ISSN (on-line): 2177-9465
ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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Ministério da Educação
CAPES

Volume 6, Número 2, Mai/Ago - 2002

ARTIGOS DE PESQUISA

 

A criação da escola de enfermeiras Luiza de Marillac: estratégia para a manutenção do poder da igreja católica nos espaços hospitalares1

 

The Luiza de Marillac school of nursing creation: the strategy to keep the catholic church's power in the hospital area

 

Creación de la escuela de enfermería Luiza de Marillac: estrategia para el mantenimiento del poder de la iglesia católica en los espacios hospitalarios

 

 

Maria Regina Marques BezerraI; Suely de Souza BaptistaII

IProfª Auxiliar da Faculdade de Enfermagem Luiza de Marillac; mestranda da EEAN/UFRJ; membro do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira (Nuphebras)
IIProfª Titular do Departamento de Enfermagem Fundamental da EEAN/UFRJ; bolsista do CNPq; membro do Nuphebras

 

 


Estudo histórico-social cujo objeto é o movimento da Associação São Vicente de Paulo (ASVP) em favor da criação da Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac (EELM).
OBJETIVOS: descrever as circunstâncias que favoreceram a criação de uma escola de enfermagem pela ASVP; analisar as estratégias da ASVP que implicaram no processo de fundação da EELM e discutir o advento da EELM como projeto de manutenção das Irmãs daCaridade nos espaços hospitalares. Recorte temporal: 1931-1939. Fontes primárias: documentos escritos e depoimentos de pessoas que tenham informações sobre o processo de criação e implantação da Escola. A discussão dos achados fundamenta-se em conceitos de Pierre Bourdieu. A enfermagem no período em estudo era exercida majoritariamente por religiosas, sem formação acadêmica. Pelo Decreto 20.109/31, a ASVP passou a preocupar-se com a formação profissional das Irmãs de Caridade e, posteriormente, com a criação de uma instituição que aliasse a vida acadêmica à religiosa.

Palavras-chave: História da Enfermagem. Ensino. Brasil.


ABSTRACT

This is a sociohistorical study, whose object is the Associação São Vicente de Paulo's (ASVP) movement on behalf of the Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac's (EELM) creation.
TARGETS: To describe the circumstances that favored the creation of a school of nursing by the ASVP; To analyze the ASVP's strategies that implied the EELM's foundation process, and also discuss the EELM's onset as a project to keep the Charity Sisters in the hospital area. Time frame: 1931 -1939. Primary sources: written documents and the testimonies of people that had information about the School's creation and introduction. The facts' discussion is based on Pierre Bourdieu's conceptions. At the studied time, nursing was performed mostly by nuns without an academic education. With the Decree no. 20109/31, the ASVP began to worry about the Charity Sisters' professional education and later, with the creation of an institution that could join the academic life with the religious one.

Keywords: History of Nursing. Teaching. Brazil.


RESUMEN

Estudio histórico - social, cuyo objeto es el movimiento de la Asociación San Vicente de Paulo (ASVP) en favor de la creación de la Escuela de Enfermeras Luiza de Marillac (EELM).
OBJETIVOS: describir las circunstancias que favorecieron la creación de una escuela de enfermería por la ASVP; analizar las estrategias de la ASVP que implicaron en el proceso de la fundación de la EELM y discutir el advenimiento de la EELM como proyecto de mantenimiento de las Hermanas de Caridad en los espacios hospitalarios. Recorte temporal: 1931-1939. Fuentes primarias: documentos escritos y declaraciones de personas que tuvieron informaciones sobre el proceso de creación e implantación de la Escuela. La discusión de los resultados se fundamenta en conceptos de Pierre Bourdieu. La enfermería, en el período del estudio, fue ejercida de forma mayoritaria por las religiosas sin formación académica. A través del Decreto 20.109/31, la ASVP empezó a preocuparse con la formación profesional de las Hermanas de Caridad y, posteriormente, con la creación de una institución que aliase la vida académica a la religiosa.

Palabras claves: Historia de la Enfermería. Enseñanza. Brasil


 

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Trata-se de um estudo de cunho histórico-social que tem como objeto o movimento da Associação São Vicente de Paulo (ASVP)2 em favor da criação da Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac3, em 1939, no Rio de Janeiro. Seus objetivos são: descrever as circunstâncias que favoreceram a criação de uma escola de enfermagem pela ASVP; analisar as estratégias da ASVP que implicaram no processo de fundação da EELM e discutir o advento da EELM como projeto de manutenção das Irmãs da Caridade nos espaços hospitalares.

