ISSN (on-line): 2177-9465
ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
COPE
ABEC
BVS
CNPQ
FAPERJ
SCIELO
REDALYC
MCTI
Ministério da Educação
CAPES

Volume 6, Número 2, Mai/Ago - 2002

ARTIGOS DE PESQUISA

 

O tempo de Rachel Haddock Lobo como diretora da Escola de Enfermagem Anna Nery

 

Rachel Haddock Lobo's time as director in Anna Nery School of Nursing

 

El tiempo de Raquel Haddock Lobo como directora de la Escuela de Enfermería Anna Nery

 

 

Sonô Taíra OliveiraI; Tânia Cristina Franco SantosII; Cassandra Soares de OliveiraIII

IProfessora Adjunta do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil da EEAN / UFRJ, aluna do curso de mestrado e membro do Nuphebras da EEAN/UFRJ
IIProfessora Adjunta do Departamento de Enfermagem Fundamental da EEAN / UFRJ. Membro do Nuphebras
IIIEnfermeira. Membro do Nuphebras da EEAN/UFRJ

 

 


RESUMO

Este estudo, realizado na perspectiva da história social, tem como objetivos analisar as estratégias implementadas por Rachel Haddock Lobo, quando diretora da Escola de Enfermeiras D. Anna Nery (1931-1933), para atualizar o habitus das postulantes à profissão e para reconfigurar o espaço social da escola mediante as modificações nos emblemas e rituais da escola, de modo a dar visibilidade à liderança da enfermeira brasileira. As fontes primárias incluíram documentos escritos do Centro de Documentação da EEAN e as secundárias, bibliografias referentes à história da enfermagem e ao contexto histórico-social da época. Os dados, analisados à luz do pensamento de Nobert Elias, evidenciaram que Rachel Haddock Lobo deu continuidade às exigências inerentes aos atributos das candidatas à profissão e atualizou as tradições já institucionalizadas na Escola de Enfermeiras.

Palavras-chave: História da enfermagem. Pesquisa em enfermagem. Emblemas. Insígnias.


ABSTRACT

This study, made in the perspective of social history, aims at analysing the strategies adopted by Rachel Haddock Lobo, during her term of office as Head of Ms. Anna Nery Nursing School (1931-1933), in order to update the habitus of applicants to the profession and to reshape the school's social spaces, by changing the School's emblems and rituals in order to make visible the leadership of the Brazilian nurse. Primary sources included documents produced by the Documentation Centre of EEAN, and secondarily, bibliographies referring to the history of nursing and to the historic and social context of the time. The data, interpreted in allusion to Norbert Elias' thinking, demonstrated that Rachel Haddock Lobo continued with the requirements inherent to the attributes of the applicants to the profession, updating the established traditions of the Nursing School.

Keywords: History of nursing. Nursing research. Emblem. Ensign.


RESUMEN

Estudio, realizado en la perspectiva de la historia social, tiene como objetivos analizar las estrategias implantadas por Rachel Haddock Lobo, cuando fue directora de la Escuela de Enfermeras D. Anna Nery (1931-1933), para modernizar el habitus de las postulantes a la profesión y para reconfigurar el espacio social de la escuela por medio de las modificaciones en los emblemas y rituales de la escuela, de modo de dar visibilidad al liderazgo de la enfermera brasileña. Las fuentes primarias incluyeron documentos escritos del Centro de Documentación de la EEAN y las secundarias, bibliografías referentes a la historia de la enfermería y al contexto histórico - social de la época. Los datos fueron analizados a la luz del pensamiento de Nobert Elias, evidenciaron que Rachel Haddock Lobo dio continuidad a las exigencias ligadas a los atributos de las candidatas a la profesión y modernizó las tradiciones ya implantadas en la Escuela de Enfermeras.

Palabras claves: Historia de la enfermería. Investigación en enfermería. Emblema. Insígnia.


 

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este estudo, de cunho histórico-social, derivado de Dissertação de Mestrado, tomou como objeto a (re) configuração do espaço social da Escola de Enfermagem Anna Nery, na gestão de Rachel Haddock Lobo (1931-1933) como diretora da escola, em um período de intensa ebulição política, após a saída da Missão de Cooperação Técnica para o Desenvolvimento da Enfermagem no Brasil. A referida Missão, chefiada pela enfermeira americana Ethel Parsons, trabalhou no Brasil de 1921 a 1931, sob o patrocínio da Fundação Rockefeller.

