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CAPES

Volume 9, Número 2, Abr/Jun - 2005

ARTIGOS DE REFLEXÃO

 

Cultura - cultura organizacional: uma análise com enfoque na produção científica da enfermagem

 

Culture - Organizational culture: an analysis approaching the scientific production of nursing

 

Cultura - Cultura organizacional: un análisis con enfoque en la producción científica de la enfermería

 

 

Adelina Giacomelli ProchnowI; Joséte Luzia LeiteII; Vânia Fighera OlivoIII

IUniversidade Federal de Santa Maria - Santa Maria - RS e-mail: agp.sma@terra.com.br
IIEscola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ - Rio de Janeiro - RJ
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - Porto Alegre - RS

 

 


RESUMO

Este estudo pretendeu realizar uma discussão crítico-reflexiva da produção científica da enfermagem nas temáticas cultura e cultura organizacional, a partir das dissertações e das teses arroladas no catálogo do Centro de Estudos e Pesquisas em Enfermagem, no período de 1979 a 2000, visto a necessidade de identificar a abordagem cultural vigente nos estudos da práxis em enfermagem. Adotou-se como base epistemológica referenciais da antropologia e da administração. Detectou-se que a produção científica busca contribuir no processo de (re)significação do exercício do trabalho em enfermagem, situando-se numa fase de transição da racionalidade instrumental para a racionalidade substantiva, evocando o caráter interdisciplinar. Conclui-se que há relevância de assumir-se uma postura crítica com habilidade de raciocínio e deliberação sobre as escolhas, sob um conjunto de valores, em busca de compreender a pluralidade de tais dimensões para sedimentação e apropriação da enfermagem.

Palavras-chave: Enfermagem. Cultura. Cultura Organizacional. Pesquisa


ABSTRACT

This study intends to accomplish a critical-reflexive discussion of nurse's scientific production at the themes culture and organizational culture, from the dissertations and thesis in the catalog of the Centro de Estudos e Pesquisas em Enfermagem (Center of Studies and Researches on Nursing) at the period between 1979 and 2000, due to the necessity to identify the cultural approach present on the studies of the praxis on nursing. We have adopted as epistemological basis anthropological and administrational references. We have detected that the scientific production searches to contribute to the process of (re)signification of the practice of nursing work, placed at a stage of transition from the instrumental rationality to a substantive rationality, evoking the interdisciplinary character. We have concluded that there are relevance on assuming a critical posture with the ability of reasoning and deliberating on the choices, under a group of values searching to comprehend the plurality of theses dimensions for the sedimentation and appropriation of nursing.

Keywords: Nursing. Culture. Organizational Culture. Research


RESUMEN

Este estudio realizó una discusión critico-reflexiva de la producción científica de la enfermería en las temáticas cultura y cultura organizacional, a partir de las disertaciones y de las tesis listadas en el catálogo del Centro de Estudios y Pesquisas en Enfermagem, en el período de 1979 a 2000, debido a la necesidad de identificar el enfoque cultural vigente en los estudios de la praxis en enfermería. Se adoptó como base epistemológica referenciales de la antropología y de la administración. Se detectó que la producción científica busca contribuir en el proceso de (re)significación del ejercicio del trabajo en enfermería, situándose en una fase de transición de la racionalidad instrumental para la racionalidad substantiva, evocando el carácter interdisciplinario. Se concluyó que existe relevancia de asumirse una postura crítica con habilidad de raciocinio y deliberación acerca de las elecciones, bajo un conjunto de valores, buscando comprender la pluralidad de tales dimensiones para sedimentación y apropiación de la enfermería.

Palabras clave: Enfermería. Cultura. Cultura Organizacional. Pesquisa.


 

 

INTRODUÇÃO

As pesquisas sobre cultura vêm ganhando espaço nos estudos organizacionais, pelo menos há 20 anos. Apesar do aumento significativo dos estudos brasileiros no campo da saúde que endereçam o tema da cultura, a partir da década de 90 do século passado, ainda são poucos os que realizam análise sobre as organizações com base nas raízes, na formação e na evolução dos traços da cultura profissional em enfermagem. Não são muitos os pesquisadores que têm focalizado seus trabalhos para entender a aproximação entre as concepções gerais da cultura e a cultura organizacional diante das manifestações de sua diversidade no espaço organizacional da enfermagem nacional. Considerando a relevância dessa problemática, este artigo tem como objetivo identificar a abordagem cultural vigente nos estudos da práxis em enfermagem, no intuito de clarificar a temática para novos estudos e legitimá-la como constructo epistemológico.

