Volume 17, Número 4, Set/Dez - 2013
PESQUISA
A integralidade do cuidado ao recém-nascido: articulações
da gestão, ensino e assistência
Elysângela Dittz Duarte
1
Roseni Rosângela de Sena
2
Erika da Silva Dittz
3
Tatiana Silva Tavares
4
Paloma Morais Silva
5
Cynthia Marcia Romano Faria Walty
6
1
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG,
Brasil
2
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG,
Brasil
3
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG,
Brasil
4
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG,
Brasil
5
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG,
Brasil
6
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG,
Brasil
Recebido em 27/02/2013
Reapresentado em 12/07/2013
Aprovado em 22/07/2013
Autor correspondente:
Paloma Morais Silva
E-mail:
palomamorais@ymail.com
RESUMO
O objetivo deste estudo foi apreender as práticas de integralidade reveladas nos
âmbitos da gestão, da assistência e da formação a partir dos cuidados prestados ao
recém-nascido internado na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal.
MÉTODOS:
Estudo qualitativo com abordagem dialética. Os dados foram coletados por meio da
observação participante e de entrevista com gestores, docentes e discentes, sendo
analisados pela técnica de Análise de Conteúdo Temática.
RESULTADOS:
Evidenciaram-se práticas de gestores e profissionais que contribuem para a
integralidade do cuidado ao neonato, tais como a descentralização das ações de
gestão, a tomada de decisão em conjunto com os profissionais, o incentivo ao
trabalho em equipe e a valorização da família. Foi apontada a integração dos
profissionais do serviço no processo de ensino-aprendizagem como estratégia para
uma formação norteada pela integralidade.
CONCLUSÃO:
Verifica-se a necessidade de articulação entre gestão, assistência e formação
para a construção de um cuidado pautado na integralidade.
Palavras-chave: Unidades de Terapia Intensiva Neonatal; Recém-nascido; Assistência integral à saúde.
INTRODUÇÃO
Independente dos sentidos e significados atribuídos à integralidade no campo da saúde, podemos considerar que ela é construída cotidianamente quando o nosso olhar sobre o outro não o coloca nos limites de alguém que traz consigo uma condição geradora de sofrimento. A possibilidade desse novo olhar é cada vez mais alargada na medida em que a relação estabelecida entre os usuários e os profissionais de saúde não prescinde dos aspectos subjetivos e objetivos que devem compor este encontro, abrindo possibilidades para que seja construída a integralidade.
Portanto, se tomamos o contexto do cuidado ao recém-nascido, objeto deste estudo, a assistência não deve se limitar apenas à finalidade de prolongamento da vida, mas considerar também a necessidade de construção e de fortalecimento do vínculo entre recém-nascido, família e profissionais de saúde. Esse tem sido um esforço que pode ser identificado nas atuais políticas e programas que se destinam à saúde materna e infantil.
Isso sinaliza para outro aspecto a ser discutido para a construção da integralidade que se refere à sua relação com as ações de gestão, onde ela deve se constituir no princípio norteador no nível macro das políticas de saúde formuladas pelo Estado, na gestão da saúde, em diferentes níveis de atenção, alcançando a dimensão cuidadora, na qual são articuladas e desenvolvidas as práticas dos profissionais na atenção à saúde dos indivíduos1.
Por último, mas não menos importante, a atenção integral requer reconstruir e reorganizar o cuidado em saúde, utilizando-se de trabalhadores qualificados para isso2. Portanto, há que se considerar que modelos de atenção que valorizem, dentre outras, a integralidade, demandam sua inclusão ainda durante a formação dos profissionais de saúde3.
Sinalizamos até aqui a impor tância de que a discussão acerca da integralidade em saúde seja feita considerando diferentes dimensões que podem interferir em sua materialização nos serviços de saúde, quais sejam: a prática dos profissionais no processo de cuidado, as ações de gestão dos serviços de saúde e a formação dos profissionais. Sabendo-se que essas dimensões são norteadoras da forma de se produzir o trabalho em saúde orientado pela integralidade, como são organizadas e operadas no contexto dos serviços de saúde?
