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CAPES

Volume 18, Número 1, Jan/Mar - 2014



DOI: 10.5935/1414-8145.20140010

Pesquisa

O familiar cuidador durante a hospitalização da criança: convivendo com normas e rotinas

Daiani Modernel Xavier 1
Giovana Calcagno Gomes 1
Marli dos Santos Salvador 1


1 Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande - RS, Brasil

Recebido em 09/08/2012
Reapresentado em 02/05/2013
Aprovado em 27/05/2013

Autor correspondente:
Daiani Modernel Xavier
E-mail: daiamoder@ibest.com.br

RESUMO

Este estudo objetivou conhecer como o familiar cuidador da criança convive com as normas e rotinas no hospital.
MÉTODOS: Pesquisa descritiva de abordagem qualitativa realizada no segundo semestre de 2011. Teve como referencial metodológico a Teoria Fundamentada nos Dados. Foi desenvolvida na Unidade de Pediatria de um Hospital Universitário do sul do Brasil, com 18 familiares cuidadores, divididos em três grupos amostrais. A coleta de dados foi realizada por entrevistas semiestruturadas, e a análise deu-se por meio da codificação aberta, axial e seletiva.
RESULTADOS: Constatou-se que a família convive com as normas e rotinas do hospital quando reconhece sua necessidade e a importância na sua flexibilização, sendo que algumas famílias não aceitam a rigidez destas.
CONCLUSÃO: Acredita-se que seja necessário possibilitar que a família conviva harmoniosamente com as normas e rotinas, flexibilizando-as, a fim de possibilitar a humanização do cuidado prestado no setor.


Palavras-chave: Criança hospitalizada; Família; Administração hospitalar; Saúde da criança; Enfermagem.

INTRODUÇÃO

A hospitalização da criança é geradora de diversos sentimentos na família. Ela pode apresentar sensação de incapacidade, dependência, insegurança e descontrole diante da condição de enfermidade que a criança se encontra. No hospital, a família tende a despersonalizar-se à medida que precisa se adequar às normas e rotinas impostas pela instituição hospitalar, podendo ter sua identidade e autonomia afetadas1.

Ao entrar para o mundo do hospital, as famílias passam a ser governadas por várias normas e rotinas impostas pelos profissionais como uma forma de organizar o seu processo de trabalho e harmonizar as funções dos diversos setores que co-habitam no hospital1. Normas e rotinas são instrumentos utilizados pelos trabalhadores da equipe de enfermagem com o intuito de organizar seu processo de trabalho. Até a metade do século XIX, o hospital passou a ser utilizado como local de cura e o cuidado, norteado por normas científico-tecnológicas e por requisitos de racionalidade e economia organizacional, tornando a estrutura rigidamente hierarquizada, estática e limitada. Nessa linha de atuação, estabelecem-se normas e regras rígidas a serem seguidas2.

Os profissionais da enfermagem, influenciados pelas teorias administrativas de Max Weber (Teoria Burocrática) e de Taylor (Teoria Clássica), que enfatizam a racionalidade, ou seja, a adequação dos meios utilizados nas organizações com vistas a atingir os resultados esperados, e com o aumento na complexidade das organizações, buscaram novas formas de controle do processo de trabalho. Para isso, utilizam manuais de normas, rotinas e procedimentos técnicos, detalhando os passos a serem seguidos por cada agente participante do processo de trabalho, a fim de manter elevada a qualidade dos serviços prestados3. Extrapola-se, no entanto, inclusive ditando-se essas normas de conduta e comportamento aos pacientes e seus familiares cuidadores no hospital.

O estresse sofrido por conflitos gerados pela imposição dessas normas e rotinas pode comprometer o cuidado à criança hospitalizada, sobretudo pela sensação de fragilidade e incapacidade a que os familiares estão sujeitos psicossocialmente1. No intuito do cuidado à criança, o familiar pode sentir sua vida sendo invadida por deveres institucionais diversos a suas crenças, valores, hábitos de vida e seu contexto social e/ou familiar.

Um estudo sugere que o surgimento da mais ampla cooperação multidisciplinar nos cuidados primários é prejudicada pelas organizacionais regras e regulamentos vigentes no setor. Ao enfatizar a prestação de cuidados individuais, em vez de cooperação multidisciplinar, essas regras estimulam a perseverança da diversidade entre as rotinas pelas quais os provedores realizam suas atividades de prestação de cuidados individuais. Mais pesquisas devem tentar validar esta explicação, utilizando uma população de pesquisa maior e operacionalizar sistematicamente as normas existentes na ordem jurídica e, o mais importante, o ambiente organizacional dos cuidados primários4.