O termo cultura aqui conota um imenso guarda-chuva sob o qual são abrigados variados fenômenos. Há tantos conceitos quanto usos necessários para eles, e nenhum deles jamais será o conceito certo, em termos absolutos. O conceito, como esses exemplos indicam, delimita o recorte epistemológico no qual um determinado sujeito irá trabalhar e, muitas vezes, inclui, em si, um juízo de valor que orienta a ação(1).

Quando falamos de cultura organizacional, o problema fundamental não é só reescrever o conceito de cultura ou de organização, mas conseguir identificar as inúmeras possibilidades de investigação para esse tipo de abordagem cujos conhecimentos são acumulados da antropologia, da psicologia, da sociologia e da administração. Todos ligados entre si, em uma intrincada rede interdisciplinar, com pontes epistemológicas ainda por serem reconhecidas e construídas. Nesse sentido, é pertinente apresentarmos as seguintes questões norteadoras: Até que ponto as pesquisas sobre cultura em enfermagem, no campo das organizações de saúde, abordam como as interfaces epistemológicas operam sobre suas ações? Até que ponto os pesquisadores estão conscientes de que seus objetos de estudo implicam nas formas de organização social do processo de trabalho? Até que ponto há preocupação em investigar o tipo de racionalidade (instrumental ou substantiva) que orienta a ação e sinaliza a cultura vigente? Até que ponto os pesquisadores reconhecem, em suas ações, suas formas próprias de dominação, ou ainda, como as pesquisas que envolvem cultura-cultura organizacional tratam desses processos, a fim de contribuir para o entendimento dos fenômenos organizacionais que interferem nas modalidades de atenção à saúde?

Este artigo é composto por uma introdução e quatro seções. Na primeira seção, fazemos uma breve revisão da cultura- cultura organizacional, com o intuito de subsidiar a análise dos dados. Na segunda, descrevemos a situação em estudo e destacamos os aspectos metodológicos e a apresentação dos resultados da pesquisa. Na terceira, focalizamos a interface entre a cultura e o exercício da enfermagem; nela desenvolvemos uma discussão crítico-reflexiva dos achados das dissertações e das teses. Na última seção, apresentamos as conclusões do estudo.

 

CULTURA - CULTURA ORGANIZACIONAL

A cultura tem sido objeto central de estudo da antropologia e da sociologia há muitas décadas. A partir dos pressupostos antropológicos, ela é caracterizada por um conjunto comum de idéias que são trabalhadas continuamente de maneira imaginativa, sistemática, explicável, mas não previsível. Desse modo, a dinamicidade é essencial(2).

Há várias definições de cultura que consideram as diferentes fases evolutivas apresentadas por antropólogos. Ressaltamos aqui as que marcaram época. Inicialmente, considerada a mais antiga, aparece a definição de Tylor, de 1871: "Cultura é um complexo formado por conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes e toda e qualquer capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade"(3,4). A seguir, destacamos a de Keesing, e para este autor "A cultura compreende sistemas de idéias compartilhadas, sistemas de conceitos, regras e significados que modelam e são expressos nas formas como os humanos vivem"(p.22)(3). Por último, aparece a de Geertz, com uma base epistemológica complexa e coerente com o viver humano na sociedade. O citado autor assim conceitua cultura como:

um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida (p.66)(1).

Tais conceitos referem-se a teorias consideradas idealistas de cultura, sob diferentes abordagens, ou seja, como um sistema cognitivo; como sistemas estruturais (fase que destaca a perspectiva de Lévi-Strauss) e como sistemas simbólicos (evidencia a concepção de Geertz)(4). Assim, percebemos que a discussão permanece interminável, vale dizer, como a cultura é dinâmica e pública, o significado também o é; portanto, a compreensão da própria natureza do homem é algo inesgotável de reflexão(1,4).

