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CAPES

Volume 4, Número 1, Jan/Abr - 2000

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Marcos conceituais na direção do cuidado: um estudo reflexivo do cuidado solidário de enfermagem

 

Conceptual marks towards care direction: a solidary reflective study on nursing

 

Marcos conceptuales en la dirección del cuidado : un estudio reflexivo y solidario de enfermería

 

 

Almerinda Holanda GurgelI; Enedina SoaresII

IProfª. Adjunta do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Ceará-UFC. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da UFC
IIProfª. Drª. Adjunta da Universidade do Rio de Janeiro - UNIRIO. Pesquisadora Bolsista do Programa de Desenvolvimento Científico Regional DCR/CNPq/UFC

 

 


RESUMO

Este é um estudo reflexivo sobre a definição de marcos conceituais, com objetivo de buscar o conceito de cuidado na dimensão do cotidiano da enfermagem, centrado no paciente terminal, organizado em dois momentos: observação do cuidado na práxis do enfermeiro e o sentido do cuidado desvelado pelas enfermeiras que cuidam desse tipo de paciente. O estudo foi realizado na clínica médico-cirúrgica de um hospital público, situado na cidade de Fortaleza - Ceará. A construção do marco conceitual para o cuidado solidário implicou sua organização em quatro categorias: sentimento solidário, relacionamento solidário, tomada de decisão/ação solidária e atitude solidária. Com base nessas categorias, os enfermeiros consideraram que o cuidado prestado está mais centrado em paradigma tecnicista, fora dos padrões recomendados de convivência e compartilhamento diante do modo de cuidar e ser cuidado. Ficou evidenciado que o cuidado com o paciente terminal deve ser contínuo, individualizado e sem restrições.

Palavras-chave: Cuidado de enfermagem - Pacientes


ABSTRACT

This reflective study on the definition of conceptual marks has the purpose of searching for the concept of care in daily Nursing. During the investigation, there was an attempt to analyze nursing's performance in different care situations that focused on the terminal patient. Two moments were studied: the observation of care in nurse's praxis and the meaning of care delivery for nurses who assist this kind of patient. This study was undertaken in a medical surgical clinic of a public hospital located in the city of Fortaleza, Ceará (Brazil). The construction of the conceptual mark for solidary care implied its organization into four categories: solidary feeling, solidary relationship, solidary action/decision making and solidary attitude. Based on these categories, nurses concluded that care delivery is actually more centered on a technical paradigm that does not meet the recommended stardards for nursing care. As far as the terminal patient is concerned, the study concluded that a continuous, individualized and unrestricted care should be delivered.

Keywords: Nursing care - Patient


RESUMEN

Es un estudio reflexivo sobre la definición de marcos conceptuales, con el objetivo de buscar el concepto de cuidado en la dimensión de cada día de la Enfermería. A lo largo del trabajo, se buscó, en el contexto de comprensión, tener las impresión del desempeño de la Enfermería en las diferentes situaciones del cuidado centrado en el paciente terminal en dos momentos: una observación del cuidado en la praxis del enfermero y el sentido del cuidado de las enfermeras a ese tipo de paciente. El estudio fue realizado en la clínica médicoquirúrgica de un hospital público, ubicado en la ciudad de Fortaleza - Ceará. La construcción del marco conceptual para el cuidado solidario implicó su organización en cuatro categorías: sentimiento solidario, relación solidaria, decisión/acción solidaria y actitud solidaria. Com base en esas categorías, los enfermeros consideraron que el cuidado está más centrado en paradigmas tecnicistas, fuera de los modelos recomendables de convivir y compartir el modo de ser cuidador y ser cuidado. En caso del paciente terminal, se quedó evidenciado que el cuidado debe ser continuo, individual y sin restricciones.

Palabras claves: Cuidado de enfermería - Pacientes


 

 

INTRODUÇÃO: REFLEXÃO PARA O ESTUDO

A definição de Marcos Conceituais envolve uma temática que vem sendo pesquisada desde meados do século XIX, sob a influência de Florence Nightingale e suas seguidoras, interessadas na busca do desenvolvimento científico da profissão de enfermagem. Marcos Conceituais, segundo Madureira (1993), são pensamentos que envolvem imagens, noções abstratas, formulações mentais sobre um objeto, qualidade ou evento resultantes de percepção e da experiência. Assim, qualquer pessoa possui seus próprios conceitos sobre todos os elementos prováveis ou não, de vida cotidiana (Torres, 1990).