A motivação para realizar este trabalho prende-se ao fato de que, além de uma de suas autoras4 ser ex-aluna da Faculdade de Enfermagem Luiza de Marillac (FELM), também vem atuando como docente do seu curso de graduação, desde agosto de 1986. Associa-se a isto o interesse de examinar os documentos referentes à trajetória da FELM. Nesse sentido, um dos resultados concretos desta pesquisa será a organização dos documentos do período em estudo para que possam vir a ser consultados por pesquisadores interessados em melhor conhecer sua história, como é o nosso caso.

A realização deste trabalho nos pareceu oportuna também porque a Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac foi a primeira criada no Rio de Janeiro com o propósito de aliar o preparo técnico-científico com os compromissos da vida religiosa, sendo seu curso organizado de conformidade com a legislação federal referente à enfermagem (Anuário PUC/RJ, 1954, p. 147). Também, por isso, acreditamos que essa escola constituiu-se em um campo de produção ideológica religioso-profissional, através da atuação das Irmãs e do desenvolvimento de um currículo que dava ênfase à parte humana, cristã e social5.

Partimos do princípio de que a compreensão de acontecimentos históricos só é possível quando estes são analisados no conjunto de suas relações com o todo. A esse propósito, Cardoso (1983, p. 83) faz a seguinte afirmação: as sociedades humanas não são um amontoado de elementos desconexos, e sim totalidades organizadas. Portanto, para trabalhar o objeto deste estudo, consideramos a realidade social, política e econômica como um todo articulado, atravessado por contradições específicas.

Optamos pela abordagem de cunho histórico-social, pois consideramos que este enfoque instrumentaliza o pesquisador técnica e metodologicamente no sentido de fazê-lo perceber que o objeto das ciências sociais é complexo, contraditório, inacabado, e em permanente transformação. Essa escolha dá ao investigador da história uma visão lógica da realidade (MINAYO, 1993, p. 22).

O recorte temporal compreende o período de 1931 a 1939. O marco inicial é a publicação do Decreto nº 20.109/31, sendo a primeira lei a regulamentar a educação e o exercício de enfermagem. O marco final é a criação, em 5 de setembro de 1939, da Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac, no Rio de Janeiro.

Nesta pesquisa, constituiu-se fonte primária preferencial de dados documentos pertencentes aos Arquivos: da Companhia das Filhas da Caridade6, da PUC/RJ7, da FELM8; dos Centros de Documentação: da EEAN/UFRJ e da Escola de Enfermagem da UFMG, e depoimentos de antigas alunas e professoras da EELM que participaram do processo de criação e dos primórdios do funcionamento dessa instituição.

Para a coleta dos depoimentos, utilizamos a técnica da entrevista semi-estruturada que se desenrola a partir de um esquema básico, porém não aplicado rigidamente, permitindo que o entrevistador faça as necessárias adaptações (LÜDKE ; ANDRÉ, 1986, p. 34).

As entrevistas são gravadas e, posteriormente, transcritas. Para a realização das mesmas, foram agendados dias, locais e horários, de acordo com a preferência das depoentes, as quais autorizaram a utilização de seus depoimentos nesta pesquisa, através de consentimento livre e esclarecido, e os doaram tanto ao Arquivo da FELM/SC como ao Centro de Documentação da EEAN/UFRJ.

A captação de fatos históricos e a busca de seu entendimento são realizações que não dependem somente de coleta e análise de fontes primárias. Tem fundamental importância nesse processo a relação entre as fontes primárias e as secundárias, o que possibilita o desenvolvimento do estudo de forma a considerar os diversos contextos engendrados pela história. Nesse sentido, a literatura selecionada engloba as áreas de história da enfermagem, da educação e da religião, as quais representam as fontes secundárias.

A descrição do momento político que se descortinava no Brasil na década de 30 e início da de 40 e a posição da Igreja nesse período mostram uma conjuntura que se refletiu em vários campos sociais. Foi assim que Vargas [poder do Estado] e o Cardeal Leme [poder da Igreja] exerceram seus poderes [dominação] sobre as macroestruturas da política educacional e de saúde. Considerando que as realidades históricas são inseparáveis dos efeitos do poder - seja compondo com os poderes, seja deformando os efeitos destes (REVEL, 1998, p. 30), podemos frisar que as lógicas sociais particulares levaram, no âmbito da macro para a microestrutura, à inserção das Irmãs de Caridade no sistema educacional, dando-lhes condições de obterem o capital cultural indispensável à criação de uma Escola de Enfermagem em 1939.

Buscando melhor compreender o processo de criação e de implantação da EELM, pautamos a discussão dos resultados em conceitos de Pierre Bourdieu.

