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CAPES

Volume 8, Número 2, Mai/Ago - 2004

ARTIGOS DE PESQUISA

 

O cuidado de enfermagem através dos sentidos corporais do cliente em diálise peritoneal: uma abordagem sociopoéticaª

 

The nursing care through the corporeal senses of the client under peritoneal dialysis: a sociopoetics approach

 

El cuidado de enfermería a través de los sentidos corporales del cliente en la diálisis peritoneal: un abordaje sociopoético

 

 

Selma Cardoso SaesI; Sílvia Teresa Carvalho de AraújoII

IMestre pela Escola de Enfermagem Anna Nery / UFRJ; Especialista e Credenciada em Nefrologia
IIProfessora Adjunta do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem Anna Nery / UFRJ. Doutora em Enfermagem

 

 


RESUMO

Estudo qualitativo, com abordagem sociopoética, sobre a percepção sensorial de clientes em diálise peritoneal desvelada a partir de seu imaginário acerca do cuidado de enfermagem.
OBJETIVOS: descrever as percepções sensoriais dos clientes emergentes do cuidado da enfermeira e analisar, segundo seu imaginário, as expressões verbais e não-verbais da enfermeira desencadeadoras de emoções e sentimentos durante o cuidado.
METODOLOGIA: aplicação das dinâmicas jogo da sorte e sentidos socio-comunicantes do corpo readaptadas. Depoimentos de sete clientes destacaram temas e subtemas de seus imaginários resultando em três categorias: percepções do cliente em relação ao cuidado, emoções e sentimentos dos clientes e explicações frente às percepções. A análise, sob a forma de poesias, validou o cuidado destacando-se emoções e sentimentos; interpretação através de ligações entre os diferentes sentidos; e discutiu a Enfermagem e a enfermeira. A construção sociopoética desafiou o grupo de clientes a discutir o cuidado e favoreceu o redimensionamento do olhar sobre o cuidar.

Palavras-chave: Cuidado de enfermagem. Comunicação não-verbal. Órgãos dos sentidos.


ABSTRACT

Qualitative study with a sociopoetics approach about the sensorial perception of the client under peritoneal dialisis unveiled since the imaginary to the nursing care.
OBJECTIVES: to describe the sensorial perceptions of the client who was under nurse care and to analyse, according to the client's imaginary, the verbal and nonverbal expressions of the nurse unleashing emotions and feelings during the care.
METHODOLOGY: application of the dynamics, game of luck and sociological communicant sense of the body. Statement of seven clients accentuaded themes and subthemes of them imaginary leading to three categories: the client's perception related to the care, emotions and feelings of the client and explanations faced to the perceptions. The analysis, under the form of poetry, validated the care, what accentuaded emotions and feelings; it was interpreted trough conections between the diferents senses; and discussed the Nursing and the nurse. The sociopoetics' construction incited the group of clients to dicuss the care and favoured the redimensioning of the look about the care.

Keywords: Nursing care. Nonverbal communication. Sense organs.


RESUMEN

Se trata de un estudio cualitativo, con abordaje sociopoetico, sobre la percepción sensorial de clientes en diálisis peritoneal desvelada desde su imaginario acerca del cuidado de enfermería.
OBJETIVOS: describir las percepciones sensoriales de los clientes emergentes del cuidado de enfermería y analizar, según su imaginario, las expresiones verbales y no verbales de la enfermera que originan emociones y sentimientos durante el cuidado.
METODOLOGIA: aplicación de las dinámicas juego de la suerte y sentidos sociocomunicantes del cuerpo. Testimonios de siete clientes destacaron temas y subtemas de sus imaginarios, lo que resultó en tres categorías: percepciones del cliente en relación al cuidado, emociones y sentimientos de los clientes y explicación delante de las percepciones. El análisis, bajo la forma de poesías, validó el cuidado destacándose emociones y sentimientos; interpretación a través de ligaciones entre los diferentes sentidos; y discutió la Enfermería y la enfermera. La construcción sociopoetica desafió el grupo de clientes a discutir el cuidado y propició el establecimiento de nuevas dimensiones de la mirada sobre el cuidar.

Palabras clave: Cuidado de enfermería. Comunicación no verbal. Órganos de los sentidos.


 

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Esta pesquisa consiste na descrição do encontro com a sociopoética e das experiências vivenciadas com a utilização desta abordagem, junto a clientes com necessidades especiais de saúde na área renal, submetidos à diálise peritoneal. Traz ainda a descrição da aplicação da dinâmica utilizada para a produção de dados, além da apresentação e análise preliminar dos dados produzidos com os sujeitos por ocasião do tratamento.

