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CAPES

Volume 18, Número 1, Jan/Mar - 2014



DOI: 10.5935/1414-8145.20140024

Pesquisa

Tornando-se proficiente: o saber/fazer do enfermeiro de hemodiálise

Genesis de Souza Barbosa 1
Glaucia Valente Valadares 1


1 Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro - RJ, Brasil

Recebido em 25/09/2012
Reapresentado em 03/05/2013
Aprovado em 17/05/2013

Autor correspondente:
Genesis de Souza Barbosa
E-mail: genesisbarbosa@gmail.com

RESUMO

O objetivo deste estudo foi descrever atitudes e práticas de enfermeiros de hemodiálise na trajetória percorrida na especialidade.
MÉTODOS: Estudo de abordagem qualitativa do tipo Teoria Fundamentada nos Dados, realizado no serviço de nefrologia de um hospital universitário do Rio de Janeiro. Participaram do estudo nove enfermeiros de hemodiálise. Foi adotada a entrevista semiestruturada e a observação participante. As informações foram analisadas considerando-se os procedimentos básicos pertinentes a Teoria Fundamentada nos Dados: codificação aberta, codificação axial e codificação seletiva.
RESULTADOS: Da análise emergiu o fenômeno "Tornando-se proficiente: o saber/fazer do enfermeiro de hemodiálise",que se forma a partir da junção das categorias: "(Re) Estabelecendo seu modo de fazer em hemodiálise" e "Dominando o cenário tecnológico".
CONCLUSÃO: O conhecimento adquirido, aprofundado e atualizado, conduz o enfermeiro ao agir consciente,considerando a complexidade envolvida no processo de aprender na prática.


Palavras-chave: Enfermagem; Especialização; Diálise renal; Cuidados de Enfermagem.

INTRODUÇÃO

O interesse por estudar a trajetória do enfermeiro de hemodiálise em busca do agir proficiente emergiu de inquietações próprias acerca desse processo, uma vez que, muitas vezes o enfermeiro chega ao setor especializado, em geral altamente tecnológico, possuindo pouco ou nenhum conhecimento1 e/ou habilidade inerentes à atuação profícua2.

Historicamente, a enfermagem passou a integrar a equipe da diálise a partir da década de 1970 do século XX, quando os governos assumiram os custos com as terapias de substituição renal, promovendo a expansão dos centros de diálise. Nessa época a execução da terapia passou a ser atribuída ao enfermeiro, advindo a Nefrologia como área especializada de enfermagem3.

Ainda no Século XX, na década de 1990, a área recebeu importante contribuição do progresso tecnológico, o que tornou o procedimento mais seguro, com maior controle dos efeitos adversos ao tratamento e significativa melhora da qualidade de vida dos pacientes. Nesta época, o procedimento passou a ser executado quase que unicamente pela enfermagem3,4.

Cabe pontuar que tais inovações incorporadas ao cenário de prática da hemodiálise intensificaram as possibilidades de racionalização do processo produtivo e tornaram imperativo que o profissional fosse dotado de amplo conhecimento teórico e prático para desenvolver suas ações sem perder de vista a totalidade2. A este ponto se indaga, como é a vivência dos enfermeiros de hemodiálise, em que pese atitudes e práticas desenvolvidas e experienciadas na busca pela especialidade?

Desta feita, discutir a trajetória, bem como a formação de especialistas em enfermagem nesta área, reflete o avanço e consolidação da ciência e tecnologia da profissão e contribui para a melhoria do cuidado à saúde5. Assim sendo, este estudo objetivou descrever atitudes e práticas de enfermeiros de hemodiálise na trajetória percorrida na especialidade.

Na prática assistencial do enfermeiro de hemodiálise, "é necessário considerar que cada pessoa apresenta uma resposta a uma mesma situação estressora, portanto o planejamento das ações de enfermagem deve ocorrer a partir do reconhecimento de manifestações para o enfrentamento da situação vivida pelo paciente"6.

