Volume 8, Número 3, Set/Dez - 2004
ARTIGOS DE PESQUISA
Saúde reprodutiva: as relações de gênero no planejamento familiar
Reproductive health: the gender relations in the family planning
Salud reproductiva: las relaciones de género en la planificación familiar
Cilene Delgado CrizóstomoI; Catia Silvana de Jesus Sobra; Inez Sampaio NeryII
IEspecialista em Enfermagem Obstétrica pela Universidade Federal do Piauí- UFPI Professora Substituta do Departamento de Enfermagem da UFPI
IIDoutora e mestre em enfermagem pela EEAN Livre docente pela UNIRIO Professora adjunta do Departamento de Enfermagem da UFPI
RESUMO
Estudo com abordagem qualitativa, objetivando discutir a influência das relações de gênero nas decisões reprodutivas quanto ao planejamento familiar das mulheres. O método empregado foi a história de vida, tendo a participação de sete mulheres que utilizavam os serviços do Centro de Saúde Dr. Mariano Mendes, em Teresina-Piauí, Brasil. As mulheres relataram não ter planejado suas gravidezes, sendo a reprodução vinculada à sexualidade. As precárias condições financeiras aliadas às questões de gênero e a ineficácia dos serviços de planejamento familiar foram fatores determinantes para a não realização do mesmo. A violência física e psicológica sofrida pelas mulheres as conduziram à dominação e subordinação a seus companheiros. Conclui-se, portanto, a significativa influência das relações de gênero na saúde e nos direitos reprodutivos das mulheres.
Palavras-chave: Saúde reprodutiva. Gênero. Planejamento familiar
ABSTRACT
It's a study with a qualitative approach, aimming to discuss the gender relation's influence in the reproductive decision for the family planning of the women. The used method was life case history, with the participation of seven women who was treated in the Health Care Center Dr. Mariano Mendes in Teresina-PI, Brasil. The women reported that had not planed their pregnancy, relating the repproduction to the sexuality. The poor conditions of these women allied to the gender questions and the inefficacy of the family planning services was rthe most important factors for the not realization of them. The physical and psychological violence suffered by the women, led them to the domination and subordination of their partners. The study concludes, therefore the meaningful influence of the gender issue on health and woman reproductive rights.
Keywords: Reproductive health. Gender. Family planning
RESUMEN
Estudio, con abordaje cualitativo, objetivando discutir la influencia de las relaciones de género en la decisión reproductiva de las mujeres cuanto a la planificación familiar. El método empleado fue la historia de vida, con una encuesta abierta, teniendo la participación de siete mujeres que buscaban los servicios del Centro de Salud Dr. Mariano Mendes, en Teresina-Piaui, Brasil. Las mujeres dijeron no haber planificado sus embarazos, siendo la reprodución vinculada a la sexualidad. Las precarias condiciones financieras aliadas a las cuestiones de género y la ineficacia de los servicios de planificación familiar fueron factores determinantes para la no realización del mismo. La violencia física y psicológica sufrida por las mujeres las condujeron a la dominación y a la subordinación de sus compañeros. Se concluye, por lo tanto, que la significativa influencia de las relaciones de género en la salud y en los derechos reproductivos de las mujeres.
Palabras clave: Salud reproductiva. Género. Planeamiento familiar.
INTRODUÇÃO
A família é considerada a base, sobre a qual a sociedade está estruturada. Tem-se visto uma diminuição na quantidade e no tamanho das famílias tradicionais, concomitantemente a sua desestruturação, através do aumento do número de divórcios e separações e paralelamente a esse fato os indivíduos têm constituído famílias, fruto de relações informais que é chamado de união consensual estável, atualmente reconhecida pelo poder judiciário se atender aos critérios estabelecidos pela lei.
Observa-se que o tamanho da família é inversamente proporcional ao nível social, econômico e cultural, ou seja, as famílias mais numerosas têm geralmente condições mais precárias. Esse fato causa preocupações e inquietações às autoridades, uma vez que, além de ser um problema social grave, se considera um problema de saúde pública, pois esta situação diminui a qualidade de saúde da população, principalmente se considerar o conceito de saúde preconizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no qual diz que saúde é o completo bem-estar físico, mental, social e não simplesmente a ausência de doenças. Dentro desse contexto, o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, ocorrido em Nova York, em 2000, conceitua saúde reprodutiva como sendo:
Um estado de completo bem estar físico, mental e social em todas as matérias concernentes ao sistema reprodutivo, suas funções e processos, e não a simples ausência de doença ou enfermidade. A saúde reprodutiva implica conseguinte, que a pessoa possa ter uma vida sexual segura e satisfatória, tendo a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando e quantas vezes deve fazê-lo. Está implícito o direito de homens e mulheres de serem bem informados e de terem acesso aos métodos eficientes, seguros, aceitáveis e financeiramente compatíveis de planejamento familiar, assim como a outros de regulação da fecundidade a sua escolha e que não contrariem a lei, bem como o direito de acesso à serviços apropriados de saúde que propiciem às mulheres as condições de passar com segurança pela gestação e o parto, proporcionando aos casais uma chance melhor de ter um filho sadio (1:36).
