Volume 4, Número 1, Jan/Abr - 2000
ARTIGOS DE PESQUISA
Incidência de problemas oculares em portadores do HIV/AIDS: uma manifestação na consulta de enfermagem
Incidence of ocular disorders in HIV positive patients: findings during nursing consultation
Incidencia de enfermedades oftalmológicas en personas con SIDA: hallazgos en la consulta de enfermería
Joselany Afio CaetanoI; Lorita Marlena Freitag PagliucaII; Enedina SoaresIII
IProfessora da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), mestre em Enfermagem
IIProfessora Titular deEnfermagem Fundamental do Departamento de Enfermagem/UFC, Coordenadora do Projeto Saúde Ocular, financiado pelo CNPq
IIIProfessora Dra. bolsista do Programa de Desenvolvimento Científico Regional CNPq
RESUMO
O objetivo deste estudo, do tipo exploratório-descritivo, foi conhecer os problemas oculares em indivíduos portadores do HIV/AIDS e correlacionar estas disfunções com a fase da doença e as queixas referidas. Seu desenvolvimento ocorreu em hospital de referência em AIDS, com amostra de 100 indivíduos portadores de HIV/AIDS. Da amostra, 16 indivíduos foram categorizados em achado ocular ausente, 68 indivíduos com achado ocular sem relação à AIDS e 16 indivíduos com achado relacionado à AIDS; as alterações oculares estão presentes predominantemente no estágio IV da doença. Os que apresentaram achados oculares relacionados à AIDS têm severo comprometimento da acuidade visual, fundo de olho e campo visual. Quanto a queixas e sintomas, os pacientes referiram 223. A Consulta de Enfermagem direcionada para o exame ocular permitiu detectar 84 indivíduos com achado ocular; o fato evidencia a importância da atuação da enfermeira na saúde ocular, em portadores do HIV/AIDS.
Palavras-chave: Síndrome da imunodeficiência adquirida - Cuidados de enfermagem - Visão - Cuidados primários de saúde
ABSTRACT
The purpose of this study was to find out the incidence of ocular disorders in HIV positive individuals and to correlate such dysfunction to the phase of the illness and to the complaints that were reported. This descriptive and exploratory study was developed in a prestigious hospital for AIDS treatment with a sample of 100 HIV positive individuals. Of these, 16 presented no ocular dysfunction, 68 presented ocular disorders that had no relation to AIDS whatsoever, and 16 had ocular dysfunction related to AIDS. Ocular alterations were predominantly present in the phase IV of the illness. Those who presented ocular dysfunction related to AIDS had their visual sharpness, eyeground and visual field severely jeopardized. There was a total of 223 complaints and symptoms reported by patients. Nursing consultation directed toward ocular examination made it possible to identify 84 individuals who presented ocular dysfunction. This is an evidence that nurse's performance is important to the ocular health of HIV positive patients.
Keywords: AIDS - Nursing care - Sight - Primary health care
RESUMEN
Este trabajo tuvo el propósito de conocer la incidencia de enfermedades oftalmológicas en individuos portadores del VIH/SIDA y poner en correlación estos trastornos con la fase de la enfermedad y las quejas relatadas. Este estudio, de carácter descriptivo y exploratorio, se desarrolló en un hospital conocido por el tratamiento de la SIDA, con una muestra de 100 individuos portadores del VIH/SIDA. De la muestra estudiada, 16 individuos no presentaron trastornos oculares, 68 tenían problemas oculares no relacionados con la SIDA y 16 sufrían de trastornos oculares relacionados con la SIDA. Las alteraciones oculares se prestaban predominantemente en la fase IV de la enfermedad. Aquellos que presentaron trastornos oculares relacionados con la SIDA tenían su agudeza visual, fondo de ojo y campo visual severemente comprometidos. Hubo un total de 223 quejas y síntomas relatados. La consulta de enfermería dirigida al examen ocular permitió identificar 84 individuos con trastornos oculares, lo que evidencía la importancia de la actuación de la enfermera en la salud ocular de los pacientes portadores del VIH/SIDA.
