INTRODUÇÃO
O uso da categoria gênero, entendida a partir de elementos que integram relações sociais elaboradas histórica e culturalmente entre mulheres e homens, tem sido estimulado e expandido em estudos acadêmicos da área da saúde. Uma vez articulada a outros determinantes sociais, tem se mostrado fundamental para a compreensão de processos de saúde e adoecimento de indivíduos e comunidades1.
Neste sentido, existem situações de vulnerabilidade na vida das mulheres, que as tornam mais ou menos susceptíveis a morbidades relacionadas não só com fatores biológicos mas também com situações de discriminação. Nessa esteira, as desigualdades de gênero geram déficit de poder de decisão sobre a vida e corpo das mulheres; divisão sexual injusta de tarefas e de lazeres, definindo, muitas vezes, oportunidades e formas de inserção de mulheres e homens no trabalho2.
Tal compreensão tem possibilitado avanços na condução de políticas públicas dirigidas às mulheres nas últimas décadas no Brasil, tendo em vista a emergência em superar visões reducionistas. O desafio maior está em abordar as mulheres de forma ampla, considerando sua autonomia em vários aspectos, dentre eles o financeiro, como quesito fundamental para promoção de seu bem-estar e saúde. Alguns pressupostos nesta linha estão expressos na atual Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher - PNAISM2 que, articulada ao Plano Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres - PNPM3, recomenda iniciativas e ações que promovam o empoderamento feminino, entendendo que este contribui na mudança das estruturas e dinâmicas sociais que reproduzem a posição subalterna das mulheres no mundo4, fazendo frente, portanto, às desigualdades de gênero.
Neste lastro, entende-se que gênero, ao dialogar com empoderamento feminino, tem possibilitado reflexões e debates acerca da inserção da mulher no mundo do trabalho, originando outro elemento importante na análise dos determinantes sociais da saúde - o trabalho. Esse, visto como atividade que medeia as relações do sujeito com o mundo, seja pela produção de objetos ou serviços, ou como instrumento de socialização e construção de cidadania, é um importante fator de produção de subjetividade.
As relações de trabalho são, também, marcadas por desigualdades de gênero, que operam criando uma divisão sexual do trabalho. É neste espaço que se fortalecem cotidianamente os desníveis de poder entre mulheres e homens, seja por meio da determinação de tarefas diferenciadas ou pela desqualificação, financeira ou simbólica, das tarefas realizadas pelas mulheres5.
Embora na vigência destes e outros obstáculos, a participação das mulheres no mercado de trabalho representa fonte de riqueza econômica para o país, além de evidenciar a "tendência de decréscimo do hiato de gênero"6:151. Assim, se faz necessário superar as dificuldades que persistem para a inclusão e permanência das mulheres no mercado de trabalho nas mesmas condições que os homens7.
O movimento atual de transformações sociais e econômicas tem contribuído para um panorama de mudanças nas relações de trabalho e na inserção social das mulheres, que quase interferem na divisão sexual do trabalho. É o caso da entrada de mulheres trabalhadoras em atividade tradicionalmente reservada aos homens.
São essas mulheres, inseridas nestes cenários laborais, que por vezes procuram os serviços públicos de saúde onde atuam os profissionais de Enfermagem. Mulheres que apresentam problemas e queixas que, embora afeitas à dimensão biológica, têm sua origem no conflito gerado para compatibilizar papéis sociais ligados ao espaço doméstico e à maternidade, com aqueles relacionados ao trabalho remunerado.
É urgente, portanto, que os profissionais que trabalham neste campo, transcendam o previsível biológico aplicado na atenção à saúde das mulheres posto que, promover a cidadania feminina é, também, promover saúde. É preciso "deslocar o olhar e a escuta dos profissionais de saúde da doença para os sujeitos em sua potência de criação da própria vida, objetivando a produção de coeficientes crescentes de autonomia durante o processo do cuidado à saúde"8:746.
A vivência com estas mulheres em uma Unidade Básica de Saúde, cujas condições sociais e de escolaridade agravam em demasia sua falta de autonomia financeira, inspirou a realização de um programa de extensão universitária, o qual teve como objetivo principal contribuir na implementação do PNPM. Esse plano foi elaborado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres - SPM e tem sido concretizado com várias iniciativas, dentre as quais a qualificação profissional de mulheres. Como um dos eixos de intervenção tem-se: a autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho e cidadania, considerando as dimensões étnico-raciais, geracionais, regionais e de deficiência, a fim de
promover a igualdade de gênero nas relações de trabalho3.