A imposição das normas no contexto hospitalar revela relações de poder e, às vezes, de submissão5. Identifica-se que mesmo que a família compreenda-as como necessárias, nem sempre se sujeita a cumpri-las podendo gerar conflitos que podem comprometer seu relacionamento com a equipe de saúde, afetando o cuidado à criança. Nesse sentido, observa-se que a estrutura organizacional, regida por regras e rotinas diárias, pode ser a mais importante fonte de conflito e estresse entre trabalhadores de hospitais e usuários desses serviços6.

Diante da fragilidade vivenciada durante a hospitalização da criança, a família pode tornar-se vulnerável às adversidades que terá que encarar, necessitando do auxílio da equipe de saúde. Tendo em vista a intensa demanda de cuidados a serem prestados aos binômios (criança e familiar cuidador), presentes no contexto da Unidade de Pediatria, o enfermeiro pode não conseguir suprir as necessidades da família de forma efetiva5.

Nesse sentido, podem haver lacunas na comunicação e no diálogo, e a família pode ser excluída de importantes decisões quanto ao planejamento da assistência à criança. Assim, os profissionais da equipe de enfermagem podem contribuir para que a hospitalização cause uma ruptura na estrutura familiar. Esses fatos talvez ocorram devido à sobrecarga de trabalho da equipe, ao pouco suporte teórico-prático advindo da academia, bem como à falta de incentivo das instituições hospitalares1.

A família, diante da hospitalização da criança, pode se angustiar e sofrer pela dificuldade de agir e de interagir, em prol da melhoria do seu quadro clínico, pelas relações interpessoais conflituosas com a equipe de saúde, bem como pelas perdas que a hospitalização lhe impõe7. Pode apresentar dúvidas e incertezas, devido ao seu despreparo emocional, à falta de domínio da doença e ao ambiente que se desvela, gerando estresse.

Quando a família é pouco compreendida e não é incluída no planejamento da assistência, pode divergir do cuidado prestado à criança pelos profissionais. No entanto, percebe-se que, mesmo sem compreendê-los, acaba cedendo às condições impostas pela equipe de saúde, podendo resultar em sofrimento8. Como subterfúgio que facilite sua participação no cuidado à criança, no contexto hospitalar, é comum a família concordar com as normas e rotinas estabelecidas pelos profissionais atuantes na unidade pediátrica, aparentemente submetendo-se a elas, mas usando, em algumas situações, a transgressão como forma de resistência.

As transgressões às normas e rotinas impostas visam aproximar a rotina hospitalar da domiciliar, tornando o período de internação menos desconfortável. Com esta atitude, acredita-se que as famílias esperam que, durante a hospitalização do seu filho, os profissionais se solidarizem com elas, flexibilizando normas e rotinas de forma que atendam as suas necessidades5. Exercitam a transgressão por meio de atitudes de resistência e busca por espaços de liberdade e participação. O uso de normas e rotinas rígidas no setor pode levar a família a sentir-se vulnerável e desamparada, apresentando dificuldades de adaptação e de aquisição de habilidades e competências para o cuidado à criança, tornando o ambiente de cuidado na Pediatria desumanizado.

Porém, o respeito à autonomia das famílias, seres com crenças e valores próprios, deve ser exercido pela equipe de saúde9. No esforço de humanizar o cuidado em Unidades de Pediatria, a equipe precisa estabelecer normas e rotinas adaptadas culturalmente, abrangendo as especificidades e individualidades de cada binômio família/criança. As normas e rotinas elaboradas com o intuito de organizar o processo de trabalho da equipe não podem ser fontes adicionais de sofrimento e desestrutura familiar, e sim de qualificação da assistência10,11.

Neste sentido, com vistas a valorizar e primar pela qualidade do atendimento, a equipe passa a instituir práticas assistenciais embasadas no diálogo e na participação dos usuários junto aos trabalhadores11. A articulação da equipe em torno da assistência focada no cuidado à criança e sua família contribui para a proposição de normas e rotinas hospitalares direcionadas a uma gestão participativa que promova a tomada de decisões pactuadas na unidade em consonância com suas necessidades reais10.

