Volume 6, Número 2, Mai/Ago - 2002
ARTIGOS DE PESQUISA
O advento da cirurgia cardíaca no exterior e no Brasil: perspectivas para o saber de enfermagem na área de pediatria (1810 - 1956)
The advent of cardiac surgery in the exterior and Brazil: perspectives for the nursing care in pediatrics
O advenimiento de la cirugía cardiaca en el exterior y en Brasil: perspectivas para el saber de enfermería en el área de pediatría(1810 - 1956)
Isabel Cristina dos Santos de OliveiraI; Thays Taboada SilvaII
IDoutora em Enfermagem. Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica - EEAN/UFRJ Pesquisadora/CNPq. Orientadora da Pesquisa
IIAluna do 8º período do Curso de Graduação em Enfermagem e Obstetria da EEAN/UFRJ. Bolsista de Iniciação Científica/CNPq
RESUMO
Trata-se de um estudo histórico, que tem como objeto: "A prática da enfermagem frente a uma tecnologia direcionada à cirurgia cardíaca infantil".
COMO OBJETIVO: descrever os marcos evolutivos da cirurgia cardíaca no exterior e no Brasil, com destaque para a área de pediatria. As fontes primárias são os artigos publicados nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia e na Revista Brasileira de Enfermagem (REBEn) no período estudado e fontes orais. As fontes secundárias são estudos pertinentes à temática. Em 1923, foi realizada a primeira comissurotomia, em Boston. A técnica do cateterismo cardíaco, na Alemanha, em 1929. A correção de cardiopatias congênitas deu-se em 1938. Em 1946, desenvolvimento da máquina de circulação extracorpórea, e de um oxigenador, em 1955. A primeira cirurgia cardíaca brasileira ocorreu em 1942. A enfermagem acompanhou a chegada da cirurgia cardíaca. Foi necessário o aprendizado da equipe de enfermagem, em relação à monitorização da criança no perioperatório e no manuseio dos aparelhos utilizados.
Palavras-chave: Enfermagem. Cirurgia cardíaca. Pediatria. História.
ABSTRACT
This is a historical study, whose object is: the nursing practice facing the technology directed to the infantile cardiac surgery.
AS OBJECTIVES: describe advancing landmarks of the cardiac surgery in the Exterior and Brazil, highlighting pediatrics . The primary sources are the articles published in the Brazilian Archives of Cardiology in the studied period and verbal sources. The secondary sources are studies related to the theme . In 1923, the first comissurotomia was carried through, in Boston. The technique of the cardiac catheterism, in Germany, 1929. The correction of congenital cardiopathies, was performed in 1938. In 1946, the development of the out-circulation machine, and a oxigenator in 1955. The first Brazilian cardiac surgeries occurred in 1942. The nursing followed the inbound of the cardiac surgery. The learning of the nursing team was necessary, related to child monitoring before, during and after the surgery, and the handling of the used devices.
Keywords: Nursing. Heart surgery. Pediatrics. History.
RESUMEN
Se trata de un estudio histórico, que tiene como objeto: "la práctica de la enfermería frente a la tecnología direccionada a la cirugía cardiaca infantil".
COMO OBJETIVO: describir los marcos evolutivos de la cirugía cardiaca en el exterior y en el Brasil, con destaque para el área de pediatría. Las fuentes primarias son los artículos publicados en los Archivos Brasileños de Cardiología y en la Revista Brasileña de Enfermería (REBEn) en el periodo estudiado y fuentes orales. Las fuentes secundarias son estudios relacionados con la temática. En 1923, fue realizada la primera comisurotomia, en Boston. La técnica del cateterismo cardiaco, en Alemania, en 1929. La corrección de cardiopatías congénitas se inició en 1938. En 1946, el desarrollo de la máquina de circulación extracorpórea, y de un oxigenador, en 1955. La primera cirugía cardiaca brasileña sucedió en 1942. La enfermería acompañó la llegada de la cirugía cardiaca. Fue necesario el aprendizaje del equipo de enfermería, en relación a la monitorización del niño en el peri operatorio y en el manuseo de los aparatos utilizados.
Palabras clave: Enfermería. Cirugia cardíaca. Pediatria. Historia.
INTRODUÇÃO
Com o propósito de ser uma profissional competente na área da enfermagem e com o surgimento de novas oportunidades dentro do Curso de Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EEAN/UFRJ), surgiu o interesse sobre a história da minha futura profissão - Enfermagem.