Para realização do estudo que deu origem ao presente artigo, as fontes primárias incluíram documentos (relatórios, regimentos, normas, atas, correspondências, textos de conferências e discursos), arquivados no Centro de Documentação da Escola de Enfermagem Anna Nery. A par dessas fontes, consultamos investigações de outros autores que abordaram a história da enfermagem e o contexto histórico-social da época. Na análise das informações encontradas, procuramos estabelecer os nexos entre os eventos destacados na gestão de nossa protagonista à testa da Escola e o contexto histórico-social vigente à época. Do ponto de vista teórico, a análise dos dados teve como referência fundamental os conceitos de civilização, configuração e habitus, extraídos da obra do sociólogo alemão Nobert Elias.

A Missão Parsons, assim denominada em homenagem a Ethel Parsons, veio ao nosso país com o objetivo de promover e implementar as inovações requeridas pelo Departamento Nacional de Saúde Pública, no âmbito da Reforma Sanitária de 1920. A implantação do modelo anglo-americano de Enfermagem em nosso meio ocorreu mediante a criação de um Serviço de Enfermeiras e de uma Escola de Enfermagem, ambos dirigidos por enfermeiras americanas, integrantes dessa Missão.

Por sua vez, Rachel Haddock Lobo, enfermeira brasileira, diplomou-se pela École des Enfermiéres de L'Assistence Publique, em Paris, e completou a formação durante quatro meses, aprofundando conhecimentos sobre Saúde Pública na Escola de Enfermagem Anna Nery. Em 1927, viajou para os Estados Unidos com bolsa de estudos patrocinada pela Fundação Rockefeller, preparando-se especificamente para assumir a direção da escola.

A gestão de Rachel Haddock Lobo constitui marco histórico importante, pois denota a presença da primeira brasileira na direção da escola1. Apesar disso, sua formação não permite que seja caracterizada como enfermeira ananéri. Além do mais, sua indicação como diretora da escola foi objeto de escolha das dirigentes norte-americanas, preocupadas com a continuidade do que entendiam como processo civilizador, que destacavam desde o início de seu trabalho no Brasil. Nesse sentido, é esclarecedora a seguinte referência, encontrada em estudo de Sauthier e Barreira (1999, p. 4):

"Antes de a Missão ser enviada ao Brasil, a Fundação Rockefeller já havia reconhecido que, ao invés de intervir diretamente nas questões de saúde, deveria também, atentar para o estágio de civilização em que se encontrava a maior parte do povo brasileiro" (SAUTHIER e BARREIRA, 1999, p. 4).

A teoria do processo civilizador, segundo concepção de Nobert Elias, tem como fundamento a gênese e evolução dos comportamentos considerados típicos do homem civilizado ocidental. De acordo com esse enfoque, o conceito de civilização refere-se a uma gama de fatos: ao nível da tecnologia, à tipologia das maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às idéias religiosas e aos costumes. Nesse contexto teórico, podemos incluir aspectos de ordem prática, tais como: o tipo de moradia, a maneira como homens e mulheres interagem, a forma de cumprimento das leis e suas punições, ou até mesmo o modo de preparar os alimentos (ELIAS, 1994, p. 13-23).

Para Elias, a configuração social expressa uma "estrutura de pessoas reciprocamente orientadas e dependentes". Os habitus estão relacionados às diferentes configurações e corresponde a um sistema de disposições duráveis, resultante da interiorização de esquemas de pensamento e de ação.

À luz dessa fundamentação teórica, entendemos que a Escola de Enfermagem Anna Nery poderia ser definida como configuração social onde se regulamentaram de maneira específica e detalhada as relações existentes entre professoras e alunas e onde as dependências recíprocas, que ligavam umas as outras, concretizavam códigos de conduta e comportamentos originais, que estavam subjacentes, mas perfeitamente identificáveis.

Em face desse alicerce teórico e de interesse de ordem prática, o estudo teve como objetivos analisar as estratégias implementadas por Rachel Haddock Lobo, quando diretora da Escola de Enfermagem Anna Nery, destacando iniciativas que levou a efeito para atualizar o habitus das postulantes à profissão e reconfigurar o espaço social da escola, mediante modificações nos emblemas e rituais da escola, os quais contribuíram adicionalmente para conferir visibilidade à liderança da enfermeira brasileira.

