INTRODUÇÃO
No contexto das práticas de saúde, observamos a alusão frequente à influência de aspectos religiosos na cura e no tratamento de enfermidades. Vários estudos têm identificado a importância da religiosidade na vida pessoal, nas relações sociais, nas atitudes e representações relacionadas à saúde e doença, assim como na composição dos sintomas psiquiátricos1-3.
O tratamento da doença mental, assim como sua etiologia, envolve fatores objetivos e subjetivos. Entre os fatores subjetivos não raro sintomas como alucinações e delírios são explicados e apontados como fruto de desordens espirituais, tais como 'encosto', 'mau olhado', 'possessão', que são validadas por modelos explicativos elaborados e estruturados tanto pelo doente quanto por seus familiares e membros de sua rede social de apoio.
Utilizando símbolos e significados próprios de cada religião, o tratamento oferecido pelas agências religiosas constantemente é procurado pelos indivíduos doentes e seus familiares. O papel do apoio social dessas agências é um dado real, seja como local de referência e aceitação ou pelo apoio social que seus membros oferecem4.
A religião é uma instituição antiga e duradoura, não podendo ser separada da cultura humana. No Brasil, a pluralidade e a diversidade religiosa são caracterizadas pelo trânsito religioso, aqui considerado como a migração que a população constantemente faz de uma religião para outra e a decomposição das agências religiosas que geram a multiplicidade de células religiosas, patente pelo censo do Instituto Brasileiro Geográfico e Estatístico do ano de 2000, onde foram encontrados trinta mil posicionamentos quando a pergunta era: qual a sua religião5?
A experiência religiosa pode ser considerada "extrínseca" e "intrínseca". A primeira é um meio para atingir um determinado fim e a segunda, uma estrutura que atribui significado à vida de uma pessoa6-8.
O sofrimento gerado pelo adoecimento pode levar o sofredor (doente) a buscar por meio da fé e da esperança a cura ou o alívio do infortúnio que o acomete de forma aguda ou crônica. São esses sentimentos que levam o doente a buscar as agências religiosas onde em geral encontram apoio por parte dos ministros e membros que as compõem e representam. Esse sentimento de pertencimento auxilia o doente, e em alguns casos, a família no enfrentamento da doença, quer seja física ou psíquica.
Durante o tratamento da pessoa em sofrimento mental é necessário considerar os sujeitos, os contextos, os serviços e os recursos disponíveis para o seu acompanhamento em sua existência sofrimento. Diante dessa afirmativa se faz necessário compreender os espaços e as relações que se estabelecem em torno desses sujeitos, entre eles o religioso e sua complexidade10.
No enfrentamento das adversidades enfrentadas pelas pessoas em sofrimento mental, todos os recursos devem ser utilizados, e os que já existem precisam ser potencializados, entre eles uma rede social de apoio que ofereça o sentimento de pertencimento e aceitação a quem sofre e seus familiares.
Em alguns casos a pessoa em sofrimento não tem uma rede social de apoio próxima, mas, ao circular pelos espaços comuns a todos nós, se deparam com locais onde existem pessoas prontas para recebê-los sem que seu comportamento seja visto como um impedimento para tal.
Apoio social pode ser definido como qualquer auxílio ou informação, falada, ou não, ou ainda material oferecido individual ou coletivamente por pessoas, com as quais teríamos contatos sistemáticos e resultem em efeitos emocionais ou comportamentais positivos. É um processo recíproco, que gera efeitos positivos para quem recebe e também para quem oferece o apoio, permitindo que ambos tenham mais sentido de controle sobre suas vidas9.
O apoio social expressa-se por meio das redes sociais de apoio, que podem ser representadas por grupos de pessoas formados por vizinhos, organizações religiosas, grupos de autoajuda entre outros.
As redes sociais de apoio, formadas por associações voluntárias de indivíduos com características, sentimentos e comportamentos que convergem, representam o grau de organização e de atividade da sociedade e se contrapõem à desintegração social nas sociedades modernas, resultado da violência, da diferença social e dos abismos sociais observados em nosso tempo.
Para além dos objetivos específicos a que se propõem, esses grupos promovem uma oportunidade para a troca de conhecimento e cooperação entre seus participantes. Pela expressão e confronto de ideias e da formação de consenso e de possíveis ações coletivas, os cidadãos aprendem e exercitam valores e práticas democráticos que se revertem no bem comum10-12.