Watson & Mayers (1981) referem que marco conceitual é a organização do conhecimento, capaz de servir de guia ou referência para a prática profissional, de modo que os elementos envolvidos na dinâmica desta prática tenham uma idéia clara de como conduzir os seus esforços, para o alcance dos objetivos comuns.

Paterson (1977) e Newman (1982) consideram marco conceitual uma estrutura abstrata que associa diferentes partes de uma maneira sequencial, formando, assim, um "todo" inseparável. As autoras denotam essas partes associadas que consistem de um conjunto de conceitos, proposições e definições, representando os elementos principais de um marco conceitual definido como alterações ou imagens mentais de propriedades, eventos e objetos que simbolizam a realidade.

É importante salientar que os marcos conceituais, na enfermagem, existem para dar direção à prática de enfermagem em geral, bem assim, de guiar um currículo ou ser usado no desenvolvimento de pesquisa.

Há que ser dada importância ao processo de construção de um marco conceitual, a partir da seleção de conceitos-chave que podem ser construídos, transcendendo interesses individuais, para caracterização do programa em si, ao exemplo de um marco conceitual para currículo.

A prática de enfermagem, fundamentada em um marco conceitual, remete-nos a uma relação terapêutica afetiva com o cliente, conduzindo ao aprimoramento sobre os conhecimentos de modelos teóricos de enfermagem. De igual forma, permite-nos ampliar a visão e a dimensão multifacetada do ser humano, no seu universo de vivências e experiências.

Nesse contexto, que serve de background para o presente estudo, formou-se a intenção de busca do conceito cuidado, na dimensão da práxis do cotidiano da enfermeira.

 

METODOLOGIA

Para o presente estudo, formou-se a intenção de busca do conceito cuidado na dimensão da práxis da enfermeira tendo a investigação como recorte sobre o seu desempenho, nas diferentes situações de cuidar centrada no paciente terminal.

A coleta de dados, desenvolvida no trabalho de campo, foi organizada em dois momentos: a observação do cuidado prestado pela enfermeira e sentido de cuidar, desvelado por elas em entrevista livre.

Procuramos articular-nos com enfermeiras da frente de trabalho, justo aquelas que cuidam do doente terminal. Apresentamos nossa proposta e a solicitação da devida autorização para desenvolver a pesquisa de campo ao tempo em que lhes foi assegurado o anonimato de suas verdadeiras identidades*, e que as informações prestadas seriam usadas exclusivamente como suporte para este estudo.

 

OBSERVANDO O CUIDADO NA PRÁXIS DAS ENFERMEIRAS

O processo de observação do cuidado, na prática de enfermagem, para fins deste estudo, foi realizado com oito enfermeiras em uma unidade de clínica médico cirúrgica de um hospital público federal, situado no município de Fortaleza - CE, durante o mês de julho de 1999. Os objetivos foram traçados com vistas à obtenção de informações sobre a compreensão, no sentido do cuidado percebido pelas enfermeiras, ao tempo em que o desempenham durante o seu processo de trabalho.

A equipe de enfermagem, que integra o cenário selecionado para este estudo, é composta de enfermeiras(os), técnicos e auxiliares de enfermagem. Parte dessa equipe é vinculada ao regime de trabalho terceirizado, com uma carga horária mensal de 144 horas e a outra parte é composta de funcionários estatutários, com 156 horas mensais. A caracterização dos sujeitos pela identidade profissional, na perspectiva do grupo, causou certa perplexidade, diante da realidade presenciada no cotidiano do processo de cuidar, isso porque as excessivas e exaustivas atividades eram desenvolvidas indiscriminadamente, sem que fosse possível manter uma hierarquização ou, até mesmo, um vínculo interativo pessoa - pessoa. Entretanto, para a realização deste estudo trabalhou-se apenas com oito enfermeiras.