Nas últimas décadas, as mulheres têm buscado conciliar as tarefas domésticas com um trabalho remunerado através de uma qualificação profissional. Embora elas tenham conquistado um maior espaço na sociedade, ainda não há igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, sobretudo no que tange aos direitos reprodutivos.
Apesar dessas transformações ocorridas nas últimas décadas, os papéis tradicionais aprendidos por homens e mulheres, vistos socialmente como naturais e inquestionáveis e passado de geração para geração, permanecem, o que torna a sociedade incoerente e ao mesmo tempo contraditória.
Ao nascer, o ser humano é simplesmente macho e fêmea da espécie humana, e através das relações de gênero é transformado em homem e mulher, ou seja, o sexo anatomicamente configurado sugere a transformação dos seres humanos em mulheres e homens. O tornar-se mulher e o tornar-se homem constituem obras das relações de gênero e este, por sua vez, se constrói e se expressa através das relações sociais. Portanto, o corpo de uma mulher, por exemplo, é essencial para definir sua situação no mundo, mas é insuficiente para definí-la como mulher, pois essa definição só se concretiza através das relações sociais. Para Simone de Beauvoir, não se nasce mulher, torna-se mulher (2:187).
O gênero é uma categoria introduzida nas Ciências Sociais pelo feminismo e hoje amplamente aceito como uma categoria de análise, contrapondo-se à compreensão biologicista que explica o papel de inferioridade social da mulher em função de seu papel na reprodução humana(3).
O gênero é o resultado da aprendizagem de "papéis" masculinos e femininos, construídos social e historicamente, que envolvem os corpos dos sujeitos(4), enquanto as relações de gênero constituem as relações sociais entre os sexos subsidiados pelo poder, onde há dominação e exploração exercida sobre o subordinado(5).
Todas as sociedades conhecidas revelam a exploração exercida pelos homens sobre as mulheres, e tal dominação sofreu um processo de naturalização determinado historicamente, variando de intensidade de uma sociedade para outra. Vale ressaltar que a subalternidade feminina, entretanto, não significa ausência absoluta de poder, visto que as relações entre homens e mulheres estão sempre permeadas de poder(2).
A sociedade apóia essa dominação masculina sobre as mulheres tornando-a lícita, pois no código civil da Constituição Federal Brasileira de 1988, no capítulo II, que dispõe acerca dos direitos e deveres do marido, encontrase o seguinte texto no Art. 223: "O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos. Compete-lhe: I - A representação legal da família"6.
A Conferência Internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os direitos humanos em 1968, reconheceu o direito de todos os indivíduos e casais de decidir sobre suas vidas reprodutivas, afirma também que a mulher deve ter o direito de controlar sua fecundidade e sua própria vida, e os programas de planejamento familiar podem ajudar as mulheres a atingirem esses direitos, que são considerados um importante passo para o melhoramento da sua saúde(7).
Planejamento Familiar (PF) é definido, segundo a OMS, como:
Um modo de pensar e viver adotado voluntariamente por indivíduos e casais baseando-se em conhecimentos, atitudes e decisões tomadas com sentido de responsabilidade a fim de promover a saúde e bem estar da família e contribuir eficazmente ao desenvolvimento social do país (5:31).
Nesse sentido, o planejamento familiar é um programa preconizado pelo Ministério da Saúde e tem como finalidade precípua a ação de prevenção na assistência primária à saúde. É necessário capacitar as(os) enfermeiras(os) para orientar e desenvolver atividades de planejamento familiar junto à clientela, uma vez que o mesmo faz parte da equipe multiprofissional e é bastante atuante na área de saúde pública. Assim, a enfermagem prestará uma assistência de melhor qualidade às mulheres e/ou casais para que consigam ter o controle da sua reprodução se assim o desejarem e, conseqüentemente, a enfermagem contribuirá para a construção de uma sociedade com mais saúde e qualidade de vida.