De tal modo, a Nefrologia representa um campo complexo de prática da enfermagem, considerando a especificidade da clientela, as diferentes terapias de substituição renal, o aparato tecnológico envolvido no processo e a incidência cada vez maior da Doença Renal Crônica (DRC), compreendida como um problema de saúde pública7-10.

ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA

O Interacionismo Simbólico (IS) foi adotado como referencial teórico desse estudo. O IS atribui grande importância ao significado que das coisas para o comportamento humano, considerando-o como resultado do processo interativo consigo mesmo e com os outros11 e, ainda, que este resultado é utilizado pela pessoa para lidar com as situações as quais se depara2,10.

No que se refere ao desenho, trata este de um estudo descritivo, de abordagem qualitativa, do tipo Teoria Fundamentada nos Dados (TFD),um método sistemático de pesquisa interpretativa que visa gerar construtos teóricos que explicam um fenômeno presente na realidade2,10,12,13.

O cenário do estudo foi oserviço de nefrologia de um hospital universitário de grande porte localizado no município do Rio de Janeiro/RJ. Na coleta dos dados adotou-se a entrevista semiestruturada e a observação participante, guiados por um instrumento com questões abertas e proposta de interação em profundidade com os sujeitos,os enfermeiros atuantes no setor de hemodiálise da instituição. Foram incluídos no estudo enfermeiros com atuação em hemodiálise (generalista e/ou especialista) e residentes do segundo ano. As entrevistas foram gravadas digitalmente, transcritas e codificadas uma a uma até ocorrer a saturação dos dados.

Assim, procedeu-se a análise, conforme orientação da TFD com codificação aberta, codificação axial e codificação seletiva12,13. A amostra configurou-se com nove sujeitos, sendo cinco do sexo feminino e quatro do sexo masculino, cinco residentes do segundo ano, três enfermeiros especialistas em nefrologia e um enfermeiro generalista. A saturação dos dados se deu quando, nas etapas analíticas, não se evidenciouo surgimento de códigos novos12.

O estudo teve seu projeto apreciado e aprovado pelo comitê de ética da instituição cenário, sob protocolo n.º 2817/2010. Todos os participantes concordaram com os objetivos do estudo assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A fim de preservar o anonimato dos sujeitos, foram adotados os pseudônimos12: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Netuno, Urano e Lua.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A trajetória percorrida pelo enfermeiro iniciante em hemodiálise na direção do agir proficiente percorre o enfrentamento do conhecimento novo ao chegar ao cenário e reconhecer as ações próprias do campo da hemodiálise, ao aproximar-se da clientela e perceber suas especificidades e identificar a tecnologia envolvida em todo esse processo. Assim, entende-se que "o enfermeiro que vivencia um campo de atuação, no qual não tem experiência prévia com a clientela, sem o domínio das ferramentas necessárias para o cuidado, pode ser apontado, também, como um iniciante, mesmo que tenha experiência em outra área"2.

Esse movimento o transporta ao reconhecimento do contexto terapêutico-tecnológico da hemodiálise, permitindo assim, que sejam traçadas estratégias de ação/interação para seu desenvolvimento. Assim, o fenômeno Tornando-se proficiente: o saber/fazer do enfermeiro de hemodiálise, resultado do processo de análise segundo a TFD, representa a consequência dos movimentos realizados pelos enfermeiros desde a inserção no cenário da hemodiálise (iniciado) até a aquisição de habilidades em prol do agir profícuo e especialista (proficiente), e descreve o efeito das estratégias de ação/interação adotadas nesse processo. O fenômeno revelou-se a partir do agrupamento das categorias (Re) Estabelecendo seu modo de fazer em hemodiálise e Dominando o cenário tecnológico.

