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CAPES

Volume 8, Número 3, Set/Dez - 2004

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Alcoolismo: representações sociais de alcoolistas abstêmiosª

 

Alcoholism: social representations of the abstemious alcoholic

 

Alcoholismo: representaciones sociales de alcohólicos abstêmios

 

 

Sílvio Éder Dias da SilvaI; Maria José de SouzaII

IEnfermeiro do Hospital Ofir Loyola. Professor do Departamento de Fundamentos de Enfermagem do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Pará/UFPA. Mestre em Enfermagem pela Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ. Membro do Núcleo de Pesquisa de Saúde do Adulto e do Idoso da UEPA. E-mail: silvioeder2003@yahoo.com.br
IProfessora Adjunta do Departamento de Enfermagem em Saúde Pública da EEAN/UFRJ. Doutora em Enfermagem. Membro do Núcleo de Pesquisa em Enfermagem e Saúde Coletiva do DESP/EEAN

 

 


RESUMO

O estudo tem como objeto as representações sociais de alcoolistas abstêmios sobre o alcoolismo e como objetivo, analisar as representações sociais de alcoolistas abstêmios freqüentadores dos Alcoólicos Anônimos, sobre o alcoolismo. É de natureza descritivo-qualitativa, tendo como aporte teórico conceitos da teoria das representações sociais e de outros autores selecionados. Utilizou-se a entrevista semi-estruturada e a técnica de associação livre de palavras para coletar os dados, resultando na construção de três unidades temáticas: O despertar por meio da dor - o sentimento como possibilidade de mudança de atitude; Alcoolismo - uma doença progressiva, incurável e com terminações fatais; Alcoolistas, sim; bêbados, não. Sugere-se trabalhos análogos capazes de apreender com mais profundidade aspectos do contexto psicossocial não explorados sobre a temática, tão importantes e necessários no sentido de estimular um olhar mais atentivo na prática assistencial que prestamos a essa clientela.

Palavras-chave: Alcoolismo. Enfermagem. Transtornos relacionados ao uso de álcool.


ABSTRACT

The purpose of this study is the social representations of the abstemious alcoholic about the alcoholism and as objective to analyze the social representations of the abstemious alcoholic frequenter of the Anominous Alcoholics, about the alcoholism. It is a study of a descritive-qualitative nature, having as theorical contribution the concepts of the social representation theory and other selected authors. It was used the half-structured iterview and the free association of words techinque for the data collectiion, resulting in the creation of three thematics units: The awakening by the pain - the feeling as change of attitude possibility; Alcoholism - a progressive disease, incurable and with fatal ending; Alcoholic, yes; drunk, not. It is suggest analogue works capable of to learn with more intensitivity the psychosocial context aspects that aren't explored in the thematics, such important and necessary to in a way to stimulate a more alert look in the assistencial practical that we provide to our clients.

Keywords: Alcoholism. Nursery. Alcohol-related disorders


Este estudio tiene como objeto las representaciones sociales de alcohólicos abstemios sobre el alcoholismo y como objetivo analizar las representaciones sociales de alcohólicos abstemios, frecuentadores de los Alcohólicos Anónimos, sobre el alcoholismo. Es de naturaleza descriptiva y cualitativa, teniendo como aporte teórico conceptos de la teoría de las representaciones sociales y de otros autores seleccionados. Fue utilizada la entrevista semiestructurada y la técnica de asociacion libre de palabras para colectar los datos, resultando en la construcción de tres unidades temáticas: El despertar por medio del dolor - el sentimiento como posibilidad de cambio de actitud, Alcoholismo - una enfermedad progresiva, curable y con terminaciones fatales; Alcohólicos, sí; borrachos, no. Se sugiere trabajos análogos capaces de apremender con más profundidad aspectos del contexto psicosocial no explorados sobre la temática, tan importantes y necesarios en el sentido de estimular una mirada más acurada en la práctica asistencial que se presta a esa clientela.

Palabras clave: Alcoholismo. Enfermería. Transtorno relacionado con alcohol


 

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As representações sociais de alcoolistas abstêmios sobre o alcoolismo se constituem em objeto deste estudo. Conhecendo o pensamento desse grupo social sobre a problemática, oferecemos novos subsídios para a atuação do enfermeiro na assistência a essa clientela.