Com base na problemática evidenciada que aflige as mulheres e/ou casais no que diz respeito às questões reprodutivas, este estudo tem por objetivo discutir a influência das relações de gênero nos direitos reprodutivos no que se refere ao P.F. das mulheres.
MÉTODO
Mediante a problemática presente no contexto da saúde e dos direitos reprodutivos das mulheres, a abordagem qualitativa de pesquisa foi escolhida por se preocupar ...com o nível de realidade que não pode ser quantificado e trabalhar com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes (9:22).
O método empregado neste estudo foi história de vida, cuja técnica de coleta empregada foi a entrevista. O referido método consiste na história ou relato de vida, narrado de acordo com a vivência, não necessitando que o pesquisador confirme a veracidade dos fatos, pois o que mais importa é o ponto de vista de quem está narrando(10).
Vale ressaltar que, para o alcance dos objetivos metodológicos dessa abordagem, o pesquisador deve diversificar os informantes, e estes por sua vez devem receber pouca interferência, sendo a conversa conduzida pelo interlocutor, desde que tenha o desejo de relatar suas experiências(9).
Nesse método, o sujeito é valorizado em sua fala, o pesquisador é um mero direcionador na condução da entrevista. Portanto, o estudo é direcionado pelo depoente, a partir de sua visão de mundo e de suas vivências passadas, que interage com o presente (10).
Sobre esse assunto, o pesquisador deve compreender que a posição de comando é do pesquisado, que deve falar o que é importante, tendo liberdade para direcionar sua conversa, valorizar os aspectos abordados sobre sua vida, o que permite refletir sobre o acontecido sem interferências e julgamento do entrevistador. O papel do pesquisador é de incentivar o informante para discorrer sobre o assunto sem ser forçado a responder(11).
A pesquisa foi realizada com mulheres que utilizavam os serviços do Centro de Saúde Dr. Mariano Mendes, localizado na rua Amadeus Paulo, s/n, vila Monte Alegre, zona norte da cidade de Teresina- PI, onde está implantado o Programa de Saúde da Família (PSF).
Os sujeitos foram sete mulheres em idade fértil, entre 20 e 28 anos, que utilizavam os serviços do Posto de Saúde. Fizeram parte do estudo gestantes que utilizaram os serviços de pré-natal e ainda mulheres que fizeram o exame ginecológico (papanicolaou) durante a campanha de prevenção do câncer cérvico-uterino.
No perfil desses sujeitos, a situação conjugal das entrevistadas foram: cinco tinham a união consensual estável e duas eram casadas. Quanto ao grau de instrução, seis mulheres não concluíram o ensino fundamental e uma estava cursando o 1º ano do ensino médio. Com relação à procedência, quatro mulheres eram provenientes de cidades do interior do Piauí, Ceará e Maranhão e três de Teresina. No que se refere à religião, as sete entrevistadas eram católicas. A renda familiar das depoentes variou de R$90,00 e R$600,00, sendo que apenas uma mulher referiu não ter renda. Quanto aos antecedentes obstétricos quatro eram trigestas, duas multigestas e uma secundigesta. Apenas uma mulher tinha história abortiva.
As entrevistas foram agendadas no Posto de Saúde com a data, local, horário do encontro preestabelecidos e gravadas em fitas magnéticas e posteriormente transcritas. Foi garantido às entrevistadas o sigilo e o anonimato, com base na Resolução n° 196/96, que versa sobre o termo de consentimento livre e esclarecido.
O estudo teve como questão norteadora:" Fale da sua vida a respeito de como foi o planejamento da sua família, quem participou da decisão reprodutiva".
Por tratar-se de uma pesquisa qualitativa, o número de entrevistas foi considerado satisfatório no momento em que ocorreu a saturação dos dados, percebida quando iniciou a repetição das falas das depoentes em relação ao objeto de estudo.
Para análise, os dados foram agrupados em categorias que emergiram a partir da transcrição das entrevistas, leituras, releituras e organização dos relatos com base na fundamentação teórica, acerca do método e da temática.
APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Os resultados deste estudo basearam-se na história de vida das mulheres e estão expostos em quatro categorias, a saber: direitos reprodutivos e gênero; direitos reprodutivos e métodos contraceptivos; direitos contraceptivos, classes sociais e direito reprodutivos e violência à mulher.