Esta iniciativa foi desenvolvida pelo Núcleo de Estudos Mulheres, Gênero e Políticas Públicas, do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria. Para tanto, foi utilizada a extensão universitária como recurso que possibilita transformar a realidade dos indivíduos, na medida em que os instrumentaliza para serem sujeitos de sua própria transformação e do meio social onde vivem.
O Programa de Extensão Universitária (PROEXT 2009) Mulheres Conquistando Cidadania, foi implementado em 2010 e qualificou 38 mulheres do município de Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul, para o trabalho na construção civil.
Na sua finalização, mais do que conjugar pesquisa à extensão, era primordial para a equipe executora conhecer as repercussões do Programa Mulheres Conquistando Cidadania no cotidiano de mulheres participantes, sendo esse o objetivo deste estudo.
MÉTODO
O presente estudo de caráter exploratório e descritivo, mediante abordagem qualitativa, foi desenvolvido com mulheres egressas do Programa. Esta abordagem permitiu compreender o universo de significados, motivos, crenças, valores e atitudes de indivíduos, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações humanas9.
O programa foi desenvolvido em dois eixos: técnico e político. O primeiro com 70 horas foi ministrado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial - SENAI, através de cursos de assentamento de cerâmica e pintura predial interna e externa. O segundo, de 30 horas, foi efetivado por meio de oficinas de saúde e cidadania e compartilhado entre discentes de graduação dos Cursos de Enfermagem, Psicologia, Pedagogia, Serviço Social e Comunicação; enfermeiras da rede pública de saúde; bem como alunas de pós-graduação e docentes do Curso de Enfermagem da UFSM. Ambos os eixos foram implementados de forma concomitante, tornando possível problematizar o cotidiano de vida das mulheres e conteúdos das aulas práticas, possibilitando a troca de saberes.
Participaram da pesquisa 13 mulheres egressas do Programa, que foram contactadas por telefone. Mediante aceitação, foram realizadas entrevistas individuais. O critério de inclusão foi ter participado do Programa. A coleta procedeu no período de janeiro-agosto de 2011 em uma unidade básica. Neste local, o Curso de Enfermagem da UFSM desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão, sendo desta região a maioria das mulheres participantes.
Para a produção dos dados utilizou-se a entrevista semiestruturada, composta por perguntas abertas, permitindo às respondentes discorrer sobre o tema proposto, sem respostas ou condições prefixadas pelas pesquisadoras9. Contemplou questionamentos que versavam sobre a participação das mulheres no programa em foco, em especial a vivência nas oficinas. A média de duração das entrevistas foi de 20 minutos, e o fechamento amostral foi definido pela saturação teórica a partir da convergência dos achados ao objetivo proposto no estudo10.
As informações foram gravadas e transcritas para posterior análise de conteúdo temática, que se constituiu de três etapas: ordenação, classificação dos dados e análise final9.Foram identificadas as ideias centrais e aspectos relevantes acerca da vivência das mulheres no Programa, no intuito de construir categorias empíricas. Para análise final, foi articulado o material estruturado ao referencial teórico, visando à identificação do conteúdo subjacente ao manifestado, na tentativa de responder à questão da pesquisa9.
Os aspectos éticos que envolvem investigação com seres humanos, Resolução 196/96, foram respeitados durante todo o trâmite da pesquisa e o projeto obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSM sob CAEE: 23081.011791/2010-26. Para a manutenção do sigilo e anonimato, nas falas das participantes, foi utilizado um código com a letra M (mulher) e numeral ordinário em ordem crescente
RESULTADOS
Das entrevistadas cinco tinham idade entre 20 e 30 anos; uma entre 30 e 40 anos; cinco entre 40 e 50 anos e, duas entre 50 e 60 anos. Em relação ao estado civil, quatro mulheres eram solteiras; quatro mantinham relação estável com companheiro; três mulheres casadas; uma divorciada e, igualmente, uma mulher viúva.