 

OS DETERMINANTES PARA A CONFIGURAÇÃO DA EELM

No Rio de Janeiro, desde 1852, as Irmãs da Caridade9 eram as responsáveis pelos cuidados de enfermagem prestados aos doentes internos na Santa Casa de Misericórdia, no Hospital Militar da Guarnição da Corte10, entre outros (PASSOS, 2000, p. 32-41).

A chegada das Irmãs de Caridade da ASVP ao Brasil, em 9 de fevereiro de 1849, vincula-se às modificações político-sociais decorrentes da Revolução Francesa (1784 - 1794). Esse acontecimento histórico, que privilegiou a ideologia laica, acabou por fazer com que os religiosos diminuíssem em muito sua participação na sociedade européia. A Revolução gerou na Europa uma situação de conflito de ordem ideológica e proibiu a atuação social de religiosos e religiosas (NUNES, 1997, p. 492).

Na verdade, à época, o nosso país se configurava como um ótimo campo de atuação, uma vez que, por ter sido colonizado por metrópole católica, reproduziu o modelo de sociedade do colonizador e o Estado manteve estreita ligação com a Igreja, visando legitimar suas ações. Assim sendo, a atuação das Filhas da Caridade acabou por atingir vários níveis. De acordo com Nunes (1997, p. 494):

As próprias religiosas, empenhadas na direção de colégios, hospitais e "obras da Caridade", acabam por criar áreas de certa autonomia e de exercício de alguma forma de poder.

Como sabemos, no Brasil, a atual Escola de Enfermagem Alfredo Pinto/UNI-RIO11, criada em 1890, foi a primeira instituição voltada para a formação de enfermeiras e enfermeiros. Também no Rio de Janeiro, capital do país à época, foram criadas a Escola de Enfermagem da Cruz Vermelha, em 1916, as Escolas de Formação Sanitária Divisionárias, subordinadas à Diretoria de Saúde da Guerra, em 192112,e a atual Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN)13, em 1922. Tais instituições eram laicas e em muito se afastavam do modelo considerado necessário à formação das Irmãs de Caridade; além disso, inexistia uma legislação que oficializasse e organizasse a prática da enfermagem, o que possibilitava a permanência das Irmãs no trabalho hospitalar como enfermeiras, mesmo sem titulação formal (BAPTISTA ; BARREIRA, 1997, p. 29-30).

Entretanto, essa situação deixou de ser estável por força do Decreto nº 20.109, de 15 de julho de 1931, que passou a regular o exercício da enfermagem no país e deu outras providências. Entre estas, reconheceu a EEAN como padrão oficial para efeito de criação e reconhecimento de outras escolas de enfermagem brasileiras e determinou que, a partir daquele momento, somente poderiam exercer a profissão os que tivessem o diploma de enfermeiro expedido pela EEAN ou por escolas a ela equiparadas.

O fato é que as Irmãs, que até então detinham o poder das decisões operacionais, tanto da assistência quanto da administração das instituições hospitalares nas quais atuavam, viram-se ameaçadas pela nova legislação. Esse contexto gerou nas Congregações a consciência da inaptidão de seu pessoal e da inferioridade em que ficariam se não tomassem uma providência (PINHEIRO, 1962, p. 463).

Essa situação premia por ser revertida, uma vez que as novas regras do jogo passaram a exigir formação técnico-científica para o exercício profissional, o que provocou um movimento interno das Congregações para que as autoridades eclesiásticas tomassem providências, a fim de tentar reverter esse quadro de ausência de qualificação formal das Irmãs. Nesse sentido, a Associação São Vicente de Paulo foi a primeira a tomar a iniciativa (PINHEIRO, 1962, p. 463).

Assim é que, logo em 1931, ocorreu a primeira tentativa de diplomar Irmãs em enfermeiras, e três religiosas foram estudar na EEAN. Elas, porém, não concluíram o curso14. Segundo Valderez (depoente nº 6), naquela época as Irmãs tinham uma vida muito difícil. Não podiam trocar de roupa, comer, dormir, rezar, junto com as leigas.

Por outro lado, numa ação corporativa, Getúlio Vargas, tentando reforçar os laços com a Igreja Católica, assinou o Decreto nº 22.257/32, conferindo às Irmãs da Caridade, que atuavam há seis ou mais anos na assistência, o titulo de enfermeiras "padrão Ana Néri". Porém, esse acontecimento não seria capaz de assegurar a presença de todas as Irmãs no ambiente hospitalar (BAPTISTA ; BARREIRA, 1997, p. 33). Por isso mesmo, os esforços das Congregações para titular suas religiosas continuaram.

