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CAPES

Volume 17, Número 2, Abr/Jun - 2013

PESQUISA

Perfil de casais que optam pelo parto domiciliar assistido por enfermeiras obstétricasa

Iara Simoni Silveira Feyer1
Marisa Monticelli2
Roxana Knobel3

1. Enfermeira. Mestre em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (PEN/UFSC). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Membro do Grupo de Pesquisa em Saúde da Mulher e do Recém-nascido (GRUPESMUR). Brasília-DF. Brasil.E-mail: iarasilveira@gmail.com
2. Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente do PEN/UFSC. Vice-líder do GRUPESMUR. Florianópolis-SC. Brasil. E-mail: marisa@ccs.ufsc.br
3. Médica. Doutora em Tocoginecologia. Docente do Departamento de Tocoginecologia da UFSC. Florianópolis-SC. Brasil. E-mail: rknobel@uol.com.br

Recebido em 24/04/2012
Reapresentado em 28/09/2012
Aprovado em 10/10/2012

RESUMO

Esta pesquisa exploratório-descritiva foi desenvolvida com o objetivo de identificar as características sociodemográficas de casais que optam pelo domicílio como local para a ocorrência do parto. Participaram 25 casais que elegeram os serviços de uma equipe de enfermeiras obstétricas que assiste a partos domiciliares, em Florianópolis-SC. As informações foram obtidas por meio dos registros em prontuários dos atendimentos prestados pelas enfermeiras e de entrevistas semiestruturadas com os casais praticantes do parto domiciliar planejado, tendo sido realizada análise descritiva do perfil obtido. Identificou-se que a maioria dos casais era de pessoas com formação superior, relacionamento estável, que residiam em casa própria e tinham estabilidade profissional. Grande parte dos participantes não era natural de Florianópolis e alguns casais vieram de outras cidades para que o parto ocorresse nesta cidade. Foi possível concluir que a opção pelo parto em casa está atrelada à revalorização do ambiente doméstico, e não a um resgate do passado.

Palavras-chave: Parto domiciliar. Enfermagem obstétrica. Características da população.

INTRODUÇÃO

Até pouco tempo atrás, o parto domiciliar no Brasil ocorria principalmente em regiões pobres e longínquas, onde as famílias não tinham acesso às instituições hospitalares, sendo assistidas por parteiras tradicionais. Na atualidade, essa prática vem ganhando adeptos por opção, especialmente nos grandes centros urbanos, não mais com a assistência exclusiva da parteira tradicional, mas com o apoio de profissionais de saúde que são especialistas em obstetrícia, particularmente médicos, enfermeiras e obstetrizes.1-2

A opção pelo parto domiciliar deve-se a inúmeros fatores, entre os quais a intenção de afastar os processos de parir e nascer do domínio exclusivamente médico, trazendo-os à perspectiva das experiências humanas e sociais.1-4 Esta transformação tem gerado novos comportamentos, valores e sentimentos, tanto para as famílias quanto para os profissionais envolvidos com a assistência ao parto domiciliar.3

Em relação aos casais que escolhem este modelo - a quem, inclusive, tem sido alcunhado o termo casais grávidos,5 ou seja, aqueles que vivem juntos todas as etapas da gestação, tornando comum ao homem e à mulher a experiência de preparar a chegada de uma criança -, alguns estudos brasileiros têm apontado motivos pelos quais eles optam pela realização do parto em ambiente domiciliar.1-4 Alude-se, de um lado, ao recurso visto como abusivo à medicalização do parto pela tecnologia obstétrica, assim como aos partos programados, que instigam a passividade da parturiente ao mesmo tempo, desconsiderando as idiossincrasias e dificuldades de cada mulher. De outro, à crítica à despersonalização do parto hospitalar, evidenciada por regras e rotinas, quase sempre justificadas com relação à segurança e à assepsia, divorciando assim o nascimento de um contexto familiar e/ou de solidariedade afetiva.2-4