O reconhecimento desses aspectos simbólicos, como sistemas organizados desencadeiam uma vertente de investigações em diferentes áreas do conhecimento, incluindo aí o campo da administração. Estudos da cultura organizacional emergem a partir dos anos 70, quando iniciam interfaces com outras áreas do conhecimento; no entanto, somente nos anos 80, eles passam a assumir mecanismos de ordem interdisciplinar, o que possibilita uma visão emergente da coesão social que enfatiza idéias comuns, valores e formas de pensar, apesar de as práticas atuais estarem longe dessas origens em tempo e conteúdo(5,6,7).

Considerado um autor clássico, Edgar Schein, fundador do campo da psicologia organizacional nos estudos da administração, consta como referência obrigatória para a área. Citado na maioria dos trabalhos sobre o tema, ele exerce uma influência marcante em quase todos os trabalhos referentes à cultura organizacional. Para esse autor

Cultura é um padrão de pressupostos básicos compartilhados que o grupo aprendeu conforme resolvia seus problemas de adaptação externa e integração interna, e que funcionou bem o suficiente para ser considerado válido e, portanto, ser ensinado aos novos membros como uma maneira correta de perceber, pensar e sentir em relação a esses problemas (p.12)(8).

Analisando este conceito, percebemos que Schein recai em contradições significativas do ponto de vista antropológico, pois ele destaca que, na essência, a cultura é aprendida e compartilhada. Nela, segundo o autor, as pessoas baseiam seu comportamento diário, já que ela adiciona significado e previsibilidade (consenso) ao dia-a-dia e denota estabilidade(7,9) ao que é extremamente dinâmico e complexo. Em contraposição, uma linha de autores críticos salienta que a visão antropológica da cultura "é melhor vista não como complexos de padrões concretos de comportamento, mas como um conjunto de mecanismos de controle" (p. 32)(1). Tal linha defende uma ampliação da participação no processo de construção do universo simbólico, que proporcione voz à coletividade no processo de definição da identidade, nas práticas administrativas, nas relações de poder entre as categorias e nas condições de trabalho(10). Nessa vertente, surgiram vários estudos que tratam a organização como uma expressão simbólica(11,12), enquanto outros chamaram atenção para o gerenciamento do simbolismo organizacional - lendas, estórias, mitos e cerimônias(13).

Ao contrário de Schein, Geertz percebe cultura como, fundamentalmente (se escolhemos analisá-la por um recorte epistemológico voltado para estudar a estrutura lógica da ação), uma hierarquia estratificada de estruturas significantes em torno das quais a ação humana é produzida, percebida e interpretada, ou seja, o estudo da cultura é uma busca por estruturas de significação, que determinam, ao mesmo tempo, sua base social e sua importância. Assim, entendemos que este seja um bom ponto de partida para desatar o nó: cultura é menos sinônimo de sentimentos, valores ou crenças partilhados, mais formas compartilhadas de perceber a realidade, de acordo com esses valores e as crenças individuais, ou melhor, conforme eles podem ser compreendidos.

Ao tratar da cultura organizacional, não podemos deixar de mencionar que os princípios básicos que norteiam cada área de conhecimento são essenciais; portanto, deve ser respeitada a legitimidade do saber específico, tendo em vista a cultura como elemento propulsor da superação do comportamento social.

 

A SITUAÇÃO EM ESTUDO

Em função do objetivo deste estudo que se propõe identificar a abordagem cultural vigente nos estudos da práxis em enfermagem, optamos, como fonte de dados, pela seleção das dissertações e das teses defendidas cujas temáticas são cultura e cultura organizacional, a partir do catálogo do Centro de Estudos e Pesquisas em Enfermagem (CEPEn)(14), referente ao período de 1979 a 2000, a fim de detectar as especificidades dessa produção científica, que perfaz um total de 27 trabalhos de pesquisa.

Trata-se de uma investigação de natureza exploratória e descritiva, com uma estratégia de pesquisa de cunho qualitativo. Para a coleta e análise dos dados da documentação, utilizamos um instrumento (Anexo 1) no qual registramos o tipo de trabalho (tese/dissertação), origem, data, autoria, título da obra, unitermos, resumo de informações pertinentes ao tema cultura e cultura organizacional (ligações e significado de expressões, área específica de desenvolvimento do estudo, método utilizado).