Optamos no emprego em usar o termo alcoolista pelo fato de, atualmente, o mesmo ser utilizado como forma de se fugir do estigma gerado pela doença. A comunidade científica utiliza esse termo, ao invés de alcoólatra, apesar de constarem como sinônimos, em alguns dicionários, para definir o dependente do álcool. A palavra alcoólatra não é indicada, pelo meio científico, por conta de que o sufixo "latra", que significa "adoração". E o portador do alcoolismo é um enfermo que usa o álcool por dele necessitar e não por adorá-lo. Portanto, alcoólatra, ainda que de uso consagrado, não faz jus à etiologia da doença(1).

Consideramos o alcoolismo como uma problemática pela dimensão psicossocial que a envolve. O álcool é consumido por cerca de 600 milhões de pessoas no mundo. Nos Estados Unidos, estima-se que existam cerca de 13 milhões de pessoas diagnosticadas como alcoolistas. Um estudo realizado em uma comunidade americana detectou que aproximadamente 13% dos adultos apresentam abuso e dependência da droga, tornando-se o terceiro maior problema nos Estados Unidos, sendo superado apenas pelas doenças cardíacas e pelo câncer. Outro ponto evidenciado foi que os padrões de ingestão de bebidas variam de acordo com o sexo e a idade. Os homens usam mais álcool (20%) do que as mulheres (8%). A taxa de expectativa de vida entre os homens é de 3% a 5%; para as mulheres é de cerca de 1%. Essas taxas são similares na Alemanha, Suécia e Dinamarca, sendo maiores em Portugal, Espanha, Itália, França e Rússia(2).

No Brasil, o quadro de consumo de álcool não é muito diferente do resto do mundo. Estima-se uma prevalência entre 3 e 10% da população adulta, na razão de 7 homens para cada mulher. Outros afirmam que 84% dos brasileiros mencionam o uso ocasional de bebidas, 21% relatam consumo diário de álcool e 19% admitem embriaguez semanal(3).

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1989, na população acima dos cinco anos, o número de alcoolistas situa-se na faixa de 4%, atingindo 7% dos homens e 1% das mulheres; em relação à faixa etária, o maior número de alcoolistas de ambos os sexos situa-se entre 30 a 49 anos(4).

A Previdência Social tem o alcoolismo como oitava causa de auxílio-doença. Cerca de 5,4% do Produto Interno Bruto (PIB) são gastos com problemas ocasionados com essa droga. Quanto às internações em hospitais psiquiátricos por dependência de drogas, 90% acontecem devido ao uso de álcool. Ele é responsável também por aproximadamente 75% dos acidentes de trânsito. Motoristas alcoolizados são responsáveis por 65% dos acidentes fatais em São Paulo. Cerca de 45% dos jovens entre 13 e 19 anos estão envolvidos em acidentes(4).

Pesquisas comparativas em 10 capitais brasileiras com alunos da rede oficial, no período de 1987 e 1989, constataram um alarmante crescimento dos índices de bebidas alcoólicas, ao lado do tabaco, medicamentos e outras drogas psicoativas nesse grupo(5). Apesar disso, essa droga ainda se encontra bastante inserida na sociedade, devido ao grande ciclo econômico que é gerado em torno dela, ignorando seus malefícios, os quais são deixados em segundo plano. Ela está presente em todos os tipos de reuniões sociais, das realizadas no âmbito doméstico e no público, tendo como meta a exaltação da alegria. Por outro lado, é utilizada para amenizar os sofrimentos imanentes da vida, a exemplo da solidão. Assim, ela está incorporado ao dia a dia da população. Tal realidade demonstra como está tão próxima de todos nós.

Além disso, o álcool é uma droga lícita, o que permite que seja veiculada nos meios de comunicação de massa, contribuindo de forma significativa para sua propagação(6). Ela se faz presente em comerciais de televisão, de rádio, em jornais e em revistas, aumentando, como resultado, os números de dependentes. No ano de 1993, foram gastos cerca de 72 bilhões de dólares em publicidade(7).