Direitos Reprodutivos e Gênero
Nesta categoria, as mulheres relataram não ter planejado sua família, ou seja, não decidiram quantos e quando ter filhos, por conseguinte não evitaram a gravidez, mas aceitaram-na, conforme depoimentos a seguir:
(...) Conheci um rapaz... tivemos um namoro. Mas ele era muito grosso, (...) ele só queria me usar né? Eu dizia pra ele que assim eu não queria, ele dizia: não mas tem que fazer [relação sexual]. Aí eu fazia, porque ele pedia né? Aí, eu acabei engravidando tendo a minha menina, agora vem esse outro [compaheiro] quer que eu tenha um filho dele. Mas, eu não quero (E2).
Observa-se neste relato que esta depoente sofreu influências e/ou pressões dos companheiros, era submissa às vontades e desejos sexuais deles, associava a gravidez como um fato inerente ao exercício da sexualidade. Isso interfere no exercício do direito reprodutivo de decidir quando e quantos filhos ela quer ter, resulta em não planejamento da família e o descontrole de sua reprodução.
As relações de poder que se desenvolvem no ambiente familiar estão relacionadas aos papéis culturais que definem o papel do homem e da mulher na sociedade. Cabe à mulher o cuidado do lar, do marido e dos filhos, enquanto cabe ao homem ser o provedor econômico e tomar decisões importantes na esfera doméstica.
Em função das desigualdades de gênero, classificam-se direitos e deveres de homens e mulheres frente à maternidade e paternidade que atribuem à mulher a responsabilidade pela reprodução, cuidado e educação dos filhos e ao homem o comando da família e o sustento financeiro(12).
Na maioria das vezes, é o homem quem decide as finanças da família, mesmo que a mulher também trabalhe fora do lar. Essa dependência é que muitas vezes faz com que a mulher aceite as determinações reprodutivas do companheiro para assegurar a sobrevivência dela e dos filhos(12).
Essas relações de poder podem interferir e até mesmo determinar a prática da contracepção no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos. No início do relacionamento, muitas vezes, as mulheres não desejam ter filhos, mas são incapazes de resistirem aos apelos insistentes do companheiro quanto ao relacionamento sexual desprotegido e acabam por engravidar. Além disso, ao longo da vida, a maior parte delas não resiste às pressões seja para engravidar, interromper a gestação ou até para ligar as trompas(12).
Para o Ministério da Saúde, o surgimento dos métodos contraceptivos provocaram mudanças qualitativas na vida da mulher ao favorecer a vivência da sexualidade sem o ônus da gravidez indesejada. Ressalta, ainda, que a mesma sociedade, que abriu espaços para que a mulher se tornasse dona de seu corpo e de seu destino, não reconhece o direito à sexualidade plena, tornando-a responsável exclusiva pela reprodução humana e não lhes oferece acesso à informação sobre seus direitos e saúde reprodutivo(13).
As entrevistadas nº 6 e 7 expressaram-se sobre o assunto da seguinte forma:
(...)...Eu me iludi demais. Aí, terminei sem me prevenir, aí eu engravidei. Só que, quando ele soube que eu estava grávida, ele sumiu, desapareceu... Meus meninos todos, até esse aqui que eu tô grávida, não foram planejado, nunca planejei. Agora eu não quero mais ter filho, quero evitar agora. Só quero ter esse e pronto (E6).
Nenhum eu planejei, aconteceu. Como eu não queria tirar, eu deixei... (E7).
Nestes dois depoimentos, percebe-se que os homens não participaram do planejamento familiar. A entrevistada nº6 afirma que o parceiro "sumiu" não assumindo a responsabilidade da paternidade, e a mulher teve que arcar com todas as responsabilidades em relação ao filho, e levando a condução da gravidez adiante. A entrevistada nº7 também não fez planos para engravidar, e como não desejava abortar, deixou a gravidez prosseguir.
As definições culturais de gênero construídas social e historicamente tidas como naturais e inquestionáveis ditam normas socioculturais acerca do feminino e do masculino que interferem no relacionamento e intimidade entre os sexos.
Os serviços de saúde não abordam social e humanamente os problemas femininos, onde são descaracterizadas em sua identidade social e cultural e, portanto, em sua integralidade. Dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), são tratadas mais como "reprodutoras" do que como pessoas com direitos e necessidades específicas, independentemente do seu papel biológico(13).
Direitos Reprodutivos e Métodos Contraceptivos
Entre os métodos contraceptivos, a esterilização cirúrgica apesar de irreversível, foi o método preferido pelas mulheres, visto que duas delas (E1, E4) já haviam realizado a laqueadura tubária e três (E3, E5, E7) estavam planejando fazê-la. Isso é afirmado nas falas:
Eu não quero mais filho de jeito nenhum. Eu fui na médica pra mim fazer a ligação. Ela passou uns exames pra mim fazer e disse quando eu tivesse esses resultados, era pra mim ir mostrar para ela. Ele [companheiro] mesmo que fala. Disse que agora é pra mim ajeitar uma ligação pra mim, que era para mim ter pedido pro médico, quando foi fazer o meu parto (E3).