 

A MODELAÇÃO DA CONDUTA DAS ENFERMEIRAS

As relações estabelecidas entre as enfermeiras da Missão Parsons e as estudantes e professoras da Escola, no que tange à formação do habitus da enfermeira, bem como a proximidade espacial, utilizada como forma de ratificar o distanciamento social, são indicadores da tentativa do que se designava como processo civilizador, implementado pelas integrantes da Missão.

A esse respeito, é relevante ter em consideração que Rachel Haddock Lobo, em entrevista concedida ao Jornal do Brasil, em 1924, analisando sua formação realizada em Paris, ressaltava a liderança americana no ensino da enfermagem brasileira:

(...) "supunha haver conquistado na profissão, que abracei, o que de melhor havia. Pura ilusão. Ao retornar ao Brasil, fui trabalhar com as colegas americanas e, desde logo, senti o quanto estava distanciada da verdade, de vez que nós começara-mos por onde outros países acabaram".

Tal percepção deve ter sido reforçada, quando Rachel passou quase três anos (de maio de 1927 a dezembro de 1929) estudando nos Estados Unidos e, ao regressar ao Brasil, quando assumiu o cargo de assistente de Bertha Pullen (SANTOS, 1998, p. 154).

No entanto, a formação do habitus profissional de Rachel Haddock Lobo ocorreu em dois cenários distintos (Estados Unidos e França), cujos modelos de enfermeira apresentavam diferenças marcantes. O primeiro, o do nursing, criado por Florence Nightingale, em 1860, na Inglaterra, adotado nos Estados Unidos, em 1873, preconizava: "enfermeiras profissionais, instruídas e bem pagas colaboradoras qualificadas dos médicos" (PERROT, 1998, p, 108-109). O segundo modelo corresponde ao das enfermeiras francesas, assim caracterizado:

"...tal como o concebeu, numa óptica e em circunstâncias muito políticas, o doutor Bourneville, artesão de laicização dos hospitais parisienses na virada do século. Ele se baseia na admissão de moças do povo, essas bretãs, que constituíam na época o essencial da domesticidade parisiense, auxiliares obedientes e dedicadas dos médicos, mais ajudantes do que enfermeiras. Essas enfermeiras pobres, não raro celibatárias, moravam no hospital, como as religiosas que elas substituíam" (PERROT, op. cit., p. 109).

Assim, a personagem Rachel Haddock Lobo, de família ilustre, formada em Paris, pós-graduada nos Estados Unidos, eleita pelas americanas para protagonizar o papel de lídima sucessora das dirigentes americanas, incorporou em sua pessoa dois modelos profissionais (SANTOS e BARREIRA, 2002, p. 36).

No processo seletivo, provavelmente foram importantes alguns antecedentes, tais como as origens familiares de Rachel Haddock Lobo e o seu processo de formação, os quais contribuíram para modelar o seu comportamento, além de conferir prestígio e poder na relação institucional com outros níveis da hierarquia de poder político e social da época. Como ressaltou Elias (1993, p. 214), "o ser social do indivíduo é totalmente identificado com a representação que dele é dada por ele próprio ou pelos outros".

Na gestão de Rachel á frente da Escola, os atributos morais continuaram a ser requisitos importantes na escolha das candidatas à formação. Ademais, no que concerne ao processo formativo das alunas, a questão disciplinar constituía elemento importante de controle e de preservação da imagem da enfermeira. Dessa forma, pretendia-se assegurar a formação do habitus, indispensável à preservação de valores dominantes no contexto ideológico que configurava a escala axiológica da profissão. Sob esse ângulo de visão, as alunas passavam por um processo de atualização do habitus. Essa inferência encontra respaldo teórico em Elias (1993, p. 214), quando afirma:

"o processo de civilização consiste, antes de mais nada, na interiorização individual das proibições que, anteriormente, eram impostas do exterior, numa transformação da economia psíquica que fortalece os mecanismos de autocontrole exercido sobre as pulsões e emoções e que faz passar do condicionamento social ao autocondicionamento" (ELIAS, 1993, p. 214).