Quanto à raça, cinco mulheres declararam-se negras, e igualmente, cinco declararam-se brancas, três declararam-se pardas. Quanto à ocupação laboral no início do Programa, seis mulheres encontravam-se em situação de desemprego; duas tinham como ocupação o trabalho de empregada doméstica; duas trabalhavam na área de serviços gerais em empresas; duas mulheres trabalhavam na confecção de doces e/ou salgados e uma trabalhava como cabeleireira. Do total das mulheres entrevistadas apenas duas mantinham trabalho formal com carteira assinada. Vale destacar que, logo após o término do curso, cinco mulheres estavam se inserindo no trabalho na construção civil.
Na análise, foi marcante o uso da expressão
"eu posso", evidenciando que os conhecimentos adquiridos, tanto nas oficinas de saúde e cidadania, como nas aulas teórico-práticas do SENAI, possibilitaram outro olhar sobre si mesmas. Estas observações foram cristalizadas no conteúdo de suas falas e na sua postura segura a respeito daquilo que desejam para si. Dados que, aliados a outros, encaminharam para a categoria intitulada processo de empoderamento a partir da qualificação para o trabalho. Considerando a riqueza das falas, procurou-se construir subcategorias que expressam algumas especificidades afeitas à categoria-mãe.
"Eu vi que posso o que quero, e vou conseguir".
As marcas do conhecimento conferido pelo Programa repercutiram de forma visível, na sua autopercepção e poder de decisão.
Agora eu me vejo uma mulher; antes eu não entendia nada, não sabia nada (...), ficava só em casa, fazendofaxina, agora eu me vejo uma mulher que tem capacidade de fazer alguma coisa (M1).
Antes eu era uma pessoa medrosa, tinha medos, tinha vontade de fazer, mas que sempre me vinha àquelas palavras: ah tu não pode, tu é mulher! Isso é coisa de homem! Depois do curso eu vi que posso o que quero, e vou conseguir. Então mudei bastante meu modo de pensar, meu modo de fazer as coisas.
Muita coisa mudou para mim e para melhor! Estou mais forte mais decidida! (M5).
O curso foi maravilhoso, no sentido que posso tanto quanto qualquer homem. Eu posso tudo que eu quero e posso conseguir, pois estou capacitada (M6).
Estou começando a ficar mais livre, para ir trabalhar, para me cuidar, tenho mais tempo agora para mim! Tenho o meu dinheiro. Eu me sinto muito mais empoderada! O curso foi muito importante para mim porque eu me senti mais, mais mulher, mais tudo, podendo fazer, podendo me ajudar e ajudar os outros (M9).
"Ou trabalho com cerâmica ou trabalho com pintura, não me assusto mais"
Além disso, a capacitação para o mercado de trabalho tornou-as mais confiantes para uma possível inserção na área da construção civil, repercutindo na forma de se verem como força de trabalho valorizado.
Não tenho medo de procurar emprego como eu tinha antes. Agora tenho pelo menos uma esperança de trabalhar na construção civil, e antes nem isso eu tinha (M12).
Aprendi aqui que a mulher tem que se cuidar, tem que se valorizar, porque como tem mulher com depressão e coisa por aí, e não se valorizam nada. Depois do curso, fiquei mais calma, mais equilibrada, porque, não adianta, a situação de desemprego ataca os nervos, mas agora, ou trabalho com cerâmica ou trabalho com pintura, então não me assusto mais como me assustava antes (M13).
"A mulher pode tanto quanto o homem".
Identifica-se na fala dessas mulheres também uma mudança na forma de pensar os papéis sociais femininos e masculinos, determinada a partir da participação no Programa. Mostram-se informadas sobre seus direitos para trabalhar na construção civil e remetem à importância da igualdade de gênero nos vários âmbitos da vida social.
Somos capazes de fazer as coisas, independente de ser serviço de homem, serviço de mulher, independente de cuidar de filho, independente de pintar uma parede, assentar uma cerâmica, a gente pode! É só ter força de vontade, muitas podem não ter estrutura ou corpo de um homem, mas isso não é barreira (M2).
Foi muito bom falar sobre cidadania; até então eu não sabia o que era ser um cidadão, o que era cidadania, o que a gente tem de direito e dever. Temos que procurar esses direitos. Eu evoluí, foi muito interessante. Temos que ser iguais (M3).
Fui tratada que o homem podia mais que a mulher, mas agora vejo que não, que a mulher pode tanto quanto o homem. Ou seja, eles não podem mais do que elas, podem tanto quanto. Precisamos disso para viver melhor (M5).
Nós não podemos ser desvalorizadas, nós temos que trabalhar lado a lado, em condições iguais, de formas iguais, somos iguais (M10).