(...) do 2º [filho] para o 3º [filho] eu usei comprimido... Aí, no 3º filho eu fiz a cesárea e também a ligação. Eu pedi pro médico fazer logo (E4).
Eu quero ter logo, pra fazer a ligação. O médico marcou pra mim voltar com 40 dias depois do parto, porque ele vai marcar a cirurgia (E5).
Observou-se que as mulheres que não desejavam ter mais filhos (E3,E4,E5) preferiram a laqueadura tubária, considerada por elas como meio de evitar nova gravidez. Este é um método definido de melhor eficácia e de menos efeitos colaterais. Esta questão deixa evidente mais uma vez a falta de acesso e a oportunidade de controlar sua reprodução com métodos reversíveis.
Estudos têm demonstrado a rápida e ampla difusão da prática da esterilização nos últimos anos, que ocupam o lugar de outros métodos reversíveis com elevados níveis de satisfação entre as mulheres, e ainda a existência de uma demanda de mulheres que desejavam ter um maior acesso à esterilização. A preferência por esse método está na ausência de falhas, pois o motivo que faz as mulheres optarem por esse método é a possibilidade definitiva de não engravidarem mais(14).
Nesse novo contexto de liberação sexual e com o surgimento dos métodos contraceptivos, a maternidade passou a ser uma opção; elas podem escolher se querem ser mães e quando. Entretanto, entre as mulheres de menor poder aquisitivo é onde mais se evidencia a falta de meios para que, efetivamente, possam escolher quando e como ter filhos. As condições de vida de mulheres pobres e a natureza precária da assistência à saúde, sem serviços de informação e orientação específica sobre anticoncepção, tem tornado um fracasso a prática da contracepção e causado prejuízos à saúde. A esterilização, neste caso, atende a dois propósitos: realiza o desejo de não ter mais filhos e encerra o ciclo de prejuízos à saúde (14).
Os efeitos colaterais dos métodos contraceptivos reversíveis constituiu um dos principais fatores que dificultaram a realização do planejamento familiar para quatro mulheres entrevistadas, que assim se expressaram:
(...) Os outros eu não usei mais nada não, porque o remédio eu não podia tomar, não posso tomar, eu sinto enjôo, começo a emagrecer muito, um aperto dentro da gente, sei lá o que é, me sinto mal, aí eu não tomo. Eu nunca procurei médico, eu ía direto na farmácia comprar o remédio... (E5).
(...) Antes da minha 2ª filha eu tomava injeção. Mas eu sempre engravidava, não sei se é porque eu não tomava direito. Eu ía na farmácia e comprava. Não falava com o médico... Quando terminava o mês eu ía lá e tomava de novo. Mas aí, eu engravidava sempre, não sei porque... (E6)
Quando o meu 2º filho nasceu eu passei a tomar o anticoncepcional. Mas eu engordei muito...4kg e meio, dentro de 2 meses. Eu sentia muita dor de cabeça, a minha pressão alterava, sentia muita cólica. Aí resolvi deixar de tomar, aí engravidei desse 3º filho... O médico tinha passado o nortrel... Aí por conta própria eu fui tomar microvlar. Aí eu notei que não tava me dando bem, eu mesmo deixei de tomar... (E7).
As entrevistadas referiram ter apresentado inúmeros efeitos colaterais em razão do uso do contraceptivo hormonal tais como enjôos, emagrecimento, mal-estar, engordava, cefaléia, cólicas, alterações na pressão arterial, motivos que as fizeram abandonar esse método. Ficou claro na fala das entrevistadas 5, 6, 7, a automedicação praticada por elas, a presença dos efeitos colaterais, a utilização da medicação sem procurarem anteriormente um serviço de saúde, resultando, dessa forma, no abandono do método. É comum as mulheres correrem o risco de engravidar a se submeterem aos efeitos colaterais provocados pelo método utilizado. Esse fato constitui o reflexo da ineficácia e baixa resolutividade dos serviços públicos de saúde, principalmente no que se refere às atividades de planejamento familiar.
As pílulas anticoncepcionais, usadas pela maioria das mulheres sem prescrição e acompanhamento médico, são compradas nas farmácias com recursos próprios e, apesar de contra-indicações e doenças manifestas, são usadas erroneamente em muitos casos. Isto leva ao aumento dos efeitos colaterais, o que favorece uma tendência ao uso errado dos anticoncepcionais, fazendo com que as mulheres experimentem vários tipos e dosagens, num processo marcado pela descontinuidade.