Em 1987, na conclusão de Curso de Graduação em Enfermagem e Obstetrícia, na Escola de Enfermagem Alfredo Pinto/Universidade do Rio de Janeiro (EEAP/UNIRIO), de uma das autoras teve a oportunidade de trabalhar junto a clientes com necessidades especiais de saúde na área renal, em um hospital particular de grande porte, localizado no Rio de Janeiro. Houve uma identificação imediata dela com a clientela, por perceber a possibilidade de realizar o desejo de ajudar ao próximo ao oferecer-lhe carinho e conforto, além de cuidados assistenciais.

O tratamento deixava marcas físicas e psicológicas nos clientes, reavivando neles o estigma de uma doença crônica e terminal e contribuindo para o seu abandono por parte daqueles que lhes eram próximos. Essas agressões físicas e psicológicas provocadas pela doença e pelo tratamento, percebidas nos oito anos consecutivos de trabalho desta autora junto a esses clientes (1987 - 1995), assim como a necessidade de dispensar-lhes atenção especial, estimularam-na a aprofundar os conhecimentos sobre tais questões. Houve a percepção de que os profissionais preocupavam-se mais com os aspectos técnicos relacionados ao funcionamento da diálise, acessos para o tratamento, entre outros aspectos, em detrimento das necessidades emocionais que o cliente demonstrava. Era preciso descobrir uma nova forma de cuidar que pudesse atender a clientela como um todo, valorizando igualmente os aspectos físicos, mentais e espirituais.

Ao ingressar no curso de mestrado como aluna especial na disciplina eletiva "Seminário de Enfermagem Assistencial com Ênfase no Cuidar/Cuidado de Enfermagem", ela teve a oportunidade de conhecer o método sociopoético, desenvolvido através de dinâmicas nas aulas dessa disciplina. Nessas dinâmicas, os sentidos corporais foram instrumentos para a percepção do cuidar/cuidado de enfermagem e o aprofundamento de temáticas significativas que permitiram repensar a prática junto aos clientes renais.

Como sujeito das dinâmicas desenvolvidas em sala de aula entre um grupo de alunas de mestrado, a autora experimentou a possibilidade de expor seu imaginário em relação à forma como ela percebia o cuidar/cuidado, reportando-se ao setor onde trabalhava através da imaginação e dos sentidos corporais. Ficou impressionada ao perceber como as dinâmicas permitiram construir imagens de modo tão perfeito, deixando aflorar as emoções e os sentimentos no grupo.

Essa experiência permitiu a definição do objeto de estudo da pesquisa ora apresentada, como a percepção sensorial do cliente com necessidades especiais de saúde na área renal, desvelada no imaginário, acerca do cuidado de enfermagem durante a diálise peritoneal.

A justificativa para a realização do estudo reside no fato de que, desde o início das atividades profissionais em Nefrologia, a autora observou que o cuidar em enfermagem baseia-se principalmente no modelo biomédico ainda vigente na área da saúde. Em contraposição, a utilização da abordagem sociopoética busca valorizar o imaginário do cliente como fonte de dados de grande relevância para auxiliar no cuidado de enfermagem. Isso porque o desvelamento do imaginário permite compreender as diferentes reações comportamentais que cada cliente apresenta quando se defronta com a doença e o tratamento dialítico.

Na prática junto a clientes com necessidades especiais de saúde na área renal, observou-se que a eclosão da doença possui relação com grandes perdas, considerando-se que os rins:

[...] no tocante ao sistema urinário, correspondem à manifestação dos sentimentos que estabelecem os relacionamentos afetivos [...]. Uma condição fundamental para a saúde urinária em termos metafísicos é que se disponha de habilidade para se relacionar de modo harmonioso com as pessoas amadas [...]1:77.

De acordo com essa posição, os rins representam o referencial físico da habilidade de se relacionar e vivenciar as experiências afetivas, principalmente com parceiros e familiares; portanto, a maneira como as pessoas relacionam-se com o outro rege as funções renais. Uma outra questão que influencia no surgimento da doença é a correria desenfreada do dia-a-dia, que faz com que a atenção à saúde seja relegada a segundo plano. Em decorrência disso, quando a doença é diagnosticada, o nível de agressão renal já é considerável e o tratamento, a única solução.

