ter Saúde é se sentir sujeito participante do processo político e produtivo. Ter direito de ser respeitado, reconhecido, confortado. Ter deveres de reconhecer, respeitar, cuidar e confortar o outro em sua complexidade e fragilidade.
Nesta forma de entender, deslocamos o eixo de estudos centrado nos agentes patológicos (doença) e nos voltamos para o sentido maior de bem-estar que envolve: uma ecologia ambiente, relações sociais e subjetividade humana; uma política para repensar questões delimitadores e que causam mal-estar; uma espiritualidade como possibilidade de criar, sonhar, brincar, imaginar. Ter liberdade para ser, estar, acreditar e transcender; uma economia para repensar e participar das mudanças para resolver desigualdades sociais, desenvolvimento econômico, desemprego, e a falta de perspectiva de uma vida melhor - Humanização.
Refletir e discutir sobre CUIDAR em SAÚDE é pensar não apenas nas enfermeiras (os) mas nos responsáveis (mulheres e homens) pelo cuidado com os filhos, companheiros, idosos - nas famílias e nas comunidades. É pensar em corpos que se expressam através dos SENTIDOS, livres para a SENSIBILIDADE e ESPIRITUALIDADE; para demonstrar o que sentem, vêem, ouvem, e sabem.
No espaço de expressão criado na OFICINA, os corpos participantes (des)construíram e (re)construíram o que aprenderam sobre este tema durante a sua vida. A experiência de (re)NASCER foi fundamental para esta reflexão e discussão.
GESTANDO A VIVÊNCIA DE NASCER
Elaborando o roteiro para a Oficina, questões nos surgiram como pontos de partida:
- Por que uma oficina sobre Cuidar em Saúde num Encontro Transcultural?
- Quem participaria dela e por quê?
- Saúde e Cultura podem se associar para a compreensão do ser humano que cuidamos?
- Cuidar e Saúde poderiam ser Instituições naquele momento?
Apesar destas questões, sabíamos e sentíamos a importância de estarmos no encontro como representantes da área de saúde, ou melhor, das ciências da vida. O que iria acontecer contribuiria para as nossas discussões sobre o conhecimento da enfermagem, e a divulgação deste num momento de transdisciplinaridade.
Então, foram objetivos das atividades desenvolvidas na OFICINA:
- Estimular no grupo pesquisado a reflexão sobre o Cuidar em Saúde a partir da imaginação incentivada pela vivência de ser: útero, canal vaginal, feto, (ser cuidado) e ser cuidador.
- Contribuir para construção do conhecimento sobre Cuidar em Saúde a partir do imaginário grupal.
Denominamos PART(O)TRANSE os seguintes momentos:
- Explicitação aos participantes sobre o trabalho do parto imaginação/dramatização Cuidar em Saúde;
- Demonstrações pelas(o) pesquisadoras(es) de como todos vivenciariam a mesma experiência onde alternariam a vivência de serem útero, canal vaginal, feto e cuidadores.
- Informações de que na experiência de ser feto haveria contensão dos sentidos: visão, audição e fala.
A MATERNAGEM
Para a realização da Oficina, procurou-se um ambiente tranqüilo, com janelas que pudessem ser escurecidas a fim de diminuir a claridade nos momentos de descontração ou relaxamento dos membros do grupo-pesquisador. O desejável seria uma sala, com dois ambientes, ampla, limpa e com música ambiente. Enfim, apropriada a uma dramatização de pré-parto e parto.
Os materiais utilizados pelas(os) pesquisadoras(es) e grupo-pesquisador foram: máquina fotográfica, fita cassete e gravador e os próprios para desenhar ou ilustrar as imagens sobre a vivência do nascer no PART(O)TRANSE (papel craft, papel ofício, cartolinas, pilot e lápis de cor, cola, figuras, tintas, pincéis, tesouras).