Um desses estudos, realizado por uma antropóloga, em uma capital do sul do país, revelou que, entre os principais motivos apontados pelos casais para a preferência pelo parto em casa, estavam a valorização pela simplicidade de um parto "natural", a possibilidade de experimentar sensações que faziam parte da intimidade do homem e da mulher, bem como a expectativa de prepararem juntos a chegada de uma criança que, em síntese, selaria a união afetiva dos dois.3

A escassa literatura sobre o tema, no entanto, acessada em bases nacionais, com a intenção de obter o estado da arte relacionado com a temática,1 é denotadora de que a opção dos casais pelo parto domiciliar está dentro de uma realidade pouco visível no cenário oficial do cuidado com a saúde no Brasil.2-6 As terapêuticas e personagens são acionados a partir de um sistema de saúde popular, justamente pelo fato de fazerem sentidopara essas pessoas, não por uma suposta falta de escolha ou pela falta de acesso aos serviços oficiais, nem mesmo por falta de informação.6

Como integrantes de uma equipe de profissionais que presta assistência aos partos no domicílio, observamos que, algumas vezes, esses casais têm sido denominados por diversas alcunhas que, por serem consideradas discriminatórias, são identificadas como sendo categorias de acusação,3 como, por exemplo, "hippies" ou "naturebas", por pessoas ou famílias não adeptas desta prática, ou mesmo de alienados ou irresponsáveis, por profissionais de saúde que criticam o parto domiciliar. Sabe-se que tais categorias de acusação desempenham funções de delimitar fronteiras entre grupos e exorcizar dificuldades. As imagens estigmatizantes são reações não apenas contra o parto domiciliar, mas contra um estilo de vida real que é encarado como contrário ou subversivo a uma ordem moral.

Com o aumento da procura por esse tipo de parto, torna-se necessário estudar esse fenômeno, que mostra que há casais que confrontam a ideologia urbana vigente e lutam por uma forma menos medicalizada de vivenciar esta fase da vida. Diante do avanço da tecnologia, as informações estão cada vez mais acessíveis e as pessoas estão questionando o modelo atual, principalmente pelo fato de o Brasil ostentar o título de campeão de cesarianas.7

O cenário dessa nova modalidade de assistência aponta para a importância de se pesquisar as características dos casais que optam pelo parto domiciliar, com a intenção de auxiliar na desmitificação desta representação. Estudos realizados até hoje sobre o perfil de casais e o tipo de parto estão relacionados a outros contextos, como, por exemplo, o parto domiciliar que acontece acidentalmente, ou casais que tiveram seus filhos em casas de parto.8-9 Não se encontram publicadas no Brasil produções científicas que abordem especificamente o perfil dos casais que fazem escolha pelo parto domiciliar planejado.

O objetivo desse estudo foi identificar as características sociodemográficas de casais que optam pelo domicílio como local para a ocorrência do parto.


MÉTODO

Desenvolveu-se pesquisa exploratório-descritiva, de caráter quantiqualitativo, que integrou a dissertação de mestrado intitulada "Rituais de cuidado das famílias no parto domiciliar em Florianópolis-SC". A amostra foi constituída por 25 casais (25 homens e 25 mulheres, ou seja, as grávidas e seus companheiros), que optaram pela realização do parto assistido por enfermeiras obstétricas, em nível domiciliar, entre os meses de agosto de 2010 e maio de 2011.

A assistência, neste contexto específico, é realizada por uma equipe de enfermeiras obstétricas, que atua desde 2006, atendendo partos no domicílio. Esta equipe oferece serviços de assistência privada, em gestações consideradas de baixo risco, sendo que o acompanhamento pré-natal completo é realizado por médico obstetra e enfermeiras da equipe. Os casais chegam até a equipe por meio de indicações de outros casais que já vivenciaram o parto domiciliar, da internet (site e redes sociais) ou de palestras proferidas pelas enfermeiras da equipe.

Em consonância com a proposta do estudo e em coerência com a abordagem metodológica, o cenário para a realização dessa pesquisa foi o próprio domicílio dos casais participantes. Cabe ressaltar que as casas que abrigaram os partos nem sempre eram os locais de residência das famílias, mas sim o ambiente que as mesmas escolhiam para a vivência do parto propriamente dito. Algumas, portanto, alugaram casas apenas para a ocorrência do parto, embora a maioria permanecesse na sua moradia.