No âmbito da história, despertou-me a idéia de estudar a origem e o desenvolvimento de uma nova especialidade na Enfermagem: a cirurgia cardíaca infantil, e como os profissionais de enfermagem sistematizaram os cuidados prestados às crianças.
A razão pela qual voltei-me diretamente para a cirurgia cardíaca na área de pediatria é a implantação do Instituto de Cardiologia Infantil1, no município de Cachoeiro de Itapemirim, no Estado do Espírito Santo, do qual sou natural.
Assim, este texto enfoca os antecedentes históricos da cirurgia cardíaca, buscando (re)construir a prática da enfermagem frente à tecnologia direcionada a este tipo de intervenção. Segundo Silva, Oliveira e Simões (1977, p.121), sendo a cirurgia cardíaca de crianças uma especialidade relativamente nova, tornou-se necessário o preparo das enfermeiras para acompanhar esse tipo de cirurgia. O estudo tem como objetivo descrever os marcos inicias da cirurgia cardíaca no exterior e no Brasil, com destaque para a área de pediatria, no período de 1810 a 1956. Este recorte temporal se justifica na medida em que, em 1810, foram feitos os primeiros relatos de drenagens cirúrgicas do pericárdio, na Espanha. Em 1956, iniciou-se a prestação de cuidados de enfermagem no pré e pós-operatório, em cirurgia cardíaca infantil.
Trata-se de um estudo histórico. Almeida e Rocha (1986, p.127) ressaltam o saber em enfermagem numa perspectiva histórica e consideram o saber como instrumental para a realização de um trabalho. As fontes primárias são os artigos publicados nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, na Revista Brasileira de Enfermagem (REBEn) e as fontes orais são depoimentos das enfermeiras que atuaram à época. Foram identificados dois artigos que enfocam a cirurgia cardíaca pediátrica e a necessidade de treinamento para a equipe de enfermagem em relação à assistência no pós-operatório imediato de cirurgia cardíaca infantil, e o emprego de marcapasso cardíaco artificial permanente em crianças. As fontes secundárias são os livros de História do Brasil e de cirurgia cardíaca; dissertações e teses sobre cirurgia cardíaca, em destaque a pediátrica, além de periódicos nacionais de enfermagem.
O ADVENTO DA CIRURGIA CARDÍACA NO EXTERIOR
O início do século XIX, em particular 1810, pode ser considerado o marco inicial da cirurgia cardíaca em nível mundial, em vista dos relatos feitos nessa época quanto a drenagens cirúrgicas do pericárdio, pelo médico Francisco Romero, na Espanha. Entretanto, o primeiro caso de intervenção cirúrgica no coração é atribuído ao cirurgião Ludwing Rehn, que em 1896, na Europa, suturou um ferimento cardíaco ocasionado por uma laceração na face anterior do coração de um rapaz de 20 anos (PRATTES, 1999, p. 205).
Foi somente a partir do século XX que a cirurgia cardíaca se delineou. Em 1923, os médicos Elliot Cuttler e Samuel Levini realizaram a primeira comissurotomia, em Boston. Segundo Braile e Godoy (1996, p. 331), essa correção cirúrgica foi realizada em uma menina de 12 anos. O pioneiro na cirurgia de dilatação digital da vávula mitral por via transauricular foi o cirurgião Henry Soutar, em 1925, em Londres.
Desde a primeira cirurgia cardíaca no início do século XIX até meados dos anos 20, do século XX, muitos pacientes morreram por vários motivos: por não resistirem à cirurgia, pela falta dela e, principalmente, pela falta de recursos, que na época eram muito limitados e/ou não havia equipamentos que dessem suporte a determinados tipos de cirurgia. Considerando essa limitação, foram elaborados projetos para o desenvolvimento de equipamentos específicos para as cirurgias cardíacas.
Nos anos 20, os equipamentos inventados e utilizados eram de baixa complexidade, como, por exemplo, uma prótese mecânica de bola, desenvolvida pela médica Nina Brunwald, em 1928; e a técnica do cateterismo cardíaco, criada por Warner Forssman, na Alemanha, um ano mais tarde.
Braile e Godoy (1996, p. 333) afirmam que, em 1931, o médico John Gibbon, ao ver um paciente morrer na mesa de operação, imaginou que fosse possível manter a circulação e a oxigenação do paciente através de um coração-pulmão artificial, que só foi desenvolvido após a 2ª Guerra Mundial.