O cuidado prestado pelo grupo estudado parece funcionar no paradigma tecnicista. Poder-se-ia até dizer que os procedimentos técnicos são realizados dentro de uma visão de rotina (ocupação), fora dos padrões recomendados de convivência e compartilhamento, diante do modo de ser cuidador e ser cuidado.

Comungamos com as concepções de Colliére (1989) no momento em que considera o cuidar, prestar cuidados, como parte da relação homem/mundo, presente no cotidiano e ali permanecendo durante toda a vida. Para compreender melhor o seu significado, é necessário situá-las em um contexto que lhes dê sentido e real significado. Esse contexto é o contexto de viver, ou de morrer, processo vivenciado pelo homem, pelo grupo humano, em todo o seu existir.

Chama-nos, também, a atenção as reflexões de Waldow (1995, p. 17), ao considerar o cuidar não apenas como uma atividade ou tarefa realizada no sentido de tratar uma ferida, aliviar um desconforto e auxiliar na cura de uma doença. A autora vai mais além, tentando captar o sentido mais amplo ...o cuidado como uma forma de expressão, de relacionamento com o outro ser e com o mundo, enfim, como uma forma de viver plenamente, e acrescenta "...cuidar, significa comportamentos e ações que envolvem conhecimentos, valores, habilidades e atitudes, empreendidas no sentido de favorecer as potencialidades das pessoas para manter ou melhorar a condição humana no processo de viver e morrer".

Essa forma de entendimento encontra ressonância em Leloup (1996, p. 100): cuidar do ser não significa ocupar-se com uma existência, que se poderia apreender ou aconchegar no mais íntimo do ser humano; trata-se de uma transcendência interior, que é sempre dentro de nós o desconhecido e o inacessível.

O sentido do cuidado na perspectiva da autenticidade, a partir da práxis das enfermeiras e durante as entrevistas, demonstrou, pelas informações colhidas, a crença no cuidado a um paciente terminal como um fator continuo, individual, sem restrições, haja vista a pessoa ter o direito de ser assistida, implicando isso no dever do profissional em administrar as ações de cuidado. Tal afirmativa ficou explícita na fala de duas enfermeiras:

...ninguém pode deixar de prestar os cuidados a que qualquer pessoa tem direito (Enf. Anne).

eu acho que o paciente terminal deve ser tratado e cuidado pela equipe de enfermagem, mesmo sabendo que o paciente vai morrer em breve, ele deve morrer, pelo menos, com o mínimo de dignidade (Enf. Pérola).

Diante desses depoimentos, na perspectiva de uma análise reflexiva do conceito cuidado, lembramos Arruda & Zagonel (1997, p.163), referindo-se às implicações do cuidado: O cuidar em enfermagem implica na inter-relação subjetiva enfermeira-cliente, inter-relação esta que transforma o nosso ser aí - no mundo. Cuidar implica em compreender e ser compreendido, buscando o crescimento e desenvolvimento da pessoa do ser - aí - no - mundo.

Daí podermos entender os seguintes depoimentos:

...não importa quanto custa o cuidado, é um direito ...é dar atenção rigorosa, visando o bem-estar físico e mental ...é o zelo por uma pessoa (Enf. Pérola).

...é levar a atenção ao paciente com amor, carinho e perfeição (Enf. Celsa).

O filósofo contemporâneo Boff (1999) cuidado deriva de cogitare, donde Cogitatus guardar relação com suas modificações, ao exemplo de "coyedar, coidar, cuidar." Por assim ser, "cogitare" é o mesmo que cura: cogitar, pensar, colocar atenção, mostrar interesse, revelar atitude de desvelo e de preocupação. É dessa forma que Boff exprime o cuidado como significação de desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato. Desse modo, cuidado/cura é atitude fundamental, partida de dentro da pessoa e que vai se centrar no outro, com desvelo e solicitude.

Aproximando os discursos dos sujeitos, Waldow (1998, p.4) afirma no seu livro Cuidado Humano que o cuidado é:

...Como uma forma ética e estética de viver, que se inicia pelo amor à natureza e passa pela apreciação do belo. Consiste no respeito à dignidade humana, na sensibilidade para com o sofrimento e na ajuda para superá-lo, para enfrentá-lo e para aceitar o inevitável. Esse processo envolve crescimento e aprimoramento.