Os dados foram obtidos a partir dos prontuários que continham os registros dos atendimentos prestados. Também foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os casais, em seus próprios domicílios, após a ocorrência do parto. As entrevistas tiveram a finalidade de confirmar os dados e aprofundar o entendimento sobre o contexto em que viviam os participantes. O roteiro contemplava aspectos relacionados à naturalidade, nacionalidade, idade, escolaridade, profissão, formação complementar, situação conjugal, local de residência, tipo de residência (própria ou alugada), preferências religiosas e/ou filosofias de vida e experiência com partos anteriores. Após anuência dos casais para a gravação das entrevistas e utilização dos dados para futuras publicações, sob compromisso dos pesquisadores em manter o anonimato, os dados eram então registrados em diário de campo, utilizando-se codinomes, masculinos e femininos, escolhidos de maneira aleatória pela pesquisadora.

Os dados quantitativos, obtidos das anotações nos prontuários, foram organizados e analisados por estatística descritiva (frequência absoluta e relativa), e os qualitativos, decorrentes das entrevistas, foram submetidos à análise de conteúdo,e ajudaram a ilustrar o processo interpretativo. A integração entre os dados numéricos e os dados textuais, levantados a partir das entrevistas, possibilitaram o que alguns metodólogos chamam de análise de texto que faz uma ponte entre o formalismo estatístico e a análise qualitativa do material.10

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina, sob o parecer nº 882/10. Os casais receberam individualmente todas as orientações referentes à pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.


RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os dados mostraram que a faixa etária das 25 mulheres que tiveram seus filhos em casa variou de 19 a 38 anos de idade, sendo que a maioria correspondeu à idade de 20 a 29 anos, representando uma expressiva proporção de mulheres jovens e que não se enquadravam em situação de risco gestacional. Estes dados equivalem a resultados encontrados em estudos internacionais, em contexto semelhante.11No que diz respeito aos participantes do sexo masculino, constatou-se que a maioria estava dentro da faixa etária de 21 a 30 anos, e os demais, entre 31 e 40 anos, o que caracteriza uma população de casais constituída por adultos jovens (Tabela 1).




Quanto à escolaridade, a maioria das mulheres cursou ou cursa ensino superior, sendo que mais da metade delas já completou o terceiro grau e trabalha na área em que se formou. Com relação aos homens, a maioria também terminou ou está cursando universidade, sendo que alguns deles, inclusive, titularam-se ou estão em processo de titulação em pós-graduação stricto sensu. Quatro concluíram somente o ensino médio. Os dados referentes à idade materna e paterna, bem como os dados de instrução acadêmica se coadunam com os achados de pesquisa conduzida por enfermeiras brasileiras, e publicada no exterior, onde foram observadas idade e escolaridade materna elevadas, além de estabilidade no mercado de trabalho.11

No que se refere às frentes de atuação profissional, o universo investigado nessa pesquisa incluía advogados, professores, dentista, artista, vendedor, analista de sistema, administrador, psicólogo, médica e pesquisadores, entre autônomos e vinculados a empresas privadas ou públicas. Alguns eram estudantes de nível superior e recebiam bolsa de pesquisa ou auxílio dos pais para se manter. Dessa maneira, cotejando com os dados de moradia, é possível afirmar que nesse universo investigativo, os casais pertencem aos estratos econômicos da classe média alta brasileira (Tabela 2).




Os dados de escolaridade (Tabela 1) e de profissão (Tabela 2) demonstram que as pessoas que optam pelo parto domiciliar, nos grandes centros urbanos, têm acesso à informação e possuem alto nível de instrução acadêmica, o que possivelmente lhes garante uma rentabilidade que possibilita a contração do serviço particular na assistência ao parto domiciliar, uma vez que o Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) não subsidia tal opção. Assim, podem arcar integralmente com os custos que envolvem o procedimento 12 e, ainda, dar condições às mulheres de dedicarem-se integramente à tarefa da maternidade, durante o tempo que acharem conveniente, como foi o caso de quase um quarto das participantes deste estudo. É relevante ressaltar ainda que a maioria dos casais tinha planos de saúde complementares e realizou o pré-natal com médicos conveniados. Isto também mostra que realmente optaram pela assistência no domicílio, já que tinham condições de ter o parto em clínica privada, caso a única intenção fosse a procura por serviços particulares de atenção ao parto.