Acredita-se possível a elaboração de normas e rotinas que, além de organizar o processo de trabalho no setor, possibilite um cuidado compartilhado à criança entre a equipe de enfermagem e o familiar cuidador no hospital, de forma democrática. Torna-se necessário que os profissionais da equipe de enfermagem reflitam acerca do uso de normas e rotinas como instrumentos gerenciais que auxiliam a organizar o processo de trabalho da equipe sem, no entanto, tornarem-se fontes de sofrimento para a criança e sua família. Assim, devem ser elaboradas de forma a atender, também, suas necessidades individuais como forma de humanizar a assistência. Nesse sentido, a questão que norteou este estudo foi: Quais são as vivências do familiar cuidador da criança no hospital em relação às normas e rotinas? A partir dessa questão, objetivou-se conhecer como o familiar cuidador da criança convive com as normas e rotinas no hospital.

MÉTODO

Tratou-se de uma pesquisa descritiva de abordagem qualitativa. É qualitativa porque se refere à pesquisa sobre a vivência das pessoas, experiências vividas, comportamentos, emoções e sentimentos, e também sobre o funcionamento organizacional, movimentos sociais, fenômenos culturais e interação. Refere-se à pesquisa descritiva porque descreve o fenômeno investigado, possibilitando conhecer os problemas vivenciados12.

Foi realizada no segundo semestre de 2011 e teve como referencial metodológico a Teoria Fundamentada nos Dados (TDF). Consiste na coleta, codificação e comparação simultânea e sistemática dos dados, possibilitando explorar o fenômeno investigado gerando teoria que explique e possibilite a compreensão de fenômenos sociais e culturais12.

O estudo foi desenvolvido na Unidade de Pediatria de um Hospital Universitário do sul do Brasil. Este tem como campo de atuação o ensino, a pesquisa, a extensão e a assistência à saúde. Participaram 18 familiares cuidadores de crianças internadas no setor, no período de realização do estudo, sendo que 15 foram distribuídos em três grupos amostrais, conforme orienta a TFD, e três participaram da validação dos dados. A seleção dos sujeitos foi intencional, de acordo com os critérios de inclusão e objetivos do estudo.

Os critérios de inclusão foram: ser cuidador significativo da criança e prestar-lhe cuidados diretos no hospital durante a realização da coleta dos dados. Foram excluídos os cuidadores eventuais da criança no hospital no período da coleta dos dados. Todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias, ficando uma cópia com cada participante. Foram identificados pela letra F seguida do número da entrevista, como forma de garantir seu anonimato.

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas semiestruturadas, que questionaram acerca de como convivem com as normas e rotinas no hospital. Estas foram agendadas previamente com cada familiar, realizadas na sala de prescrição da Unidade de Pediatria para garantia da sua privacidade, gravadas com sua autorização e transcritas para análise.

O processo de análise inicial deu-se pela codificação aberta dos dados, em que as falas foram minuciosamente detalhadas, por meio do exame do conteúdo, linha por linha, após a digitação das gravações feitas com os sujeitos do estudo, de forma a elaborar os códigos (unidades de análise). Estes foram agrupados em ramificações por similaridades e diferenças. Os dados foram codificados, comparados com outros dados e designados em subcategorias e categorias12.

Em seguida, foi realizada a codificação axial na qual se relacionam as categorias às suas subcategorias, ao longo das linhas de suas propriedades e dimensões. Na codificação seletiva, o primeiro modelo de codificação geral que o investigador precisa ter em mente é denominado modelo paradigmático. Ele estabelece uma relação entre as categorias, envolvendo, respectivamente, causa, fenômeno, contexto, condições intervenientes, estratégias de ação/interação e consequências12.

Foram respeitados os princípios éticos da pesquisa envolvendo seres humanos, conforme a Resolução 196/9613. O projeto do estudo foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade Federal do Rio Grande/FURG recebendo parecer favorável sob número 133/2011.

RESULTADOS

A análise dos dados mostrou que a família convive com as normas e rotinas no hospital, quando reconhecem sua necessidade e importância na sua flexibilização, mesmo que algumas não aceitem a rigidez dessas.

Reconhecendo a necessidade de normas e rotinas

As normas e rotinas são instrumentos administrativos utilizados pelos profissionais para organizar seu processo de trabalho e para padronizar os cuidados oferecidos pela equipe à clientela. Elas fazem parte da cultura hospitalar, e as famílias reconhecem a necessidade da existência de normas e rotinas para favorecer o bom andamento do setor.