Segundo Nakamae2:283, o parênquima renal possui cerca de um milhão de néfrons em cada rim e as lesões inflamatórias podem acarretar necrose e fibrose com conseqüente redução do tecido renal ativo. Quando a redução atinge um terço do total, surge a deterioração da função renal, cuja evolução é fatal. Em conseqüência disso, institui-se uma falência dos mecanismos responsáveis pela homeostasia do organismo, com redução progressiva da capacidade de manter o equilíbrio hídrico, eletrolítico, ácido básico e de eliminação de escórias corporais.

O cliente com necessidades especiais de saúde na área renal, ao iniciar o tratamento dialítico, surpreendese com os problemas que surgem e afetam profundamente a sua existência e a dos que o cercam, entre eles se destacando os familiares e amigos. As diversas complicações a que estão sujeitos durante o tratamento, pela presença constante de um corpo estranho na cavidade abdominal (o cateter) e a distensão freqüente do abdômen como conseqüência da introdução do líquido de diálise, são exemplos desses problemas.

A mais grave das complicações é a peritonite. Mas existem outras complicações, destacando-se, entre outras, as metabólicas, em decorrência da doença, que prejudicam a sua qualidade de vida, tais como: desnutrição protéica, anemia, hiperglicemia, osteodistrofia renal, hipertensão. E a própria condição clínica apresentada pelo cliente, na prática, raramente permite que ele chegue ao transplante.

Tais fatos justificam a insegurança sentida pelos clientes, que estão conscientes de que quanto mais tempo fazendo a diálise maior a possibilidade de surgirem novas restrições de dieta; mudanças no estilo de vida, estado clínico imprevisível, além dos problemas financeiros que sobrecarregam a família. Essa situação acaba por gerar irritação acentuando neles o sentimento de revolta pela saúde deficiente. Assim, o estado psíquico de insegurança torna o cliente vulnerável aos processos independência-dependência, saúde-doença, vida-morte.

Frente à situação vivenciada por essa clientela, cabe à enfermeira desenvolver habilidades técnicas e humanas para intervir, o que demanda o desenvolvimento de sua capacidade em se comunicar. O ato de se comunicar acontece através de formas verbais e não-verbais e tem como objetivo a troca de informações. Silva3:310 destaca que, a comunicação não-verbal tem merecido pouca atenção dos pesquisadores, dificultando o avanço do saber acerca dessas manifestações. Em conseqüência, as relações interpessoais ficam limitadas, empobrecendo o processo comunicativo. Considerando-se a situação de saúde da clientela deste estudo e as alterações em sua imagem corporal, Araújo4:64 afirma que:

[...] geralmente, quando o cliente é portador de uma enfermidade que afeta sua imagem corporal, ele se torna extremamente sensível. Seu estado psíquico de insegurança torna-se mais vulnerável. Na maioria das vezes, esse estado privilegia a comunicação não-verbal para emitir mensagens significativas, frente aos seus sentimentos. [...].

A prática da enfermagem em unidade renal mostra que a análise anterior é pertinente, pois a equipe direciona as prioridades do cuidado para as questões técnicas, que exigem atenção especial a fim de evitar a ocorrência de acidentes durante os procedimentos, o que é esperado. Entretanto, este foco nas questões técnicas desvia a atenção da Enfermagem do comportamento da clientela e assim as expressões não-verbais por ela transmitidas não são suficientemente valorizadas.

Partindo dessa problematização, emergiram as questões norteadoras que direcionaram as buscas deste estudo, ou seja: (a) Como o cliente percebe as expressões verbais e não-verbais da enfermeira, durante a diálise peritoneal? (b) Como as manifestações verbais e nãoverbais da enfermeira podem interferir nas emoções e sentimentos do cliente? (c) Como a compreensão dessas percepções, pelo cliente, pode contribuir para o cuidado de enfermagem prestado?

O presente estudo teve como objetivos: (a) descrever as percepções sensoriais do cliente emergentes do cuidado da enfermeira; e (b) analisar, segundo o imaginário do cliente, as expressões verbais e nãoverbais da enfermeira, desencadeadoras de emoções e sentimentos durante o cuidado.

 

REFERÊNCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

Nesta pesquisa com abordagem qualitativa nos apropriamos das concepções teóricas de Santos e Gauthier5:20, quando eles destacam a valorização das dimensões do eu, da pessoa, do sujeito e do cidadão no cuidado de enfermagem. Para esses autores6:12, toda prática social de produção de conhecimento deve estabelecer recusas, tais como:

- a recusa em separar a cabeça do resto do corpo na construção do imaginário;

- a recusa em não dialogar com as culturas dominadas ou não as deixar participar da produção de conhecimentos;

- a recusa em separar a aprendizagem científica do desenvolvimento artístico;

- a recusa em separar o conhecimento da espiritualidade.