Ë pertinente ressaltar que, antes mesmo de assumir o cargo de diretora da Escola de Enfermeiras (setembro e outubro de 1930), Rachel teve oportunidade de desempenhar o cargo na qualidade de diretora interina. O Relatório que elaborou, intitulado "Relatório do Serviço de Substituição no Cargo de Diretora Interina, durante ausência da Diretora Efetiva", evidencia a disposição da futura diretora, no sentido de desempenhar o papel de controladora e preservadora do grupo, atuando como mediadora dos conflitos. Isso parece muito claro, por exemplo, quando se verificam os termos de seu relato sobre incidente ocorrido entre duas enfermeiras no espaço hospitalar, bem como as medidas tomadas para resolver o incidente:

"Aos 16 dias de setembro fui sabedora de que havia ocorrido um atrito entre a enfermeira-chefe da Enfermaria de Pediatria e a enfermeira interna em serviço na mesma enfermaria (...) deliberei por chamar ambas ao escritório da diretora e arranjar um entendimento entre elas. Neste encontro que foi muito animado [agitado], tive ocasião de saber que as alunas haviam presenciado o atrito e pedi que nunca mais agissem dessa forma e que sempre que tivessem qualquer razão para atritos, procurassem um entendimento".

A atitude da diretora, preocupada com a necessidade de preparar os membros da comunidade institucional para manter rigoroso controle das emoções e modelações do comportamento, demonstra a importância atribuída aos padrões civilizados de conduta. É pertinente lembrar que a vida em grupo requer dos que nela participam "a censura dos sentimentos, o domínio das paixões e a incorporação das disciplinas que regulam a civilidade" (ELIAS, 1993, p. 214). Certamente por isso, na percepção de Rachel Haddock Lobo, as alunas em processo de formação não deveriam presenciar cenas de atritos entre enfermeiras, uma vez que estavam em processo de remodelação da afetividade, mediante uma rede de autocontroles automáticos que devem refrear os impulsos espontâneos ou movimentos análogos. Em outras palavras, trata-se de um habitus que deve produzir uma forma de racionalidade específica, adequando exatamente cada conduta à relação onde ela se inscreve e adaptando cada comportamento à finalidade que ele deve permitir atingir (ELIAS, 1993, p. 231).

O mesmo relatório registra ainda a sua intervenção no cerimonial da formatura das alunas, mais especificamente no que diz respeito à organização do programa, vestuário, homenagens e outros detalhes, conforme se depreende do exposto a seguir:

"Tiveram as alunas desejos de fazer homenagens à [M. B. B., M. de L. M. e M. V.] o que foi por mim impedido, explicando o motivo de ser esta [homenagem] uma afronta à escola, na pessoa de Miss Pullen. Dei então a idéia de não fazer homenagem, porém, se quisessem colocar os retratos o fizessem separadamente da turma, com o título 'Colegas que não terminaram o curso'. A proposta foi aceita e pretendem mais tarde apresentá-la ao julgamento da diretora efetiva".

Assim, a formação do habitus profissional da futura enfermeira contemplava a modelação do comportamento, a censura dos sentimentos e o domínio dos impulsos considerados inadequados.

 

A GESTÃO DE RACHEL HADDOCK LOBO COMO DIRETORA DA ESCOLA DE ENFERMEIRAS: EMBLEMAS E RITUAIS

A primeira diretora brasileira da escola de Enfermagem Anna Nery, Rachel Haddock Lobo, designada em 1931, assumiu o cargo num momento em que a escola passava por crise financeira: a dotação orçamentária era insuficiente para cobrir despesas prioritárias da instituição (SAUTHIER e BARREIRA, 1999, p. 154). Ainda sob o ponto de vista do contexto sóciopolítico, cumpre recordar que sua gestão ocorreu nos anos 30 do século passado, num cenário de governo autoritário.

No plano pedagógico, Rachel Haddock Lobo recebeu a escola com um programa de ensino solidamente implantado. A instituição obteve as prerrogativas de "escola padrão"2 para o ensino profissional no país, definida como modelo a ser seguido por outras escolas de enfermagem.

Uma medida de importante efeito simbólico foi a mudança no formato da touca das alunas, por ocasião da primeira cerimônia de "recepção de touca", realizada durante sua gestão, em 2 de janeiro de 1932. O primeiro modelo, a touca "de bico", foi usado desde a turma pioneira até a que se formou em 19313. O modelo introduzido por Rachel Haddock Lobo, em 1932, que permaneceu até 1940, distinguia-se do anterior por seu formato redondo (PERES et al., 1998, p. 15-16). A justificativa apresentada pela diretora para essa mudança foi a seguinte: "substituição do modelo antigo das toucas adotadas para os uniformes, por novas que oferecem maiores vantagens, em vista de manterem os cabelos melhor acondicionados"4.