Por outro lado, a fundamentação teórica de Enfermagem, segundo Leíninger In George (1993, p. 288), define cuidado como aqueles fenômenos relacionados com o comportamento de prestação de auxílio, apoio ou capacitação, para um indivíduo ou por outro indivíduo ou grupo, com necessidades evidentes ou antecipadas de melhorar ou aperfeiçoar uma condição ou vida humana. Os sujeitos desse estudo, por assim ser, desvelaram o conceito de cuidado da seguinte maneira: quando se vai fazer uma coisa com amor, carinho e perfeição, zelo e proteção por uma pessoa doente. Observar e executar meios de bem-estar ao ser humano (Enf. Sidynea).

Através desses depoimentos, é sentida a aproximação do cuidador com a preocupação, confirmando-se uma teórica humanística que prioriza o cuidado, contrapondo-se às visões mais tradicionais.

No dizer de Watson (1988, p. 29), o cuidado é o ideal moral, cujo fim é proteção, crescimento e preservação da dignidade humana. Enfatiza a autora ainda que o cuidado envolve valores, decisões e confiança para cuidar, conhecimento, ações de cuidado e suas conseqüências.

Nesse mesmo contexto, Nightingale (reedição 1989, p. l6, l06) remete ao entendimento sobre cuidado como: colocar o paciente nas melhores condições possíveis, a fim de que a natureza nele desenvolva sua ação. As leis da enfermagem são idênticas às leis da saúde, sendo estas últimas, na sua maioria, desconhecidas.

Para o filósofo Heidegger (1993), cuidado é um fenômeno ontológico - existencial básico, ou seja, ele possibilita a existência humana, enquanto tal. Diz ainda que o cuidado é o solo em que se move toda a interpretação do ser humano, portanto, fundamental para a interpretação do ser humano.

Em sendo assim, cuidado é entendido, no pensamento heideggeriano, como: quando eu cuido, estou me ocupando com ele, sendo que, para tal, eu já devo estar preocupada com ele (paciente/cliente). O cuidado com preocupação está fundamentado na verdadeira solicitude autêntica e difere do cuidado apenas como ocupação, fútil, na sua essência, daquele envolvido de preocupação humana, essencial, existencial. O cuidado, nesse sentido, é sinônimo de solidariedade.

A partir da indagação sobre o cuidado, como um ato de solidariedade, foi possível a identificação, nos sujeitos pesquisados, da crença quanto ao fato de ser solidário ou não com o paciente terminal.

Entendemos que a crença de ser solidário no cuidado envolve acompanhar o paciente terminal na sua dor, admitir a solidariedade compreendida como satisfação mútua. O direito sobre a vida é algo que aparece nos depoimentos daqueles que acreditam haver relação entre cuidado e solidariedade .

Ser solidário no cuidado na concepção dessas enfermeiras é:

Cuidado/solidariedade ao paciente terminal pode ser melhor demonstrado pelo estar próximo, fazer companhia e/ou aliviar a dor ...é colocar o paciente, que está em situação gravíssima e que merece cuidados intensivos, dependendo totalmente da ação da equipe de saúde (Enf. Kasia).

...É o cuidado com aquele paciente sem nenhuma perspectiva de vida, que possui uma doença crônica em estágio terminal e que vai levá-lo à morte, a qualquer momento (Enf. Vaderez).

Tentando chegar à compreensão do conceito cuidado, com referência ao paciente terminal, os discursos, em referência apontam o modo de ser de preocupação, no qual os sujeitos se encontram na maioria das vezes comprometidos consigo mesmo e com os outros.

Corroborando tais discursos, Erdmann, (1997, p. 210) chama atenção sobre o cuidado como valor da vida, por participar do processo produtor e protetor da mesma, e como forma de respeito à natureza - portanto, é essência da vida dos seres da natureza.

Essa relação do cuidado com a vida, processo de viver, se dá por processos limitados, nem sempre confortáveis, algumas vezes até agressivos pelo homem. Este ditos processos podem ocorrer ora mais técnica e ordenadamente ora mais empiricamente, ao acaso.