(Re) Estabelecendo o seu modo de fazer em hemodiálise

A cena social, a visão de mundo de cada pessoa, bem como fatores como: princípios, valores e crenças, permitem que cada um confira ao cuidado uma definição diferente; uma vez que o significado é fruto da maneira pela qual o indivíduo percebe o signo, interage a partir dele e lhe atribui significação baseada nesta interação. Como resultado, após a inserção e primeiras interações, ainda como iniciado, no serviço, o enfermeiro percebe-se sugerindo modos de cuidar em hemodiálise, como se vê no trecho a seguir:

Por exemplo, eu mesmo já penso que devia ter grupo de interesse para discutir com os pacientes temas que fossem interessantes para ele. Também acho que as orientações deixam a desejar, tem que ser mais abrangentes sabe? TERRA

Eu sempre digo que devia haver consulta de enfermagem para os pacientes da hemodiálise também. Ali muita coisa poderia ser esclarecida aos pacientes e isso traria melhoria com certeza. MERCÚRIO

É o pensamento crítico pautado na interação com o cenário, profissionais e clientela. Nesse sentido, o contexto ao qual o enfermeiro está inserido é permeado de fatores que podem modificar o modo de cuidar desenvolvido, uma vez que o significado é modificado dentro e por meio de atividades definidoras das pessoas ao interagirem11.

O processo interativo enfermeiro-contexto alimenta a reflexão acerca de sua práxis, refletindo em sugestão de novos elementos que permitam redefini-la, conferindo maior qualidade. Sobre esse processo,cabe o destaque dado à consulta de enfermagem. Esta permite ao enfermeiro realizar o acompanhamento das mudanças no estilo de vida e reforço às orientações para autocuidado, baseando-se no Processo de Enfermagem14,15. Sobre isso, ainda se aponta a necessidade de mudança da prática do enfermeiro de hemodiálise com vistas ao reforço da identidade profissional na prática especialista.

[...] é preciso repensar um pouco também o papel da enfermagem na equipe multiprofissional. Às vezes, parece que a gente só cumpre prescrição, e essa coisa do cuidado fragmentado mostra isso. A gente sabe claramente o papel da nutricionista, do médico [...] até do psicólogo, mas o enfermeiro é visto como 'manuseador' de máquinas. Isso precisa mudar. NETUNO

Desta forma, novos modos de cuidar surgem e ações já existentes podem ser adaptadas. Os enfermeiros seguem então analisando a própria prática assistencial em um exercício interativo, em que a técnica pode ser ressignificada.

[...] a gente começa a ficar crítico. Quer mudar uma ou outra ação. Fica repensando e avaliando o nosso modo de fazer as coisas pra saber se é o ideal. SATURNO

Aqui cabe pontuar que a aprendizagem na prática é dotada de singular complexidade, abarcando múltiplos aspectos da realidade, sendo necessária uma visão ampliada sobre as coisas, em que pese abusca pela moderação emocional e pela valorização da convivência humana16.

A gente não sabe nefrologia quando se forma. A gente chegou aqui sem saber muita coisa e foi aprendendo no dia a dia, colocando a mão na massa mesmo. VÊNUS

Não é fácil o processo de aprender a trabalhar com hemodiálise. E não é só pela complexidade da hemodiálise em si, mas tem muita coisa envolvida. A gente põe a mão na massa sem saber direito, se você não for humilde e souber se comportar, as coisas ficam mais complicadas já que você depende do outro para te ensinar como fazer tudo. MARTE

Nesse sentido, destaca-se o movimento realizado pelos enfermeiros na direção da especialização, uma vez que é importante aliar o conhecimento técnico e científico requerido para atuação na especialidade, com a sensibilidade própria do "ser enfermeiro" visando enfocar o cliente, antes de tudo, como um ser sistêmico15, como se vê:

Eu fui buscar o conhecimento teórico que eu precisava, achava que tinhanecessidade de saciar, em uma pós[curso de especialização] em nefro. Me ajudou muito. TERRA

[...] eu já estava aprendendo a fazer, mas precisava de mais. Precisava buscar teoria. Daí, eu fui fazer a especialização. SATURNO

Eu comecei a especialização logoque cheguei aqui. Pensei que era muito importante aliar conhecimento teórico da pós com a prática que eu tinha aqui. LUA