A utilização desses princípios de recusa permite uma criação democratizada. Segundo Araújo4:73, a adoção desses princípios favorece a descoberta de significações múltiplas, e até mesmo opostas, do objeto que está sendo pesquisado. Pois, de acordo com Gauthier7:53, a sociopoética faz com que as pessoas expressem o desconhecido, o recalcado, o escondido na superfície da pele, na rede nervosa ou na profundidade da víscera.

Para favorecer o desvelamento do imaginário do cliente, Gauthier e Santos 6:23-26 descrevem o método do grupo pesquisador como o centro vivo da sociopoética, no qual a transformação das pessoas pesquisadas (co-pesquisadores) é uma exigência ética e política fundamental. Obviamente, a parceria entre o pesquisador e os co-pesquisadores não significa ausência de conflitos, que podem surgir na medida em que durante o diálogo acontecem negociações, contradições, acordos e crescimento mútuo.

Para analisar as percepções do cliente com necessidades especiais de saúde na área renal, no que diz respeito ao cuidado de enfermagem, buscamos também fundamentos na Teoria Transpessoal de Cuidado, de Jean Watson. A Teoria de Watson afirma que o cuidado é o maior atributo que a enfermagem pode oferecer para a humanidade, mas que os avanços tecnológicos têm sido responsáveis pelo seu afastamento das necessidades do cliente. Para que o cuidado de enfermagem aconteça, é necessário que haja sensibilidade entre profissional e cliente8:254.

Um dos fatores básicos de cuidado que essa Teoria propõe é o [...] desenvolvimento de uma relação de ajudaconfiança: modo de comunicação que estabelece harmonia e cuidado e inclui o verbal, o não-verbal e o ouvir de modo empático [...]8:254. Ela também auxilia o alcance do cuidado que o cliente deve receber e oferece o cuidado que satisfaz a alma. Neste estudo, o que se busca é exatamente o que Watson propõe: a enfermeira traz o cuidado, e não a tecnologia, para o foco da prática.

 

O CENÁRIO DA PESQUISA

A pesquisa foi realizada na Unidade Renal, de um Hospital Federal, localizado no Município do Rio de Janeiro, com clientes submetidos à diálise peritoneal, independente do sexo e da faixa etária, após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição. Em relação aos aspectos éticos inerentes à pesquisa, o procedimento de produção de dados atendeu as determinações da Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde/MS, que fixa as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos.

 

A PRODUÇÃO DOS DADOS

O caminho metodológico desta pesquisa teve como base a validação da dinâmica do Jogo da Sorte, readaptada com os eixos norteadores da técnica de vivência [...] os sentidos sociocomunicantes do corpo [...], ambas criadas e aplicadas por Araújo4 em sua tese de doutorado.

A aplicação da dinâmica foi realizada de forma coletiva com os clientes que desejaram participar da pesquisa, na enfermaria de diálise peritoneal, o que desencadeou sensações que facilitaram suas expressões verbais e não-verbais. O período do dia escolhido para a produção de dados foi o da tarde, já que os clientes permaneciam em tratamento por 24 a 48 horas.

No primeiro encontro, inicialmente foi esclarecido para os clientes desta produção de dados o objetivo da pesquisa e da dinâmica permitindo que sua participação ocorresse após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Em seqüência, num primeiro momento, foi transmitida música-ambiente apropriada a um breve período de relaxamento, sendo os clientes estimulados a fechar os olhos e a respirar pausadamente. Num segundo momento, a proposta de pesquisa foi lançada e o tema norteador foi apresentado: Como você percebe o cuidado da enfermeira através dos sentidos corporais? Finalmente, no terceiro momento, discutimos com os sujeitos da pesquisa quanto ao interesse do tema proposto.

Em seguida apresentei a dinâmica do jogo da sorte. A dinâmica desse jogo, nesta pesquisa, envolveu a adoção de uma gravura ampliada que mostra a enfermeira cuidando de um cliente em diálise peritoneal, e um cubo de seis faces, cada uma contendo um sentido corporal (visão, tato, olfato, gustação, audição e coração). Quanto ao coração entendido como sentido, Araújo4:198 ressalta que ele passou a existir pela relevância que teve nos resultados obtidos. A pesquisa mostrou que o coração, dentro do corpo, faz os sentidos sentirem.