No entanto, essa iniciativa parece expressar de maneira subjacente o desejo de demarcar diferenças na liderança da enfermagem brasileira, evidenciando o poder da gestora da escola e sua preocupação em atualizar os emblemas da enfermagem nacional. Esse entendimento é compartilhado por Santos (1998, p.156), quando afirmou: "O simbolismo de tal iniciativa [modificação do modelo da touca] prende-se a um desejo de diferenciação: ou da nova gestão, em relação a Missão Parsons, ou das professoras em relação às alunas".

Outro evento que suscita reflexão sob o ponto de vista do habitus refere-se ao exame social5 das candidatas ao curso, realizado em 22 de fevereiro de 1932, nas dependências da escola. O processo contou inicialmente com 40 candidatas inscritas (dez candidatas não compareceram ao exame). Dessas, somente 26 foram aceitas, sendo 13 detentoras de formação em curso de professora primária e 13 com estudos equivalentes, consideradas aptas a prestar exame (prova de suficiência). Desse total, seis pretendentes foram reprovadas.

Porém, é interessante assinalar que, no dia 27 (portanto, em data posterior à da seleção oficial), devido ao atraso do navio, chegou do Pará uma candidata portadora de diploma de curso normal e com "ótimas referências"6. Ela foi aceita como aluna da escola7.

No que se refere à formação do habitus profissional da futura enfermeira brasileira, cabe mencionar que as diretrizes e o estilo gerencial implementado pelas dirigentes da Missão de enfermeiras norte-americanas passou a ser padrão a ser seguido pelas enfermeiras brasileiras (SAUTHIER e BARREIRA, 1999, p. 163). Assim, Rachel Haddock Lobo, como suas antecessoras, tinha muito cuidado no sentido de controlar e intervir na formação moral das alunas (SANTOS, 1998, p.162). A esse respeito, é elucidativo o relato transcrito a seguir:

"Aos quatro de fevereiro de 1932, houve um grave e desagradável incidente com uma enfermeira interna então em serviço na Sala de operações [cirurgia]. Foi ela agredida brutalmente e ameaçada de morte por uma senhora, ex-amante de seu noivo que alegava ter um filho do ex-amante, tendo sido por ele abandonada, pelo que responsabilizava a enfermeira. O incidente provocou um grande escândalo no hospital São Francisco de Assis"8.

Devido ao escândalo, com grande repercussão junto às alunas, a diretora convidou a enfermeira interna a afastar-se do serviço, sob o pretexto de que iria usufruir suas férias regulamentares. O fato é que a mesma não retornou ao serviço na data determinada, após o período de férias, e a diretora da escola não envidou esforços no sentido de intervir no seu retorno ao serviço9. Essa intervenção demonstra a autoridade da diretora, sem esquecer sua preocupação com a boa imagem da profissão junto à sociedade.

Além disso, o prestígio pessoal de Rachel Haddock Lobo e a importância da enfermeira ananéri na sociedade da época ficaram evidenciados quando a diretora da escola, duas horas após o incidente, foi procurada por vários jornais para fornecer informações sobre o caso. Habilidosa, ela solicitou aos jornalistas que não fizessem qualquer menção ao ocorrido, alegando que o caso envolvia uma enfermeira diplomada pela Escola de Enfermagem Anna Nery. Seu pedido foi prontamente atendido pelos jornalistas10.

Por ocasião da abertura do curso às novas alunas, em 1º de março de 1932, Rachel proferiu um discurso por ela intitulado "A Mulher, Educadora e Enfermeira". Nesse evento, enunciou os atributos inerentes à condição feminina, ressaltando que os mesmos deveriam integrar um quadro de disposições internas, desejáveis por quem optou por exercer a profissão.

"A psicologia nos ensina que na mulher mais do que no homem, existe a característica da perseverança. Outro traço nativo é o espírito conservador, enquanto que no homem é o da conquista, o de vencer, sem, entretanto o conservar".

A perseverança foi destacada por Rachel como traço peculiar da mulher, para que esta pudesse exercer o papel de educadora. Além disso, sua manifestação demarca a compreensão e o reforço a estereótipos relativos ao papel social atribuído a homens e mulheres, em função de habilidades e características supostamente inerentes. No mesmo discurso, trouxe à baila a função social da enfermeira na sociedade e declarou:

"Ensinar a evitar as doenças, ensinar a melhorar a saúde por meio de demonstrações e métodos rápidos de apreensão (..) entregar a Pátria uma geração de homens sãos, braços fortes para qualquer atividade nesse Brasil que tanto necessita de homens sãos física e mentalmente, eis a mulher no seu mais elevado mister de educadora e enfermeira".