O grupo - pesquisador foi composto por 22 inscritos na Oficina, a saber: uma professora primária, três indígenas (Pataxó e Kiriri), sendo um deles auxiliar de enfermagem, e 18 graduandos de enfermagem. Lembramos que o número total de inscritos inicialmente foi 52. A nosso pedido, o grupo foi reduzido pela impossibilidade de implementação da estratégia proposta. É difícil maternalizar 52 pessoas a um só tempo. Mesmo as famílias nordestinas, cujos numerosos filhos são maternalizados ao longo dos anos, passam por sérias dificuldades. Imagine nós meras(os) pesquisadoras(es)! Ainda, como lembrete; consideramos o número de estudantes de enfermagem para especular sobre a diversidade de cultura das pessoas que se inscreveram e não puderam participar.
Quanto ao método do grupo - pesquisador proposto por Gauthier e Santos (1996), recorda-se que este prevê o desenvolvimento de seis etapas. Entretanto, entre estes, só nos foi possível implementar três:
1) Idealização, escolha e análise do tema, haja vista oposição e divergências fundamentadas nas instituições e nas implicações ideológicas, organizacionais e libidinais, segundo Lourau (1996), por parte das pessoas envolvidas na pesquisa.
2) Delimitação da demanda de saber do grupo a fim de ajustamentos para desenvolver o tema da pesquisa. Neste caso, estabeleceu-se um acordo sobre: o sentido do cuidado em saúde, o desejo de cuidar e a relação prática e o saber cuidar.
3) Análise dos resultados da pesquisa desde as interpretações obtidas no grupo pesquisador.
As etapas de discussão final dos resultados, para discordância e/ou concordância dos membros do grupo, e a comunicação científica ficamos devendo aos nossos co-pesquisadores. Aqui, nossas desculpas, se esta divulgação não corresponder à "realidade" imaginada naquele momento.
O nome do evento estimulou a criação da dinâmica - vivência. Entendemos que um parto representaria simbolicamente a experiência de estar num mundo, onde o corpo da mãe é a Instituição que protege e depois expulsa o ser criado para uma outra Instituição, o mundo onde este novo ser é colocado ou jogado para nele se criar, se adaptar e sobreviver em outros úteros, tais como o da natureza - a mãe de todos nós - o das Instituições e da Sociedade.
Na dramatização do parto, definiu-se que os co-pesquisadores vivenciariam o ser: ÚTERO - local onde o corpo é gerado, protegido e num determinado momento é expulso por ele a fim de enfrentar um novo modo de viver. Durante a gestação (e, por analogia, durante a educação, trabalho, e nas Instituições de Saúde) o que se pensa e espera é um corpo (feto) recebendo tudo da mãe para sobreviver, crescer e nascer. Ele (feto) não faz nenhum esforço. O ÚTERO é metaforicamente qualquer Instituição que protege controlando e depois coloca para fora um novo ser (no caso das instituições, um novo profissional, num novo trabalhador, um novo educador, um novo cuidador de enfermagem).
O CANAL VAGINAL é o local por onde o corpo é expulso pelo útero, onde o feto deverá passar. Metaforicamente, ele sofre os primeiros momentos de pressão, de desconforto, de dificuldade para enfrentar um novo mundo; FETO - (corpo em gestação, em educação,...). O sujeito que se encontrava protegido, confortado, alimentado e aconchegado pelo calor e suposta tranqüilidade uterina. Expulso do útero, ele enfrenta um ambiente, desconhecido (novos colegas, pessoas e profissionais e seus trabalhos nas Instituições). CUIDADOR - pessoa que recebe o novo ser e lhes presta os primeiros cuidados (enfermeiras e sua equipe e/ou familiares).
Durante o desenvolvimento da dinâmica-trabalho de Parto, observamos que os participantes ora eram útero, canal vaginal, feto e cuidadores. Constatamos que essa experiência estimulou neles expectativa e excitação. Alguns recusaram-se a participar de todas as etapas, preferindo apreciar a dramatização.
Quando os corpos se entrelaçavam para formar o útero e o canal vaginal, debruçando-se sobre o feto (de olhos vendados), comportavam-se como se fossem realmente um órgão com a função de proteger aquele corpo confortado. Quase não havia barulho... No entanto, na hora apropriada para se movimentar e expulsar o feto, eles se tornavam agitados, fazendo barulho. O esforço, despendido naquele ato, deixava seus corpos molhados de suor. Era como se fosse o esforço físico de um corpo fazendo força para expulsar aquele que já não devia mais ficar no útero, por se encontrar apto para enfrentar outros locais, outros mundos.