DISCUSSÃO
Os resultados desta investigação conduziram a análise no sentido de se reconhecer o empoderamento como um processo que poderá ser do âmbito individual e/ou coletivo, que possibilita tomada de decisões que influenciam nos dois âmbitos. Assim, foi possível perceber o desenvolvimento da capacidade crítico-reflexiva das mulheres para olhar a realidade onde vivem, trabalham e se relacionam. Essa postura que pode movê-las em busca daquilo que desejam, como donas de sua vida, na medida em que consigam entender e fazer diante de uma cultura cuja estrutura ainda as submete a posições de subalternidade.
Destacam-se os núcleos de sentido:
posso tanto quanto qualquer homem, estou capacitada, eu posso, somos iguais, somos capazes. As falas das mulheres estão marcadas por expressões de valorização, confiança, poder de decidir sobre sua vida, igualdade de direitos, superação, desafios, que parecem repercutir de forma positiva no seu cotidiano pessoal e profissional. Todas representam algo que parece emergir como substrato fundamental para seu empoderamento.
O termo empoderamento, na tradução brasileira, ou
empowerment, na língua inglesa, tem raízes na segunda metade do século XX, em lutas pelos direitos civis, por meio da bandeira do movimento negro e movimento feminista12-14. Esta categoria de análise é conhecida e estudada em muitos países, porém, no Brasil, essas reflexões são incipientes. Consiste em uma alternativa para estudos no campo da exclusão e marginalidade, sendo uma estratégia para romper com paradigmas tradicionais de atenção e intervenção15.
O empoderamento feminino, na visão de feministas, compreende a alteração radical dos processos e estruturas que reduzem a posição de subordinação das mulheres. As mulheres tornam-se empoderadas por meio da tomada de decisões coletivas e de mudanças individuais14. O empoderamento "não pode ser fornecido nem tampouco realizado para pessoas ou grupos, mas se realiza em processos em que esses se empoderam a si mesmos". Por meio desse processo é possível que as pessoas renunciaem a situações de tutela, impotência e dependência, assumindo assim a direção de sua própria vida12:3.
Na promoção da saúde o empoderamento vem sendo abordado em duas vertentes: o psicológico e o social ou comunitário, também chamado de coletivo. O primeiro é definido como um maior controle sobre a própria vida, que as pessoas sentem por meio do sentimento de pertencer a grupos, o que pode ocorrer sem a participação em ações coletivas. Está apoiado em vertente filosófica individualista, com a tendência de ignorar a influência de fatores estruturais e sociais. Chama-se a atenção para a possibilidade de esse tipo de empoderamento se transformar em atitudes e discursos vazios, uma vez que não discute as raízes dos problemas, tampouco busca alternativas ao que está estabelecido13.
Já, no empoderamento comunitário, observa-se a presença de fatores situados em distintas esferas da vida social. Estão presentes microfatores integrados ao plano individual, a exemplo do desenvolvimento da autoconfiança e da autoestima; na mesosfera social, encontramos estruturas de mediação nas quais os membros de um coletivo compartilham conhecimentos e ampliam a sua consciência crítica; ao nível macro de fatores há estruturas sociais como o estado e a macroeconomia13.
Pode-se pensar, assim, que o empoderamento psicológico e a realidade estrutural vivida fazem parte do empoderamento comunitário. Deve-se buscar apoiar pessoas e coletivos a realizarem suas próprias análises para que tomem as decisões que considerem corretas, desenvolvendo a consciência crítica e a capacidade de intervenção sobre a realidade13. Neste sentido, profissionais ou agentes externos podem mediar e concretizar ações, auxiliar e oferecer subsídios para a criação de espaços que favoreçam e sustentem processos de empoderamento, em especial o feminino, os quais refletem situações de ruptura e de mudança do curso de vida12. Foi pautado nesses pressupostos que se delineou o Programa e que as falas das mulheres denotam o despertar do processo de empoderamento no seu cotidiano de vida.
Este processo envolve práticas não tradicionais de aprendizagem e ensino que desenvolvam uma consciência crítica. No empoderamento, processo e produto se entrelaçam, sendo interferidos pelo contexto ecológico e social. Os resultados não são somente metas concretas, mas sim conhecimentos, sentimentos, motivações13.