A partir deste questionamento, o objetivo deste estudo foi apreender as práticas de integralidade reveladas nos âmbitos da gestão, da assistência e da formação a partir dos cuidados prestados ao recém-nascido internado na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) de uma instituição filantrópica localizada em Belo Horizonte, Minas Gerais.
METODOLOGIA
Realizou-se uma pesquisa de abordagem qualitativa, orientada pelo referencial teórico-metodológico da dialética, considerando o processo histórico em seu movimento, provisoriedade e transformação.
O cenário deste estudo foi um hospital filantrópico, situado no município de Belo Horizonte, Minas Gerais, especializado na assistência à saúde da mulher e do recémnascido, que tem como missão oferecer aos usuários uma assistência orientada pela integralidade. Possui 91 leitos para o atendimento ao recém-nascido de alto risco, sendo que, destes, 41 são de terapia intensiva neonatal e encontram-se distribuídos em quatro unidades. Pela sua capacidade de atendimento e qualidade do cuidado oferecido ao recém-nascido e família, esta instituição é referência na assistência neonatal para o Estado.
Os sujeitos foram gestores e profissionais da UTIN, familiares de neonatos internados, além de docentes e discentes de instituições de ensino superior que desenvolviam atividades no cenário de estudo.
A coleta de dados foi realizada por meio de observação participante na UTIN e de entrevista orientada por roteiro semiestruturado, tendo-se utilizado simultaneamente as duas técnicas. A inserção em campo ocorreu no período de janeiro de 2009 a março de 2010, foi realizada por pesquisadores com formação na área de saúde acompanhados de bolsistas de iniciação científica que cursavam graduação em enfermagem. Todos da equipe de pesquisa participaram de oficinas para discussão teórica, prática e ética sobre os métodos. Essas oficinas visavam, sobretudo, garantir que os pesquisadores compartilhassem o mesmo entendimento acerca da condução da observação, do que deveria ser observado e como registrar situações observadas.
A observação, procedimento central de coleta de dados desta pesquisa, consistiu na inserção dos pesquisadores no cotidiano na UTIN, acompanhando as ações e interações dos sujeitos em situações de cuidado. Esse procedimento permitiu apreender a realidade da UTIN a partir da ocorrência do cuidado. As observações foram realizadas pelos pesquisadores, individualmente ou em dupla, em dias e horários diferenciados na UTIN, buscando-se abranger a diversidade das situações de cuidado.
No total, as observações duraram aproximadamente 25 horas e foram orientadas por um roteiro semiestruturado que contemplava situações de cuidado, como passagem de notícias entre profissionais, admissão ou alta do neonato, situação de intercorrência ou óbito, primeiro contato dos pais na unidade neonatal, participação dos pais na UTIN, visitas ao recém-nascido e procedimentos. O grau de participação variou de acordo com o envolvimento de cada pesquisador com os indivíduos e atividades que observou. Foi definido que o pesquisador apenas interviria no curso da situação observada se existisse risco para o recém-nascido ou seus familiares. Os registros das observações foram realizados pelos pesquisadores em um diário de campo durante ou imediatamente após a coleta de dados, abrangendo: data e horário, descrição do ambiente e sujeitos, relato dos acontecimentos, das ações dos sujeitos, relações estabelecidas e percepções do pesquisador. Foram realizadas avaliações semanais dos registros até que fossem identificadas repetições nas observações, sinalizando para a interrupção das observações visto que os dados coletados não modificariam a realidade apreendida.