Em 07 de julho de 1933, foi criada a Escola de Enfermagem Carlos Chagas (EECC)15, nas dependências do Hospital São Vicente de Paulo, em Belo Horizonte. Sua primeira diretora foi Laís Netto dos Reys, que professava a religião católica e era enfermeira formada pela primeira turma da Escola Anna Nery (1925). A EECC, mesmo sendo leiga, reunia as condições desejadas pela ASVP para a formação de suas Irmãs. Surgira, então, a grande oportunidade para a Associação começar a formar o seu pessoal. Foi assim que a Irmã Matilde Nina16 integrou a primeira turma dessa instituição, diplomando-se em 1936 (Histórico escolar, CD da EE UFMG). Posteriormente, em 1938, outras quatro Irmãs, todas pertencentes à Companhia das Filhas da Caridade, se formaram: Catarina Cândido Fiusa17, Eugênia Luna, Filomena Couto e Zoé Junho18.

Uma vez formada, a Irmã Nina, com o apoio da Provincial Antoinette Clemence Blanchot, respondendo aos anseios da Associação, iniciou o processo de criação de uma escola de enfermagem preocupada em aliar a formação acadêmico-científica aos hábitos religiosos (Histórico da Escola de Enfermagem Luiza de Marillac, 1980, 1 - Arquivo da FELM/SC).

A possibilidade de essas irmãs se diplomarem em enfermeiras foi possível também porque d. Laís propiciou condições de estudo e trabalho que permitiram que as Irmãs mantivessem a prática de seus rígidos costumes religiosos (NASCIMENTO et al., 1999, p. 48).

 

A CRIAÇÃO E A EQUIPARAÇÃO DA EELM: UMA CONQUISTA

Possíveis acordos entre o Estado e a Igreja significavam a união perfeita para que ambos mantivessem sua posição. Na década de 30, no Brasil, o sistema educacional serviu a essa troca de relação de forças ou, no dizer de Bourdieu (1989, p. 241), se configurou como um campo de poder, e por meio dele, o campo social no seu conjunto.

Nesse período, para o clero e os políticos, a educação aparecia como área estratégica. Era um espaço institucional que permitia articular a doutrina e a prática (SCHWARTZMAN et al., 2000, p. 74). Talvez, até por isto mesmo, a Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac recebesse, além das religiosas, alunas "leigas", as quais assim como as religiosas eram formadas a partir da ideologia e filosofia cristãs. Cabe dizer que essa possibilidade atendia aos interesses da Igreja, uma vez que a escola representa um espaço que permite desenvolver atividades educacionais capazes de modificar o habitus do indivíduo. Isso porque o sistema educacional atua realizando um processo de inculcação, cujo resultado é a atualização do habitus, capacitando o aluno, dessa forma, ao término do curso, a produzir tal formação nos espaços sociais a que se integrar (BOURDIEU; PASSERON, 1992, p. 213).

Como já vimos, com a introdução do modelo anglo-americano de ensino de enfermagem no Brasil, na segunda década do século XX, através da criação da EEAN, e principalmente com a edição do Decreto nº 20.109, de 15 de junho de 1931, a assistência não poderia continuar pautada apenas em ações caridosas; era necessário que as responsáveis pelos cuidados de enfermagem aliassem às suas ações o preparo técnico-científico.

A Igreja, buscando oferecer às Irmãs formação profissional dentro da moral católica (ANUÁRIO, 1954, p. 147), buscou meios para a inserção dessas religiosas no sistema de educação formal. É importante registrar, contudo, que a titulação de algumas poucas religiosas não garantiria a manutenção do poder da Companhia das Filhas da Caridade e, portanto, da ASVP nos espaços hospitalares por ela administrados. Para tanto, essa Associação passou a empenhar esforços a fim de fundar uma escola.

Nesse período, é instituído o Estado Novo (1937-1945), momento em que o Estado e a Igreja vinham empreendendo esforços para difundir suas ideologias, e o campo educacional era o que melhor atendia a essa estratégia. O campo da saúde não ficou incólume a essa realidade, nem poderia, pois era também importante espaço de representação do Estado.

Entre as medidas implementadas por Vargas no campo da saúde, interessa especialmente ao objeto deste artigo a designação de Laís Netto dos Reys para a direção da Escola Anna Nery e para a presidência do Conselho de Enfermagem, em 1º de novembro de 1938 (CD da EEAN/UFRJ, Relatório da Diretora, novembro de 1938). Essa ação do Presidente parece ter sido uma resposta à aliança estabelecida com a Igreja, no início da década de 30, considerando ter sido Laís Netto dos Reys escolhida por professar o catolicismo, podendo então corroborar sua expansão no país.