Palabras claves: SIDA - Enfermería - Visión - Cuidados primários de la salud
INTRODUÇÃO
As dificuldades de uma pessoa com AIDS são muitas. Supostamente saudáveis antes da confirmação do diagnóstico, as pessoas se vêem expostas a uma série de infecções oportunistas, agredidas por uma variedade de sintomas comprometedores que tendem a afetar suas atividades diárias. Dentre as complicações decorrentes da infecção pelo HIV, estão presentes as oculares, capazes de levar à cegueira, as quais se manifestam, algumas vezes, de forma inesperada, no estágio de evolução do vírus no organismo.
Pinheiro et al. (1996, p.18) relata que o acometimento ocular é comum nos pacientes com AIDS, pois aproximadamente 75% deles, desenvolvem uma ou mais lesões oftálmicas no curso da doença. A informação é corroborada por Tobaru et al .(1993, p.68), quando em seus estudos, com uma freqüência de casos em cerca de 50% a 73%.
Temos constatado, em nossa vivência com os pacientes HIV/AIDS, que a assistência preventiva, em relação à saúde ocular, tem sido insatisfatória, por vezes até falha, devido a fatores que impedem o diagnóstico precoce. Este quadro resulta no agravamento e avanço da doença detectada quando já não há nada a fazer, ou muito pouco a ser feito, donde a possibilidade de comprometimento parcial ou total da visão.
Em razão das deficiências encontradas nos setores de saúde, sejam públicos ou privados, urge a necessidade de implementação de programas de cuidados primários de saúde ocular para a população em geral e para portadores do HIV/AIDS, em especial. Segundo Pagliuca (1993, p. 37), a base do sistema de saúde para os olhos seriam, sem dúvida, os cuidados primários. Reconhecemos o quanto é difícil prevenir danos oculares nos pacientes com AIDS, haja vista uma série de fatores estar diretamente relacionada com os problemas, dentre os quais podemos citar o grau de insuficiência imunológica, a freqüência e natureza das infecções oportunistas e as drogas utilizadas durante o tratamento.
Em termos gerais, o tratamento dos problemas oculares na AIDS consiste em limitar a extensão, duração e severidade da doença, além de melhorar o prognóstico visual. O combate aos problemas oculares que acometem nessa população é, por vezes, resultado de batalhas infrutíferas, uma vez que a demora no início do tratamento, o que é freqüente, pode provocar maior seqüela visual, inclusive levando à cegueira.
Para melhor visualização desses problemas, foram traçados para este estudo os seguintes Objetivos: Conhecer a incidência de problemas oculares em pacientes portadores do HIV/AIDS; Correlacionar os achados oculares com o estágio de evolução da doença e as queixas referidas.
METODOLOGIA
O presente estudo, do tipo descritivo-exploratório, foi desenvolvido em um serviço especializado da rede pública de saúde, referência no Estado do Ceará para AIDS, localizado em Fortaleza, onde foram realizadas Consultas de Enfermagem e exames de saúde ocular pelas autoras. Após esses procediumentos, de acordo com os resultados, foram os pacientes encaminhados a uma unidade especializada, para fins de acompanhamento.
Inicialmente, foram explicados os objetivos do estudo e solicitada a participação dos pacientes como sujeito da pesquisa. Foram observados os aspectos éticos da pesquisa atendendo ao preconizado pela Resolução núm. 196/96 do CNS, quanto ao anonimato. As consultas foram iniciadas com a entrevista e preenchimento de um formulário, previamente elaborado especificamente para o registro do exame de saúde ocular.
O universo da pesquisa foi definido com os pacientes portadores do HIV/AIDS, inscritos no ambulatório. A amostra foi probabilística e a seleção aleatória, constituída de 100 pacientes adultos, conscientes, independentemente do gênero, sexo e condições de vida. A coleta de dados ocorreu no período de março a novembro de 1998.
Para análise dos achados referentes à incidência dos problemas oculares nos portadores do HIV/AIDS, foram selecionadas as seguintes variáveis dependentes: o estágio de evolução da doença, o problema ocular anterior, as queixas e sintomas referidos pelo paciente durante a consulta e, ainda, os resultados dos seguintes exames: acuidade visual para longe/perto; estruturas oculares externas; fundo de olho e campo visual em cada olho. Como variável independente ou de controle, foram considerados os achados oculares identificados.