Eu já tenho mais facilidade, posso assim dizer, pois já passei por outras normas até mais rígidas, no Hospital S, onde eu nem poderia estar sentada na cama da criança como estou agora. Por isso, acho aqui bem tranquilo, pois fui informada de tudo o que pode e o que não pode fazer que, acabamos, por fim, cumprindo e obedecendo. Acho que elas são necessárias. (F1)

Acho importante, quando nos disseram que não poderia trazer comida; não trazer a mamadeira, devido à higienização em um local infectado como o hospital. Queremos é não prejudicar a saúde de nossos filhos. (F7)

Procuram adaptar-se a elas, pois as reconhecem como instrumentos importantes no estabelecimento da ordem, evitando a "bagunça".

Para mim não interferiu em nada. Como é um hospital tem que ter normas, a gente não pode chegar fazendo bagunça; é o horário da alimentação, de desligar a televisão. Nós estamos aqui é pela doença e não é para o meu bem-estar. (F3)

Reconhecendo como importante a flexibilização das normas e rotinas

Identificou-se que, apesar de a família achar importante a existência de normas e rotinas, acredita-se que as mesmas devam ser adaptadas de forma a atender às necessidades singulares de crianças e familiares.

Até me veem aqui dormindo no cantinho com meu filho e não falam nada, porque eu durmo no cantinho e deixo ele na beira do bercinho de grades, facilitando com que a enfermeira coloque o termômetro e consiga atender ele. (F4)

Agora, tem algumas pessoas que não tem como se adequar a estes horários. Então, é preciso que se permita que os casos especiais circulem sem muita dificuldade. Um pai que não possa vir no horário da visita, entrar em outro horário. (F5)

É preciso ter as normas, mas tinha que se avaliar cada caso e se facilitar para as pessoas. Eu sei que se mudar tudo para todas as pessoas vira bagunça, mas tem que se avaliar cada caso. (F7)

Acham importante que os profissionais se coloquem no seu lugar, flexibilizando as normas e rotinas, pois relatam que estas são, na sua maioria, elaboradas no sentido de beneficiar os profissionais em detrimento de crianças e familiares, dificultando-lhes a adaptação ao hospital.

Entendo que são elaboradas para atender a necessidade delas (equipe). É difícil comer nos horários que querem. Receber visitas só naquele horário. Tinham que ouvir mais a gente antes de tomar essas decisões, se colocar no nosso lugar. (F10)

A mudança das normas e rotinas em favor das famílias é reconhecida como uma estratégia de humanização do cuidado; como uma forma de não manter as famílias engessadas dentro do hospital e de respeitar suas individualidades e necessidades.

No dia da cirurgia dele, na sala de cirurgia, eu fui ali, e pedi à chefe de enfermagem para outra pessoa ficar junto comigo. Ela deixou. A minha mãe ficou junto comigo. Depois, ficamos, também, nós duas no quarto com ele. A gente ficou bem quietinha para não chamar a atenção. Foi tão bom. Eu não me senti tão sozinha. A minha mãe, ali comigo. Foi tão importante isso. Eu me senti [chora] mais humana. Eu estava com tanto medo, tanto medo. Então, tem a norma, mas tem também a nossa necessidade e a sensibilidade. Foi importante! (F12)

Percebeu-se que estas acreditam que, quando os profissionais dão um "jeitinho", driblando estas normas e rotinas, favorecem as famílias e não comprometem a normalidade do setor, preservando seus espaços de liberdade.

Só agora de manhã, a única coisa que eu achei mais difícil foi a hora do lanche porque queriam que eu descesse para lanchar. Mas a criança não pode ir junto, como vou deixar ela sozinha? Além disso, eu não estava me sentindo bem. Aí a enfermeira falou com a moça que serve a comida e ela me trouxe no quarto. Eu acho que vão trazer o almoço, também. Acho que não prejudicou em nada o trabalho delas. Fiquei assim bem discreta. (F9)

Não aceitando a rigidez das normas e rotinas

Ao se inserir no mundo do hospital, as famílias passam a ter suas ações, inclusive de cuidado à criança, regidas por normas e rotinas que nem sempre aceitam submeter-se.

Totalmente não cumpridas, porque trouxemos escondida a alimentação. A visita, também, é escondida por só termos um horário pela manhã. O problema é que nos sentimos sozinhas o dia inteiro no hospital. Precisamos conversar um pouco e desabafar os problemas que a criança está passando. (F6)

Constatou-se que as normas e rotinas apresentam-se esvaziadas do componente afetivo do cuidado, tornando as relações entre a equipe de saúde e as famílias muito impessoais e burocratizadas, relativizando a autonomia da família enquanto cuidadora de seu filho.