A ASVP, buscando meios para concretizar seus ideais, em 27 de julho de 1927, enviou a Irmã Antoinette Clemence Blanchot19, 11 anos após ter feito seus primeiros votos, na França, para assumir o cargo de Assistente da Província do Brasil (Arquivo da Companhia das Filhas da Caridade).

Em 25 de outubro de 1938, mediante à decisão dos membros do Conselho da ASVP, a Irmã Blanchot, à época a única Provincial20 da Companhia das Filhas da Caridade no Brasil, e a Irmã Nina foram designadas para convocar as Irmãs Eugênia Luna e Catarina Cândido Fiusa21, recém-formadas na EECC, para juntarem-se a elas na Província do Rio de Janeiro22, com o intuito de trabalhar para concretizar a criação da almejada escola católica (Arquivo da Companhia das Filhas da Caridade).

Entre as primeiras providências, essas Irmãs procuraram verificar que procedimentos legais deveriam ser cumpridos. Para tanto, realizaram consultas a diversas autoridades federais, estaduais e figuras de projeção no meio médico, para que se fizesse da Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac uma realidade (Histórico da Escola de Enfermagem Luiza de Marillac, 1980, p. 1 - Arquivo da FELM/SC). Elas também tinham conhecimento de que o Decreto nº 20.109/31 previa, no artigo 7º, que as escolas de Enfermagem criadas nesse período deveriam ser moldadas à escola oficial padrão [EEAN], tanto em termos de estrutura como de organização.

A fim de atender prontamente parte das exigências desse Decreto, no que concernia às instalações necessárias à criação da nova instituição23, a ASVP disponibilizou o prédio que abrigava o Dispensário e Creche Medalha Milagrosa (BARBOSA, 1989, p. 15), localizado, ainda hoje, na rua Dr. Satamini, 23724. Irmã Fiusa (depoente nº 3) diz que: ele foi criado [o Dispensário] para dar assistência aos pobres [1926], e justamente serviu de primeiro patamar para a Escola. A liberação do prédio foi a estratégia encontrada pela ASVP para agilizar a criação da Escola de Enfermagem.

A instituição, ainda em planejamento, mas prestes a funcionar, recebeu o nome de Luiza de Marillac, em homenagem à Santa.

Assim é que, em 5 de setembro de 1939, é criada pela ASVP a Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac, a primeira no Rio de Janeiro para religiosas25.

O propósito da Escola era promover estudos e pesquisas, colaborar com o poder público e com instituições privadas, além de inculcar nas alunas uma ideologia que considerava o reconhecimento e respeito pela pessoa humana à luz dos princípios de moral cristã e da pastoral da Saúde (Resumo histórico, 1972, p. 1, Arquivo da FELM/SC).

Mesmo antes da criação, providências vinham sendo tomadas quanto à composição do corpo discente. Assim, a escolha das Irmãs que deveriam compor a primeira turma coube à Irmã Matilde Nina, com o apoio da Provincial Blanchot. Por indicação das mesmas, em 30 de agosto de 1939, o Conselho da Associação São Vicente de Paulo deliberou que fossem chamadas à Província do Rio de Janeiro as Irmãs Mafalda Costalonga, Maria Leopoldina Lage, Maria Luiza Breyer e Anita Godinho, para cursarem Enfermagem na Escola (Arquivo da Companhia das Filhas da Caridade). Segundo Irmã Fiusa (depoente nº 3), houve um apelo: quem se sentisse a vontade, com disposição, inclinação para aquilo, se apresentava; e a Irmã Nina, naturalmente, ao ver aquelas que se apresentavam, escolheu as que tinham mais capacidade, preparo.

A pessoa desejada para assumir o cargo de diretora da EELM era a Irmã Nina. Contudo, como não tinha o diploma de enfermeira, uma vez que a EECC ainda não era reconhecida oficialmente26, quem assumiu a direção da Instituição foi a enfermeira Rosa Maria Leone (1939 - 1942), formada pela Escola de Enfermagem Anna Nery27 e amiga das Irmãs (BARBOSA, 1989, p. 16 e CD da EEAN/UFRJ, Módulo 1, cx. 6, 1935).

Mas, segundo Valderez (depoente nº 6), a respeito da primeira diretora, afirma:

Rosa Maria Leone foi a primeira diretora da Escola, antes da Irmã Matilde Nina, porque o Conselho das Irmãs determinou isso. Rosa Maria Leone estava na Escola porque a lei determinou, mas na verdade, quem mandava mesmo era a Irmã Matilde Nina; a outra só assinava os papéis.