As redes sociais podem ser diferenciadas em três tipos de associações: as sociais (religião, comunidade, jovens, esportes, mulheres, saúde e grupos de educação e informação); as políticas tradicionais (sindicatos, associações profissionais e partidos políticos); e as novas organizações políticas (meio ambiente, paz, direito dos animais e grupos defensores de direitos coletivos e da cidadania).
A rede social de apoio é uma teia de relações formada e organizada por pessoas que têm vínculos sociais e que possibilitem a mobilização de recursos de apoio por meio desses vínculos. Ela apresenta dimensões em relação ao tamanho (número de pessoas com as quais se tem contato social); dispersão geográfica (quanto maior a proximidade, maior a probabilidade de contato); força das ligações (grau de intimidade, reciprocidade, expectativas de duração e disponibilidade, intensidade emocional); densidade e integração dos contatos (quantidade de pessoas próximas); composição e homogeneidade dos membros (grau de semelhança entre indivíduos, tais como: idade, condição socioeconômica e outros); simetria (grau de reciprocidade dos relacionamentos); enraizamento social (identificação do indivíduo com seu meio) 10,13,14.
Por seu turno, a condição de enfermidade, por si só, coloca os indivíduos diante de limitações, impedimentos e situações que mudam a relação da pessoa com o trabalho, com seus familiares, amigos e parceiros, bem como abalam sua identidade. Muitas vezes, o enfermo experimenta fragilização da identidade, do próprio sentido da vida e da capacidade de resolver problemas que o afetam, já que tudo aquilo que organizava sua identidade é alterado de forma brusca com a doença10.
Debilitada, a pessoa reduz as iniciativas de trocas com seus contatos afetivos, fazendo com que as pessoas com quem se relacionava na sua rede social primária se afastem. Isso porque as relações sociais têm por base uma troca, em que se espera que a atenção oferecida seja retribuída na mesma intensidade. No caso específico da pessoa em sofrimento mental, nem sempre isso é possível.
A desvitalização do intercâmbio interpessoal cria uma espécie de círculo vicioso desintegrador das redes sociais que é observado em alguns casos entre os usuários da psiquiatria, e isso independe da patologia que os acomete. Esses processos tendem a ser potencializados de acordo com o grau de isolamento. Isso permite predizer que a presença de enfermidade crônica em uma pessoa reduzirá sua rede social, o que, dependendo da qualidade das interações, pode contribuir para o círculo vicioso de declínio da rede/enfermidade/declínio da rede15.
Uma das maneiras pelas quais podem ser compreendidas as influências positivas da rede social na saúde é a constatação de que a convivência entre as pessoas favorece comportamentos de monitoramento da saúde. São os chamados comportamentos corretivos, nos quais um chama a atenção do outro para mudanças visíveis - como irritação, por exemplo -, além de aconselhar e incentivar a adesão. Assim, as relações sociais também contribuem para dar sentido à vida, favorecendo a organização da identidade através dos olhos e ações dos outros6-9.
O apoio social é uma das estratégias da população para o enfrentamento dos problemas de saúde-doença por meio do estabelecimento de relações que envolvem a solidariedade e o cuidado. Os grupos religiosos podem ser entendidos como uma das formas de apoio social.
O apoio social que as redes proporcionam remete ao dispositivo de ajuda mútua, potencializado quando uma rede social é forte e integrada. Quando nos referimos ao apoio social fornecido pelas redes, ressaltamos os aspectos positivos das relações sociais, como o compartilhar informações, o auxílio em momentos de crise e a presença em eventos sociais.
Embora os mecanismos específicos pelos quais o apoio social influencia na saúde ainda não tenham sido completamente elucidados, estudos apontam que ele contribui no sentido de criar uma sensação de coerência e controle da vida, o que beneficiaria o estado de saúde das pessoas9.
O objetivo do estudo é compreender a inserção e a percepção dos membros da rede social de apoio que se forma nas agências religiosas em torno da pessoa em sofrimento mental.
METODOLOGIA
Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, descritiva, exploratória.