Dessa forma, devido ao não uso de métodos contraceptivos, ressalta-se a questão da gravidez indesejada que leva à problemática da gravidez indesejada, que leva à problemática do aborto. Observamos que uma das entrevistadas afirma ter realizado uma tentativa de aborto, enquanto outras duas, apesar de a gravidez ser indesejada, afirmaram não ter encontrado coragem de realizá-lo:
Eu comecei a namorar com o meu esposo, eu tinha 13 anos. Aí a gente começou a ter relação. Aí eu peguei e engravidei da minha filha. Mas eu não queria, eu tomei remédio pra abortar, tudo mais... Aí ela não abortou, nasceu... (E1).
Coisa que eu nunca faço também, é eu tá sabendo que eu tô grávida e abortar. Eu não tenho coragem, não (E3).
(...) Aí como eu nunca quis esse negócio de abortar de tomar remédio, a gente deixou levar, nem que ficasse perto um do outro [filho]... (E7).
Através do discurso das mulheres, observou-se que o aborto é praticado como uma alternativa diante de uma gravidez indesejada e não planejada. O aborto é considerado um grave problema de saúde pública e está entre as causas de morte materna.
O Brasil apresenta uma taxa de 130 mortes maternas por 100.000 nascidos vivos. Por isso, o óbito materno passou a ser um evento de notificação compulsória e, em 1994, foi criado o Comitê Nacional de Mortalidade Materna para notificar e investigar esse tipo de morte(15).
As complicações decorrentes do aborto constituem a quarta principal causa de morte materna, sendo que as causas obstétricas diretas, que são evitáveis, são responsáveis por 66% das mortes. Isso demonstra uma ineficácia elevada da assistência a essa população, pois o planejamento familiar é um direito garantido na constituição de 1988. A morte de mulheres por aborto indica que as ações de planejamento familiar não funcionam adequadamente (15).
No Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento da Assembléia da ONU, realizada em Nova York, em 2000, o parágrafo 8.25 afirma que:
Em nenhuma circunstância o aborto deve ser promovido como um método de planejamento familiar. Todos os governos e todas as organizações intergovernamentais e não governamentais pertinentes são instadas a reforçar seus compromissos com a saúde das mulheres, a considerar os efeitos do aborto inseguro sobre a saúde como um problema crucial ao aborto, mediante ampliação e melhoria dos serviços de planejamento familiar. Deve ser atribuída prioridade máxima às ações de prevenção da gravidez indesejada e todos os esforços devem ser enviados para evitar a necessidade do abortamento. Os serviços de orientação pósaborto, de educação e de planejamento familiar devem ser prontamente disponibilizados, o que ajudará também a evitar abortos repetido (16).
Direitos Reprodutivos e Classes Sociais
As mulheres relataram não ter dinheiro para comprar os métodos contraceptivos de sua preferência. Para elas, os serviços de saúde não dispõem deles, como pode-se constatar nas entrevistas nº 6 e 7:
(...) Antes da 2ª menina eu tomei anticoncepcional também. Eu acho que eu engravidei tomando, porque às vezes eu esquecia de tomar. Aí também quando acabava, eu não tinha dinheiro pra comprar. Da 2ª menina prá esse daqui [3º filho], eu usava camisinha.
Mas, às vezes, não tinha dinheiro prá comprar camisinha, e também, às vezes, faltava no posto de saúde. Aí não usava, porque eu morava com ele. Aí não me prevenia, porque quando a gente mora com um homem, a primeira coisa que ele diz: Ah! tá me traindo! Ainda mais, quando vai morar com uma mulher assim que nem eu, que já tem filho... Aí, eu engravidei desse menino [3º filho]... (E6).
O médico tinha passado na maternidade, o Nortrel. Aí eu não pude tomar o que ele passou, porque era muito caro. Aí, por conta própria eu fui tomar Microvlar. Aí quando o 2º filho tava com 5 meses, eu engravidei novamente... (E7).
De acordo com os depoimentos, observa-se a precária condição financeira aliada às questões de gênero, como também a baixa qualidade dos serviços públicos que oferecem assistência em planejamento familiar, o que de certa forma impede que as mulheres gozem de saúde e exerçam seus direitos reprodutivos.
O risco de adoecer e de morrer ocorre como algo peculiar a cada classe social, através da teoria da determinação social no processo saúde-doença, em que esses fenômenos são expressões de um mesmo processo, o que evidencia o seu duplo caráter: o biológico e o social a partir da vida do homem em sociedade(17).