Vale comentar que Rosa Leone era irmã da também enfermeira Mafalda Leone. Mafalda diplomou-se na EAN, em 1933, onde ficou trabalhando como professora. Em 27 de abril de 1935, foi enviada para realizar cuidados domiciliares, por um mês, na residência da família do Ministro da Educação Gustavo Capanema, cuidando de seu cunhado, Eurico de Alencastro Massot. Cinco anos mais tarde, em 31 de dezembro de 1940, casou-se com Eurico, tornando-se parente do referido Ministro.

A análise desse fato nos permite considerar que Rosa Leone trazia consigo capital institucionalizado e social, o qual, na visão da ASVP, reverter-se-ia em lucro simbólico.

Para que a EELM fosse equiparada à Escola Padrão28, foram necessárias duas inspeções, uma realizada em 01/08/4029 (CD da EEAN/UFRJ, Relatório da Diretora, agosto de 1940) e a outra em 27/02/194230 (CD da EEAN/UFRJ, Ofícios: 53, 102 e 135, 1942). Nessa última inspeção, a EELM foi considerada apta a ser reconhecida como instituição de ensino de enfermagem, nos moldes da Escola Anna Nery, mediante o relatório da enfermeira Rosaly Rodrigues Taborda, a qual foi designada para a função pela diretora da EEAN. De acordo com esse relatório, o Presidente da República Getúlio Vargas e o Ministro da Educação Gustavo Capanema assinaram o decreto de equiparação da EELM31.

A criação da Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac propiciou a formação de um grupo bem maior de enfermeiras, tanto religiosas quanto leigas, pautada na ideologia cristã, com vistas à ocupação dos espaços hospitalares administrados pela ASVP. Essas alunas, além de conhecimento científico, recebiam uma formação capaz de moldá-las; eram entalhadas, formadas e com um nome bom para trabalhar (Irmã Marta Telles - depoente nº 5); passavam por um processo de inculcação que lhes permitia integrar-se ao mercado de trabalho da saúde, possibilitando à Igreja restaurar seu poder ameaçado nesse campo por um período de 11 anos (1931-1942).

A partir da criação e equiparação da EELM, esta passou a representar um importante centro difusor de Irmãs enfermeiras para todo o país, além de conseguir manter o espaço hospitalar, que fora ameaçado pelo Decreto nº 20.109/31.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Presidente Getulio Vargas, para garantir a sua permanência no poder, buscou desmobilizar as camadas dominantes do país e implantou ações de caráter populista. Uma dessas ações foi o controle da sociedade através do sistema educacional. Para Cunha (1986, p. 220), o sistema pedagógico implantado possuía uma metodologia capaz de difundir a filosofia governamental. A implantação da nova ordem só foi possível, porque, ao lado de Vargas, havia pessoas32 que articulavam importantes alianças, capazes de difundir e consolidar uma filosofia fascista.

Uma das alianças que muito interessou ao Estado foi a realizada com a Igreja Católica. Mediante o sistema educacional, a Igreja ajudou a manter a nova ordem de modo a difundir na população um habitus, que representou um capital cultural da dominação, por meio do pensamento essencial, que foi operada em todos os universos sociais (BOURDIEU, 1989, p. 294).

A criação da EEAN e principalmente a publicação do Decreto nº 20.109/31, que passou a regular o exercício de enfermagem no Brasil, levaram a ASVP a iniciar um movimento visando manter o espaço ocupado pelas Irmãs da Caridade no campo hospitalar. Isto só poderia acontecer mediante a educação formal. Entre as providências desta Associação, destacamos a designação de Irmãs da Caridade para estudarem enfermagem em escolas leigas. Porém, além de isto não ser suficiente para se ter um número expressivo de Irmãs formadas, os espaços educacionais não ofereciam, de todo, um ambiente adequado para que elas pudessem manter o habitus religioso.

Assim, tornou-se imperiosa a necessidade de a ASVP criar uma escola de enfermagem capaz de reproduzir de maneira eficaz e sistematizada o habitus religioso, para que pudesse aumentar, em muito, o número de Irmãs enfermeiras para continuar a desempenhar as funções assistenciais e administrativas nos espaços hospitalares.

E é nesse contexto que, em 05 de setembro de 1939, é criada a EELM, a qual é equiparada à Escola Padrão, em 24 de março de 1942.

A criação da EELM possibilitou à Igreja criar um centro formador de enfermeiras, pautado no habitus católico, permitindo-lhe reproduzir sua ideologia, de modo eficaz e sistematizado.