Em contrapartida, este perfil contrasta com o de mulheres que tiveram seus partos em uma Casa de Parto, localizada na grande São Paulo, para onde afluem parturientes com baixa escolaridade. Em pesquisa realizada neste contexto, em 2002, observou-se que 90,6% das mulheres não haviam completado o primeiro grau, e apenas 6,2% apresentavam instrução de ensino superior.12 De qualquer modo, guardadas as diferenças de escolaridade, o cotejamento dos dados permite inferir que tanto mulheres com alto grau instrucional quanto as de formação acadêmica menos privilegiada acorrem a formas menos intervencionistas para a vivência do parto, se lhes forem dadas oportunidades de escolha.

As características dos participantes da presente pesquisa, entretanto, apresentam analogias com as encontradas em estudos originais realizados sobre o casal grávido, na década de 1980, ou seja, o homem e a mulher que vivem juntos todas as etapas da gestação, tornando comum, e não a um só, a experiência de preparar a chegada da criança.5 Tais semelhanças envolvem a posse de poucos rendimentos financeiros, embora o status profissional seja alto, comparado com a média da sociedade brasileira. Também à semelhança dos estudos da década de 1980, tanto os homens quanto as mulheres do presente estudo referiram participação e/ou formação específica em práticas alternativas,5cursos como de yoga, terapia ayurveda, aprendizagem sobre utilização de óleos essenciais, fitoterapia, aromaterapia, capacitação em pilates, dança, apometria quântica, macrobiótica, estudos especializados sobre o calendário Maia, alimentação vegetariana, aplicações de Reiki e, inclusive, formação para exercer a função de doula, acompanhando partos institucionais. Essa inclinação dos casais a realizar uma formação extra, direcionada para carreiras menos convencionais, revela, de certa forma, o status diferenciado que procuram assumir diante do sistema mais dominante.5

Essas práticas estavam também relacionadas ao universo de casais que se enquadravam, na sua maioria, como profissionais liberais, ou aqueles que, mesmo com emprego fixo, complementavam a renda familiar com essas atividades ou, simplesmente, por acreditarem nos benefícios terapêuticos de tais práticas. Em alguns casos, essa característica para o aprendizado de funções e/ou atividades ditas alternativas parece afinar-se com o desejo dos casais de prepararem-se e direcionarem-se para a opção pelo parto fora do contexto hospitalar.

Essa constatação vai ao encontro de uma visão de mundo que considera a construção de um corpo saudável, capaz de gerar e de parir naturalmente, não sendo considerado apenas um pré-requisito para o parto domiciliar bem-sucedido, mas também ligado a hábitos cotidianos que envolvem o constante cuidado de si,3 e que constitui um estilo de vida diferenciado.

Com relação ao estado civil dos praticantes do parto domiciliar em Florianópolis, a Tabela 3 mostra que, dos 25 casais que tiveram partos domiciliares, 13 são oficialmente casados, e 11 se declararam em união estável, morando na mesma casa e estando juntos há mais de um ano. Esse dado corrobora um estudo internacional que afirma que há uma incidência menor de mães solteiras nos partos domiciliares planejados, comparados aos partos hospitalares.11Isso evidencia que a adesão ao parto domiciliar, nos grandes centros, é uma característica particular do casal grávido. A teoria do casal igualitário não é redutível a um modo físico e corporal de parir; muito além disso, o casal anuncia uma forma sociológica de fazê-lo. Num discurso "antiassistência médica-padrão",5:15 o casal estabelece quem deve participar e quem deve ser excluído do evento. É essa condensação de significados que permite inferir ideais de sociabilidade e de conjugabilidade, que são característicos dos segmentos modernos individualistas.5