Apesar de não analisarmos os trabalhos na sua integralidade, optamos propositadamente por esse tipo de fonte por considerá-la fidedigna, já que as informações, mesmo sinópticas, revelam a essência dos trabalhos, conduzem a uma faceta da base conceptual da área e apresentam a abordagem cultural vigente.

Nos achados das teses e dissertações, verificamos 26 estudos sobre o tema cultura e apenas um na temática cultura organizacional. Em relação aos primeiros, eles se situam na década de 90, com exceção de um que foi produzido em 1988. Observamos uma produção de dois a quatro trabalhos por ano, com exceção de 1998, ano em que foram produzidos sete trabalhos na classificação dessa temática. Constam 19 trabalhos em nível de mestrado e sete de doutorado, advindos, predominantemente, das universidades de São Paulo (cinco: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto e seis: Universidade de São Paulo), seguidos da Universidade Federal do Ceará e da Universidade de Santa Catarina. Neles, há prevalência de abordagem para as áreas da saúde da mulher (nove) e saúde do adulto (sete).

22 estudos, desenvolvidos com metodologia qualitativa, apresentam uso relevante do método etnográfico, com coleta de dados baseada em observação participante, entrevista e prática assistencial. Como base teórica de sustentação, aparecem tanto a Teoria da Diversidade e Universalidade do Cuidado Cultural de Leininger (teoria da área da enfermagem), com seis estudos, quanto a Teoria das Representações Sociais com cinco estudos; já os demais trabalhos trazem abordagem cultural de forma ampla com afinco ao conceito de cultura com balizamento antropológico.

Sobre o tema cultura organizacional, consta apenas um trabalho de dissertação de mestrado, do ano de 1994, realizado no Estado de São Paulo, com o objetivo de refletir sobre o manancial dos dados e edificar a construção do conhecimento, que focaliza a interação do processo de trabalho/cultura institucional na prática docente da enfermagem.

Os estudos foram desenvolvidos em diferentes enfoques, ou seja, sobre a prática assistencial da enfermagem ou sobre o enfoque histórico-cultural: fatores e padrões culturais, contexto cultural, aproximação com a Teoria de Enfermagem de Leininger da Universalidade/Diversidade do Cuidado Cultural; interface entre enfermagem e cultura; interação do processo de trabalho/cultura institucional; imagem cultural da enfermagem.

A análise interpretativa dos dados está agrupada nas unidades abaixo, de forma a fundamentar o objetivo deste estudo e a responder as questões norteadoras apresentadas na introdução.

 

A INTERFACE ENTRE A CULTURA E O EXERCÍCIO DA ENFERMAGEM

Os estudos da enfermagem, no Brasil, sofreram um redirecionamento de suas diretrizes sob a influência dos foros de discussão, de planejamento e de implementação de decisões em recursos humanos. Estes são conseqüentes não só da repercussão da VIII Conferência Nacional de Saúde e da I Conferência Nacional de Recursos Humanos em Saúde, em 1986, mas também da promulgação da Constituição Federal do Brasil, em 1988, cujos resultados ficaram evidenciados nas competências do Sistema Único de Saúde (SUS), vale entender, registrados pela formação de recursos humanos na saúde e pela Lei Orgânica da Saúde - 8080, em 1990(15,16).

Especificamente no campo da enfermagem, a década de 90 caracteriza-se por ser um tempo marcado pela crítica radicalizada, pela completa ruptura com a cultura humanistica clássica, pela globalização e seus efeitos, pelo rápido desenvolvimento científico e cultural que alterou o poderio do homem e a necessidade de revisão contínua do exercício profissional. Salientam-se, nesse cenário, a fragilidade das relações dos serviços, com as questões de recursos humanos no processo da Reforma do Estado.

Nessa ótica, estão implícitas questões históricas, sociais, políticas, econômicas e ambientais, inerentes ao contexto particular em que ocorreram, sendo impossível isolar crenças culturais e comportamentos sem observar a conjuntura. Assim, a cultura assume papel importantíssimo nas pesquisas em enfermagem, visto que visa valorizar o contexto, influenciada por múltiplos fatores de vivência pessoal, grupal ou organizacional.