A partir da inserção em campo para realizar as observações, foram definidos os sujeitos a serem entrevistados. Para as 12 entrevistas utilizaram-se roteiros semiestruturados específicos para cada grupo de sujeitos: 1) 01 estudante de graduação e 01 de pós-graduação, 2) 02 docentes e 02 profissionais inseridos nas UTIN, 3) 03 coordenadores de estágios da instituição de ensino à qual o aluno está vinculado, 4) 03 coordenadores do serviço de saúde e da UTIN. A análise dos dados foi realizada a partir da técnica de análise de conteúdo, modalidade temática, que busca os significados manifestos e latentes no material empírico4. As entrevistas foram transcritas e codificadas, o que também foi realizado com os registros da observação participante. Procedeu-se uma leitura geral dos dados coletados por meio das entrevistas e das observações, seguida de uma leitura aprofundada, retomando os objetivos do estudo. Realizaram-se a identificação dos temas mais recorrentes e relevantes e o recorte dos trechos. A partir disso, os temas foram agrupados dando origem a três categorias empíricas: A integralidade na gestão de serviços de saúde no cuidado ao recém-nascido; Sentidos de integralidade na assistência ao recém-nascido; A integralidade do cuidado ao recém-nascido e sua interface com a formação profissional.
Na apresentação dos resultados, os temas são exemplificados com trechos dos depoimentos dos participantes e trechos do diário de campo, codificados com as letras CE, quando se trata de discurso de coordenador de enfermagem da UTIN; P, de profissionais do serviço de saúde; RE, de responsável pela instituição de ensino; RS, de responsável pelo estágio no serviço; CS, de coordenador da UTIN no serviço de saúde; e Ob quando se trata de trechos retirados do diário de campo, seguidos de um número de codificação do banco de dados.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (Parecer 503/07) e do cenário da pesquisa e respeitou as determinações da Resolução 196/96 do Ministério da Saúde5.
RESULTADOS
A análise dos dados obtidos nas entrevistas e observações permitiu captar ações que limitam ou que favorecem a integralidade do cuidado ao recém-nascido nos âmbitos da gestão, assistência e ensino. Nos resultados, esses aspectos estão apresentados separadamente para facilitar sua identificação e compreensão; contudo há que se considerar sua inter-relação e influência mútua.
A integralidade na gestão de serviços de saúde no cuidado ao recém-nascido
A análise dos dados permitiu apreender práticas dos gestores que contribuem para a integralidade do cuidado ao neonato na UTIN, tais como a descentralização das ações de gestão, a tomada de decisão em conjunto com os profissionais, o incentivo ao trabalho em equipe, a valorização da família e a articulação com a rede de serviços de saúde para a continuidade do cuidado.
Na concepção dos coordenadores da unidade neonatal, a descentralização das ações de gestão e a tomada de decisão em conjunto com os profissionais da equipe favorecem as relações interpessoais, pois os profissionais sentem-se valorizados e reconhecidos, como evidenciado no relato:
Eu acho que isso favorece as relações, (...) a pessoa se sente valorizada ao ser procurada para decidir uma coisa do CTI, elas se sentem mais úteis, se sentem mais parte da equipe uma vez que as decisões são tomadas em conjunto. (CE)
O relato do coordenador evidencia que a comunicação com os demais profissionais da unidade possibilita o envolvimento da equipe no processo de tomada de decisão. Destaca ainda a importância de os profissionais trabalharem em equipe para garantir a integralidade do cuidado ao recém-nascido.
Todo neném que chega, logo depois da admissão, tem a equipe de trabalho, a enfermagem, a fisioterapia e o médico, aí vem a psicóloga, ela vai saber qual que é o caso, procura a mãe, (...) aí a gente tem outros profissionais, (...) os profissionais são muito interligados e muito presentes no CTI. (CE)
A partir dos dados coletados, verifica-se que o reconhecimento da importância da mãe junto do filho é um dos fatores determinantes da criação de condições de permanência da mãe na Instituição. Dessa forma, foi adquirida, nas proximidades do Hospital, uma casa que oferece condições de repouso, alimentação e acompanhamento pela equipe multiprofissional. Essa unidade viabiliza a presença da mãe em período integral na Instituição durante a internação do recémnascido na UTIN sendo apontada pelo coordenador como favorecedor para o cuidado integral ao neonato. A importância da família é também evidenciada em seu relato ao afirmar que a atenção integral ao recém-nascido internado na UTIN pressupõe o acolhimento à família e a passagem de informações sobre as condições clínicas do recém-nascido.