A cada classe social corresponde um determinado padrão de desgastes e potencialidades, manifestados através de condições negativas, como o risco de adoecer ou morrer, ou positivas. Entre as classes sociais, são compartilhadas as condições de vida e de trabalho e o processo saúde-doença manifesta-se através de perfis de morbi-mortalidade peculiares de cada classe. Essa determinação social do processo saúde-doença se dá através da inserção de um sujeito portador do sexo socialmente determinado em uma dada classe social(17).
Utiliza-se concomitantemente as categorias de gênero e classe social para a compreensão da "dupla subalternidade" da maioria das mulheres nas sociedades, pela simples condição de serem pobres e mulheres, considerando-se que ela opera muito mais por exclusão que por inclusão social e que este processo penaliza muito mais as mulheres(17).
Direitos Reprodutivos e Violência à mulher
A prática do sexo dentro do relacionamento está ligada à imposição do companheiro, manifestada através de agressões físicas, o que se constata na entrevista a seguir.
(...) Ele era muito grosso, queria só me usar né? Eu dizia pra ele que assim, eu não queria. Aí quando ele se embriagava, ele ficava me torturando. Aí, eu fazia porque ele pedia né? (...) Agora, já vem esse outro [companheiro]. Ele é muito violento. Quando ele bebe, ele quebra as coisas. Minha porta fica toda amassada... Ele destrói meus remédios, tudo [anticoncepcionais] (...)se vai uma colega minha , falar comigo, ele fica na sala...(E2).
A violência por parte do companheiro como meio para controlar o corpo da mulher foi referida pela E2, o que evidenciou a violência física e psicológica, para que ele tivesse o domínio das relações sexuais.
No Brasil, dados estatísticos levantados de delegacias especializadas demonstram que 70% dos incidentes contra a mulher ocorrem dentro de casa, sendo o agressor o próprio marido ou companheiro da vítima. Ressalta-se que 40% dos abusos envolvem lesões corporais graves(17).
Geralmente os homens violentos buscam controlar o corpo da mulher e a sua sexualidade. Devido ao ciúme exagerado, muitos impedem que suas mulheres usem anticoncepcionais por sentirem-se mais seguros quando as mulheres estão grávidas e, consequentemente, mais dependentes deles. A violência sexual viola o direito da mulher exercer sua sexualidade plena e a busca do prazer sexual lhes é negada (18:136).
O medo é um fator que dificulta a tomada de decisão: se ela engravida, sem o desejo do homem, é agredida. O uso de medidas preventivas para não engravidar sem o consentimento do parceiro também é punido. Como justificativa para sua atitude violenta, o homem costuma questionar a fidelidade da mulher. Muitas vezes, quando finalmente ela engravida, é induzida ao aborto, tem o filho rejeitado, é abandonada ou é agredida, agressão esta que vai desde a pressão psicológica às torturas físicas(18).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo revelou que as relações sociais de homens e mulheres são permeadas de poder e construídas pela cultura, que influenciavam nos direitos e na saúde reprodutiva das mulheres.
As questões de gênero são resultantes da cultura construída pela sociedade através dos séculos, fazendo das mulheres cidadãs desiguais e sem direitos. E essas diferenças são reforçadas através da assistência prestada pelos profissionais de saúde quanto ao modelo e a forma como os serviços públicos são oferecidos e organizados atualmente, apresentando conseqüências negativas como a gravidez indesejada, o aborto, os riscos de doenças e os óbitos maternos(19).
De acordo com as categorias demonstradas, a reprodução ainda encontra-se vinculada à sexualidade, visto que as mulheres não planejaram suas gravidezes. Elas assumem todas as responsabilidades com relação à contracepção, à maternidade e ao cuidado com os filhos. O uso de contraceptivos hormonais, na sua grande maioria, como prática de automedicação tem sido abandonado, devido aos efeitos colaterais, ao seu custo e à ausência de orientação. A violência física e psicológica por parte do companheiro apresentou-se como forma de expressão do domínio masculino sobre o corpo da mulher.
As precárias condições sócioeconômicas e a baixa qualidade dos serviços públicos de saúde em planejamento familiar foram fatores que, juntos, dificultaram e até mesmo impediram as mulheres de realizarem o planejamento familiar, e também fizeram da esterilização cirúrgica o método preferido delas.
Os serviços de planejamento familiar, como preconizados pelo Programa de Assistência Integral a Saúde da Mulher (PAISM), "não funcionam devidamente, restringindo-se, quando muito, à oferta de contraceptivos sem qualquer avaliação"(20:66).