A pesquisa qualitativa tem como alvo compreender o comportamento e a experiência humana. Ela procura entender o processo pelo qual as pessoas constroem significados16.
O método qualitativo estuda as percepções e opiniões produzidas a partir das interpretações produzidas pelo homem em relação ao seu modo de vida. É um método que permite "investigar melhor segmentos delimitados e focalizados de histórias sociais sob o ponto de vista dos atores, de relações e para análises de discursos e de documentos" 17.
A fonte de informação para a pesquisa foi o relato dos 42 membros e representantes oficiais de seis agências religiosas (2 católicas, 2 protestantes e 2 espíritas) na região metropolitana da cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. Nos cenários da pesquisa, no período da coleta de dados, estavam inseridos como membros das agências pessoas em sofrimento mental.
O critério de inclusão utilizado pelos pesquisadores foi o aceite do colaborador após a apresentação dos objetivos da pesquisa e assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido. A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética e Pesquisa da UFMG, tendo parecer favorável de número ETIC 536/06.
O instrumento de coleta de dados é um roteiro de perguntas que se referiam a doença mental e religião. Também foi utilizado o diário de campo. Destes documentos foi compilado o material para análise.
A análise dos dados foi realizada por meio da análise de conteúdo, que é um conjunto de instrumentos metodológicos que se aplicam a conteúdos extremamente diversificados; sua aplicação oscila entre o rigor da objetividade e a fecundidade da subjetividade, incitando o pesquisador a perscrutar o que está descrito nas entrelinhas do material fornecido pelos sujeitos comunicantes18.
Os passos para análise seguiram as indicações do autor que propõe que os dados sejam organizados em três polos cronológicos, a saber: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados, inferência e interpretação.
Após percorrer esse caminho, a análise do material compilado aponta duas categorias empíricas: 'O que procura o sujeito em sofrimento mental nas agências religiosas' e 'O que encontra o sujeito em sofrimento mental nas agências religiosas'.
As entrevistas foram transcritas e identificadas por um nome fictício, garantindo assim o sigilo e anonimato do sujeito da pesquisa. Para apresentação das informações identifica-se também a agência religiosa a qual o colaborador pertence e se ele é ou não o seu líder religioso.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O que procura a pessoa em sofrimento mental nas agências religiosas
Historicamente a pessoa em sofrimento mental vive processos de exclusão tanto na família quanto na comunidade na qual está inserida. Depois de excluída do ambiente familiar, ela inicia a busca pela inclusão nos lugares anteriormente ocupados, entre eles a cidade.
Em alguns locais, o sujeito que observa a pessoa em sofrimento percebe a necessidade daquele indivíduo de se encontrar em um ambiente diferente do estipulado socialmente como sendo aceitável para ele e sua manifestação de estar no mundo em meio a sintomas que por si só são excludentes. Nesse local ele é percebido como alguém que busca estabelecer relações novas ou reatar antigas, e assim vivenciar a normalidade aceita pela sociedade18,19.
O doente mental encontra na religião um espaço para que ele possa entrar em contato com o outro, com outra pessoa, com outro Deus espiritual transcendente... E a gente fica perguntando por que a igreja, o templo, o espaço litúrgico atraem essas pessoas? Será que no religioso, no sagrado, há espaço para manifestação das suas anormalidades, do seu pensar diferente, da sua loucura? Então, eu percebo que o relacionamento com o "outro" e com a pessoa é um relacionamento limitado; é um relacionamento que tem normas, que tem regras. Já o relacionamento com o transcendente é uma via que não há sinais, a pessoa pode se transpor livremente, então pode ser que isso facilite essa busca pelo religioso. (Padre João - Igreja Católica)
A agencia religiosa é inclusiva, sua permanência naquele local assume, de forma direta ou indireta, um sentimento religioso que pode vir acompanhado de crenças ou práticas religiosas característica de cada universo religioso11,12.
As principais características do sentimento religioso congregam o sentimento de dependência, de consciência do mistério que envolve a vida, da necessidade de pertencer e de se sentir seguro, do medo, do amor e do maravilhar-se, da alegria de desejos múltiplos e da busca por um significado para a existência humana. O sentimento religioso é o que determina o tipo de orientação religiosa e gera múltiplas definições, sendo considerado um fenômeno complexo11.