Foram identificadas também estratégias de gestão utilizadas para garantir a integralidade do cuidado ao neonato após a alta da UTIN em espaços assistenciais da Instituição ou outros serviços de saúde. Entre tais estratégias são destacados pelo coordenador da neonatologia o preparo da família do recém-nascido para assumir o cuidado no domicílio e o acompanhamento do recém-nascido após a alta hospitalar.
Em relação a este último, o coordenador relata a existência de um serviço destinado ao acompanhamento do crescimento e desenvolvimento do recém-nascido egresso da UTIN da Instituição cenário deste estudo. O acompanhamento do recém-nascido em outros serviços de saúde também é apontado como fundamental para a integralidade do cuidado ao recém-nascido.
Embora tenham sido identificadas, nos relatos do coordenador da neonatologia, tentativas de estabelecer a contrarreferência, foram reveladas dificuldades referentes à articulação entre os diversos pontos de atenção que integram a rede assistencial, ressaltando-se a fragilidade da continuidade do cuidado entre os serviços hospitalares e os de atenção primária à saúde.
A gente entra em contato com os postos de saúde, pede pra fazer o acompanhamento com a Equipe de Saúde da Família. Então a gente manda a criança pra rede, mas a gente sabe que a criança vai ser acompanhada e, ao mesmo tempo a gente pede pra eles voltarem pra gente (...) porque a gente tem muito medo de perder esses meninos. (CS)
A gente quer saber: a criança que saiu daqui do nosso CTI, o que aconteceu com ela? As sequelas, o prognóstico dessas crianças (...) eu falo que o mais importante não é sobreviver, é como sobreviver. (CS)
A integralidade na assistência ao recém-nascido
Os dados permitiram identificar ações de cuidado dirigidas ao recém-nascido que são realizadas pela equipe multiprofissional, com graus variados de interação entre os integrantes da equipe e que buscavam responder às necessidades de cuidado do recém-nascido e de sua família. Mesmo havendo situações que evidenciavam a existência de articulação entre os profissionais para a realização do cuidado, foram também observadas situações em que a organização do processo de trabalho pela equipe na UTIN ficou comprometida.
Evidenciou-se que a comunicação verbal é um disparador de atividades na UTIN, ou seja, é a partir dela que grande parte das ações de cuidado é desencadeada e organizada.
Durante a observação, as técnicas de enfermagem comunicam entre si sobre o que estão fazendo, decidem em conjunto o horário em que sairão para o café, para não deixar o setor descoberto. Observo que os profissionais conversam entre si sobre as atividades que estão sendo realizadas: a fisioterapeuta, após cada aspiração, relata o volume e o aspecto da secreção para a técnica de enfermagem responsável pelo leito; a pediatra confirma com as técnicas de enfermagem as mudanças feitas nas prescrições médicas; a enfermeira e a pediatra conversam sobre os exames solicitados e a necessidade de outros tipos de exames. (Ob-55)
As situações observadas e os relatos dos participantes revelaram que os profissionais utilizavam estratégias favorecedoras do crescimento e do desenvolvimento do recémnascido, dentre as quais se destacaram ações dirigidas à redução de ruídos e de manuseios orientados pelos sinais e respostas do recém-nascido. Por outro lado, as observações permitiram identificar momentos em que as ações dos profissionais estavam centradas na realização de técnicas e procedimentos, desconsiderando as reações e necessidades do recém-nascido.