A primeira correção de persistência de canal atrial deu-se em 1938, realizada pelo médico Robert Gross em uma menina de 7 anos. Essa cirurgia é considerada por Downes (1992, p.09) o marco inicial da cirurgia cardiovascular pediátrica. A partir de então várias crianças com cardiopatias congênitas foram operadas, como, por exemplo, uma menina de 12 anos com coarctação da aorta, em 1944, pelo médico Clarence, em Estocolmo; e uma outra menina de 15 meses de idade com tetralogia de Fallop, pelo médico Alfred Blancok, em Baltimore, Estados Unidos.
Vale ressaltar que o médico Gibbon, idealizador do coração-pulmão artificial, teve seus trabalhos interrompidos em função da 2ªGuerra Mundial (1939-1945). Entretanto, em 1946, com o auxílio de engenheiros, conseguiu desenvolver uma máquina de circulação extracorpórea maior e eficiente o bastante para controlar temperatura, nível e fluxo do sangue (BRAILE e GODOY, 1996, p. 334).
Em 1948, o médico Charles Bailey, usando uma lâmina curva guiada pelo dedo indicador, realizou uma comissurotomia mitral em uma paciente de 24 anos, iniciando a era da cirurgia intracardíaca. (PRATTES, 1999, p. 208).
Uma das primeiras técnicas usadas para manter o corpo sem circulação foi a hipotermia. O pesquisador Bigelow, em Toronto, nos anos 50, realizou estudos, em laboratório, acerca da hipotermia, visando o fechamento de defeitos interatriais com oclusão de retorno venoso (PRATTES, 1999, p. 212). Em 1952, os médicos Lewis, Varco e Taufic utilizaram a técnica de hipotermia para operar uma menina de cinco anos, hipodesenvolvida e portadora de uma comunicação interatrial de 2 cm de diâmetro.
Em 1953, a máquina de circulação extracorpórea era utilizada pelo médico John Gibbon na cirurgia do fechamento de defeito do septo interatrial em um adolescente de 18 anos. E um ano mais tarde era empregada a circulação cruzada em seres humanos, pela primeira vez, pelo médico Lillhei, em Minessota, Estados Unidos. O primeiro caso foi de uma criança de 7 kg., que teve o seu pai como doador.
O médico Dewall desenvolveu um oxigenador de bolhas que foi usado, pela primeira vez, em 1955, em uma criança de três anos com comunicação interventricular e hipertensão pulmonar. Nesse mesmo ano, o oxigenador foi usado em sete crianças na faixa etária entre 19 meses e 7 anos de idade. A partir de então os oxigenadores foram sendo aperfeiçoados com o uso, enquanto a circulação cruzada, que foi um marco evolutivo da cirurgia cardíaca, foi definitivamente abolida (BRAILE e GODOY, 1996, p. 335).
Foi nesse contexto que a cirurgia cardíaca se delineou. A partir dos anos 60, as cirurgias cardíacas eram comuns devido às especializações das equipes em todo mundo, como também pela existência de equipamentos altamente desenvolvidos que davam suporte às cirurgias mais complexas, resultando na redução da mortalidade pós-cirúrgica.
O ADVENTO DA CIRURGIA CARDÍACA NO BRASIL
A primeira cirurgia cardíaca ocorreu num menino de 7 anos, em 1942, realizada pelo médico Euryclides de Jesus Zerbini, na Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo.
Em 1944, foi fundado o Hospital das Clínicas de São Paulo, que se tornou referência nesse tipo de cirurgia em todo país. Na década de 40, houve intercâmbio dos médicos brasileiros com especialistas estrangeiros, o que favoreceu o início da fase de realização das cirurgias cardíacas fechadas no Brasil.
O primeiro Simpósio sobre Cirurgia Cardíaca ocorreu em Campos do Jordão/São Paulo, em 1954. Nesse evento, os especialistas discutiram os avanços das cirurgias cardíacas fechadas e os seus limites, assim como possibilidades cirúrgicas em relação à abertura das cavidades cardíacas visando o avanço da especialidade no país em paralelo com o exterior.
Em 1955, aconteceu, então, a primeira cirurgia cardíaca aberta, e, em 1956, o médico Hugo Felipozzi foi o pioneiro na abertura das cavidades cardíacas, sob circulação extracorpórea, na América Latina. No Rio de Janeiro, a circulação extracorpórea foi iniciada em 1957 e progressivamente sendo praticada nas demais capitais brasileiras(COSTA, 1998, p. 209).