Na dimensão conceitual, o alcoolismo foi incorporando idéias à medida em que o conhecimento sobre a doença ia avançando. Hoje, não se considera essencialmente como um problema de comportamento, expresso pela conduta anti-social de seu usuário, que se manifesta pela ingestão excessiva de bebida alcoólica(8). Ele é definido como "qualquer uso de bebidas alcoólicas que ocasiona prejuízo ao indivíduo, à sociedade ou a ambos". Dentro dessa visão, o alcoolista passa a ser visto não somente por seu comportamento diferente, mas, também pelo reflexo de seus atos na sociedade. A partir desse momento, o alcoolismo torna-se um problema social, ratificado pelas evidências apresentadas(9).

O Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders-3º Ed. (DSM-III) definiu a dependência como um conjunto de fenômenos fisiológicos, comportamentais e cognitivos, no qual o uso do álcool alcança uma prioridade muito maior para um indivíduo que outros comportamentos que antes tinham mais valor. Uma característica descritiva marcante da síndrome de dependência é o forte desejo de consumir álcool(10).

Abordagens mais atuais reconhecem o alcoolismo como conseqüência de causas multifatoriais, sendo questionável a afirmativa que existe apenas uma ou outra hipótese como fator causal, mas a interação das hipóteses biológica, psicológica e sociocultural que, em vez de se excluírem, complementam-se na identificação da etiologia do alcoolismo. Pela abrangência dos fatores causais, é compreensível as desordens provocadas no organismo por seu uso abusivo, comprometendo desde o sistema biológico até o psicológico e social.

Pelo exposto, pode-se observar a magnitude dessa patologia social. Identificamos, no desenvolvimento deste estudo, a existência de uma literatura especializada que é rica nos aspectos epidemiológicos, preventivos e clínicos. Entretanto, percebemos uma lacuna no que tange ao conhecimento subjetivo gerado pelas pessoas que experimentam a realidade de ser alcoolista. Por considerarmos importante, buscamos conhecer esse universo por meio das falas de quem viveu a experiência de ser alcoolista e ter se distanciado dessa droga.

Com base no descrito, este estudo foi desenvolvido com o objetivo de analisar as representações sociais de alcoolistas abstêmios, freqüentadores dos Alcoólicos Anônimos, sobre o alcoolismo.

 

METODOLOGIA

O estudo é do tipo descritivo, uma vez que se pretende conhecer a comunidade de alcoolistas abstêmios, seus traços característicos, suas gentes e seus problemas(11). Utilizamos a abordagem qualitativa, já que esse tipo de pesquisa reconhece como ciência o conhecimento do subjetivo do indivíduo, sua transmissão e repercussão até a formação do senso comum de uma população, senso este que orienta e explica as transformações que ocorrem no meio em que vive, ou seja, o sujeito é o autor capaz de retratar e refratar a realidade. Desse modo, ela se configura como o sistema de relação que constrói o modo de conhecimento exterior ao sujeito, mas também as representações sociais que constituem a vivência das relações objetivas pelos atores sociais(12).

O estudo tem como aporte teórico conceitos da Teoria das Representações Sociais criada por Serge Moscovici, sendo definidas como "uma modalidade de conhecimento particular que tem como função a elaboração de comportamentos entre indivíduos"(13). Essa teoria trabalha com o cognitivo do indivíduo e sua interação no meio social, atuando na transformação do mesmo. Ela mostra como um grupo re-apresenta e constrói uma realidade.

As representações sociais propiciam as constantes modificações das relações sociais e das práticas de um grupo, por responderem a quatro funções essenciais: a função do saber (compreende e esclarece a realidade), a identitária (as características que identificam e protegem o grupo), a orientação (guia os comportamentos e as práticas do grupo) e a função justificatória (explica as ações do grupo). Elas permitem a um grupo entender uma realidade, manter sua integridade, direcionar e fundamentar suas práticas(14).

O trabalho apoia-se em fontes primária constituídas pelos depoimentos de 17 alcoolistas abstêmios produzidos a partir de entrevista semi-estruturada e da técnica de associação livre de idéias. Optamos primeiramente pela aplicação da técnica de associação livre de idéias por propiciar a coleta de informações e opiniões na forma mais pura, ou seja, um discurso elaborado e também livre das influências das questões das entrevistas, elaboradas pelo pesquisador(15).