Foram identificadas situações favorecedoras da participação dos pais no cuidado ao filho na UTIN durante os atendimentos em grupo e por meio da orientação individual realizada a partir de uma demanda do recém-nascido e de seus familiares:
A técnica de enfermagem orienta o pai para que ele tire o papel filme e toque o seu bebê.(...) O pai toca o bebê com as pontas dos dedos. Minutos após a fisioterapeuta chega e orienta o pai a como tocar o bebê. (Ob-42)
Verificou-se que o apoio do companheiro assim como o reconhecimento e o apoio institucional acerca da importância da presença da mãe para a recuperação do recém-nascido também podem ser considerados fatores que facilitam a permanência e a participação das mães no cuidado ao recém-nascido na UTIN. Entretanto, foram identificadas situações que indicam limites à participação da mãe e da família no cuidado ao recém-nascido como a falta de cadeiras na UTIN para os pais; a gravidade e complicações do quadro clínico do recém-nascido; e o desconhecimento dos pais acerca dos equipamentos da UTIN.
Os bebês foram para a UTIN logo após o nascimento, e a mãe relata que ficou assustada. No início, tinha medo quando os aparelhos disparavam, mas os profissionais a tranquilizavam e explicavam o que estava acontecendo. (Ob-64)
O pai dirige-se a mim e pergunta se pode pegar o seu bebê no colo, solicito à técnica de enfermagem que o oriente. Ela responde ao pai que o bebê não pode ir para o colo, pois foi extubado há pouco tempo tempo. (Ob-42)
No que se refere às possibilidades para a continuidade do cuidado do recém-nascido no domicílio, os relatos evidenciam que a família é preparada pela equipe multiprofissional durante a internação do recém-nascido nos diferentes espaços assistenciais da Instituição, sendo que o percurso da criança por esses espaços até a alta hospitalar é determinado por suas condições clínicas e suas necessidades de cuidado.
A Integralidade do cuidado ao recém-nascido e sua interface com a formação profissional
Os dados coletados evidenciaram a existência de um convênio entre a instituição de ensino e o serviço de saúde que formaliza a inserção de alunos nas unidades neonatais e sua participação no cuidado ao recém-nascido internado na UTIN. Identificou-se a existência de contrapartidas financeiras ou de fornecimento de materiais de insumo pelas instituições de ensino, sendo estas propostas avaliadas pela Linha de Ensino e Pesquisa e Diretoria do serviço de saúde.
O instrumento legal estabelecido é um convênio, entre a instituição de ensino e de serviço, em que você tem todas as regras do jogo, o tipo de estágio, alunos, em que setores, se é estágio obrigatório ou não, se vai ter alguma forma de bolsa de estudo de... bolsa de complementação de estudos, e o que a lei estabelece. (RS-1)
No cenário do estudo, as práticas são acompanhadas por docentes que também são profissionais da Instituição ou que já possuíram algum tipo de vínculo profissional que possibilitava um conhecimento do cotidiano institucional. Essa particularidade foi apresentada como capaz de contribuir para o processo de ensino-aprendizagem, uma vez que essa familiaridade com o cotidiano do serviço lhe possibilita, além de atender às demandas do ensino, preservar e propagar os valores institucionais no desenvolvimento da prática.
Os relatos revelam um compromisso institucional com a formação de profissionais para o sistema de saúde; mesmo não sendo credenciada como uma instituição de ensino, busca cumprir a missão de formar recursos humanos.
Apreende-se a busca por promover práticas de ensino que favoreçam a integralidade do cuidado ao recém-nascido, e que, além de utilizarem a teoria existente, no contexto no qual se realiza o cuidado, levam o aluno a refletir sobre o significado e a repercussão do que está sendo feito.
Então a integralidade está presente tanto no conteúdo teórico quanto na prática, e eu tenho certeza disso, que o aluno é conduzido na prática pra que ele tenha esse olhar, então ele está ali, ele não está fazendo um exame clínico, um exame físico do recém-nascido, ele está ali com o recémnascido que tem uma mãe ou que tem um acompanhante com ele, que tem uma família e que está no contexto x. Então este é um olhar, e ele não está fazendo essa assistência também sozinho, é uma assistência em equipe, que é um outro olhar importante pra você trabalhar na perspectiva da integralidade. (RE-4)
No processo de inserção dos alunos nos campos de estágios evidencia-se uma contradição referente à aceitação dos profissionais do serviço à inserção do aluno. Pode-se verificar que, mesmo sendo resistentes a essa inserção, não deixam de reconhecer as melhorias que a presença do aluno proporciona ao serviço de saúde.