A produção científica em enfermagem, analisada, retrata que seu exercício profissional têm vivenciado exigências de inovações teórico-práticas. Tais exigências resultam da disseminação globalizante dos processos de desenvolvimento econômico, social, político e cultural, que dita as formas de agir em saúde. Nesse horizonte, a abordagem cultural busca contribuir no processo de (re)significação, ou seja, dirige o foco para o capital humano na sua inteireza. Entretanto, apesar dos esforços constatados nessas produções científicas, percebemos que os profissionais da área de saúde ainda permanecem enclausurados em uma visão pragmática, norteada sob a égide do paradigma funcionalista. Na perspectiva paradigmática pós-moderna, em que o processo de construção - desconstrução - reconstrução é dinâmico, urge a socialização de uma consciência de novas formas de saber-fazer em enfermagem, que viabilize a (co)responsabilização nos processos de mudança na saúde. Os discursos, contidos nas pesquisas, demonstram desejo de superação dessas ações para que haja valorização da flexibilidade, dinamicidade, criatividade e, também, para que haja uma participação político-cidadã mais abrangente.

Acreditamos que o crescente interesse detectado nas teses e nas dissertações analisadas, sobre a temática em voga, tem correlação com a procura de respostas pelos enfermeiros para problemas práticos, que foram identificados em decorrência do processo de quebra da uniformidade e da coesão dos padrões culturais. Isso evidencia que os estudos da cultura surgem como subsídios para a compreensão dos problemas identificados no exercício de trabalho da enfermagem. Ao considerar o ser humano na sua inteireza e valorizar suas diversas dimensões (sob um mesmo valor), o profissional alcança uma prática crítica, inovadora, provavelmente mais equilibrada.

Podemos inferir que cultura é um contexto(1), por conseguinte não deve ser analisada num vácuo, mas compreendida como componente de um complexo de influências que se refere ao que as pessoas acreditam e ao modo como vivem(10), o que demonstra a relevância da temática. Nesses termos, não podemos esquecer que os estudos sobre cultura não são apenas formas de perceber, mas também de atuar sobre a realidade.

Vale ressaltar que, muito recentemente, "as organizações passaram a ser vistas a partir de uma pluralidade de campos do conhecimento humano, como um sistema a uma só vez cultural, simbólico e imaginário"(p.21)(7). Compartilhando com essa idéia, entendemos que as transformações impostas na atualidade não advêm somente das exigências de cunho administrativo e de mercado.

Diante dessa exposição, verificamos que o tipo de racionalidade que orienta os estudos analisados situa-se numa fase de transição da lógica instrumental para a substantiva sob a abordagem crítico-reflexiva. Os estudos retratam a inserção do processo saúde-doença, com amplitude de sua abrangência, em interfaces correlacionadas a áreas como psicologia, sociologia, administração e antropologia. É possível notar que os métodos de investigação adotados pelos pesquisadores, seguem preferencialmente os preceitos da antropologia com a finalidade de descobrir o significado das condutas, das práticas, das formas simbólicas, dos ritos e dos processos de socialização junto aos grupos envolvidos.

Conforme percebemos, os dados coletados amparam a legitimidade da associação da cultura ao sistema de cuidar em enfermagem, porém denotamos certa fragilidade diante dessa associação aos estudos organizacionais, haja vista o pequeno número de pesquisas nessa temática - uma vez que foi encontrada apenas uma dissertação. Tal dado é um elemento revelador de reflexão, diante da importância que a compreensão da cultura organizacional detém no desvelamento do processo de gerenciamento do cuidado, já que tais questões estão, inevitavelmente, ligadas à dinâmica organizacional, portanto merecedoras de reflexões referentes ao déficit de estudos nessa área.

É pertinente questionar: Até que ponto os avanços dos estudos sobre cultura são viabilizados no exercício da enfermagem nas instituições? Os profissionais reconhecem as formas de dominação que se encontram no cotidiano de trabalho? Como é possível perceber as limitações dos discursos naturalizados, que balizam e esvaziam os avanços nas atividades profissionais? Como é possível enfrentar as limitações impostas pelo sistema hegemônico nas ações profissionais?

Entendemos que a dificuldade de efetivação das respostas às interrogações revelam a inserção do trabalho desenvolvido e pautado em modelos teóricos inseridos numa racionalidade instrumental(17).