A realização da produção apresentou a seguinte dinâmica: o cubo era lançado e, mediante o sentido sorteado, a ampliação da gravura já referida era mostrada para que os co-pesquisadores expressassem individualmente como percebiam o cuidado de enfermagem através do sentido sorteado, no que se refere à comunicação verbal e não-verbal da enfermeira.

A produção de dados ocorreu em dois dias. Cada cliente sorteou um sentido corporal no jogo da sorte, que era retirado do jogo, em seguida ficando os demais sentidos que ainda não tinham sido sorteados. No primeiro dia, participaram três clientes e foram sorteados três sentidos corporais: tato, visão e olfato. No segundo dia participaram quatro clientes e foram sorteados outros três sentidos: audição, gustação e coração, sendo incluído novamente o sentido olfato, que tinha favorecido mais a discussão no dia anterior.

Após o sorteio, cada um co-pesquisador expressou de modo voluntário suas percepções estabelecendo-se uma relação dialógica durante a dinâmica. Para facilitar a condução da dinâmica, após o sorteio de cada sentido corporal, realizei a leitura da frase norteadora correspondente. Essas frases foram as seguintes:

. Para a visão: Como você percebe os olhares da enfermeira? Que emoções e sentimentos esses olhares lhe provocam?

. Para o tato: Como você percebe o toque da enfermeira? Que emoções e sentimentos esse toque lhe provoca?

. Para o olfato: Como você percebe a reação da enfermeira aos odores? Que emoções e sentimentos essa reação lhe provoca?

. Para a audição: Como você percebe a entonação da voz da enfermeira? Que emoções e sentimentos a entonação da voz da enfermeira lhe provocam?

. Para a gustação: Como você percebe as palavras da enfermeira? Que emoções e sentimentos essas palavras lhe provocam?

. Para o coração: Como você percebe as emoções e sentimentos da enfermeira?

. Que reações essas percepções geram?

Finalizando esta etapa, cada cliente expressou o que sentiu durante a realização da dinâmica. Todas as falas dos co-pesquisadores foram gravadas e devidamente transcritas. Após transcrição dos depoimentos e análise dos temas representando as idéias mais comuns e dos subtemas, representando aquelas menos freqüentes nos depoimentos dos participantes, houve um retorno ao grupo, para o aprofundamento e validação dos dados produzidos organizados em quadros demonstrativos.

Essas etapas subseqüentes de produção de dados também foram gravadas em fitas magnéticas, com autorização prévia dos sujeitos, para assegurar a fidedignidade dos depoimentos, e transcritas para análise e destaque dos temas de maior preocupação do grupo naquele momento. Os depoentes foram identificados por um codinome como forma de preservar-lhes o anonimato.

 

ANÁLISE DOS DADOS

Os dados produzidos através da dinâmica do jogo da sorte foram transcritos para o quadro de apurações. Na horizontal, foram distribuídas as categorias teóricas, correlacionando a percepção sensorial do cliente em relação ao cuidado prestado pela enfermeira com as emoções e sentimentos emergentes desse cuidado. Na vertical, foram distribuídas as respostas dos clientes, que constituem as categorias empíricas de onde surgiram os temas e subtemas emergentes da fala do grupo-pesquisador.

Com base no quadro de apurações, foi elaborado um quadro com três categorias como resultado do momento de reclusão e reflexão do pesquisador, para o desenvolvimento da análise e interpretação dos dados. Na primeira coluna, foram lançados trechos das falas do grupo-pesquisador, relacionadas às percepções do cliente quanto ao cuidado; na segunda, relacionados às emoções e sentimentos do cliente, em resposta a esta percepção; e na terceira, como os sentidos corporais do cliente explicam este cuidado. A partir daí obteve-se o real significado do cuidado de enfermagem, segundo a percepção dos clientes em diálise peritoneal.

Os dados produzidos a partir das experiências emergentes da interação entre o pesquisador e o grupo pesquisado-co-pesquisadores, conforme pressupõe a sociopoética, representam o pensamento do grupo e refletem o imaginário coletivo; ou seja, a realidade única que permite penetrar no interior de cada um e conhecer as reais necessidades dessa clientela. Através dos resultados, foi possível alcançar o não-dito, analisando todas as respostas, unindo emoções e sentimentos à intelectualidade, revelando a partir de cada imaginário a estrutura do pensamento do grupo como um todo.