São inflexíveis, pois se nos veem com alimentação não deixam entrar no hospital, inclusive, barram e tiram a sacola. O horário de visita é a mesma dificuldade tendo que descer um para subir o outro e, ainda, uma visita rápida para não ser retirado do quarto. A televisão, embora conversando com a direção, não há permissão. Acho que é muita burocracia, pois a gente está aqui para cuidar do filho doente. É muito estressante, não precisava mais esse estresse. (F9)

No entanto, diante da imposição de normas e rotinas, viu-se que as famílias resistem, seja negando-se explicitamente a cumpri-las quando discordam delas, seja burlando-as sem o conhecimento dos membros da equipe, como, por exemplo, ao trazerem comida escondida de casa para o hospital, ou cumprindo com estas, mas protestando em ter que fazê-lo.

Na realidade não cumpro. Hoje veio uma vizinha minha e me trouxe alimentos escondidos e que, chegando ao quarto, tive que esconder no armário para conseguir me alimentar melhor. São ações que não gostamos de fazer, mas não tem a possibilidade de ficarmos somente com a comida do hospital. Ainda mais amamentando. Eu preciso estar me alimentando. Assim, tenho que me esconder para comer. Sinto-me negligenciada no momento em que mais preciso de ajuda. (F10)

Eu cumpro, mas protesto. Reclamo muito porque quem sabe do que eu preciso sou eu e aí não pode isso, não pode aquilo. É muito difícil se adequar. Come-se às cinco da tarde e depois só se vai comer de novo às oito da manhã. A noite inteira acordada, temos fome. (F6)

DISCUSSÃO

Ao procurar adaptar-se ao hospital, a família passa, também, a conviver com as normas e rotinas hospitalares. O ambiente hospitalar é, geralmente, desconhecido, tanto em seu aspecto físico quanto em sua rotina12. Ele possui normas e regras específicas às quais a família precisa se adaptar, como o horário e o cardápio para as refeições; uma cama na qual não está acostumada a dormir; roupas diferentes das que utilizam em casa; uso de banheiro comunitário e falta de privacidade, tanto em relação à proximidade dos leitos quanto a procedimentos invasivos e dolorosos. Estas condições podem gerar uma despersonalização, tanto da criança quanto do familiar cuidador, dificultando-lhes o enfrentamento da situação vivida.

A família reconhece a necessidade de normas e rotinas no hospital e tem facilidade de convívio com as mesmas14. Percebem sua importância quando recebem informações sobre o que podem ou não realizar. A organização do processo de trabalho supõe a existência de normas e rotinas que possibilitem a convivência pacífica de diferentes pacientes, familiares e profissionais neste contexto, objetivando o cuidado da criança com qualidade.

A hospitalização do filho causa um impacto emocional muito grande nos pais, como também mudanças nas suas rotinas, gerando angústias e sofrimento ao enfrentar a situação que surgiu de forma inesperada15. Como regras e leis, as normas e rotinas devem ser cumpridas por todos e fazem parte da cultura organizacional. As famílias esperam que, neste momento, os profissionais se coloquem no seu lugar, flexibilizando estas normas e as rotinas conforme suas necessidades, com vistas à facilitação da (con) vivência da internação da criança.

Além disso, a família reconhece como importante a flexibilização dessas normas e rotinas mesmo que, por vezes, não as aceitem5. Com isso, a possibilidade de o familiar entrar com alimentos para sua subsistência, de dormir em instalações adequadas e de horários flexíveis para a visita, tornaria a hospitalização menos traumática. Quando isso não ocorre, a família pode sentir-se negligenciada e não aceitar as normas e rotinas impostas pelo hospital.

O cumprimento pelos familiares cuidadores das normas e rotinas impostas visa à formação de uma relação de obediência e utilidade, facilitando o trabalho da equipe de saúde. As normas e rotinas são métodos que permitem o controle tanto dos processos que ocorrem no setor como dos familiares e pacientes visando sua sujeição constante ao instituído. Nesse sentido, a imposição a elas pode gerar conflitos, comprometendo o cuidado à criança hospitalizada, tornando o familiar cuidador da criança fragilizado1.

Um estudo acerca do conflito no exercício gerencial do enfermeiro no âmbito hospitalar identificou como importante a construção de novas formas de gerenciar em enfermagem que abarquem o conhecimento das políticas de saúde e sua operacionalização no âmbito do país e dos hospitais, bem como o desenvolvimento de competências e habilidades de liderança e gestão para práticas mais interativas e dialógicas, nas quais os conflitos não podem ser negados16. Um dos instrumentos gerenciais são os manuais de normas e rotinas a serem seguidos tanto por trabalhadores como por pacientes e seus familiares cuidadores.