Quando o feto nascia, eles (útero e canal vaginal) apresentavam-se ofegantes, cansados, entregues e muitas vezes jogavam-se no chão. Largavam seus corpos merecedores de um descanso. Aquele que vivia a experiência de ser feto, se comportava como se fosse de fato um feto, e apresentava o mesmo cansaço quando nascia.
Os que faziam o papel de cuidadores mostravam-se ansiosos ao receberem os seres que nasciam e, assim, nem todos prestavam os devidos cuidados. Percebemos que tanto o FETO como os CUIDADORES estavam inseguros e não sabiam o que realmente iriam fazer. Interessante lembrar que o grupo-pesquisador não foi bem orientado para estas duas etapas da oficina. Queríamos que eles construíssem os principais conceitos sobre o ser cuidado e o ser cuidador.
Terminada esta etapa, a sala foi escurecida para que todos deitassem no chão e fechassem os olhos para refletir sobre a referida vivência. Eles assim ficaram por 10 minutos. Foi um silêncio sepulcral ou sacral, como afirma Barbier (1993), "sobre o imaginário resultante do impacto de forças e de energias que nos perpassam sem que possamos controlar".
Lembramos que os participantes concordaram conosco para experimentarem esta vivência e nela eles encontraram um sentido, algo que mexeu com eles e os fez dizer: "nascer novamente", "lembrando o seu próprio nascimento", da "insegurança de não saber quem os receberia quando nascessem" e de como enfrentariam o novo mundo, uma nova vida".
Depois deste descanso, foi-lhes solicitado desenhar, ilustrar de qualquer modo as imagens que tiveram durante a dramatização, dando um significado para as vivências: ser útero, feto, canal vaginal e cuidador.
Este momento foi realizado em duas etapas: desenharam o que imaginaram e sentiram e depois falaram sobre seus desenhos.
NASCENDO E/OU CONHECENDO
O cuidar/estar no útero é noite sem luar.
Lugar da escuridão, da barreira
que nos isola do mundo lá fora.
Na escuridão do útero/terra, minhas raízes são protegidas.
Coisa estranha, diferente
é estar neste mundo perturbado.
É sentir-se no deserto no meio da tempestade; Como se fosse o cuidado gestado, num mar de agonia, de águas compressoras, carreadoras de expectativas, de ânsias de liberdade. Liberdade que se vem, deságua num outro espaço cheio d'água. É ele o poço do confronto da vida com a sua finalidade?
É ser aprisionado num túnel onde as relações conduzem ao desconhecido. Será a saúde ou a morte este desconhecido?
O cuidado/útero pode ser uma casa que a todos abrigaria.
Assim como um corpo que aquece e dá energia.
Quisera criar um útero que gera, e apronta para que nasça feliz a criança... cuidado! É isto, o cuidar é um nascedouro de conforto, calor, justiça.
Coisa estranha, diferente..., é estar neste mundo/universo perturbado. Nele ser comprimido, incomodado, chacoalhado, enfim... liquidificado, mas protegido.
Coisa boa, mas estranha..., é dele nascer para a vida sentindo-se confortado.
A descrição do cuidado/instituição imaginado e ilustrado pelo grupo-pesquisador a partir do simbolismo/vivência - ser feto dentro de um útero produziu o seguinte conhecimento:
Nas instituições fechadas, totais, conforme as descreve Goffman (1984), o poder institucional é muito forte abrangendo tudo e a todos. Desse modo, o cuidado que é dependente do conhecimento de quem o aplica torna-se instituído, inclusive lembrando Lourau (1996), pelas próprias implicações dos profissionais com a instituição, na qual trabalha, além das suas pessoais implicações psico-afetiva, histórico-existencial e estrutural-profissional, citadas por Barbier (1985). Assim, devido ao poder institucional e às implicações institucionais e individuais dos cuidadores, os clientes tornam-se, também, sub missos ao cuidado instituído.