Nesse estudo, um casal se declarou "solteiro", ou seja, o par não morava na mesma casa e tinha uma relação sem compromisso. Porém, nesse caso específico, o pai do bebê se fez presente em todos os encontros que a gestante teve com as enfermeiras, participou ativamente do parto e permaneceu auxiliando diretamente o mulher e o filho recém-nascido, durante o pós-parto. Tal atitude nos remete ao estudo do casal igualitário, que, trazido para o contexto dessa pesquisa, se fortalece na "parceria igualitária",5:174 em que o par, mesmo não estando em uma situação conjugal estável, compartilha a adesão ao parto natural, não apenas como um modo físico e corporal de parir, mas como uma forma sociológica de fazê-lo.5 Cabe ressaltar que essa situação pode ser cada vez mais comum na sociedade contemporânea, na qual a família nuclear e conjugal não é a única considerada representativa da vida moderna.13-14

Quanto à experiência anterior, a Tabela 3 mostra que a maioria das mulheres dessa pesquisa nunca teve um parto antes de vivenciar o parto domiciliar, cinco delas já haviam experienciado um parto no domicílio " dessas, quatro tiveram o acompanhamento das mesmas enfermeiras " e uma teve o parto domiciliar atendido por uma parteira, na mesma cidade. Outras duas tiveram a experiência de um parto normal hospitalar, e uma delas teve dois partos normais hospitalares, antes de ter o terceiro filho em casa. Apenas uma teve a experiência de uma cesariana anterior, por opção. É significativo ressaltar que as mulheres que tiveram a experiência do parto hospitalar (independente do tipo de parto) não retornaram às instituições na gestação atual, e redirecionaram a maneira de pensar o nascimento de tal forma a optar pelo parto em casa, tomando os cuidados de serem acompanhadas por profissionais com especialização na área. Já as mulheres que tiveram um parto domiciliar anterior buscaram vivenciar novamente a experiência, com a mesma equipe; no caso da mulher que foi atendida por uma parteira, agora buscou profissionais de nível universitário para essa assistência.

As experiências anteriores com partos hospitalares foram determinantes para fortalecerem a busca pelo parto em casa. Algumas mulheres demonstraram nos depoimentos que as experiências vividas no hospital se coadunam com crítica ao modelo vigente. Para Helen, por exemplo, o parto ocorrido na maternidade gerou lembranças negativas que prejudicaram o vínculo com seu bebê, e isso a impulsionou à procura de formas alternativas para vivenciar o segundo parto:

Meu primeiro filho foi uma cesariana desnecessária, e o pós-parto foi muito sofrido. Recebi anestesia geral e só fui conhecer meu filho três horas depois do parto. A recuperação não foi fácil, senti muita dor, tive dificuldades para amamentar, foi muito estranho [...]. Depois que fiquei grávida de novo, pesquisei e encontrei uma médica [...]que apoia o parto normal, e foi ela que me apresentou a ideia do parto domiciliar (Helen).

Outra mulher que passou duas vezes pela experiência do parto normal hospitalar declarou:

[...] estou animada por ter parido em família [...] é uma aventura ter um filho em casa, com outras duas crianças tão pequenas. O parto foi mais rápido e mais tranquilo que os outros. Não faz sentido algum eu ir ao hospital (Erica).

Relatos como esse reafirmam que as mulheres que tiveram experiências anteriores positivas estão cientes de que o parto pode transcorrer naturalmente, o que influencia grandemente na opção e na sensação de segurança pela decisão do nascimento em casa. Resultado semelhante foi percebido em estudo recente realizado com mulheres que tiveram ambas as experiências com parto hospitalar e domiciliar, sendo que as depoentes referiram optar pelo parto domiciliar por diversos motivos, entre eles: maior rapidez no processo, menos intervenções, como a não realização do toque vaginal rotineiramente, a presença de familiares, a liberdade de movimentação, entre outros.15 As mulheres do presente estudo que pariram anteriormente no hospital também referiram partos demorados, toques vaginais desmedidos, restrições alimentares e de movimentação, além de se sentirem oprimidas ao expressarem seus desconfortos durante as contrações.