Como destaca Tavares9:112, o cuidado criativo desenvolvido pelo enfermeiro deve-se a uma busca e valorização de pequenos gestos cotidianos produzidos por todos envolvidos no processo. Dessa forma, o cuidar criativo transcende a prática da arte como terapia, para tocar a especificidade do ser humano em toda a sua complexidade - interior e social, abrangendo sua magia, potência e mistério9:109. Essa autora destaca também que a criação de tecnologia de cuidar articula a existência singular do sujeito ao seu meio ambiente, e tem na produção da subjetividade, no imaginário social e na criatividade uma possibilidade singular para criação, promoção e qualificação de cuidados10:344.

A análise da percepção do cliente em relação ao sentido tato mostrou que o toque transcende o contato físico, além de transmitir conforto e carinho para enfrentar o tratamento. As mãos transmitem verdade e credibilidade, e são guiadas por uma força superior. É certo que milhares de informações podem ser transmitidas através do toque que, ao ser despertado, combina-se com os demais sentidos11:94. A partir daí podemos compreender que tocamos na totalidade do ser, no mais profundo de sua espiritualidade.

Como enfermeiras, [...] estamos em posição única para demonstrar compreensão e interesse por meio do toque [...]12:32. O contato físico traz conforto, segurança e tranqüilidade promovendo o bem-estar12. Isso pode ser confirmado na análise dos dados em que os clientes demonstram ter recebido força, esperança, conforto, tranqüilidade, carinho, ânimo e coragem, através do toque da enfermeira.

No sentido tato, sobressaiu a dimensão espiritual do imaginário, no qual se destacou a sensibilidade noética que, [...] é a expressão de uma pessoa que pode avançar bastante na realização de seu processo de individuação e na consciência ativa do sois [...] e a questão do limiar entre a vida e a morte 13:206. O cliente passa a se ver com uma doença incurável, dependente de um tratamento que apenas mantém a sua vida. A morte é uma certeza, mas há ainda a esperança de um transplante. Ele conformase com a idéia da morte, mas luta, influenciado pelos valores, crenças e apoio dos familiares.

Do ponto de vista da sociopoética, as diferenças nos depoimentos surgem em relação à continuidade do tratamento. Através da esperança, o cliente encontra forças para continuar vivendo, um sentimento que acaba sendo reforçado por situações que, apesar de raras, existem, como, por exemplo, a alta de um cliente do tratamento. No imaginário daqueles que permanecem, essa realidade fortalece a certeza da "cura" sem a necessidade do transplante renal.

Em relação ao sentido visão, ver é muito mais do que enxergar, pois a imagem visual detona as emoções. Os olhos são grandes mobilizadores dos sentidos e 70% dos receptores dos sentidos do corpo estão nos olhos11:331.

Ao analisar as percepções dos clientes através desse sentido, inferimos que o olhar da enfermeira pode transmitir pureza, vontade de ajudar, bom humor, consolo, carinho, amor, dedicação e demonstrar interesse pelo outro. Ackerman11:278 relata que a visão não acontece nos olhos, mas sim no cérebro - com os olhos da mente, o que leva a enxergar através da imaginação. Para essa autora, quando se vê uma paisagem em conjunto, embora todos vejam a mesma imagem, a visão difere de pessoa para pessoa. Portanto, isso é que dá sentido à visão.

O olhar transmite a esperança e os sentimentos positivos que impulsionam para a vida. A sensibilidade noética sobressai-se reafirmando a fé e a crença num Ser superior. A esperança é fortalecida pelas crenças e valores que o cliente possui, o que denota uma diferença nos imaginários, tornando a posição de uns positiva e a de outros negativa, com relação ao futuro. Em alguns momentos, o cliente experimenta uma espécie de euforia que o afasta da realidade. Porém, quando ele se vê face a face com as adversidades, muitas vezes seus sonhos dão lugar a grandes crises existenciais.

O sentido olfato, [...] é o sentido mudo, o que não tem palavras [...] e não necessita de tradutor, como os demais sentidos. Seu efeito é imediato11:26. Lembramos também que [...] ao respirar, percebemos os odores e somos percebidos através deles [...]. Então, os cheiros emanados dos nossos corpos atraem, repelem, envolvem, embriagam, impregnam, excitam e entorpecem4:157. As reações ao odor estão diretamente relacionadas à cultura do povo. O que é agradável para uns pode desagradar a outros.