A pesquisa desenvolvida nesta Oficina mostrou que o grupo-pesquisador, inclusos os ministrantes desta, se reportou, nas suas descrições, às dominações e aos seus efeitos comumente observados nas Instituições de Saúde. A propósito, lembramos o pertencente majoritário dos participantes à área da saúde e que possivelmente, poucos entre eles refletiam anteriormente sobre a experiência do parto; ou seja, o que acon tece neste momento com o útero, o feto e o canal vaginal.
Apesar dos ensinamentos da análise institucional, há mais de 30 anos, as instituições citadas, com a pretensão de recuperar a saúde dos clientes e, mais ainda, proteger a sociedade, supostamente sadia, os aprisiona no aparato e engrenagem institucional. Na reprodução deste modelo institucional, durante a Oficina, o grupo-pesquisador revelou sua sensação de fechamento, isolamento do mundo, estranhamento, sobre-pujando as sensações de proteção, por ele esperada. Recorda-se que tradicionalmente as instituições de saúde possuem ambientes amplos, pintados de cor clara e os profissionais se vestem de branco. Entretanto, no útero cuidador e protetor as pessoas sentiram-se na escuridão, numa apavorante "noite sem luar", ou seja, sem expectativas de iluminar a rejeitada escuridão.
Este lugar, onde tantas pessoas (clientes e profissionais) circulam, é visto como um "espaço cheio d'água", "um lago para patinar", "um deserto no meio da tempestade", "um mar em agonia". Experimentando esta idéia, também imaginamos o cliente, dentro dele, sozinho, com medo de se afogar, se desequilibrar e sem possibilidade de fugir do deserto, por temer a tempestade.
É neste "mundo perturbado" que, para o cliente, mais crescem suas individualidade, singularidade e particularidade.
Quem sabe, talvez, por ser ele burocraticamente tão "achacoalhado", "comprimido", "contraído" e até "liquidificado", pelo próprio cuidado, imposto pela instituição que o massifica e descaracteriza. Interessante é notar que o grupo (exceto quatro pessoas) vivenciou o ser útero, feto, canal e cuidadores. Todavia foram mínimas as ilustrações e descrições de ser útero (3) e de ser cuidador (1). O que impediu o grupo-pesquisador de imaginar e descrever sua vivência de instituição responsável pelo cuidado, conforto e segurança do cliente e dos profissionais implementadores desta atividade fim?
Será a ação do cuidado, algo assim, tão misteriosa, reprimida, recalcada que as pessoas dela não podem falar? Ou elas mesmas não têm tanta certeza do que fazem e do como fazem o cuidado? Eis aí um bom motivo para liberar o imaginário.
A trajetória experiencial para sair do útero/instituição, grande mãe protetora e/ou casa paterna onde cabe sempre mais um, foi descrita por sensações de medo do desconhecido.
· o grupo-pesquisador então imagina: o que vai encontrar, quem vai recebê-lo e como vai viver lá fora se já se habituou à conhecida e protetora escuridão institucional. Ela esconde os fluidos corporais indesejáveis; camufla os odores; imobiliza e/ou emperra os fluxos de comunicação que lhes parece desinteressantes.
Protegido e confortado pela omissão das coisas, por parte do útero, o Grupo se sente forte, mas insuficiente para lutar contra as forças que empurram na direção da expectativa... de liberdade, do nascer e viver de verdade.
Nascer é um aperto, um sufoco. Depende de coragem para atravessar a estreita ponte que vai nos tirar desta dificuldade. Deixando a escuridão conivente da instituição, vislumbra-se um lugar iluminado, mas desconhecido.
Na indecisão de nascer e/ou deixar a proteção uterina é a própria escuridão que nos conduz à luz e ao sol. Num último aperto de conforto e proteção, o útero nos expulsa e chora na nossa partida. É uma sensação de fecho ecler enganchado. Será que nascer é ficar próximo à mãe e entre os cuidadores?