Os resultados dos exames de saúde ocular e a revisão da literatura permitiram a classificação da amostra em três grupos distintos, de acordo com os achados oculares identificados: Ausente; Sem relação com a AIDS e Relacionado com a AIDS. Foram incluídos: no grupo Ausente, os pacientes que não apresentaram nenhum problema ocular durante a consulta de enfermagem; no Sem relação à AIDS, os pacientes que apresentaram problemas oculares, não relacionados com a doença; e no terceiro grupo, Relacionado com a AIDS, os que apresentaram evidências de associação com a doença.
Para medir a relação de dependência entre as variáveis, foi utilizado o teste Qui-quadrado, o qual permitiu que fosse obtida uma medida de associação para o cruzamento de duas variáveis mensuradas em uma escala nominal, baseada na estatística χ2% como a seguir se apresenta:
APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS
Foram examinados 100 pacientes portadores do HIV/AIDS, acompanhados no ambulatório de referência em AIDS, no Estado do Ceará, no período de março a novembro de 1998. Quanto ao gênero, foram identificadas 67 pessoas do sexo masculino e 33 do feminino. Em relação à idade, 45 encontravam-se na faixa etária entre 30-39 anos; 35, entre 20-29 anos; 16, entre 40-49 anos; quatro, entre 50 e mais anos. A faixa etária predominante nos pacientes examinados foi de 30-39 anos.
A Tabela 1 põe a amostra o Problema Ocular Anterior, relacionado com os Achados Oculares. Dos 100 pacientes examinados, 48 referiram problemas oculares anteriores ao diagnóstico de HIV e 52 não referiram problemas. Do grupo que não referiu problema ocular anterior ao exame, 11 foram confirmados como problemas ausentes; 32 apresentaram problema sem relação com a AIDS e os nove restantes tinham problemas relacionados com a AIDS. Daí , 41 pacientes, que não tinham problemas oculares anteriores ao diagnóstico do HIV, passaram a tê-los após a doença. Do grupo de 48 pacientes que referiram problemas oculares anteriores ao diagnóstico de HIV, em cinco deles os achados oculares estavam ausentes; em 36, estes achados eram sem relação com a AIDS e em sete havia relação com a AIDS.
Tabela 1 - Clique para ampliar
A análise que a apresentação dos dados permite realizar linearmente, quanto à presença ou não de problema ocular anterior, mostra que em 32 (47,1%) pacientes, nos quais foi verificado problema ocular, não existia associação direta à AIDS. Em que pese o fato, essa existência anterior de problemas oculares pode sinalizar que talvez sua ocorrência tenha sido desencadeada pela doença. Neste caso, o teste Qui-quadrado não mostrou uma relação significativa entre o problema ocular anterior e o achado ocular identificado. Um achado ocular independe de o paciente ter ou não problema ocular anterior à doença; quando este se faz presente, o comprometimento da função visual é bem maior. A literatura que trata do assunto refere que cerca de 75% dos pacientes com AIDS podem apresentar alterações oculares, dependendo do sistema imunológico e das infecções oportunistas.
Observa-se, na Tabela 1, que um maior número de pacientes, (nove, 56,3%) que apresentou achado ocular com relação à AIDS sem referenciar problemas oculares anteriores, pode levar à inferência de que estes achados apresentam relação com a doença. Acreditamos que os achados oculares que se fizeram presentes, principalmente sem relação com a AIDS, ocorrem por razão do descaso do poder público com a atenção primária de saúde, já que os poucos recursos que oferece não permitem que a população tenha acesso aos serviços especializados, como é caso da oftalmologia. Esta dificuldade na busca de um tratamento resulta em maiores danos à visão, os quais se não identificados precocemente, instalam-se e cristalizam-se, gerando danos até maiores, quando já não há muito a ser feito, em termos de recuperação.
Verifica-se, através da Tabela 2, o estágio de evolução da doença, relacionado com o achado ocular. Dos 100 pacientes examinados, 16 encontram-se no grupo II; 10, no grupo III e 74, no grupo IV. Observa-se, no grupo IV, um predomínio de 74% dos pacientes. Quanto ao achado ocular identificado nestes grupos, os dados foram os seguintes: ausente, no grupo II; sete, no III, um e no IV, oito. Nos achados sem relação à AIDS, foram observados nove no grupo II; oito no III; e 51, no grupo IV. E. Relacionados com a AIDS, apenas um no grupo III e 15, no grupo IV.