Conforme visto neste estudo, um ano antes da criação da EELM, foi criada a Escola de Enfermeiras do Hospital de São Paulo. Na área da saúde, a criação dessas duas instituições religiosas representou um marco no início da formação de outras escolas católicas no Brasil. No período de 1937 a 1945, foram criadas 14 escolas de enfermagem, das quais seis eram católicas. Além das escolas Luiza de Marillac e do Hospital de São Paulo, foram também criadas as Escolas: São Vicente de Paulo, em 1943, em Goiânia; São Vicente de Paulo, no mesmo ano, em Fortaleza; Hugo Werneck, em 1945, em Belo Horizonte; e Nossa Senhora das Graças, em 1945, em Recife.

 

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NOTAS

11º PRÊMIO - A LÂMPADA. Conferido na 5ª Jornada Nacional da História da Enfermagem/9º Pesquisando em Enfermagem, na linha de pesquisa História da Enfermagem, modalidade profissional.

2A Associação São Vicente de Paulo, estruturada na França no século XVII, por Vicente de Paulo e Luiza de Marillac, compreende a Confraria da Caridade, iniciada em 23 de agosto de 1617, cujas participantes eram as damas da sociedade interessadas em fazer caridade, a Congregação da Missão, criada em 17 de abril de 1625, destinada a formar padres cuja preocupação eram os pobres, e a Companhia das Filhas da Caridade, criada em 29 de novembro de 1633. O Estatuto que orienta as ações das Irmãs determina como seu principal cuidado o bem servir aos pobres doentes, tratando-os com compaixão e cordialidade (...) convidando-os a receberem os sacramento. (grifo meu) (Charpy, 1993, p. 499).

3Quando de sua criação, em 05/09/39, foi denominada Escola de Enfermeiras Católicas Luiza de Marillac (BARBOSA, 1989, p. 12). Foi oficializada ao ser equiparada pelo Decreto nº 9.100, de 24/03/42, assinado pelo Presidente da República Getúlio Vargas e pelo Ministro da Educação e Saúde Pública Gustavo Capanema, no qual é registrada como Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac (Diário Oficial de 25 de março de 1942). Teve como mantenedora, de 1939 a 1980, a Associação São Vicente de Paulo e esteve agregada à PUC/RIO, com vínculo acadêmico, de 04/01/53 a 02/04/80 (Arquivo PUC/RJ - Ata do Conselho Universitário, nº 80/81, 1979). Em 1980, foi vinculada, tanto acadêmico quanto administrativamente, à Sociedade Beneficente São Camilo, atual União Social Camiliana. Passou a ser denominada Faculdade de Enfermagem Luiza de Marillac, através do Decreto Federal n.º 60929, de 03/06/67, e do Parecer CFE n.º 47/67, de 03/02/67 (In Documenta n.º 65, fls. 62) (Coordenação de Credenciamento Escolar, 1991).

4 Maria Regina Marques Bezerra.

5 O trecho transcrito faz parte do Histórico da Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac, de 1980, organizado pela PUC/RJ, quando esta deixa ser a responsável acadêmica pela instituição, passando tal responsabilidade à Sociedade Beneficente São Camilo.

6 O acesso a esses documentos foi possível devido à relação de confiança existente entre uma das autoras deste trabalho e os membros da instituição responsável pela criação da EELM. Situado na Cúria Metropolitana pertencente à Província do Rio de Janeiro, localizada na Rua Dr Satamini, 333 - Tijuca.

7 Encontra-se no departamento administrativo da referida Universidade - Rua Marquês de São Vicente, 225 - Gávea.

8 Situado na sala do diretor da Faculdade de Enfermagem Luiza de Marillac - Rua Dr Satamini, 245 - Tijuca.

9 A denominação Irmãs da Caridade origina-se do fato de tais religiosas fazerem a profissão de amar a Deus e o próximo através da caridade, ou seja, sua existência vincula-se à necessidade de prestação de ações caridosas (CHARPY, 1993, p. 500). Essas Irmãs pertencem à Companhia das Filhas da Caridade.

10 Esse Hospital foi inicialmente instalado no ex-colégio dos jesuítas, em 22 de janeiro de 1769, recebendo a denominação de Hospital Real Militar e Ultramar. Em 25 de novembro de 1844, passa a chamar-se Hospital Militar da Corte. Atualmente chama-se Hospital Central do Exército (PASSOS, 2000, p. 32-101).

11 Criada pelo Decreto nº 791, de 27/09/1890, chamou-se Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras do Hospício Nacional de Alienados, instalada no antigo Hospício Pedro II, criado em 1841 e inaugurado em 30 de novembro de 1852 (BAPTISTA ; BARREIRA, 1997, p. 29).