O discurso de Rachel enuncia a compreensão de que a enfermagem seria profissão voltada para a prática da caridade, cumprindo a função de amenizar o sofrimento do outro, ao mesmo tempo em que contribuiria para o processo de evolução espiritual da enfermeira. Segundo suas palavras:

"(...) que maior missão desejas vós [alunas iniciantes], almas jovens, que hoje vindes iniciar um curso que vós abrirá a porta para o Eden, onde ides prepara-vos para a majestosa vida de fazer o bem..."

Apesar da crise vivida pela Escola, em termos de materiais de consumo e equipamentos, o mês de maio foi coroado por eventos de alto impacto social, tais como a sessão solene de distribuição do 1º número da revista "Annaes de Enfermagem" (atual REBEn), nas dependências da escola, por ocasião do aniversário da morte de Anna Nery. Vale ressaltar que a Escola de Enfermeiras, desde 1926, promovia romaria ao túmulo de Anna Nery (tradição esta que se manteve por mais de 50 anos).

Outro evento importante, realizado em maio de 1932, foi a comemoração do aniversário natalício da Superintendente Geral do Serviço de Enfermeiras, Edith de Magalhães Fraenkel. A homenagem constou da inauguração do seu retrato, no salão nobre da residência das alunas, situado na Avenida Rui Barbosa. A cerimônia foi seguida de um chá, que contou com a presença de todas as enfermeiras em atividade desde a inauguração da escola, além de todo o corpo discente.

Essa demonstração pública de prestígio de Edith de Magalhães Fraenkel constitui indicador da liderança nacional nos destinos da enfermagem brasileira. Não se pode esquecer que Fraenkel foi a primeira brasileira cujo retrato passou a figurar nessa galeria11. Além disso, tal cerimônia revestiu-se de importância simbólica, sob o ponto de vista do processo civilizador das alunas, bem como da reconfiguração da Escola de Enfermagem Anna Nery, tendo à frente enfermeiras brasileiras. Como esclareceu Elias (1994, p. 142): "a luta por uma posição vantajosa no espaço social se manifesta mediante os rituais que evidenciam os sinais de prestígio".

Em agosto de 1932, um forte temporal assolou o Rio de Janeiro, trazendo graves prejuízos ao hospital São Francisco de Assis. Em seu relatório mensal, Rachel ressaltou a dedicação das enfermeiras, que se mobilizaram para proteger os doentes das conseqüências da tempestade e acrescentou:

"Se não fosse o desvelo e atividade por parte das enfermeiras que com sacrifício próprio procuraram salvar os doentes da violência das chuvas, que entrava por todos os lados assim como dos cacos das vidraças que se quebravam sobre as camas. A 7ª e a 11ª Enfermaria foram as mais danificadas, apesar de se ter passado a noite trabalhando no sentido de atenuar os estragos, ainda pela manhã estas enfermarias se achavam alagadas"12.

Assim, mais uma vez a enfermeira conferiu destaque ao valor da profissão em momentos dramáticos, como nas epidemias e revoluções. Durante a Revolução de Outubro (de 1930), Bertha Pullen, então diretora da Escola de Enfermeiras (1928-1931), organizou hospitais de sangue em Minas Gerais, instruindo 168 moças que tiveram o Curso de Emergência de Enfermagem de Campanha. Além disso, no Rio de Janeiro, as enfermeiras e alunas da escola prestaram assistência no Hospital São Francisco de Assis, sob a supervisão de Rachel Haddock Lobo, (à época assistente da diretora) aos 17 feridos do navio "Baden" que foi atacado pela artilharia das fortalezas de São João e do Vigia, na noite de 24 de outubro de 1930, quando transportava imigrantes espanhóis, ao deixar o porto. Também por ocasião da Revolução Constitucionalista de 32, em São Paulo, Rachel Haddock Lobo (então diretora da Escola) organizou o Serviço de Enfermagem, em Buri, nas linhas de frente, a fim de atender os feridos (SAUTHIER e BAREIRA, 1999, p. 133).

Durante a gestão de Rachel Haddock Lobo, formaram-se duas turmas (classes de 1931 e 1932). A cerimônia de formatura, realizada no dia 8 de dezembro de 1932 (dia de Nossa Senhora da Conceição), às 17 horas, no Pavilhão de Aulas da Escola de Enfermeiras D. Anna Nery, instituiu pala primeira vez, a cerimônia de "madrinha de formatura". Segundo esse costume institucional, cada formanda escolhia uma antiga diplomada, por ela julgada merecedora da homenagem de ser sua madrinha.