Desse modo, buscando ampliar a análise do conceito de cuidado com os achados na literatura, Silva (1997, p. 197) recomenda, como possibilidade de atendimento às necessidades do cliente, facilitar o cuidado transdisciplinar, incluindo: a sensibilidade, as emoções, a solidariedade, a intuição, a espiritualidade e a capacidade criadora do imaginário, indo tais dimensões além do etnocentrismo e logocentrismo.

Waldow (1995, p.17) chama a atenção para o cuidar, não apenas como uma atividade ou tarefa realizada no sentido de tratar uma ferida, aliviar um desconforto e auxiliar na cura de uma doença. A autora prossegue, tentando captar o sentido mais amplo do cuidado, como forma de expressão, de relacionamento com o outro ser e com o mundo, enfim, como uma forma de viver plenamente.

A compreensão do cuidado autêntico abre a possibilidade de formação de futuros profissionais de saúde, na área de enfermagem, embasados nos conceitos de liberdade com responsabilidade, de adoção de comportamento ético, voltado para a tolerância, a compreensão e a solidariedade.

O pensamento filosófico de Morin (1997) remete a uma abordagem do cuidado humano como possibilidade de abertura de um outro caminho solidário, capaz de permitir, também, que um outro caminho se abra para a ciência, a arte e estética da enfermagem, servindo para concretizar a percepção e o pensamento complexo, em uma compreensão que tão bem o autor soube divulgar.

O sentido do cuidado na perspectiva da inautenticidade fazer da enfermagem se caracteriza por relações interpessoais contemplando as experiências profissionais - enfermeiras movidas pela a essência de um trabalho, voltado para o objeto do seu fazer - o cliente.

Embora o ato de cuidar seja próprio da natureza humana, a Enfermagem se apropria e assume o cuidado como essência de sua profissão.

Nesse sentido, o estudo sobre o cuidado pode ser observado na práxis de enfermagem, quando os pacientes terminais têm estreita correlação com o processo de morrer, bastante lento se associado a uma doença crônica, gravíssima, relacionada com a presença constante e próxima da morte.

De algumas falas das enfermeiras, ficou evidenciado que o paciente terminal é aquele que está vivenciando a última fase da vida, não havendo, no entanto, caracterização dessa fase, nem como ela pode ser identificada:

É aquele que está nós últimos dias de sua vida, cuja doença não tem mais como solucionar diante do cuidado (Enf. Jaqueline).

É aquele que se encontra na fase terminal de vida, em que não há mais recursos de saúde que promovam ou recuperem sua saúde (Enf. Natividade).

É o paciente que está nos últimos momentos de sua vida terrena, para o qual não há chances de recuperação, mesmo sendo cuidado (Enf. Karina).

A análise desses depoimentos, em consonância com as posições de Morin e Kern (1995, p. 129 - 134), faz entender o reconhecimento da realidade complexa, da nossa realidade humana, social histórica, é muito difícil. A disfunção/redução, que controla a maior parte do pensamento, separa uns dos outros nos diferentes aspectos da realidade, isolando os objetos ou fenômenos de seu ambiente. É incapaz de integrar um conhecimento em seu contexto e no sistema global que lhe dá sentido, o mesmo ocorrendo em relação à força transformadora do tempo. De tal sorte, a realidade não é legível, de maneira evidente, nos fatos. Pode haver uma relação de incerteza entre o ideal e o real, assim como as fronteiras que separam o possível do impossível. Há coerções que impedem certas possibilidades, sendo que algumas são insuperáveis pelo homem, como, por exemplo, a mortalidade.

Ainda, na compreensão dos enfermeiros, o cuidado com o paciente terminal é oneroso, sem resposta terapêutica positiva do quadro clínico, não apresentando motivos para ser continuado, haja vista trazer apenas desgaste para os profissionais e familiares, e sofrimento para o paciente terminal, além de possuir um valor de custo muito alto.

...acho um sofrimento prolongado, à toa, cujo cuidado só traz dor e falsas esperanças ao paciente e à família...