Ao analisar a percepção dos clientes em relação ao sentido olfato, constatamos que foi ele que gerou maior discussão. Na percepção dos clientes, de modo geral, a enfermeira consegue enfrentar certas situações sem demonstrar constrangimento. Mas, algumas vezes, a entonação de sua voz pode demonstrar certa repulsa.

Assim, o odor exalado por uma úlcera de pressão, por fezes ou até por hálito urêmico pode, por vezes, gerar reações por parte de quem cuida, percebidas de forma negativa pelo cliente, a ponto de causar transtornos no relacionamento interpessoal. Então a enfermeira deve ter cautela na escolha do vocabulário que irá utilizar para descrever qualquer situação, principalmente aquelas que envolvem o sentido olfato.

Os odores despertam os sentidos adormecidos e podem alegrar, entristecer, satisfazer, ajudar, definir a imagem e a auto-estima4:163. Portanto, no imaginário do cliente, a enfermeira é um ser especial e sua reação pode ser percebida como um sacrifício a ser feito por amor ao semelhante. Assim, a reação demonstrada por ela frente à determinada situação, pode acarretar respostas, emoções e sentimentos negativos ou positivos, dependendo das circunstâncias e do imaginário de cada um.

Quanto ao sentido audição, Silva14:17 destaca que as ondas sonoras encontram nossas orelhas e, então, chegam ao canal auditivo. Quando as ondas atingem a membrana timpânica, esta passa a vibrar na mesma freqüência que a fonte sonora. Não podemos esquecer que [...] o som engrossa o caldo sensorial de nossas vidas [...] ajudando-nos a interpretar, comunicar e expressar o mundo que está a nossa volta. Os sons nos dão mais alucinações, quando comparados a imagens11:215.

Ao analisar a percepção do cliente em relação a este sentido, observamos que a voz da enfermeira pode transmitir alegria, expectativa de vida, segurança, dando um toque diferente à vida daquele que sofre. A importância da maneira como a enfermeira dirige-se a um cliente chega a ter dimensões tão profundas, a ponto de compensar a ausência dos familiares.

A voz da enfermeira pode demonstrar carinho e transmitir confiança, esperança e vontade de viver. Quando ela fala com voz amena, é capaz de estimular a recuperação do cliente, ou seja, a voz tem grande poder terapêutico. Ackerman11:222 afirma que temos a capacidade de afastar alguns sons, de modo que sejam quase imperceptíveis, e de trazer outros para junto de nós.

De modo geral, observamos que os clientes percebem a voz da enfermeira como um alento, e a maneira dela falar tem grande influência. Algumas falam de modo impessoal, apenas como profissionais, sem demonstrar sentimentos. Mas a maioria das enfermeiras fala com o coração. De qualquer forma, é importante ter cuidado com o tom de voz usado e com a discrição, no caso de algum comentário diante do cliente.

Para Araújo4:151, os sons são o primeiro e o último fio de ligação com os anseios, os medos e a realidade, [...] perdê-la (a audição) seria a consciência de estar inconsciente da realidade coletiva [...]. Um dos momentos mais cruciais para o cliente é o término da diálise, quando cada um encerra a sessão em horário diferente. Quando se fica sozinho perde-se o vínculo com o outro, e a ausência de ruídos traz um sentimento de solidão. A autora ainda destaca que [...] o cliente procura identificar algum som conhecido ou significativo a fim de se desligar dos ruídos desagradáveis próprios do ambiente, capazes de agir direto nas suas emoções [...]4:154

O sentido gustação é marcadamente influenciado por fatores culturais. Geralmente, quando nos referimos a uma pessoa, é costume associá-la ao gosto doce ou amargo. Nesse sentido, quanto à gustação [...] sentem-se os gostos de substâncias quando algumas de suas moléculas dissolvidas na saliva atingem as células receptoras [...]14:17. Portanto o paladar é extremamente social. Ele se traduz pelo contato com as coisas e as pessoas11:161. E é por isso que dizemos que as palavras podem trazer à mente a lembrança de sabores agradáveis ou não. Quando a enfermeira emite alguma observação em relação ao cliente ou para o cliente, suas palavras podem chegar a cada um com significados diferentes através da audição. Dependendo da forma como essas palavras são recebidas, o sabor poderá ser definido.

Há diversos tipos de palavras: as que trazem esperança e confiança, as que demonstram carinho, as que revelam tristeza e mágoa, as que animam, orientam e esclarecem dúvidas, as que trazem alegria e saúde. Na experiência desses clientes, este sentido desperta admiração, pois demonstra quão próxima a enfermeira está na realização do cuidado.