É muito comum a pessoa que não tem uma prática religiosa, mas diante do desenvolvimento desse quadro (de doença mental), ele vem até a igreja para buscar Deus, uma cura, uma restauração. (José - membro Igreja Católica)
E quando eu me sinto muito angustiada por qualquer problema eu busco conforto na religião, na oração, numa prática religiosa. (Lourdes - membro Igreja Católica)
Após encontrar e se deparar com o outro transcendental, o sofredor passa a ser percebido de diferentes formas pelos sujeitos que encontra em seu caminho. Essa percepção tenta de alguma forma explicar por que a pessoa em sofrimento mental busca a agência religiosa, e, a partir desse ponto, é elaborado um modelo explicativo para o itinerário traçado por ela na sua busca por inserção em um novo espaço. Outro ponto é a questão da noção de desvio e a associação entre 'ter vida espiritual' e 'buscar a igreja como local de conforto' em oposição à 'não ter vida espiritual e procurar o médico'17.
Se a pessoa está apenas com um desvio, não é uma falha total que tira dela a razão, a consciência, ela pode se sentir melhor buscando conforto na oração, na visita à igreja. Se ela não tem essa piedade, se ela não tem esse hábito, se ela não tem vida espiritual, ela não virá procurar aqui. Ela vai para o consultório médico, ela vai para a psicanalista, mas não virá procurar aqui. (Lourdes - membro Igreja Católica)
Os estudos sobre religião e saúde mental encontram dificuldades quando se deparam com a definição desses conceitos, em geral quando existe a tentativa de operacionalizar o estudo dos dois; o tema torna-se complexo, e alguns autores apresentam sete tipos diferentes de conceitos para saúde mental. Eles podem ser divididos em dois grupos, um primeiro que afirma o que saúde mental 'não é' e o segundo que indica 'o que é'12.
É na falta ou existência de determinado traço da personalidade que se define o que é saúde mental, ou seja, o conceito de normal e anormal é relativo, sendo ambos influenciados e compreendidos de acordo com a cultura na qual o sujeito se insere.
Quando o sofredor guarda sua fé e preserva uma vida espiritual que lhe possibilita minimizar suas dores diante da instituição religiosa, por meio da oração e do conforto proporcionado por ela, o campo do sagrado se mostra eficaz e resolutivo. Nos casos em que não há fé, compreende-se que o percurso lógico e aceitável é que ele procure ajuda no consultório médico. Ambas as instituições, igreja e consultório, são compreendidas como entidades distintas, que nesse caso particular se excluem.
Outros motivos são elencados para explicar o por que as pessoas em sofrimento procuram as agências religiosas. São modelos explicativos elaborados por observadores atentos que diariamente trabalham questões como inclusão, aceitação e amparo do sujeito em sofrimento, mesmo que instintivamente.
[...] muitas pessoas procuram a religião como uma válvula de escape, é uma saída, é uma coisa que não paga, é uma coisa que você participa, que você sente acolhido. Pessoas com problema mental buscam ajuda na igreja, buscam a cura na igreja, ocupam o tempo na igreja e fogem dos problemas na igreja.. (Julia - membro Igreja Católica)
[...] de certo modo ele se sente bem dentro da igreja, e também o ambiente da igreja, que é mais silencioso, mais acolhedor... (Luciano - membro Igreja Católica)
[...] a maioria das pessoas que procuram as igrejas é justamente porque estão em momentos de crises, momentos de per turbação, momentos de dificuldades e ela encontra na igreja esse apoio que ela não encontrou em outros lugares. (Pastor Tito - Igreja Evangélica)
O impacto da religião sobre a saúde é um tema que gera discussões acaloradas e, na maioria das vezes, está baseado em opiniões pessoais e preconceito, embora existam estudos em todo o mundo que identificam tanto o impacto positivo quanto negativo nesse fenômeno que não pode ser ignorado pelos profissionais de saúde e pela política para a área, dada a sua relevância na vida das pessoas16.
Estudos realizados em diferentes países sobre o tema trazem resultados que não podem ser ignorados, tais como: pessoas que se dedicam a atividade religiosa relatam menos sofrimento mental; a participação institucional religiosa e a oração são consideradas fatores protetores para o adoecimento mental; mulheres e homens religiosos têm maior satisfação pessoal, conjugal e sexual, em contrapartida adolescentes religiosos têm menor autoestima, expressam sentimento de inadequação diante de seu grupo social e apresentam maior nível de ansiedade quando comparados a adolescentes não religiosos16.