Ao que parece, as participantes apontam que o desenvolvimento do Programa Mulheres Conquistando Cidadania contribuiu significativamente para a construção de um pensar crítico diante de uma sociedade desigual e onde as mulheres ainda ocupam posição de subalternidade em relação aos homens no mundo do trabalho. Isto é manifestado nos depoimentos que denotam a apropriação das mulheres acerca do conhecimento, dos papéis tradicionais de gênero, das suas vidas e possibilidades de trabalho.
Percebe-se que, para as mulheres, a construção do processo de empoderamento partiu da dimensão psicológica, uma vez que, mencionaram questões relacionadas à autoimagem e autopercepção, tais como a possibilidade de autocuidado, de valorização e da realização enquanto mulheres e cidadãs. Além disso, houve a percepção de fortalecimento e empoderamento sobre seus direitos, bem como a perspectiva de inserção no trabalho, mesmo reconhecendo as barreiras inscritas em concepções culturais e sociais, como machismo, preconceito e discriminação.
Acredita-se que o empoderamento feminino seja um processo norteado por parâmetros tais como: construção de uma autoimagem e confiança positiva; desenvolvimento da habilidade para pensar criticamente; a construção da coesão de grupo; a promoção da tomada de decisões; e ação14. Para tanto, esta construção acontece por meio de níveis de igualdade, quais sejam: bem-estar; acesso aos recursos; conscientização; participação e controle social. Estes aspectos compôem a dimensão psicológica do processo de empoderamento. Referem-se ao desenvolvimento do autorreconhecimento, por meio do qual as pessoas adquirem ou fortalecem seu sentimento de poder, competência, autovalorização e autoestima. A dimensão política implica na transformação das estruturas sociais visando à redistribuição de poder, a fim de produzir mudanças nas estruturas de organização social12.
Em relação ao desenvolvimento da habilidade para pensar criticamente, as mulheres elucidam nas falas a mudança no pensar e fazer, nas concepções em relação aos atributos femininos e masculinos, bem como na busca pelos direitos e por igualdade. Elas atribuem esta mudança ao conhecimento sobre os direitos, as políticas públicas, as legislações trabalhistas entre outros temas que foram apreendidos nas oficinas de cidadania.
Ressalta-se que, com a realização das oficinas, foi possível problematizar o cotidiano de vida das mulheres e a sociedade essencialmente patriarcal. A igualdade entre mulheres e homens também se fez presente nos depoimentos, que demonstram a compreensão de que as mulheres devem ser valorizadas e estar lado a lado com os homens. Outro aspecto positivo nas falas foi a identificação entre as mulheres cursistas com vistas à composição de um grupo. Aponta-se, assim, para a construção da coesão de grupo permeado por relações de amizade, empatia, solidariedade e aprendizado mútuo, que permaneceu após o término do curso e está presente no cotidiano de suas relações sociais.
Sobre a promoção da tomada de decisões, as respondentes demonstram a mudança de comportamento diante da busca pelos direitos de escolha e trabalho enquanto mulheres e a ação de estarem se inserindo no mercado de trabalho, a que muitas não tinham acesso.
No contexto familiar, além das implicações para os filhos e outros membros da família, a noção de igualdade e de empoderamento permitiu reflexões e mudanças de comportamento também dos companheiros. Essas mudanças são cristalizadas em postura de incentivo e valorização de suas companheiras, o que mostra que o apoio familiar é fundamental. Pais, maridos e filhos, na medida em que se constituem a rede social mais próxima e significativa, devem atuar como parceiros e aliados no processo de crescimento e valorização das mulheres.
O empoderamento implica mudanças não apenas nas próprias experiências dos sujeitos, mas também nas das outras pessoas, grupos e instituições envolvidas, bem como nas políticas públicas e nas estruturas culturais. Representa um desafio às relações patriarcais, em especial dentro da família; ao poder dominante do homem e à manutenção dos seus privilégios de gênero. Significa uma mudança na dominação tradicional dos homens sobre as mulheres, garantindo a estas a autonomia no que se refere ao controle dos seus corpos, à sua sexualidade, ao seu direito de ir e vir, bem como um rechaço ao abuso físico e à violação sem castigo, ao abandono e às decisões unilaterais masculinas que afetam toda a família11.