12Criada pelo Decreto nº 15.230, de 31 de dezembro de 1921.

13Criada pelo Decreto n.º 15.799, de 10 de novembro de 1922 (SAUTHIER ; CARVALHO, 1999, p. 227-228).

14Sobre o assunto, ver TEIXEIRA, C. L. S., BAPTISTA, S.S., CAVALCANTI, R.M.N.T. e SAUTHIER, J. Alunas religiosas na Escola de Enfermagem Anna Nery - nas décadas de 20 a 40. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem. Rio de Janeiro, v. 2, n.º ½, p. 49-65, abril/set. 1998.

15Pelo Decreto Estadual nº 10.952. Em 28 de fevereiro de 1968, passou a ser denominada Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais - EE UFMG (Nascimento et al., 1999, p. 75).

16A Irmã Nina, cujo nome de batismo era Maria Admar Arlie Nina, postulou-se em 1934, aos 45 anos. Segundo depoimento da Ir.Fiusa, a Ir. Nina deu aula primária na Escola Imaculada da Conceição, em Fortaleza, que pertence à Companhia das Filhas da Caridade. Em 1934, foi para Minas Gerais a fim de tornar-se Irmã em São João Del Rei e, depois dos votos, deu início à caminhada na enfermagem. Consta no arquivo da Companhia das Filhas da Caridade que ela trabalhou na cidade de Belo Horizonte, na Policlínica, em 1932.

17 Depoimento concedido em 17/08/2000.

18Os nomes citados são aqueles que elas receberam após se tornarem Irmãs da Caridade (Histórico da Escola de Enfermagem Luiza de Marillac, 1980, p. 1).

19Nome de batismo Marie Antoinette Blanchot. A principal missão da Irmã Blanchot era: dilatar o Reino de Deus e torná-lo cada vez mais conhecido. Suas estratégias foram: 1. conquistar as Irmãs pelo coração e governar pelo amor; 2. Atrair operárias para a messe [campo]; 3. Expandir a província em todo o território brasileiro (Arquivo da Companhia das Filhas da Caridade).

20 Tal função corresponde a uma superiora geral. Enviada da França, era a responsável pela província na qual estivesse instalada a Companhia da Filhas da Caridade. Sendo a autoridade máxima no Brasil subordinada a Superiora Geral instalada na Casa Mãe, localizada em Paris, França.

21O nome de Batismo das Irmãs corresponde, respectivamente: Lídia de Paiva Luna e Maria Cândido Menescau Fiusa.

22Província criada em 1860, responsável por todas as atividades das Irmãs da Caridade no território brasileiro até 1957, quando foi erguida a Província de Fortaleza (Arquivo da Companhia das Filhas da Caridade). Atualmente, é a responsável pelos seguintes estados: Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro.

23Esta deveria oferecer condições favoráveis para educação, residência, administração, atividades sociais e recreativas (Plano para uma Escola de Enfermagem e residência para as estudantes, Arquivo da FELM/SC).

24Inicialmente, funcionavam no Dispensário, simultaneamente, Escola, ambulatório e creche. Mais tarde, a Escola passou a ocupar novo prédio. Quanto aos dois outros serviços citados, estes continuam a ser desenvolvidos no prédio do Dispensário, sendo que este nunca deixou desenvolver suas atividades junto à população (BARBOSA, 1989, p. 15).

25A primeira do Brasil foi a Escola de Enfermagem do Hospital São Paulo, crida em 1938, e dirigida pelas Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria (BAPTISTA ; BARREIRA, 1997, p. 36).

26Equiparada em 24 de março de 1942, pelo decreto nº 9.102 (NASCIMENTO et al, 1999, p. 38).

27Realizou o curso de enfermagem entre 2 de agosto de 1932 e 19 de setembro de 1935. Natural do Rio de Janeiro; católica (Centro de Documentação EEAN/UFRJ - série graduação, turma 1935).

28O Decreto nº 20.109/31 determinou as condições para as inspeções e equiparação das escolas de enfermagem brasileiras.

29Realizado por Maria de Castro Pamphiro; teve a intenção de permitir o funcionamento da Instituição.

30Realizada pela delegada do Conselho de Enfermagem, Rosaly Rodrigues Taborda, essa inspeção foi para fins de equiparação.

31Decreto nº 9.100, de 24/03/42, publicado em Diário Oficial de 25 de março do mesmo ano.

32Francisco Campos, primeiro Ministro da Educação e Saúde e líder para-fascista, empossado em 1931 e Gustavo Capanema, que foi o terceiro a assumir esse Ministério em 1934

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