Tabela 2 - Clique para ampliar
De acordo com estudos realizados sobre manifestações oculares na AIDS, Tobaru et al. (1993) e Elia, Aihara e Souza-Dias (1990), evidenciaram alterações oculares, principalmente nos pacientes que se encontram no grupo IV. Tal assertiva, no entanto, não pode ser confirmada com exatidão neste estudo, tendo em vista o critério metodológico utilizado, com seleção da amostra feita de forma aleatória, não tendo sido realizado estudo estudo comparativo, pareando os grupos.
Ainda nesta tabela, observa-se que existe uma relação entre o achado ocular e o estágio de evolução da doença. Dos 16 pacientes que apresentaram achado ocular relacionado com a AIDS, 15/16 (93,8%) se encontravam no estágio IV. Quanto à condição de ausente, em relação ao achado ocular, foi bastante significativo o número obtido de indivíduos no estágio II; 7/16 (43,8%), enquanto no achado com relação à AIDS não foram encontrados pacientes no estágio II. Não obstante, devemos ter certa precaução com estes resultados, visto que o teste revela que 44,4% das celas têm freqüência esperada menor que 5, devido a cela vazia.
A compreensão das queixas e dos sintomas oculares faz-se necessária, a fim de proporcionar um exame de saúde ocular apropriado. Alguns sintomas como turvação ou embaçamento visual, fotofobia e irritação podem progredir ou até ocultar doenças oculares relacionadas com a AIDS. No Quadro 1,estão relacionados estágio de evolução da doença e principais queixas e sintomas referidos pelos indivíduos, durante a consulta de enfermagem. Dos 100 pacientes examinados, surgiram 223 queixas, isso por conta de cada paciente referir mais de uma. As queixas mais freqüentes foram: alterações da acuidade visual (AAV) (48); prurido (41); dor/ardência (34); lacrimejamento (31); irritação (29); inflamação (22); fotofobia (16) e pestanejamento com duas ocorrências. Desses pacientes, 12 não apresentavam nenhuma sintomatologia.
Quadro 1 - Clique para ampliar
No grupo II, em ordem decrescente de queixas e sintomas, oito pacientes relataram prurido ocular; sete, irritação; seis, diminuição da acuidade visual e lacrimejamento; cinco mencionaram dor e ardência; três, inflamação e dois se queixaram de fotofobia, correspondendo a um total de 37 queixas. No grupo III, seis pacientes apresentaram diminuição da acuidade visual, quatro de prurido ocular e dor/ardência, três de irritação e inflamação, dois de lacrimejamento e um de fotofobia, totalizando 23 queixas/sintomas neste grupo. No grupo IV, foram registradas 36 queixas de diminuição da acuidade visual, 29 de prurido ocular, 25 de dor/ardência, 23 lacrimejamentos, 19 irritações, 16 inflamações, 13 fotofobias e dois referiram pestanejamento.
Os sinais observados durante o exame podem ser presuntivos de afecções oculares associadas à AIDS, isto é, uma AAV pode ser um indicador de alteração da retina, que por sua vez pode ser acometida de infecção oportunista, levando ao comprometimento da capacidade de enxergar. Por se tratar da função última do sistema ocular, será este objeto de abordagem mais à frente, em separado.
O prurido, referido por 41 pacientes, é um sintoma freqüente que se associa à baixa AV, em decorrência da exposição da conjuntiva e córnea às partículas em suspensão no ar, diminuição da capacidade de produção e distribuição da lágrima para fluidificar as estruturas oftálmicas externas, podendo ter também associação com a infecção. Foi observada irritação ocular em pacientes com dermatite seborréica, alojada nas pálpebras, ocasionando prurido e subseqüente inflamação; estas irritações favoreceram o aparecimento de terçol. Para evitá-los, o paciente deve ser orientado à conduta adequada de higiene, enfatizando a importância da lavagem com sabão neutro das mãos, sobrancelhas, pálpebras e cílios.