...na maioria dos casos, o cuidado ao paciente terminal é um prolongamento do sofrimento, além do enorme gasto financeiro (Enf. Celsa).

...percebo o cuidado como mais sofrimento, mais gasto e mais estresse para a família e para os profissionais de saúde (Enf. Anne).

Essa forma de perceber o cuidado é impessoal e, portanto, afastada de si mesma, limitante, em termos de possibilidades de atuação, das enfermeiras, enquanto preocupadas com o ser cliente, dentro de uma visão humana. Assim, contrapondo-se a tais discursos, alerta Leopard, (1997) que o papel do enfermeiro, no final do século XX, já se há caracterizado pela necessidade de ser retomado o caráter humanístico, essencial do cuidado, tão obscurecido pela supervalorização do tecnicismo. Para a autora, um dos interesses mais sólidos na enfermagem tem sido compreender a natureza do cuidado, sua origem e sua expressão profissional.

Tal realidade, se faz próxima das abordagens do método fenomenológico, evidenciadas nos depoimentos e que remetem o cuidado inautêntico como "prolongamento do sofrimento", na relação homem/mundo, a partir do momento em que produz gastos, estresse e falsa esperança.

O aspecto básico a considerar, diante desse discurso, acerca dos pressupostos básicos da Teórica de Enfermagem, encontra apoio em Jean Watson (1979), ao advertir que "o cuidado de enfermagem deve ser voltado para a contribuição do bem-estar". Segundo Waldow (1998, p.129), a necessidade do cuidado se dá em todo ciclo vital humano, em qualquer situação, seja de enfermidade, incapacidade e até por ocasião da morte. A cura pode ou não ser possível, mas a ocorrência da morte é real.

Essa compreensão do cuidado inautêntico revela-se a partir das tomadas de depoimentos das enfermeiras, corroborada no pensar de Morin, (1997, p. 15): a realidade é feita de laços e intenções; nosso conhecimento é incapaz de perceber o complexus - o tecido que junta o todo.

Verifica-se, no determinismo, que a realidade não é feita de todas as dimensões humanas em cada ato ou ação, mostrando-se o sujeito incapaz de perceber o "complexus".

Além disso, a aproximação da complexa compreensão desses depoimentos, permitiu-nos chegar a uma análise crítica do conceito de cuidado inautêntico, em oposição ao pensamento e conhecimento positivista e a todo determinismo. Segundo Morin (1997, p. 108), a complexidade negocia com a incerteza, em uma perspectiva do estabelecimento de pontes provisórias entre o ser - que-busca e o desconhecido.

 

CONSTRUINDO UM CONCEITO DE CUIDADO SOLIDÁRIO

Buscamos, de início, para construção do cuidado solidário, a realização de uma análise reflexiva de estudos teórico e empírico, ancorados em referenciais filosóficos e teoristas da enfermagem. Alguns pensamentos embasaram a construção do conceito formado sobre o cuidado que, segundo Waldow (1998, p. 103), envolve atenção, cautela, responsabilidade e integração, com a pessoa que se cuida, sem tornar esta relação parasita mas, sim, oportuna para ajudar o outro a se encontrar, promovendo o seu crescimento. Tal assertiva envolve compromisso individual de compartilhar o seu eu, com o eu do outro, de modo que ele possa crescer a partir do seu esforço e condições [cuidado humano] representando essa forma de viver, de ser, e de se expressar. Essa é uma postura ética e estética, frente ao mundo.

A solidariedade é entendida como um fato humano. Ela adquire um valor prático e, como a individualidade comporta dever, se esse fato for essencial, não há como agir contra o seu existencial, o dever de torná-la tão perfeita quanto possível só faz aumentar o seu valor. Dever de solidariedade significa, portanto, dever relativo à solidariedade.

Na perspectiva deste trabalho, com abordagem sobre marcos conceituais do cuidado solidário de enfermagem, após a aproximação do estudo da realidade com o estudo das teorias, pode-se, finalmente, construir algumas idéias dentro de uma visão compreensiva sobre o cuidado solidário, organizado em quatro categorias: sentimento solidário, relacionamento solidário, tomada de decisão/ação solidária e atitude solidária.