Quanto à procedência, observa-se na Tabela 3 que a grande maioria residia na própria capital catarinense, enquanto seis casais vieram à cidade especialmente para o nascimento do bebê no domicílio. Destes, cinco procediam de cidades vizinhas (com no máximo 100 km de distância), e um veio do exterior, com outros dois filhos pequenos, para que o terceiro nascesse em território brasileiro. Segundo o relato, escolheram Florianópolis para esta experiência porque, após pesquisas na internet sobre as formas de nascimento no Brasil, interessaram-se pelo trabalho desenvolvido pela equipe de enfermeiras, em nível domiciliar, já que em sua cidade de residência não encontraram profissionais que realizam esse tipo de atendimento. A fluência no idioma inglês por integrantes da equipe, assim como a especialização em obstetrícia, contribuíram para a definição da escolha.

O movimento dessas famílias que vieram de outras cidades para ter a vivência do parto domiciliar reflete a revitalização do protagonismo do casal na escolha do local do parto. Um ensaio antropológico elucida que a casa e os instrumentos do mundo doméstico são ferramentas de domínio e conhecimentos que possibilita ao casal e, especialmente, à gestante acessar uma dimensão transcendente, de introspecção profunda, o que transforma o parto em um evento paradigmático fundamental para quem dele participa.3

No que se refere à moradia, a Tabela 3 mostra que 15 casais residiam em casa própria, sendo que a maioria dessas casas foi planejada e construída pelo próprio casal (com suas próprias "mãos"), em locais distantes do centro da cidade, e em meio à natureza. Outros cinco casais moravam em casa alugada, e, desses, o par que se declarou "solteiro" morava em casas separadas, porém próximas, e convivia diariamente. Todos os partos ocorreram nas casas de residência. Os cinco casais que vieram de outros lugares alugaram um imóvel especialmente para sediar o parto domiciliar. Para essas famílias, contudo, a casa alugada não era considerada apenas o espaço físico, com significado de abrigo, proteção e segurança para o desfecho do parto, e sim, era intimamente ligada ao ambiente ideal para receber a criança, como mostra o relato a seguir:

[...] alugamos essa casa, pois já sabemos que uma pessoa já teve bebê aqui. Se deu sorte para ela, vai dar para mim também. Eu vim preparada para ficar até o bebê nascer, e mais uns dias, trouxe tudo, até o cachorro (Helen).

Cabe salientar que a maioria das mulheres e homens desta pesquisa (38 do total dos 50 envolvidos) era natural de outras cidades brasileiras que não Florianópolis; apenas seis nasceram e foram criados na capital catarinense. Outras seis pessoas são naturais de outros países, entre eles europeus, sul-americanos e norte-americanos. Embora a amostra desse estudo não tenha uma representatividade numérica maior, face ao ainda pequeno universo de casais que fazem opção por este local de parto, comparado aos partos realizados no hospital,16 pode-se argumentar que a cidade de Florianópolis é conhecida por ter uma característica peculiar de receber pessoas que buscam um estilo de vida conectado com a natureza exuberante do local, conforme mostram outras pesquisas;3-4 tal representação pode levar as pessoas ao desejo de se harmonizarem com os ciclos naturais, possibilitam reforçar a decisão pelo parto domiciliar.3

As práticas religiosas dos participantes dessa pesquisa (Tabela 3) não se distanciam muito do estilo de vida que busca caminhos alternativos, e que ganhou popularidade no contexto brasileiro, a partir da década de 1980, principalmente entre as camadas médias, que deita suas raízes na efervescência ideológica que caracterizou o movimento da contracultura e a insurgência de outros valores, inclusive espirituais.16

Buscamos amar incondicionalmente, servir aos irmãos nas situações que a vida nos coloca, ser uma pessoa melhor, religando com o que há de Maior (Laís).

[...] puro amor, bondade, disponibilidade, que inclui todas as religiões e crenças, além de qualquer conceito e causalidade (Yan).