A presença do lacrimejamento foi associada, em um caso, à irritação da superfície ocular, decorrente do ectrópio, tendo o paciente que se submeter à retirada dos cílios. No trabalho desenvolvido por Elia, Aihara e Souza-Dias (1990), as queixas oculares mais freqüentes relacionavam-se a: embaçamento (33,5%); alterações da acuidade visual (21,7%); cefaléia e tontura (13,3%); olho vermelho e secreção ocular (10%); prurido ocular (8,3%) e diplopia (3,3%). Neste estudo, as queixas oculares mais freqüentes foram: alteração da AV (21,5%); prurido ocular (18.3%); dor/ardência (15,2%); lacrimejamento (13,9); irritação (13%); inflamação (9,8%); e fotofobia (7,1%). Podemos concluir que os dados apresentados guardam uma relação com a AIDS, o que é compreensível pelas queixas dos pacientes.
Ao se estabelecer relação ao exame da acuidade visual para longe com o achado ocular identificado, classificamos o resultado do exame de acuidade visual em normal e alterado. Enquanto isso, o achado ocular identificado ficou dividido em: sem relação com a AIDS e com relação à AIDS. Com a acuidade visual normal, foram encontrados 23 pacientes e com acuidade visual alterada foram 61. Destes, 47 (69,1%) estão na categoria sem relação com a AIDS e 14 (87,5%) com relação à AIDS.
Tabela 3 - Clique para ampliar
Os dados coletados evidenciam que, independente do achado ocular identificado, 27,4% dos doentes tiveram o resultado do teste de acuidade visual para longe normal e 72,6%, alterado. Não havendo dependência entre as variáveis, seria de se esperar as mesmas proporções para cada tipo de paciente. No entanto, o que se observa é uma disparidade, em proporções tais que, dos pacientes com problemas relacionados com a AIDS, 87,5% têm exames de acuidade visual alterado (maior que 72,6%) e 12,5% normal (menor que 27,4%). Assim, parece haver uma maior concentração de exames com resultado de acuidade visual alterada no grupo de pacientes com problemas relacionados com a AIDS. Em que pese o fato, o teste, não mostra significância estatística.
A comparação do achado ocular com o exame de acuidade visual para perto mostra no teste Qui-quadrado uma relação de dependência. Conforme indiciada na tabela 4. A proporção de exames de acuidade visual para perto com resultados alterados para amostra total, sem considerar o tipo de achado ocular identificado em 33,3%. Entretanto, se levarmos em consideração o achado ocular, o maior número de exames com resultados alterados se encontra no grupo de pacientes com problemas relacionados à AIDS.
Tabela 4 - Clique para ampliar
Outras numerosas causas que acarretam distúrbios da acuidade visual podem estar relacionadas a agentes externos, ao exemplo de condição nutricional, transmissão genética, idade, doenças sistêmicas, como diabetes, hipertensão, AIDS, dentre outras. Pois é sabido que a acuidade visual é uma das funções de maior utilização como índice do desempenho sensorial, sendo que qualquer alteração no sistema visual pode afetar, de imediato, a capacidade de enxergar. Por conta disso, é importante analisar a representatividade de alterações da acuidade visual nos pacientes portadores do HIV/AIDS, uma vez que a deficiência de visão significa uma verdadeira barreira à integridade e adaptação da pessoa em seu meio social, especialmente quando essas alterações podem levar à cegueira. Desta forma, é fundamental que o acompanhamento sistemático se faça rotina no ambulatório de atendimento.
Exame das estruturas oculares externas (EOE)
Neste estudo, quanto ao exame das estruturas oculares externas, foram identificados 27 pacientes com alteração de conjuntiva; seis, com alteração nas pálpebras; dois, nos cílios; três, com alteração da córnea; e uma com alteração no cristalino. As principais alterações observadas na conjuntiva foram: conjuntivite (três); irritação da conjuntiva (sete); icterícia conjuntival decorrente de medicamento (um); pinguécula (um); pterígio (dez); engurgitamento dos vasos conjuntivais (quatro). Encontramos, também, um paciente com olho vermelho, decorrente de extravasamento sanguíneo de origem traumática. A inflamação da conjuntiva é um problema ocular comum, podendo ser de causa exógena ou endógena, talvez por conta da sua localização, ficando exposta a muitos microorganismos e a outros fatores ambientais estressantes. À irritação da conjuntiva está associada a dermatite seborréica, ocasionando prurido.