Vale destacar o relato de uma enfermeira que, em 1956, prestava cuidados diretos às crianças no pré e pós-operatório de cirurgia cardíaca no Estado de Pernambuco: "...nós comprovamos estatisticamente que os pacientes que eram preparados no pré-operatório respondiam com uma alteração de comportamento mais leve... principalmente em cirurgias infantis." Ainda acrescenta: "Para se realizar esse tipo de cirurgia, fazia a criança hibernar... preparávamos o colchão de gelo no qual era colocado a criança. Quando ela alcançava a temperatura adequada (35º C), a cirurgia era iniciada."
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cirurgia cardíaca iniciou-se no século XIX, entretanto na área de enfermagem é uma especialidade relativamente nova, visto que, no setor saúde, as descobertas acontecem num processo contínuo e prolongado de testes, aprovação e utilização do que foi descoberto. Da mesma forma ocorreu na cirurgia cardíaca, seja na área de pediatria ou não.
Constata-se que as primeiras cirurgias cardíacas realizadas em nível mundial intercalaram-se entre adultos e crianças, bem como a utilização de novos equipamentos e tecnologias. A técnica do cateterismo cardíaco, por exemplo, foi de fundamental importância para o avanço da cirurgia cardíaca, e ainda hoje essa técnica é muito utilizada. A máquina de circulação extracorpórea foi um dos marcos evolutivos para a cirurgia cardíaca, visto que somente através dela foi possível avançar na correção de defeitos intracardíacos: as conhecidas cirurgias cardíacas abertas.
Na pediatria, um marco evolutivo muito importante foi a correção das cardiopatias congênitas, responsável por 50% dos óbitos de crianças com problemas cardíacos. Outro marco foi a utilização da técnica de hipotermia, em uma criança. Não excluindo a técnica de circulação cruzada, que foi bastante usada em cirurgias cardíacas infantis, até entrar em desuso com a chegada dos oxigenadores, que se tornaram peça fundamental em cirurgia cardíaca nos adultos e também nas crianças, por oferecer maior segurança para tal tipo de cirurgia.
Vale destacar ainda a participação do Brasil na história da cirurgia cardíaca infantil, uma vez que a primeira cirurgia cardíaca que se tem notícia, realizada no país, foi em um menino de 7 anos. E esse foi apenas o primeiro passo para outras cirurgias, com auxílio dos médicos estrangeiros, que transmitiram seus conhecimentos para médicos e enfermeiras brasileiras.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, M.C.P.; ROCHA, J.S.Y. O saber de enfermagem e sua dimensão prática. São Paulo: Cortez, 1986, p.127.
BRAILE, D.M.; GODOY, M.F. História da cirurgia cardíaca. Arquivos Brasileiros de Cardiologia, São Paulo. v.66, n 6, p. 329-332, abr.1996.
CARBIOLI,N.; LEMOS, P. Doutor Zerbini: O coração pela vida. São Paulo. Editorial, 1999, p. 18-119.
COSTA, I.A da. História da cirurgia cardíaca brasileira. Revista Brasileira de Cirurgia Cardiovascular, São Paulo. v.13, n 1, p.205-383, jan./mar.1998.
DOWNES, J.J. Evolução histórica, estado atual e desenvolvimento prospectivo do tratamento intensivo pediátrico. Clínicas de Terapia Intensiva, Rio de Janeiro, v.1, p.8-11, 1992.
PRATES, P.R. Pequena história da cirurgia cardíaca: e tudo aconteceu diante de nossos olhos... Revista Brasileira de Cirurgia Cardiovascular, São Paulo. v.14, n. 3, p. 205-258, jul.1999.
SILVA, A.L.;OLIVEIRA,M.F. ; SIMÕES, M.M.M. Assistência respiratória em pós- operatório imediato de cirurgia cardíaca infantil. Revista Brasileira de Enfermagem, Distrito Federal. v.30 ,n 7, p.121-123, nov.1977.
NOTAS
1Setor de Cirurgia Cardíaca Infantil implantado no Hospital Evangélico de Cachoeiro de Itapemirim, visando atender a demanda de todo o Sul do Estado. Esse setor recebe verba federal, conseguida através de um acordo entre a prefeitura do município e o Governo do Estado.