O avanço no conhecimento teórico e prático, sobretudo com desenvolvimento científico, soma qualidade ao trabalho podendo trazer importante subsídio à práxisespecialista, uma vez que profissionais envolvidos no processo investigativo contribuem para um cuidado mais qualificado e a pesquisa pode ser grande estratégia no fortalecimento da Enfermagem nas suas vertentes generalista e especialistas5. Tal estratégia é pontuada a seguir:

Eu estou me especializando e não quero parar. Acho que o enfermeiro da assistência, mais do que o que está em outras áreas, tem o dever de buscar melhorar a prática e, para isso, deve realizar pesquisas e adotar seus achados nas rotinas estabelecidas. JÚPITER

Nesse sentido, o conhecimento prático que permite ao enfermeiro desenvolver suas ações assistenciais de maneira profícua, aliado às vivências e, a partir delas, às interações que norteiam os significados atribuídos à essa prática, colaboram para o agir seguro do profissional, para o domínio das demandas do cenário e da clientela em hemodiálise.

Dominando o cenário tecnológico

Esta categoria propõe um enfermeiro adaptado ao cenário e pronto a atender as exigências nele contidas. Uma vez conhecendo os equipamentos, o enfermeiro pode realizar com maior dedicação suas atividades no sentido de um cuidado resolutivo no que concerne às demandas da clientela sob sua assistência. Isso parteda premissa que o conhecimento é construído e reconstruído coletivamente. As pessoas fazem substancial diferença, considerando que podem cooperar ou não para um ambiente saudável, já que as suas atitudes são vitais no ambiente institucional17, como demonstrado nos trechos a seguir:

Agora é muito mais tranquilo pra mim. Eu conheço bem as máquinas e sei resolver os problemas que elas podem apresentar durante a [hemo]diálise. Fico mais seguro, os pacientes também. URANO

[...] a gente não fica mais assustado com aquele monte de máquina. Énormal agora. Principalmente em diálise externa que a gente tem de levar a máquina e a osmose. É uma parafernália, mas já é natural. Não amedronta mais e eu posso me dedicar aos pacientes. LUA

Logo que a gente chega ao setor pensa que não conseguirá lidar com aquela tecnologia toda que está ali. Saber programar, ajustar e tirar alarmes que surgem nas sessões. Mas, ao longo do tempo, a gente percebe que vai conhecendo [...] vai aprendendo a resolver tudo [...] fica mais seguro quando a gente domina [a máquina]. NETUNO

A este ponto, o enfermeiro já possui conhecimento e domínio para desenvolver suas ações com maior tranquilidade no cenário da hemodiálise; portanto, permite-serealizar um exercício reflexivo no qualavalia sua prática, adotando novas ações ou reafirmando outras formas de fazer suas próprias ações, em queatitudes que visam à efetiva interação com outros profissionais da equipe multidisciplinar são promotoras de bons resultados para o cuidado.

Colaborar, integrar, cooperar e congregar, são práticas interessantes para o advento do bom rendimento na área. Nessa lógica, o trabalho em equipe pode se configurar como uma estratégia para redefinir os processos de trabalho agregando novos valores e maior qualidade aos serviços18.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Agir com propriedade no cenário tecnológico permite ao enfermeiro estabelecer novas maneiras de fazer em hemodiálise. Esse movimento ocorre a partir da adaptação do profissional ao aparato tecnológico envolvido no processo de trabalho, em que, familiarizado com a tecnologia, o enfermeiro pode direcionar esforços em prol da melhoria do seu modo de fazer, avaliando e reavaliando sua própria atitude.

Assim, o conhecimento adquirido, aprofundado e atualizado, o conduz ao agir consciente, considerando a complexidade envolvida no processo de aprender na prática. A interação com o cenário e equipe produz efeito benéfico no significado do cuidado para o enfermeiro de hemodiálise, servindo de base para as estratégias adotadas na sua atuação.

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