Vale mencionar que uma das entrevistadas demonstrou-se insegura para desenvolver o trabalho na construção civil, fato compreendido em função de o processo de empoderamento ser complexo, na medida em que está relacionado com a história de cada uma e com suas características individuais, e integrar uma discussão recente e atual. Algumas características realçadas como timidez, baixa autoestima, e até mesmo medo, podem dificultar o processo de empoderamento. Pode-se se pensar, também, que a insegurança esteja alinhada a outros motivos, como a própria ideia de que a construção civil é um trabalho de homens, que exige força física, e que pode deixar as mulheres masculinizadas. Neste sentido, entende-se que "o empoderamento exige ação no social. O fortalecimento do indivíduo acarreta, motiva e estimula o fortalecimento dos demais indivíduos da rede de relacionamento em situação semelhante" 11:11.
A superação das desigualdades integra vários setores sociais. A educação, com vistas à superação da cultura que submete e exclui, é fundamental para a conquista da cidadania feminina. Mulheres em condições de igualdade, também no mundo do trabalho, podem contribuir no alcance de uma sociedade mais justa e solidária.
Compreende-se que o empoderamento das mulheres é um desafio que exige esforços de toda a sociedade para o desenvolvimento de alianças e estratégias para romper com as estruturas vigentes. Neste sentido, o Programa contribuiu, mostrando-se uma opor tunidade de estímulo ao empoderamento feminino na visão das mulheres participantes. Percebe-se, desta forma, a urgência da Enfermagem de se alinhar a iniciativas que contemplem ações voltadas para a melhoria da qualidade de vida, inclusão social e afirmação da cidadania16.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo apontou o despertar das mulheres com vistas a um processo de empoderamento. Na medida em que o Programa impactou positivamente no cotidiano das participantes, as marcas deixadas dizem respeito a algumas transformações na sua vida e saúde, oriundas da elevação da autoestima, da valorização e percepção de si como ser humano que tem direitos e que pode enfrentar o instituído.
Entende-se que esta experiência, tanto no que se refere à Extensão Universitária quanto à presente pesquisa, constitui uma inovação na maneira de conceber e fazer saúde, uma vez que convocou-nos a entender e abordar a saúde das mulheres na perspectiva de gênero, cidadania, trabalho e empoderamento feminino. Todos esses são fatores que fazem parte do cotidiano de vida das mulheres e que influenciam em sua saúde, devendo ser, portanto, compreendidos e abordados como inerentes ao panorama sanitário.
A oportunidade de colocar em prática uma política pública que tem como foco principal a superação de desigualdades de gênero, assim avaliar alguns aspectos desta política, foi um aprendizado relevante para estudantes e profissionais que se envolveram nos dois momentos. Reforçaram-se a possibilidade e a necessidade de fazer pesquisa a partir de ações de extensão, na medida em que ambos se complementam, na busca por conhecimentos novos, que se cristalizam em novas posturas dos sujeitos. Esse cenário comprova a importância da universidade como potencial disparador de mudanças na sociedade.
Para os profissionais em constante formação, e para as mulheres, este estudo revelou a importância do Programa como um facilitador do processo de cidadania e empoderamento feminino. Ampliou-se, também, a visão acerca do contexto sociocultural das participantes e da amplitude do campo de atuação em saúde, uma vez que, comprometidas com as demandas sociais e de saúde, reforçamos a possibilidade de atuar visando à igualdade de gênero e à integralidade do cuidado.
No âmbito do ensino sugere-se que profissionais da área da saúde, em especial os da enfermagem, dirijam um olhar mais atento às demandas ditas e não ditas pelas mulheres. Que os subsídios teóricos e práticos possibilitem ao acadêmico rever conceitos, princípios e valores, que devem estar alinhados a pressupostos éticos, políticos e crítico-reflexivos, bem como ao compromisso com os preceitos do modelo de saúde em construção no Brasil. No âmbito da assistência, faz-se necessário que as usuárias se reconheçam como sujeitos com direitos, oportunidades, responsabilidades e competências na busca por autonomia nos vários aspectos de sua vida e saúde.
Recomenda-se a realização de estudos com foco em determinantes sociais da saúde com destaque aos construtos sobre empoderamento feminino, com vistas a ampliar a compreensão deste processo, ainda incipiente na literatura, e a reflexão sobre novos subsídios para a prática de enfermagem.
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NOTA
Demais colaboradoras do manuscrito:Bruna Dedavid da Rocha, Daiane da Silva Prates,Karine Jacques Hentges, Mariana Resener de Moraise Paola Curcio Dalla Pozza