O canal vaginal é uma gruta, rampa/despenhadeiro. Devemos, então, caminhar com cuidado para alcançar um túnel colorido e felizes entrarmos num tobogã d'água maravilhoso, onde nos sentimos, enfim, livres da escuridão. São ondas e ondas que se assemelham a apertos, abraços de conforto e proteção pela proximidade de retorno ao que já nos era familiar. Assim, caímos numa piscina onde nadamos em nuvens macias que ternamente oferecem luz, liberdade e confiança; um outro caminho nos faz desaguar no mar onde podemos apagar o calor do desconforto do balanço da expulsão. Encontramos, então, uma porta entreaberta, contraditoriamente sem barreira e até facilitadora. Ela nos convida a sair mas... Cuidado! Para o que abre esta porta? Será para novas descobertas?
A recepção dos cuidadores nos fez pensar em muitas coisas. Impossível fixar a variedade de imagens surgidas de todos os lados. Ora feliz por sair do caldeirão (poço quente?), ora inseguro pela sensação de estar num lago onde deveria esquiar para encontrar o equilíbrio.
· Estranhas imagens de olhos d'água. Olhos de prazer. Olhos de medo. Olhos de medo de ter prazer? O som do mundo ensurdeceu e apagou as imagens quando os cuidadores nos puxaram de vez nos fazendo cair... na realidade? O toque dos cuidadores nos despertou para sua participação transcultural, proteção e segurança. Seu amparo era um rio de confiança para não se afogar... para não morrer.
· Sair do rio, todavia, é entrar em outro. Se um rio é limitante, o outro é libertador. Encontrar os cuidadores e/ou sair para o cuidado é encontrar pressões de todos os lados. O cuidado nos situa em um cume que nos permite uma visão abrangente. Visão que se torna mais fácil quando há boa recepção.
Assim, ser cuidador é sentir-se responsável pelos que saem (entram no mundo) e pelos que ficam à nossa volta.
Refletindo sobre esta experimentação do grupo-pesquisador relativa ao cuidado de saúde enquanto instituição, deparamo-nos com um espanto. Espanto pela similaridade, ou melhor, pela facilidade com que este pode se transmutar em cuidado de educação. Na verdade, não foi dada ao grupo uma vivência de cuidados específicos de saúde. As orientações se referiam à :
- ser útero é dar abrigo, cobrir com os braços, proteger do mundo lá fora;
- ser feto é usufruir desta proteção e nela se deixar levar até ser recebido ao nascer.
- ser cuidador é receber o feto procurando ampará-lo e protegê-lo contra as dificuldades.
Então, o que se descobriu nesta experiência foi um feto/cliente/aluno passivo, desempenhando o papel para ele desenhado, sem reações e interferências na realidade encontrada. Seus sentimentos são de medo do escuro, ou seja, do cuidado desconhecido ou do saber que ele ignora.
O conforto, o calor, a justiça e a proteção são sentidas em decorrência da barreira isolante que lhe dá expectativas de um devir conforto, iluminação e sabedoria.
Se o papel do útero/instituição do cuidado e/ou do ensino é cuidar/ensinar, sem dizer para e porque, sem questionar o que o feto/cliente/aluno precisa e/ou quer saber; o papel deste último ficou claro nesta pesquisa. Ele recebe mas se incomoda com as pressões, contrações, rejeições, turbulências dos fluxos, a aridez do vazio no cuidado e na educação. Pensa em fugir nem que seja num mar de agonia, mas que o liberte da proteção indesejada da "lata de sardinha" onde o tratamento é igual para todos, independente de suas individualidades. Quando o útero/instituição é imaginado como um circo que abriga e dá prazer, até faz rir a quem ele abriga.
Há que se pensar na onipotência deste cuidador/educador que por todos se sente responsável. Há que se pensar neste manancial de saber que se tem dúvidas em compartilhar, para somar, diminuir, multiplicar e dividir, inclusive responsabilidades. Há que se imaginar, pensar, intuir e criar novas formas de saúde e educação, pois nesta pesquisa descobriu-se: quem também precisa de cuidados é o próprio cuidado e os cuidadores, sejam eles profissionais da saúde ou educadores.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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GAUTHIER, Jacques; SANTOS, Iraci dos. A sócio-poética. Rio de Janeiro: DEPEXT/NAPE/UERJ, 1996.
GOFFMANN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectivas, 1974. 316 p.
LOURAU, René. Análise institucional. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1996.