Nos pacientes identificados com pterígio, não houve identificação de tratamento, por não guardar nenhuma relação com a AIDS; sua maior incidência é maior em idosos, embora ocorra também em jovens. Pela freqüência evidenciada em adultos, seria interessante um acompanhamento para melhor compreensão do fenômeno.
Em quatro pacientes, foi observado engurgitamento dos vasos conjuntivais. No estudo de Elia, Aihara e Souza-Dias (1990), esse achado externo esteve presente em 21 (35%) dos pacientes pesquisados. A mesma observação foi feita por Teich e Engstrom, associada a processo isquêmico conjuntival e ao aumento da viscosidade sangüínea.
Nas pálpebras, foi detectada a presença de blefarite, uma inflamação com crostas ou escamas presas à raiz dos cílios e que está associada à seborréia, cujo tratamento recai na melhoria das condições de higiene, incluindo manutenção do couro cabeludo limpo e lavagem diária das pálpebras. Também foi identificada presença de triquíase, cílios voltados para trás, provocando irritação, lacrimejamento e sensação de corpo estranho, recomendado-se, no caso, a extração dos mesmos. Nesse mesmo exame, foi constatada a presença de terçol, caracterizado por um intumescimento na borda da pálpebra, com inflamação, sendo indicado, para o caso, o uso de compressas úmidas e mornas para aliviar a dor.
Um dos paciente estudados apresentava cicatriz de úlcera central na córnea, devido a traumatismo, enquanto dois outros tinham lesão ulcerosa de córnea, como resultado de infecção da conjuntiva, por oftalmia, ainda, arco senil e degeneração corneana periférica, comumente encontrada em qualquer idade, mas com maior incidência em pessoas idosas. Essa degeneração, de forma semelhante a um anel cinzento nebuloso, não apresenta sintomatologia, não provoca complicações, nem exige tratamento (Biswell, 1997).
Um caso de alteração no cristalino, com opacificação na transparência (catarata), foi encontrado em paciente, cuja acuidade visual (0,1-0,1) sugeriu seu encaminhamento ao oftamologista, para confirmação do diagnóstico e realização de cirurgia, o qual passou a fazer uso de correção ótica. O decréscimo da acuidade visual, segundo Shock & Harper (1998, p. 166), é diretamente proporcional à densidade da catarata.
Exame do movimento ocular
No exame do movimento ocular, foram identificadas 13 alterações, principalmente o nistagmo, um movimento irregular dos olhos, freqüente em portadores do HIV/AIDS. De acordo com Deschênes, Seamone e Baines (1990), sinais neurooftalmológicos, que incluem a paralisia do nervo craniano, podem se manifestar sob a forma de nistagmo, sendo este um indicativo de comprometimento neurológico grave, merecendo especial atenção.
Exame das estruturas internas
O exame do fundo do olho compreende as estruturas internas: retina, vasos retinianos, coróide, disco ótico, mácula e fóvea, as quais foram observadas com o uso de um oftalmoscópio. Nos portadores do HIV/AIDS, esse tipo de exame tem grande importância, uma vez que inúmeras alterações oculares associadas à AIDS, encontradas no segmento posterior do olho, podem sinalizar infecções, tais como: toxoplasmose, CMV, tuberculose e outras.
Oportuno se faz lembrar que o resultado alterado da fundoscopia, encontrado durante todo o estudo, teve sempre acompanhamento do oftalmologista, para confirmação do diagnóstico. Descartando os 16 pacientes com exame visual normal, restaram 168 olhos. Sem relação com a AIDS, foram referenciados: 110 olhos normais, nove com fundo de olho alterado, 12 com campo visual alterado e cinco com fundo de olho e campo visual alterados.
As alterações observadas no exame de fundo de olho, nos pacientes que apresentaram achado ocular sem relação com a AIDS, foram: hemorragia, escavação, opacificação do cristalino decorrente da catarata e região cicatricial. Nos achados com relação à AIDS, de um total de 32 olhos, foram observados 14 absolutamente normais, cinco com fundo de olho alterado, dois campos visuais alterados e onze com fundo de olho e campo visual alterados. Quanto às alterações observadas no fundo de olho dos pacientes com achados relacionados à AIDS, encontramos: alteração no nervo ótico, retinopatia com atrofia, uveíte, corioretinite e edema de retina, podendo essa alteração comprometer o campo visual, respondendo, inclusive, por queixas como: "sinto dificuldade de olhar no canto direito"; "enxergo da metade para baixo ou da metade para cima"; "enxergo tudo em volta, menos no centro".