Constatou-se que as transgressões às normas impostas ocorrem com vista a tornar sua estadia no hospital o mais próximo da vivência domiciliar, familiarizando a criança à unidade de internação. Nesta perspectiva, a organização do trabalho no hospital estabelece normas e rotinas específicas e determina as ações da equipe de saúde aos usuários desse serviço. Estas são criadas com o objetivo de disciplinar o funcionamento da unidade de internação. No entanto, de acordo com a forma como estas são utilizadas e apresentadas aos familiares, podem tornar as relações entre a equipe de saúde e as famílias impessoais e burocratizadas, interferindo na autonomia da família como cuidadora de seu filho.

Um estudo acerca das ações de gerenciamento do cuidado realizadas por enfermeiros de um serviço hospitalar de emergência mostrou que esses são responsáveis, entre outras atividades, pela gerência do cuidado, que envolve o gerenciamento de recursos e a coordenação e articulação do trabalho da equipe de enfermagem/saúde, além da intermediação entre a família e a equipe de atendimento17.

Um dos meios utilizados para garantir a disponibilidade e qualidade da assistência que permita à equipe atuar no atendimento às situações de urgência, visualizando as necessidades do paciente, conciliando os objetivos organizacionais e os da equipe de enfermagem, visando à produção de um cuidado integral e com maior qualidade, é o estabelecimento de normas e rotinas18.

Apesar de reconhecidas pelas famílias como necessárias, com vistas à organização do processo de trabalho, as normas e rotinas, muitas vezes, têm sido utilizadas como um instrumento de poder dos profissionais sobre as famílias. Percebe-se que elas têm sido elaboradas com vistas a atender as necessidades da equipe, relegando as necessidades das famílias a um segundo plano. Neste sentido, para que cumpram com seu real objetivo, devem ser elaboradas considerando as necessidades da criança e seus familiares cuidadores na unidade, qualificando seu cuidado, pois, assim, tornam-se instrumentos essenciais à humanização da assistência prestada.

Percebe-se a necessidade de outros estudos à luz de diferentes referenciais teórico-metodológicos e em outras realidades, com vistas a abordar a temática de forma ampla, possibilitando melhorias nas práticas profissionais para as famílias de crianças hospitalizadas, qualificando o cuidado e atendendo as necessidades específicas dessa clientela diante da convivência com as normas e rotinas no hospital.

CONCLUSÕES

O estudo possibilitou conhecer como o familiar cuidador da criança vem convivendo com as normas e rotinas no hospital. Identificou-se que a família geralmente as desconhece, mas tende a se adaptar, pois entende a necessidade de organização do trabalho da equipe, bem como a convivência com essa e com os outros familiares. Para tanto, reconhece a importância da flexibilização das normas e rotinas, não as aceitando e as transgredindo quando sentem que elas dificultam o cuidado à criança.

Apresentou como limitação não possibilitar generalizações; no entanto, por tratar-se de pesquisa qualitativa não se tinha este objetivo. Outra limitação foi abordar a temática apenas sob o ponto de vistas dos familiares cuidadores. Novos estudos devem ser realizados com vista a discutir a temática a partir da perspectiva dos profissionais de enfermagem atuantes no setor.

Concluiu-se que é importante possibilitar que a família conviva harmoniosamente com as normas e rotinas, flexibilizando-as. Precisa-se repensar este ser familiar que cuida e que convive com as normas e rotinas no hospital. Torna-se fundamental permitir que estas sejam famílias, elaborando normas e rotinas que atendam integralmente suas necessidades, propiciando-lhes conforto e apoio.

Como a família se encontra fragilizada pela internação hospitalar de seus filhos, na maioria das vezes, fica a mercê das decisões dos profissionais. Assim, compete ao enfermeiro tomar a iniciativa de integrá-la ao processo de cuidado da criança, na busca por relações menos conflitantes e mais efetivas, no sentido de se propiciar um cuidado mais qualificado, sensível e humano.

A adoção de modelos mais democráticos e participativos implica mexer em esquemas de poder, e isso envolve uma gama de trabalhadores no meio hospitalar. Qualquer mudança na estrutura de gerenciamento destas organizações requer negociações com os diversos segmentos para que se concretize.

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