Essa medida contribuiu para que se configurasse na Escola a prática de reconhecimento de seus pares, como exemplos a seguir. Muitas autoridades estiveram presentes e compuseram a mesa da formatura: além de Edith de Magalhães Fraenkel, superintendente geral do Serviço de Enfermeiras; Raul Magalhães, diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública; sra. Darcy Vargas, esposa do chefe do Governo Provisório; um representante do Ministério da Educação e Saúde; um representante do clero; Odilon Barroso, diretor do hospital São Francisco de Assis; Bertha Lutz, representando a Federação Nacional para o Progresso Feminino; Olimpio Olinto, da Inspetoria de Higiene Infantil; Rachel Haddock Lobo, diretora da Escola de Enfermagem Anna Nery; Sylvia Maranhão, Assistente da Diretora; Celia Peixoto Alves, enfermeira-chefe da Zona de Saúde Pública; Zaíra Cintra Vidal, Instrutora das alunas; Plinio Tourinho, da Cruz Vermelha; Antonio Cunha, paraninfo da turma e João Pedro de Albuquerque, Inspetor Marítimo.

A presença de ilustres representantes (da igreja, da saúde, da educação, da sociedade e do governo) denotou publicamente o prestígio social da diretora e da Escola, ao mesmo tempo em que demonstrava o empenho de Rachel no sentido de estabelecer alianças com os detentores do poder em suas diferentes instâncias e áreas. Dessa forma, contribuiu para demarcar a liderança e o espaço social da enfermeira diplomada brasileira.

Nessa formatura, receberam o diploma 16 concluintes. O programa constou de abertura da sessão por Edith de Magalhães Fraenkel; benção dos diplomas pelo padre Olimpio de Castro; entrega do diploma pelo diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública; discurso da oradora oficial da turma, Mirabel Muniz Smith; cerimônia de passagem da lâmpada de uma aluna da Classe de 1932 para a da Classe de 1933, homenagens da turma de 1933, 1934 e 1935 à turma diplomada; discurso do paraninfo; discurso de encerramento do diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública e desfile das enfermeiras.

Pode-se perceber que a continuidade e atualização dos rituais implantados pelas enfermeiras norte-americanas produziam efeitos significativos para a reconfiguração do espaço social da escola, na gestão de Rachel Haddock Lobo. Como afirmou Santos (1998, p. 42), "a repetição desses rituais, anos após anos, produziam importantes efeitos do ponto de vista das alianças e do reconhecimento do grupo".

No mês de maio de 1933, Rachel Haddock Lobo afastou-se do serviço, inicialmente, sob a justificativa de que iria usufruir o período de férias. Porém, já se deparava com sérios problemas de saúde, vindo inclusive a falecer em 25 de setembro de 1933, em virtude de complicações cirúrgicas13 (SANTOS, 1998, p. 166).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A figura dinâmica e apaixonada de Rachel Haddock Lobo demarcou a presença de uma enfermeira brasileira, na direção da primeira Escola de Enfermagem implantada no Brasil, segundo os moldes anglo-americanos.

Durante a permanência da Missão Parsons no Brasil e, em continuidade, ao longo da gestão de Rachel Haddock Lobo, as alunas eram compelidas a reprimir a espontaneidade das emoções, a controlar os sentimentos, entre outros aspectos comportamentais estabelecidos à época como imprescindíveis à postura social da enfermeira-padrão (OLIVEIRA, 2002, p. 78).

As fontes documentais consultadas indicaram o cuidado com o desenvolvimento e transformação das futuras enfermeiras, tendo em vista a consolidação de um habitus profissional compatível com a construção de uma imagem dignificante para a enfermeira, na sociedade da época.

Vale ressaltar que a formação básica de Rachel Haddock Lobo não ocorreu na Escola de Enfermagem Anna Nery: sua qualificação como enfermeira desenvolveu-se na França, ao passo que os cursos de Especialização foram realizados nos Estados Unidos. Depreende-se dessas experiências que a construção do seu habitus profissional resultou da combinação de dois modelos distintos de estudo e de trabalho em enfermagem.