Para aprofundar as temáticas que emergiram na livre associação de idéias, utilizamos como segunda técnica a entrevista, por ela propiciar uma atmosfera de interação entre pesquisador e pesquisado, contribuindo para uma captação de informação imediata, independente do tipo de informante. A entrevista também propicia favorece, adaptações e esclarecimentos sobre as informações desejadas(16).

Os participantes são voluntários que freqüentam as atividades do Escritório Central dos Serviços de Alcoólicos Anônimos da cidade de Belém - PA. Por meio dessas técnicas, pudemos conhecer o universo subjetivo dos entrevistados, mostrando o contexto social que os circunda, evidenciando assim as representações na formação de suas práticas.

Antes de proceder à coleta dos dados, tivemos o aceite formal do A.A. consolidado pela assinatura do documento elaborado pela UFRJ, juntamente com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Esse Termo atende à Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde, a qual regulariza e normatiza a pesquisa envolvendo seres humanos.

Cabe destacar que, além da assinatura do Termo, solicitamos aos participantes sua autorização para o uso do gravador, mostrando a necessidade da gravação em fita magnética, para o total aproveitamento dos depoimentos. Asseguramos o respeito ao anonimato e à liberdade para se retirarem da pesquisa e receberem todo o material produzido (fitas e transcrições), sem nenhum comprometimento pessoal.

As informações foram trabalhadas através da análise temática, a qual propicia conhecer uma realidade, por meio das comunicações de indivíduos que tenham vínculos com a mesma(17). Buscamos seguir essa orientação que desdobra esse tipo de análise em três etapas: a 1ª é a préanálise, que consistiu na seleção e organização do material, com a realização da leitura flutuante e a constituição do corpus; a 2ª etapa abrange a exploração do material e a 3ª etapa, o tratamento dos dados. Como resultado, foram construídas três unidades temáticas ou empíricas que orientaram a especificidade do tema, assim denominadas: O despertar por meio da dor - o sentimento como possibilidade de mudança de atitude; Alcoolismo - uma doença progressiva, incurável e com terminações fatais; Alcoolistas, sim; bêbados, não.

 

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

1. O despertar por meio da dor - os sentimentos como possibilidade de mudança de atitude

No processo da entrevista, os depoentes objetivaram suas cognições sobre o alcoolismo, percebendo-se, na sua emergência, uma forte carga emocional relativa aos sentimentos. Houve um consenso sobre o alcoolismo representado como doença que traz grandes sofrimentos, externalizados como frustração, decadência, derrotas, desmoralização, desrespeito, entre outros, os quais se constituíram em agentes detonadores para a busca da reabilitação.

... Muita frustração e perda de tudo... O álcool já foi uma dos piores motivos de tristezas para minha família ... (E1).

Por estarem os sentimentos na dimensão do corpo emocional do indivíduo, ou seja no nível das implicações que a doença causa neste plano, embora repercuta em seu entorno, teceremos algumas apreciações teóricas sobre o conceito, os tipos e suas manifestações.

Os sentimentos são os atos de identificar sensações psíquicas, a exemplo das paixões, do pesar, da mágoa, entre outras. Eles se constituem nas formas como nos compreendemos, como reagimos ao mundo que nos circunda e nos modos característicos pelo qual percebemos que estamos vivos. Com os sentimentos amadurecidos, percebemos nosso maior grau de conhecimento(18). A linguagem dos sentimentos é a maneira pela qual nos relacionamos conosco mesmos, e se não podemos nos comunicar conosco mesmos, simplesmente não podemos nos comunicar com os outros(18).

No estudo em questão, todos os entrevistados, no primeiro momento, evitavam falar, negando com isso seus sentimentos em favor da dependência do álcool, fazendo com que estes se tornassem dolorosos. Todavia, após um longo período, passaram a aceitá-los, e assim começaram a perceber a realidade de sofrimento que o vício ocasionou para si e para as pessoas que lhe são próximas, representado, pela maioria, como o "fundo do poço". Os sentimentos, agora percebidos e internalizados, os conscientizam que é preciso parar de beber:

... A escalada do alcoólatra é só derrota... Ele perde emprego, perde família. Então, a escalada é para o fundo do poço, cada vez mais derrotado (E6).