Cumpre-nos referir que a idéia de categorizar o processo de cuidado solidário representa esboços mentais, decorrentes de reflexões, de experiências passadas e de conhecimentos obtidos na disciplina Análise de Marcos Conceituais em Enfermagem.

Categorias do conceito cuidado solidário:

Categoria 1. Sentimento solidário

Esta categoria se manifesta através dos sentimentos solidários: amor, afeto, tolerância, paciência, carinho, preocupação, proteção, desvelo, respeito, dignidade, humanismo, holismo, conforto espiritual e prazer em cuidar do cliente, família e comunidade.

Categoria 2. Relacionamento solidário

Optou-se, nesta categoria, por elementos de relacionamento solidário, envolvendo: presença, convivência, compartilhamento de emoções, intersubjetividade, relacionamento terapêutico, transpessoal de crescimento e desenvolvimento individual e coletivo.

Categoria 3. Tomada de decisão/ação solidária

Nesta categoria, o cuidado solidário ocorre a partir de práticas alternativas de saúde, incluíndo as terapias orientais: fitoterapia, homeopatia, toque terapêutico, reflexologia; são interações embasadas no compromisso e responsabilidade de restaurar o corpo e o espirito, o que possibilita bem-estar e vida, com dignidade, em situações de crise. Seu uso se estende às incapacidades, enfermidades, ou em situação de morrer: enfim, são ações biopsicossociais e espirituais.

Categoria 4. Atitude solidária

Nesta categoria, é enfatizada a atitude solidária do ser que cuida do outro ser cuidado, com interação dos elementos: envolvimento, ética, atenção, meditação, empatia, ajuda mútua, estar com outro no experienciar, presença, responsabilidade, compromisso, fé, esperança e honestidade.

Os esclarecimentos aqui prestados, contemplados nas quatro categorias do cuidado solidário de enfermagem, permitiram fosse o estudo concluído, com a definição conceitual de cuidado solidário.

Cuidado Solidário representa uma ação terapêutica do ser cuidador, em cuidar do ser cuidado, a partir de: atitudes, sentimentos e relacionamentos interativos humanos, nas quais estão inseridas as dimensões psicológicas espirituais e afetivas. Expressa, ainda, tomadas de decisãos/ações solidárias, cujo conteúdo abrange: contextualização, complexidade, emancipação, expressividade e transdisciplinaridade, que delineiam o cuidado como ação terapêutica determinante da profissão de enfermagem.

 

 

CONSIDERAÇÕES REFLEXIVAS FINAIS

Com apoio em levantamento bibliográfico, foi possível aproximar os achados da observação e entrevistas nos estudos voltados para o cuidado humano autêntico com preocupação com o outro e cuidado inautêntico.

Para Simões e Souza (1997, p. 53), o cuidar do sujeito, do ser-aí, quaisquer que sejam as nuanças, é sua essência. Portanto, mesmo que sejamos indiferentes em nossas ações, o olhar atento para a nossa vivência profissional evidencia que o agir na enfermagem é singular, já que cada cliente cuidado também o é.

Como interessadas nessa temática, dispostas a estudos voltados para o cuidar, buscamos o conceito de cuidado centrado na solidariedade humana do paciente terminal, apresentando um conteúdo oriundo de nossas reflexões mentais, com divisão em quatro categorias, englobando: sentimento, relacionamento interativo, tomada de decisão/ação e atitudes solidárias.

Nesse sentido, vale ser lembrada a importância do cuidado solidário, no que se refere à sua aplicabilidade durante a assistência de enfermagem. Em um futuro próximo, já no 3º milênio, é de se acreditar que a comunidade científica de enfermagem irá proclamar e demonstrar no ensino e no serviço este cuidado solidário e humano. Julgamos da maior necessidade a mobilização, a sensibilização dos enfermeiros, para discussão dessa temática, sempre com mais freqüência e com maior profundidade.

Resta-nos dizer que as idéias sobre cuidado, cristalizadas neste estudo, representam construções resultantes da observação do estudo da realidade, sendo também fruto da aproximação do pensamento filosófico, e do exteriorizado pela comunidade científica da enfermagem.

 

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