Os casais que procuram o parto domiciliar e que transitam pelos circuitos das chamadas Culturas da Nova Era (CNE)16 revelam, em suas narrativas de vida, ou ao contar suas experiências existenciais, que participam de rituais e de grupos espirituais, entre outros, com a finalidade de se encontrarem, de se conectarem com o sagrado, sem, no entanto, possuir uma identidade religiosa fixa. Trata-se de pessoas que compartilham um universo cultural comum, pautando suas vidas cotidianas, seus hábitos de consumo, de saúde e até de opções de lazer, por determinados valores que diferem da maioria.17-18

Todo o movimento que está relacionado às CNEs justifica o fato de que a maioria (Tabela 3) é adepta das chamadas neorreligiões,17 representando nove pessoas da amostra. As religiões mais tradicionais, cristãs, foram representadas em minoria: cinco pessoas eram católicas (praticantes ou não); uma pessoa, testemunha de Jeová; e outra, evangélica. Os seguidores das práticas orientais (Budismo e Hinduísmo) foram representados por três pessoas. Apenas um se declarou ateu. Outras cinco declaram não ter religião, porém, pelos depoimentos feitos, revelaram que não ter religião não significa dizer que não tenham crenças e valores relacionados à transcendência, mas sim, que têm maneiras específicas de lidar com o sagrado.18


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta de investigar o perfil dos casais que optam pelo parto domiciliar planejado, atendido por profissionais em Florianópolis/SC, reforça o pressuposto de que essa escolha passa por um minucioso estudo das consequências dessa prática, sobressaindo como benéfica a oportunidade de vivenciar o nascimento com maior autonomia para a mulher, além de proporcionar uma recepção mais respeitosa e aconchegante para o recém-nascido.

Pelos resultados encontrados, é possível perceber que os casais que optam por essa prática têm, na sua maioria, formação universitária, o que reflete na facilidade de acesso à informação e ao conhecimento biomédico, permitindo análise crítica às práticas obstétricas e para argumentar e sustentar sua decisão pelo parto em casa. Além disso, são pessoas que buscam profissionais capacitados e qualificados para esse tipo de assistência, levando-se a acreditar que o retorno do parto para o domicílio não tem relação, necessariamente, com um resgate do passado, e sim, com uma maneira de revitalizar o nascimento como algo íntimo e familiar. A casa, independente de ser própria ou alugada, é classificada por esses casais como o local mais seguro e apropriado para o parto, diante das possibilidades oferecidas pelo sistema público ou privado de saúde.

Evidencia-se também uma tendência dos casais a terem um relacionamento estável, o que facilita a construção do ideário do parto em casa, fortalecendo e sustentando essa decisão ao longo da gestação, o que levou, inclusive, à iniciativa de alguns casais de outras cidades a alugarem um espaço especialmente para sediar o evento, transparecendo que o interesse deles por vivenciar um parto extra-hospitalar é capaz de vencer as fronteiras do conforto de seu próprio lar, movimentando uma série de mudanças temporárias em prol da realização do parto no cenário familiar.

Os casais desse estudo mostram interesse particular por práticas diferenciadas, muitas vezes relacionadas à saúde e ao autoconhecimento, além de tendência à prática de neorreligiões, valorizando uma espiritualidade de práticas difusas. O conjunto dessas ações contempla mudanças de comportamentos associadas a maneiras alternativas de viver nas sociedades urbanas, e isso faz com que se aproximem de profissionais que também se esquadrinham neste ethos alternativo, relacionado com as práticas do parto.

Embora essa pesquisa tenha investigado tão somente os casais e famílias que optaram pelo parto assistido em caráter privado por uma determinada equipe de enfermeiras - o que se constitui em uma importante limitação do estudo -, certamente outras pesquisas em outros contextos urbanos podem mostrar resultados diferenciados, aumentando o escopo e a profundidade da compreensão sobre o perfil das pessoas que praticam o parto domiciliar, na contemporaneidade, nos grandes centros urbanos.


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NOTA

a Artigo elaborado a partir da dissertação de mestrado - "Rituais de cuidado das famílias no parto domiciliar em Florianópolis-SC", apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 2012, com apoio financeiro da CAPES.

 

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