Criarmos formas de defesas contra os sentimentos dolorosos e negá-los é esquecer o que nos cerca. Tentar contorná-los, com esses mecanismos, conduz a uma realidade irreal, a uma mentira constante. Essa categoria de sentimento ocasiona uma sensação de desconforto ou incômodo, causada por um estado anômalo do organismo ou parte dele - a dor.

Todos os atores do estudo buscavam no álcool o alívio para suas dores, a fuga do seu cotidiano, por meio da obtenção do sentimento de ser melhor do que aqueles que o condenavam, não reconheciam sua doença ou, se a reconheciam, o culpavam pelo seu adoecimento. Essas reações eram passageiras e deixavam sua marca de impotência para assumir e resolver seus problemas.

... A gente se sente mais importante que as pessoas só naquele horário da bebida, [depois] que passa o efeito, estaca zero de novo... Eu sempre escondi meus problemas atrás da garrafa... (E12).

Perceber as reações e os sentimentos dolorosos causados pela bebida em suas vidas, permitiu aos sujeitos do estudo entender que a sua forma de beber era diferente dos demais membros do meio social e trazia sofrimentos para si e para seu grupo social. Por tal motivo, decidem procurar ajuda para uma doença, ainda não inserida no seu cognitivo, fato que abordaremos a seguir.

2. Alcoolismo - uma doença progressiva, incurável e com terminações fatais

Na esfera do social, circulam duas formas de saber - o reificado e o consensual. O primeiro se refere ao conhecimento cientifico que está restrito a uma pequena parcela da população, e é considerado como o saber "autêntico". Já o segundo é conhecido como o senso comum sendo muito utilizado por uma grande parcela da sociedade, como forma de entender uma realidade nova(13). Trazendo essa idéia para o estudo em pauta, para entender o mundo do alcoolismo, foi preciso conhecer as representações sociais geradas pelos alcoolistas abstêmios.

As representações sociais podem ser descritas como:

Uma forma de conhecimento socialmente elaborada e compartilhada, que tem objetivo prático e contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. Também designada "saber de senso comum" ou "saber ingênuo", natural, distingue-se do conhecimento cientifico. Mas é tida como objeto de estudo igualmente legitimo, devido á sua importância na vida social e a elucidação que possibilita dos processos cognitivos e das interações sociais (19).

Podemos identificar nessa definição os dois saberes anteriormente citados - o reificado e o consensual, embora a autora tenha melhor explicitado o saber do senso comum. Eles possuem o mesmo valor, apesar de que no meio cientifico o primeiro estar mais destacado. O saber consensual propicia ao indivíduo e ao seu grupo (os alcoolistas abstêmios pertencentes ao A.A.) que se posicionem frente a uma nova situação, a qual o elemento do grupo insere no seu cognitivo, imprime conhecimento pessoal e compartilha com o seu grupo de pertença (o conhecimento de que o alcoolismo é uma doença).

O saber científico serve como uma forma de matéria prima para construção do saber consensual, mas, apesar dessa dependência, o senso comum não representa o cientifico na sua íntegra. Ele cria, sim, uma nova forma de conhecimento, gerando atitudes, opiniões e crenças, sendo responsável pelas modificações que sofre a sociedade, pois é um outro conhecimento diferenciado da ciência sendo portanto, mais adaptado à ação no mundo ou no mesmo tempo em que o corroborado pela ação(19).

A maioria dos depoentes (75%) compreende o alcoolismo como uma doença e a retrata, utilizando vocábulos como letal, fatal, tirano, brutal, falência, incurável, entre outros, como podemos evidenciar:

...Eu definiria como uma doença incurável, com terminações fatais e letais, aliado a uma obsessão brutal. Quer dizer, realmente incurável. Ainda tem mais essa que é uma palavra muito forte, quer dizer o sujeito fica à mercê do tirano álcool para destruí-lo (E8).

Benjamin Rush foi primeiro autor a considerar o alcoolismo como doença. Isso ocorreu em 1810. Para ele, o alcoólatra é aquele habituado à bebida, sendo detentor de uma dependência progressiva e gradual. Por tal motivo precisa abster-se da droga. Esse conceito não foi aceito à época por não ter sido validado pela comunidade científica(20). Apesar disso, nessa idéia encontra-se o embasamento filosófico para os A.A.: as bebidas alcoólicas como agente etiológico, o uso compulsivo do álcool caracterizando a dependência e a prescrição da abstinência como forma de tratamento.