Eles [profissionais do serviço] não têm desejo de colaborar, acham que o aluno atrapalha (...). (RE7)
Eu acho que é de uma forma positiva a inserção deles [alunos] no aprendizado junto com a gente, eles muitas vezes ajudam a gente em procedimento. Por causa da parte prática eles conseguem desenvolver, observar alguma coisa que a gente que está no serviço não consegue observar, porque acaba que vira uma rotina tão grande que muita coisa passa, a gente nem percebe. Então quem é novo e está chegando de fora consegue perceber melhor, às vezes eles criam alguma coisa pra gente, dão alguma ideia. (P-2)
Os entrevistados apontam que um dos desafios para a construção de uma formação balizada pela integralidade está relacionado ao despreparo do estudante, devido ao déficit de conhecimento prévio relacionado à pouca oferta de conteúdos de neonatologia na graduação.
Na maioria das vezes eles chegam muito inseguros com as coisas que eles vão ter que assumir. Na verdade o que a gente vê é que existe uma certa defasagem teórica, por mais que eles às vezes cheguem na Instituição e acham que estão preparados. Na prática o que a gente percebe é que eles realmente não tiveram oportunidade nenhuma de ver muita coisa, então a oportunidade que eles veem aqui pra estar aprendendo junto com a insegurança que eles passam pra gente. (...) E a maioria das vezes a insegurança é mesmo por causa disso, de não ter visto muito disso na graduação. (P-1)
Verificam-se diferenças nas formas de condução dos estágios da graduação e da especialização. Nos primeiros, não se tem integração entre o serviço de saúde e a instituição de ensino para a elaboração da proposta pedagógica, ao passo que, no segundo, a proposta foi elaborada pelos profissionais do hospital favorecendo a corresponsabilização.
Não há, ainda não houve uma preocupação com proposta pedagógica [da graduação] não. A gente trabalha muito mais com a operacionalização (...) do estágio. (RS-4)
Então toda proposta pedagógica, seja do conteúdo teórico quanto da prática necessária para o curso, foi feita pelo serviço e apresentada à instituição de ensino. Foi uma corresponsabilização. (RE-2)
DISCUSSÃO
A construção de um cuidado orientado pelo princípio da integralidade implica no acesso a diferentes tipos de tecnologia como equipamentos, saberes estruturados e as tecnologias contidas nas relações como o diálogo, o vínculo e o acolhimento. Pressupõe ainda o trabalho multiprofissional e interdisciplinar, possibilitando a articulação dos fazeres e saberes de diferentes profissões por meio do estabelecimento de um projeto de cuidado compartilhado por todos os envolvidos6.
Verificou-se que, na assistência na UTIN, os profissionais utilizam estratégias para viabilizar condições favorecedoras do crescimento e desenvolvimento do recém-nascido, como manipulação mínima, redução de ruídos e luminosidade. As UTIN caracterizam-se pela alta incorporação tecnológica, atuação ininterrupta de profissionais de diversas categorias, uso de muitos equipamentos de suporte à vida e instrumentos hospitalares, o que torna o ambiente ruidoso e inóspito7, predispondo a criança aos danos auditivos e às alterações fisiológicas e comportamentais8. Esses aspectos, em alguma medida, são inerentes ao espaço da UTIN; contudo, se adotamos a integralidade como orientador das ações de cuidado, há que se considerar não somente as práticas de prolongamento e manutenção da vida, mas também as medidas que facilitam o processo de adaptação e desenvolvimento do neonato.
Evidenciou-se, nos discursos dos gestores da UTIN, a compreensão de que, para a integralidade do cuidado ao recémnascido, são imprescindíveis uma equipe multiprofissional de saúde e a participação dos integrantes desta equipe na tomada de decisão. Nessa perspectiva, para superar a fragmentação do trabalho das equipes de saúde e promover a efetivação de um cuidado integral torna-se premente reconhecer que os diferentes saberes e responsabilidades de cada categoria profissional são essenciais para o atendimento às necessidades de saúde apresentadas pelo recém-nascido e sua família8.