Apesar da laqueadura tubária ser um método irreversível e contribuir para a elevação dos índices de cesarianas, podendo levar ao aumento da mortalidade materna, ainda-se constitui um método de escolha, pela falta de opção, daquelas mulheres que vivem num contexto socioeconômico desfavorável e que não desejam ter mais filhos.
Às mulheres que estão inseridas nesse contexto sócioeconômico e cultural desfavorável faltam meios e opções, principalmente, pelo pouco acesso às informações e aos métodos contraceptivos existentes, para decidirem sobre seu corpo e sua vida reprodutiva, o que contribuiu para não exercerem seus direitos reprodutivos.
REFERÊNCIAS
1. Penha LHG. Direitos reprodutivos x saúde reprodutiva. In: Direitos reprodutivos: a enfermagem e a questão do aborto. Rio de Janeiro (RJ); 2001. p. 37. Série Textos Comentados, 1.
2. Saffioti HJB. Rearticulando gênero e classe social. In: Costa AO, Buschini C, organizadores. Uma questão de gênero. Rio de Janeiro(RJ): Rosa dos Tempos; 1992. p.187-90.
3. Xavier IM. Cidadania, gênero e saúde: a mulher e o enfrentamento da AIDS. Rev Enferm UERJ 1996; ed extra: 89-100.
4. Louro GL. Nas redes do conceito de gênero. In: Lopes MJM, Meyer DE, Waldow VR, organizadores. Gênero & Saúde. Porto Alegre(RS): Artes Médicas; 1996.
5. Nery IS. O aborto provocado e a questão de gênero: mulheres em evidências e as evidências das mulheres para as bases da assistência de enfermagem [tese de doutorado]. Rio de Janeiro (RJ): Escola de Enfermagem Anna Nery / UFRJ; 2000. p. 31-2.
6. Cahali YS, organizador. Constituição Federal, Código Cível, Código de Processo Civil. 2ªed. São Paulo (SP): Revistas dos Tribunais; 2000.
7. BEMFAM - Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar no Brasil. Como planejar a família. São Paulo (SP): Abril Cultural;1987.
8. Minayo MCS et al. Pesquisa social: teoria e criatividade. 8ªed. Petrópolis (RJ): Vozes; 1994. p.22.
9. Beartux D. Lappoche biographique: as validité méthodologique ses potentiatés. Cah Inter Sociol 1980; 69.
10. Glat, R. Somos iguais a vocês: depoimentos de mulheres com deficiência mental. Rio de Janeiro (RJ): Agir; 1989.
11. Ribeiro MGM, Santos RS. O método "história de vida" e seu uso em pesquisa de enfermagem com gestantes HIV positivo. Esc Anna Nery Rev Enferm 2000 abr;4(1):47-54.
12. Fúndes A. Estado atual e perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil. Jornal FEBRASGO - Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia 1999 jul;6(6):4- 5.
13. Ministério da Saúde(BR). Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília (DF); 2001.
14. Mandú DNT. Adolescência: Saúde, sexualidade e reprodução. In: Ramos FRS. Adolescer: compreender, atuar, acolher: Projeto Acolher. Brasília (DF): ABEn; 2001
15. Tanaka ACA. Mortalidade Materna. In: Rede Nacional Feminista de Direitos Reprodutivos. Saúde da mulher e direitos reprodutivos. Dossiês. São Paulo (SP); 2001.
16. Sorrentino SR. Aborto Inseguro. In: Rede Nacional Feminista de Direitos Reprodutivos. Saúde da mulher e direitos reprodutivos: Dossiês. São Paulo (SP); 2001.
17. Fonseca RMGS. Espaço e gênero na compreensão do processo saúdedoença da mulher brasileira. Rev Latino-Am Enfermagem 1997 jan;5:9-11.
18. Grossi PK. Violência contra a mulher: implicações para os profissionais de saúde. In: Lopes MJM, Meyer DE, Waldow VR, organizadores. Gênero & Saúde. Porto Alegre (RS): Artes Médicas;1996. p.136.
19. Costa AM, Guimarães M do CL. Saúde é assunto para mulheres: controle social uma questão de cidadania. REDESAÚDE; 2000.
20. Mandú DNT. Políticas de atenção à saúde da mulher no contexto brasileiro. Rev Baiana Enferm 1997 abr out,10(1/2):57-70.
Recebido em 16/05/2003
Reapresentado em 19/08/2004
Aprovado em 03/09/2004