A redescoberta do alcoolismo como dependência e doença nos anos de 1930 e 1940 pelos A.A. foi uma mudança significativa no paradigma da dependência. Essa idéia fortaleceu-se em 1960 quando Jellinek confirmou ser uma doença caracterizada pela perda do controle de beber(20).

O conceito de alcoolismo evidencia-se na Organização Mundial de Saúde (OMS). Como uma doença de caráter progressivo, incurável e quase sempre fatal(21).

Esse conhecimento científico foi incorporado ao universo do saber dos depoentes fazendo parte de suas comunicações. O alcoolismo não mais é mencionado no âmbito das sensações psíquicas descritas anteriormente, mas sim como uma doença que afetou, quando ainda não era abstêmio, a ele e a seu grupo de pertença, como uma doença social.

Como dito anteriormente, o conceito de alcoolismo, como doença, proposto por Benjamim Rush, foi reconhecido pelo A.A. tornando-se um conhecimento consensual para esse grupo. Esse processo deu-se por meio das comunicações realizadas durante suas reuniões

A comunicação é fundamental por propiciar, através da permuta entre individuo e seu grupo e até mesmo entre grupos, a criação e consolidação de um universo consensual que favorece a manutenção e aceitação de uma determinada realidade, neste caso o sofrimento gerado pelo alcoolismo. Uma realidade que anteriormente gerava ansiedade, por seu desconhecimento, após sua inserção no cognitivo dos indivíduos, tornou-se conhecida, possibilitando a mudança de comportamento(22).

A representação social do alcoolismo como doença predispôs a objetivação da droga como um veneno pelos depoentes que precisam afastar-se dela - a abstinência, que se efetua por meio de um critério preconizado pelo grupo, que é evitar o primeiro gole a cada 24 horas, o que foi possível evidenciarmos nos relatos de 65% alcoolistas abstêmios:

... O que acontece hoje, e que faço tudo que tenho que fazer, aconteça o que acontecer de bom ou de ruim. Eu não posso ingerir o 1º gole nas próximas 24 horas, mesmo estando alegre, mesmo estando triste, porque eu sei que se fizer isso vou ter uma nova derrota para o álcool. Porque com certeza ele vai me destruir (E9).

Outro ponto importante para a consolidação desta representação é a forte religiosidade muito presente nas reuniões dos grupos de A.A.

O A.A. prá mim é tudo. Eu cheguei a procurar uma religião, porque o segundo passo da irmandade sugere que se procure uma religião. Mas logo depois me afastei e fiquei no A.A. Pois, apesar de não ser uma religião, para mim me complementa como se fosse (E8).

Percebemos que o A.A. não somente é repleto de espiritualidade, mas chega a atingir "status" de religião, não sob o enfoque de um conjunto de dogmas e praticas religiosas, ou seja, na crença por meio de doutrinas e rituais próprios como ocorre na maioria das religiões. Mas sim a crença na existência de um ser supremo responsável pelo alcance da abstinência e que age dentro das salas de A.A., de forma similar à presença divina concebida no interior das igrejas, templos evangélicos, centros espíritas e outros. Essa crença é reforçada pelos 12 passos que têm como meta para atingir a sobriedade.

Então, os membros de A.A. concebem a presença de Deus atuando como agente libertador da compulsão pelo álcool . Mesmo não podendo ser entendido como uma religião, o que foi muito bem explicitado pelos depoentes, tem o mesmo valor de crença presente nos demais movimentos religiosos existentes no mundo.

Nessa unidade, pudemos compreender como o alcoolismo converteu-se, entre os depoentes, de uma forma de "prazer" para uma "doença" que, semelhante às demais, precisava ser tratada. Essa nova representação social do alcoolismo como doença originou-se quando eles começaram a freqüentar os A.A., devido à alta coesão existente no grupo. Evidenciamos dois fatores que permitiram a formação e consolidação dessa representação: a comunicação entre seus membros e a forte religiosidade existente nas pessoas. Agora abordaremos a manifestação da doença no aspecto biológico, emocional e social.