Os gestores reconhecem a importância da presença da família durante a internação do recém-nascido. Para garantir o direito de permanência da mãe junto ao filho, é esperado que as instituições de saúde reconheçam as necessidades de cuidado da mãe e da família e adequem sua infraestrutura física, suas normas e rotinas e sua estrutura político-administrativa,8-9 práticas estas identificadas no presente estudo.
No cenário de estudo, foram identificadas práticas de gestão destinadas a atender às necessidades de cuidado do recém-nascido e sua família na medida em que o Hospital se organiza e cria alternativas para atender às especificidades de seus usuários, como o oferecimento de condições para a permanência das mães em período integral.
Estudos têm mostrado que a presença do acompanhante durante a internação do recém-nascido contribui para a segurança da família na continuidade do cuidado no domicílio10 e é recomendado que o cuidado seja orientado pelas necessidades do recém-nascido e de sua família, do trabalho em equipe multiprofissional, da continuidade da assistência e da participação da família8.
Faz-se necessário considerar que a participação da família não se limita a seu livre acesso à UTIN. Constata-se que, apesar de as mães e familiares estarem presentes na UTIN, nem sempre se assegura sua participação no cuidado ao recém-nascido9,11-12. Além disso, verificam-se limites a essa participação, devido ao não reconhecimento, por parte dos profissionais, do saber que mães e familiares têm em relação à criança. Ressalta-se ainda que a inclusão da mãe e familiares é dependente do interesse dos profissionais em incorporá-las9, 13.
Isso aponta a necessidade de mudanças no planejamento e da implementação da assistência ao recémnascido pelos profissionais e gestores, reorientando sua prática de forma a viabilizar, nas ações de gestão e práticas assistenciais, o cuidado realizado pela família.
No que se refere à continuidade do cuidado após a alta hospitalar, fica evidente que o período de internação possibilita preparar os pais para o cuidado no domicílio. Resultado semelhante foi verificado em outros estudos nos quais também se identificou que este período lhes proporcionou o aprendizado para o cuidar e, consequentemente, segurança para fazê-lo no domicílio10,12.
No contexto do cuidado ao recém-nascido na UTIN, faz-se necessária a existência de relações dialógicas entre profissionais e família que favoreçam o aprendizado e a participação no cuidado à criança, com esclarecimentos em relação a sua condição11-12,14-16. Entende-se que uma estratégia que contribui para isso refere-se à informação, por meio de linguagem compreensível, sobre o estado de saúde da criança e a finalidade dos equipamentos e rotinas da UTIN, além da busca crescente da tomada de decisões partilhadas9-10.
Estudos enfatizam que, para a garantia da continuidade e da integralidade do cuidado ao recém-nascido, é necessário reconhecer a alta da UTIN para outros setores do hospital, para outros serviços ou para o domicílio, como uma etapa crítica da assistência11. Esses dados sinalizam que, no planejamento e na implementação da alta, deve ser elaborado um plano organizado e adequado, contemplando as necessidades da criança egressa da UTIN, o preparo dos pais para seus cuidados e a articulação com a rede de serviços.
Fica ainda evidente a necessidade do estabelecimento de fluxos para a continuidade do cuidado em serviços da rede de atenção à saúde do SUS, com ações de referência e contrarreferência. Para a segurança da criança egressa da UTIN e sua família, deve-se buscar uma articulação entre os serviços da rede de atenção à saúde, de forma a garantir o atendimento contínuo às crianças quando forem para o domicílio17. Assim, salienta-se a importância da estruturação do cuidado em redes assistenciais, possibilitando o intercâmbio entre pessoas e instituições11.