Outro aspecto revelado através do imaginário do grupo pesquisador é que a forma de falar, firme, porém carinhosa da enfermeira, faz com que associem a sua figura à imagem de "irmã mais velha". Existem pessoas que têm o dom de trazer sentimentos positivos àqueles que sofrem, mas, na realidade, sabemos que somente o amor é capaz de gerar um profissional dedicado, sempre pronto a ajudar.

Ackerman11:353, discorrendo sobre os sentidos corporais, ressalta que por exigência da vida e até mesmo por conveniência pode-se dizer que existem cinco sentidos corporais. Porém, com curiosidade, somos capazes de descobrir novos sentidos.

Considerando essa informação, Araújo4:198 descreve um novo sentido, o coração, que [...] está dentro do corpo e faz os sentidos sentirem [...]. Por esse motivo, sua pesquisa mostrou que o coração passou de mero símbolo à condição de um novo sentido corporal.

Nosso corpo [...] verifica o mundo como se fosse um general inteligente e observador [...]11:355. Quando nossos sentidos percebem algo novo, eles enviam uma mensagem ao cérebro num processo que vai desencadear a emoção. Com o passar do tempo, o cérebro perde a capacidade de se surpreender. A percepção do cliente em relação ao coração traduz as emoções e os sentimentos da enfermeira durante o cuidado.

Para o cliente, a enfermeira tem sentimentos e é o coração que faz com que ela se posicione no lugar do cliente e lute para recuperá-lo. Isso provoca admiração, porque ele reconhece todo o seu esforço. Somente aquelas enfermeiras que possuem o dom para a profissão são capazes de expressar carinho e o amor, como se fossem mães cuidando dos filhos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escolha da dinâmica do jogo da sorte foi apropriada, facilitando a participação informal de todos os clientes em programa de diálise peritoneal. Pesquisar utilizando a fundamentação da sociopoética foi uma experiência que trouxe resultados positivos, a partir do momento em que surgiu a oportunidade de produzir dados. Sentimos um fervilhar de emoções que nos levou a repensar o cuidado de enfermagem. Percebemos uma maior liberdade dos clientes para discutir as questões que geravam um certo desconforto. Isso, possibilitou uma dose maior de confiança dos mesmos em relação às pesquisadoras e profissionais que somos.

Os clientes discutiram questões guardadas no seu íntimo há longos meses. Desinibidos e emocionados por estarem participando da dinâmica, deixaram fluir emoções e sentimentos, expondo o imaginário sem constrangimentos. Assim, foi possível partilhar prazeres e angústias e reafirmar forças de vida, respeito, alegria e libertação.

Sabemos que há muito mais a ser trabalhado no processo do cuidado, o que requer o desenvolvimento dos sentidos para que possamos perceber o não-dito entre palavras e expressões corporais.

O jogo da sorte possibilitou desvelar o imaginário dos clientes em relação ao cuidado de enfermagem revelando suas percepções no que diz respeito a conduta da enfermeira, durante o cuidado e sua influência nas emoções e sentimentos do cliente. A sociopoética, através da vivência do jogo da sorte, desafiou o grupo a discutir as suas percepções sensoriais, com base nas experiências individuais. Também fez com que entendessem com o próprio corpo, com a pele e as emoções, o significado do cuidado.

Pesquisar através da sociopoética foi gratificante, não só por ter permitido conhecer a imagem que os clientes têm do cuidado prestado pela enfermeira, mas por ter aprendido com o grupo que ser enfermeira é muito mais do que executar um cuidado. Exige troca, envolvimento, interação e acima de tudo requer um redimensionamento do olhar sobre o cuidar valorizando a subjetividade, os desejos e as necessidades da clientela.

Não obstante todas as contribuições já descritas, o estudo amplia o poder de participação dos clientes na interação com a enfermeira durante o tratamento dialítico, despertando a abertura dos sentidos corporais, através da maior conscientização e do maior envolvimento deles como avaliadores do cuidado prestado pela enfermeira. A compreensão do imaginário do cliente frente à comunicação verbal e não-verbal da enfermeira contribui para a reflexão sobre um cuidado de enfermagem de qualidade.

 

REFERÊNCIAS

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NOTAS

ª Trabalho premiado - 2º lugar do Prêmio Edith Magalhães Frankel, no 55º Congresso Brasileiro de Enfermagem - RJ.

 

 

Recebido em 17/12/2003
Reapresentado em 22/09/2004
Aprovado em 29/09/2004

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