3. Alcoolista, sim; bêbado, não

As leituras dos depoimentos evidenciaram um consenso entre os significados de ser alcoolista e ser bêbado, mostrando a construção e a manutenção de uma nova realidade que busca eliminar o estigma. Para eles, a pessoa estigmatizada é o bêbado. O conteúdo das falas aproxima-se das idéias de autores, quando utilizam uma linguagem simbólica para definir alcoolista como o individuo que tem uma ligação com copos, garrafas e garçons. Sua mente está ligada no álcool. Parece que há um campo magnético que o atrai em direção a ele; é dependente do álcool, ou seja, um indivíduo compulsivo e, portanto, dependente. Esses indivíduos, sob o efeito da droga, manifestam comportamentos tais como: andar cambaleando, dar vexames, ser inconveniente ou falar com a língua enrolada, comportamentos esses, que se configuram na pessoa bêbada(23).

Cabe elucidar que o termo alcoolista pode ser empregado com duas visões: uma, direcionada à pessoa que ainda bebe, como podemos observar no conceito anteriormente referido. Outro, utilizado pelas pessoas que freqüentam o A.A. e que não mais fazem uso do álcool, sendo mais conhecido como alcoolista abstêmio, ou que encontram-se na sobriedade.

Hoje sou mais feliz por ser um alcoólatra, mas não ser mais um bêbado... (E14).

Percebemos que o grupo de depoentes que essa fala ilustra reconhecem sua dependência química em relação às bebidas alcoólicas, embora não mais façam uso das mesmas. Em razão disso, não se consideram bêbados e, como tais, não apresentam mais os comportamentos característicos do indivíduo que está sob o efeito da droga. Eles se consideram alcoolista. Nesse sentido, inferimos que, ao ingressarem no A.A., reconstroem a representação de si que favorece sua aceitação como alcoolista, tornando-se familiar, deixando seu passado preso à palavra bêbado. Essa transformação parece derivar do fato de terem tomado consciência do alcoolismo como sendo uma doença de caráter multifatorial, entre eles, o fator genético, acentuada pelos condicionantes psicossociais. Do total de 17 entrevistados, 14 (87,5%) tinham parentes em primeiro grau, também alcoolistas:

... Eu sou filha de um pai alcoólatra. Quando ele chegava em casa, era aquela briga constante. Ele batia muito em minha mãe. Então, eu tive uma série de exemplos tristes, vários sofrimentos que foram causados pela bebedeira de meu pai (E10).

Foi percebido no transcorrer desta unidade que a emergência de uma nova representação do alcoolismo, ao ser difundida pelo grupo, favoreceu uma nova opinião que era contra o uso do álcool. Já na fase de propagação ocorreu uma mudança de atitude que culminou no fim do comportamento de beber de forma excessiva, contribuindo assim, para fase de propaganda para formação de um novo estereótipo - a do alcoolista abstêmio.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo evidenciou as representações sociais de alcoolistas abstêmios sobre o alcoolismo. Ao realizá-lo, pudemos conhecer o seu pensar, sentir e agir em relação à doença, na trajetória traçada pelos mesmos desde o primeiro contato até a obtenção da abstinência.

Os sentimentos mostraram-se como forças para conscientização de que o consumo da bebida de forma compulsiva era o responsável por todo sofrimento sentido pelos alcoolistas. Os sentimentos considerados negativos como frustração, impotência perante as bebidas, vergonha aliados à solidão foram significantes para buscar ajuda.

A partir do momento que passaram a participar das reuniões do A.A., começaram a representar o alcoolismo como uma doença, progressiva, incurável e com terminações fatais e não mais como uma forma de "prazer social". Essa nova realidade tornou-se presente pelo fato das comunicações veiculadas na instituição estarem impregnadas por essas idéias. A troca de experiências semelhantes vividas por essas pessoas, na qual retratam a trajetória de suas vidas até chegarem à abstinência, durante a qual sofreram o preconceito, a discriminação, a desagregação familiar, entre outras, foram vivências que muito colaboram em sua recuperação.