Por outro lado, em sua gestão como diretora da escola, promoveu um conjunto de estratégias de controle do grupo, buscando a constituição de uma identidade homogênea para as enfermeiras brasileiras. No que se refere aos emblemas e rituais institucionalizados por suas antecessoras, Rachel promoveu adaptações simbolicamente importantes, que, de certa forma, imprimiram a marca "nativa" e reconfiguraram o espaço social da Escola de Enfermagem Anna Nery.

Rachel Haddock Lobo faleceu súbita e prematuramente, em setembro de 1933, sem completar sua gestão. Seu passamento acarretou um vazio institucional, que se fez acompanhar de crise sucessória. Note-se que decorreram seis meses de seu falecimento para que a nova diretora, Bertha Pullen, retornasse ao Brasil, para assumir sua segunda gestão.

O falecimento de Rachel deixou profundas marcas no plano simbólico: logo após a morte, teve início o processo de mitificação de sua pessoa, como mulher e como enfermeira. As enfermeiras e alunas foram conclamadas a tomar a memória de Rachel Haddock Lobo como modelo a ser seguido. Em síntese, sua vida tornou-se um ícone na enfermagem brasileira.

 

REFERÊNCIAS

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

_____________ O processo civilizador. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

PERES, Maria Angélica de Almeida; FALLANTE, Barbara de Souza; BARREIRA, Ieda de Alencar. Significado dos uniformes da enfermeira nos primórdios da profissão. In: COLÓQUIO PANAMERICANO DE ENFERMAGEM, 6., 1998, Ribeirão Preto. Anais Ribeirão Preto: USP, maio 1998.

PERROT, Michele. Mulheres públicas. São Paulo: Unesp, 1998.

OLIVEIRA, Sonô Taíra Oliveira. A vida e o tempo de Rachel Haddock Lobo como diretora da Escola de Enfermagem Anna Nery (1931-1933). 2002 Dissertação (Mestrado em Enfermagem). Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.

SAUTHIER, Jussara; BARREIRA, Ieda de Alencar. A missão de enfermeiras norte-americanas na capital da república 1921-1931. Rio de Janeiro: Ed. Anna Nery / UFRJ, 1999.

SANTOS, Tânia Cristina Franco. A câmera discreta e o olhar indiscreto; a persistência da liderança norte-americana no ensino de enfermagem na capital do brasil, (1928-1938). 1998. Tese (Doutorado em Enfermagem). Escola de Enfermagem Anna Nery / Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro.

SANTOS, Tânia Cristina Franco; BARREIRA, Ieda de Alencar. Rachel Haddock Lobo, mito de enfermeira nos anos 30. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, p. 29-38, abril. 2002.

 

NOTAS

1 A Escola de Enfermagem Anna Nery, inaugurada em 1923, teve sua direção ocupada por três enfermeiras norte-americanas: Claire Louise Kieninger (1923-1925); Loraine Geneviéve Lennhardt (1925-1928) e Bertha Lucille Pullen (1928-1931).

2Decreto 20.109, de 15 de junho de 1931.

3Só retornando em 1941, para permanecer por mais algumas décadas.

4Relatório Narrativo do mês de janeiro de 1932 da Divisão da Instrução de Enfermeiras. Localização: Localização: EEAN, Pavilhão de Aulas, CD, 1932.

5A banca examinadora foi composta por: Edith de Magalhães Fraenkel, enfermeira e superintendente do Serviço de Enfermeira; dr Luiz Capriglione, médico e professor da escola; dr Alvares Barata, médico e professor da escola; Rachel Haddock Lobo, enfermeira e diretora da escola e Zaíra Cintra Vidal, enfermeira e Instrutora das alunas.

6Avaliação de Rachel Haddock Lobo.

7Relatório Narrativo do mês de fevereiro de 1932. Localização: Localização: UFRJ, EEAN, Pavilhão de Aulas, Centro de Documentação, 1932.

8Idem.

9Idem.

10Idem.

11Já haviam sido inaugurados os retratos de Claire Louise Kienninger e Carlos Chagas, em 1925; Ethel Parsons, em 1926 e Loraine Geneviéve Dennhardt, em 1928.

12Relatório Narrativo do mês de agosto de 1932. Localização: Localização: UFRJ, EEAN, Pavilhão de Aulas, Centro de Documentação, 1932.

13Crise urêmica complicada com degeneração aguda gordurosa do fígado, ocorrida após cirurgia de colecistectomia.

© Copyright 2024 - Escola Anna Nery Revista de Enfermagem - Todos os Direitos Reservados
GN1