Em relação à formação dos profissionais, os docentes e discentes apontam, como estratégias para uma formação norteada pela integralidade, a adoção de atividades orientadas pelas necessidades do aluno e também dos serviços e a integração dos profissionais do serviço no processo de ensino aprendizagem.
A análise do material empírico permite inferir que a articulação entre o serviço de saúde e a formação dos estudantes da graduação na perspectiva da integralidade do cuidado ainda é incipiente, sendo prioridade das instituições atender a uma necessidade do currículo formal de prática do aluno em campo de estágio. Entretanto, há uma articulação dos papéis do serviço de saúde e instituição de ensino, e, especificamente no curso de especialização, uma cooperação na seleção dos conteúdos, na produção de conhecimentos e no desenvolvimento de competência profissional, no curso de especialização, tornando-se a aprendizagem efetiva a partir da reflexão crítica dos envolvidos no processo de formação.
Em relação à formação dos profissionais, os entrevistados apontam, como estratégia para uma formação norteada pela integralidade, a proposta do trabalho em equipe, visto que a construção coletiva no ensino viabiliza ao futuro profissional um "treinamento" para a observação do indivíduo de forma integral, fazendo-se convergir os vários conhecimentos para uma mesma ação de trabalho3. O trabalho em equipe é proposto como estratégia para enfrentar o processo de especialização em saúde cada vez mais acentuado18.
Faz-se necessário reavaliar que princípios têm orientado a formação dos profissionais da saúde, uma vez que a transformação dos conceitos e das práticas de saúde que orientam o processo de formação para produzir profissionais capazes de compreensão e ação relativas à integralidade nas práticas em saúde não podem ser restritos à universidade3.
CONCLUSÃO
Foi possível apreender discursos e ações orientados por sentidos de integralidade, como a percepção da importância para o recém-nascido da presença da família e de sua participação no cuidado, a valorização das diversas categorias profissionais e do trabalho em equipe, e a preocupação com a continuidade do cuidado após alta. Entretanto, evidencia-se que é preciso melhorar a comunicação e criar espaços que promovam relações dialógicas. Verificou-se a necessidade de articulação entre gestão, assistência e formação, e de que gestores, profissionais de saúde, docentes e discentes tenham ações orientadas pelos mesmos princípios.
Quando analisadas as ações realizadas mais especificamente no âmbito da gestão da unidade neonatal, verifica-se a necessidade de uma equipe multiprofissional que trabalhe em conjunto; contudo não ficam explícitas ações advindas dos gestores que promovam essa ação conjunta. Verifica-se ainda que, embora se refira a uma gestão de unidade neonatal, a qual tem o foco no cuidado ao recém-nascido assistido no hospital, é possível apreender um comprometimento com o cuidado após a alta hospitalar expresso por meio da tentativa de estabelecer uma contrarreferência com os outros serviços da rede de atenção à saúde.
Mesmo havendo resistência de alguns profissionais em relação à inserção do aluno no Serviço, verifica-se um investimento institucional na implementação de estratégias de ensino. Pelo exposto, tem-se o desafio de realizar atividades de ensino que dialoguem com os sentidos da integralidade do cuidado em saúde articulada com o cotidiano dos serviços e da prática profissional.
Embora a prática dos profissionais na gestão, ensino e no cuidado realizado ao recém-nascido permitam identificar a expressão da integralidade e se verifique que essas dimensões possuem interfaces e em alguma medida se potencializam, não foi possível apreender que os atores têm clareza dessa relação existente, especialmente a partir das informações coletadas na dimensão assistencial e de gestão. Defendemos que o reconhecimento da potencialidade de uma atuação conjunta dos profissionais dos diferentes eixos poderá contribuir para avanços substanciais na assistência oferecida aos recémnascidos e suas famílias.
Para o desenvolvimento deste estudo foi utilizado um único cenário e a inclusão de processos formativos vinculados às instituições de ensino. Considera-se necessária uma ampliação desta amostra em estudos futuros, levandose em conta a inclusão de outros cenários e a não restrição da formação aos cursos de graduação.
REFERÊNCIAS