A cultura organizacional brasileira ainda tende a reproduzir modelos de gestão e de gerência articulados de forma sistêmica, permeados por uma lógica personalista e autoritária. Tal modelo funciona por meio do formalismo, como estratégia de disciplinamento do corpo social, que é flexibilizado pelas considerações de ordem pessoal. Vale entender, há tendências muito marcantes no exercício do poder, em moldes paternalistas e personalistas, que premiam não a busca de novas soluções e alternativas no processo de trabalho, mas a pró-atividade, que assume a característica de ser uma antecipação dos desejos da liderança. Nesse contexto, é negado tanto o poder de fala à base da pirâmide organizacional quanto o significado das suas expressões simbólicas. Essa tendência, ao ser somada ou sobreposta aos princípios da administração científica de Taylor, ordenou, durante anos, formas de autoritarismo bastante perversas e destruidoras da capacidade de transformação das instituições(18).

Em função disso, há um desperdício de capital humano, uma vez que não há canais de participação disponíveis para a maior parte dos membros da organização. Estes, por sua vez, por fazerem parte dessa mesma cultura, não chamam para si a responsabilidade de atuar e não percebem como contribuem para a reprodução do mesmo modelo(19).

Tal tendência se reproduz nas organizações de enfermagem. Embora muito dominante, ela não é determinante, pois existem alguns exemplos de estudos que sinalizam dinâmicas com capacidade de atuar como agentes de mudança, enquanto outras permanecem estagnadas ou perecem. Partimos do pressuposto que o aumento de estudos na área da cultura organizacional pode contribuir com a recontextualização local dessas tendências, em nível de relações interpessoais, capacidade de redirecionamento da percepção da realidade, que possa viabilizar ou não formas alternativas de ação na perspectiva de um gerenciamento desalienante, mesmo impregnadas da lógica da cultura nacional.

Optar por uma perspectiva pós-industrial significa não ultrapassar o conteúdo das idéias de herança clássica, significa considerá-las com respeito, como processo evolutivo.

Delineia-se, ante as divergências apontadas, a evidência de um emergir para uma sociedade destradicionalizada, bastante diferente da etapa clássica. Acreditamos ser de grande valor reconhecer os pontos conflituosos e refletir neles as aspirações profissionais, para tentar adequar as possibilidades teóricas e metodológicas aos estudos direcionados à enfermagem.

 

CONCLUSÕES

As reflexões dos estudos sobre a abordagem cultural vigente na práxis em enfermagem evidenciam que os enfermeiros têm focalizado suas pesquisas na perspectiva de mudanças paradigmáticas; nelas, eles exercitam a habilidade de raciocinar e deliberar sobre suas escolhas, segundo seus próprios conjuntos de metas e valores, para acoplarem-se ao saber próprio de cada área de conhecimento com respeito.

É possível reconhecer que os contextos culturais são determinantes na ênfase de alguns valores, porém eles podem receber significados diferentes em diferentes circunstâncias (20). Tais idéias mostram-se condizentes com as concepções atuais da antropologia e evidenciam que os valores podem se atualizar de acordo com os parâmetros previstos, o que leva as leituras diferenciadas do contexto (21).

O inter-relacionamento da temática cultura-cultura organizacional, sob diferentes abordagens, ressalta a relevância de assumirmos uma postura crítica, em busca de compreender tal temática na pluralidade de suas dimensões, a fim de que haja uma sedimentação dessas idéias, para serem adequadamente apropriadas pela enfermagem. Diante do embasamento epistemológico de caráter interdisciplinar, as pesquisas sobre o tema têm sido obstaculizadas, em virtude das peculiaridades das diferentes áreas de conhecimento necessárias ao desenvolvimento desses estudos. As causas dessa tendência precisam ser reconhecidas, para que tais barreiras sejam superadas.

Finalizando, acreditamos que concentrar energia em busca de compreensão, instrumentalização e adequação da temática em voga, nos pressupostos da administração, da antropologia e da enfermagem, possa incentivar visões cujo horizonte seja inovador do próprio conhecimento pessoal e organizacional, que deve ser associado ao trabalho interdisciplinar, ao reconhecimento das capacidades e das limitações, de modo a fornecer sustentação, como realidade concreta.

 

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Recebido em 26/04/2004
Reapresentado em 10/05/2005
Aprovado em 30/05/2005

 

 

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