A religiosidade, muito presente nos relatos dos entrevistados, contribuiu também de forma significativa para aceitação dessa nova representação pelo grupo. Todos os depoentes provinham de religiões cristãs, o que favoreceu a aceitação da concepção de Deus encontrada nos 12 passos do A.A. para a recuperação, que tinham como meta atingir a sobriedade, realidade tão almejada.

O estudo mostrou a construção de um novo estereotipo - o ser alcoólista, pois compreendiam e aceitavam serem identificados como tal, por se manterem afastados das bebidas alcoólicas. Nessa condição, não mais aceitam a denominação de bêbados, ficando o estigma da doença vinculado a essa terminologia.

O conhecimento da problemática que envolve o alcoolismo é necessário para que o enfermeiro compreenda a verdadeira extensão da dependência. Sem esse instrumental, ele terá dificuldade para atuar no tratamento que é prestado para essa clientela, porque, quanto mais cedo iniciá-lo, menores serão as seqüelas orgânicas, psíquicas e sociais deixadas pela doença.

Dentro dessa perspectiva, a assistência prestada ao alcoolista pelo enfermeiro e outros profissionais de saúde é pautada na valorização do senso comum que circunda essa população, fato muito relevante para iniciar o seu tratamento e possibilitar mudanças de atitude. Consegue-se dessa forma trabalhar com a população e não para a população, pois a mesma é levada à reflexão e ao desenvolvimento da consciência sobre as condições necessárias para a melhoria de sua saúde. Pensamos que somente assim poderemos construir uma assistência que respeite a verdadeira dimensão do problema.

Sabemos que a saúde das pessoas não depende exclusivamente de ações educativas. Mas, por ser este um processo, por meio do qual o conhecimento, as atitudes, os valores, as crenças e as práticas são partilhados, os indivíduos são estimulados, através dela, a melhorar a sua saúde por seu próprio esforço, não deixando de considerar o ambiente em que vivem e sua inserção no seu meio social.

No que se refere ao âmbito da formação acadêmica do enfermeiro, urge contemplar os conteúdos mais abrangentes sobre a temática nos currículos, criando grupos de discussão, pesquisa, para conduzir os alunos a pensarem criticamente e a desenvolverem de forma criativa formas de assistir essas pessoas, de maneira criativa. A abordagem deve ser globalizada e favorecer o acolhimento desse doente, tratando-o com a dignidade que ele merece e não de forma preconceituosa, como infelizmente se observa. Dentro dessa ótica, o profissional não estará importando-se unicamente com as manifestações clínicas.

O preparo insuficiente dos profissionais torna-os incapazes para atender um alcoolista, nas Unidades de Saúde, no hospital ou na própria comunidade na qual atua. Essas pessoas são atendidas não unicamente pelos enfermeiros da área de psiquiatria, mas por todos os enfermeiros independente da área em que atuam.

Se considerarmos o campo de atuação do enfermeiro nos três níveis de prevenção, identificamos a contribuição deste estudo para a Enfermagem pelo fato dela estar lidando constantemente com os problemas gerados pelo alcoolismo, tanto no âmbito hospitalar quanto na comunidade. Como profissionais da área da saúde, precisamos tomar decisões que orientem nossas ações. Acreditamos que este estudo ofereça subsídios para auxiliar tais decisões e ações. As representações sociais dos alcoolistas abstêmios sobre o alcoolismo possibilitaram conhecer e compreender as facetas dos problemas que a dependência acarreta para suas vidas.

Não temos a pretensão de acreditar que esta pesquisa esgota a necessidade de discutir as questões referentes ao objeto de estudo. Sugere-se trabalhos análogos capazes de apreender com mais profundidade aspectos do contexto psicossocial ainda não explorados sobre a temática, tão importantes e necessários no sentido de olhar mais atentamente a prática assistencial que prestamos a essa clientela.

 

REFERÊNCIAS

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NOTAS

ª O artigo foi extraído da pesquisa intitulada "Alcoólatra, sim; bêbado, não: representações sociais de alcoolistas abstêmios sobre o alcoolismo", realizada para obtenção do título de Mestre em Enfermagem pela Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EEAN/UFRJ) em convênio do tipo MINTER com a Universidade do Estado do Pará (UEPA). A pesquisa contou com o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

 

 

Recebido em 19/07/2004
Reapresentado em 25/11/2004
Aprovado em 08/12/2004

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