Utilizamos a grade de Amsler para avaliar o campo visual central, bem assim o jornal, para avaliação do campo visual periférico. Os doentes que apresentavam alterações referiam embaçamento, ausência de alguma parte da grade, principalmente do lado temporal e ainda distorções ou borradura das linhas.
Tabela 5 - Clique para ampliar
Os resultados do teste qui-quadrado revelam uma significância de p<1%, indicando que existe uma relação de dependência entre o exame interno do olho e o achado ocular identificado. Observa-se que, dos 136 olhos examinados e com achado ocular sem relação com a AIDS, estavam alterados 26 olhos (19,1%), percentual menor do que os 80,9% em situação de normalidade; enquanto isso, os achados relacionados com a AIDS mostraram que, dos 32 olhos examinados, 18 encontravam-se alterados (56,2), percentual maior do que 43,8% de normais. Já os indivíduos que apresentavam achado ocular alterado, relacionado com a AIDS, tiveram maior alteração no fundo do olho e campo visual concomitante (34,4%), evidenciado que tais alterações, quando se fazem presentes na AIDS, são mais graves e podem levar a maior dano ocular.
CONCLUSÃO
As conclusões retiradas deste estudo foram agrupadas em: Achados Oculares, com a respectiva incidência de problemas; Correlação dos Achados com o estágio da doença; e, ainda, Queixas Referidas pelos pacientes. O exame de saúde ocular, realizado pela enfermeira, permitiu que, dos 100 pacientes examinados, em 84 fossem identificados achados oculares, distribuídos em duas categorias: relacionado à AIDS e sem relação com a AIDS.
Na categoria com achado ocular sem relação à AIDS, foram registrados 68 sujeitos e 16, com achado ocular relacionado à AIDS. No primeiro grupo, no exame de acuidade visual para longe observamos 47, com alteração; dos 16 pacientes com achados com relação à AIDS, 14 tinham dificuldade de visão à distância. Já o exame de acuidade visual para perto mostrou alteração em 19/68 no grupo sem relação à AIDS, enquanto que no outro, com relação à AIDS, 9/16 apresentaram esta dificuldade.
No exame das estruturas externas do olho, foi constatada a maior incidência de alterações relacionadas à AIDS, especificamente na conjuntivite. Em 13 pacientes, o movimento ocular estava alterado, sendo que apenas um estava relacionado à AIDS. Os achados sem relação à AIDS nas estruturas internas foram: 110 olhos normais; nove alterações em fundo de olho; 12 em campo visual e cinco em fundo de olho e campo visual. Com relação à AIDS, foram identificados 14 olhos normais; cinco alterações em fundo de olho, dois em campo visual e 11 em fundo de olho e campo visual.
A correlação dos achados oculares analisados, segundo o estágio de evolução da doença, levam à conclusão de que as alterações oculares, relacionadas ou não à AIDS, estão presentes, predominantemente no estágio IV da doença. Nota-se, também, que as alterações oculares específicas da AIDS só foram detectadas nos estágios III e IV da doença.
Foram mencionadas, pelos pacientes, 223 queixas relacionadas a incômodos. Correlacionando as queixas e sintomas oculares com o estágio de evolução da AIDS, tivemos: 37/223 no grupo I; 23/223, no grupo III e 163/223, no grupo IV.
Como toda investigação, esta também apresenta uma série de limitações, até porque não oferece todas as respostas ao conhecimento da questão em estudo. Em sendo assim, sugere-se que estudos posteriores possam ser realizados, com vistas a subsidiar o trabalho dos profissionais na assistência à saúde ocular das pessoas portadores do HIV/AIDS. Que a nossa contribuição sirva também de subsídios aos programas de educação para a saúde ocular, com respaldo em uma proposta centrada no autocuidado, garantindo-se o seu desenvolvimento junto ao paciente e à sua família, nos campos de atendimento primário e de cuidado hospitalar, em nível de ambulatório e de domicílio.
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NOTAS
Parte da dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Ceará - UFC.