Pesquisas apontam que quanto mais religioso o cidadão, mais preconceituoso e autoritário ele é, e que a religiosidade excessiva leva ao dogmatismo, intolerância, ambiguidade e rigidez. Outro dado importante é que pacientes filiados a agências religiosas admitidos em enfermarias psiquiátricas permanecem internados por menos tempo dos que aqueles que não professam uma religião. São dados compilados em um estudo recente sobre a influência da religião sobre a saúde mental em seus diferentes aspectos e que merecem uma análise aprofundada, principalmente em relação as questões metodológicas16.
Existe uma explicação para a dificuldade em procurar a religião como local de apoio.
Esse que não tem prática religiosa eu acho que ele deveria entrar e tentar, se ele é evangélico, se ele é espírita, se ele é católico, ele deve procurar também a parte da religião cristã, uma crença. Porque Deus é um só. Talvez ele não procurou por vergonha ou com medo de achar que tem uma doença grave, que ele tem um problema psíquico, os colegas dele vão rejeitar. Vai ver muitas pessoas têm medo da rejeição. Ah eu não vou na igreja porque vão achar que eu sou isso, sou aquilo, ou tenho um problema mental e vão me chamar de doido, não é isso. Por que eu uso droga eu não vou entrar ali. Por que não? ele tem que procurar esse Deus porque é Deus que vai encaminhá-lo. Não adianta ter só o tratamento com psiquiatra eu acho que ele deveria procurar também a prática da fé. (Eduardo - membro Igreja Católica)
O processo do adoecimento implica uma situação de vida nada confortável para a pessoa em sofrimento e para quem o cerca. A visão divinatória da loucura foi esquecida e o que se observa hoje, quer seja por curiosidade ou pela real necessidade do homem de perscrutar a mente humana, é a necessidade de compreender o que deflagra a loucura, onde se localiza a desrazão e porque ela desafia a razão a todo instante6-8.
Orientado por sistemas próprios que nem sempre compreendemos, a pessoa em sofrimento se questiona e é questionada a todo o momento por suas ações. Esses questionamentos em particular se apresentam quando a doença define ou compromete sua dimensão física e psíquica.
As explicações para a busca de ajuda nas agências religiosas são dadas por quem não vivencia o sofrimento, algumas são totalmente factíveis outras não. O interessante dessa construção de modelos explicativos é o fato de que a busca por Deus é um investimento válido para o mundo da religião, independente do sofrimento do indivíduo. Nesse caso, o tratamento médico sozinho não é indicado, pois ele não responde a todas as necessidades do sujeito em sofrimento, que a
priori necessita resgatar seu sistema de referência, incluindo o religioso11.
O que encontra a pessoa em sofrimento mental nas agências religiosas
Historicamente, no processo de construção social da pessoa em sofrimento mental, ela foi excluída e isolada do convívio social em manicômios ou em casa, longe dos grandes centros urbanos quando os familiares possuíam recursos financeiros para tal.
O sentido do internamento após a reforma psiquiatria começou a mudar e essa que antes era uma prática terapêutica sem volta, hoje pode ser considerada apenas como uma das possibilidades de tratamento na crise. Infelizmente podemos apontar que alguns aspectos dessa construção social não se modificaram completamente, o doente mental em alguns casos ainda é isolado, excluído e condenado moralmente por seus pares devido a sua condição psíquica. A desestruturação completa dos laços sociais é definida como morte social11.
Na agência religiosa, o sujeito em sofrimento pode se expressar e não é discriminado pelo seu sofrimento. Nesse local existe a preocupação em compreender o porquê de determinado comportamento desviante; e, apesar de este sujeito ser identificado como alguém que apresenta comportamento inadequado diante de seus novos pares, ele é acolhido12.
[...] às vezes a pessoa nunca teve um relacionamento bom dentro da família e às vezes, [...] ela não tem um relacionamento, não teve uma boa convivência. Isso para ela é um prato cheio para ter todas as manifestações, e às vezes ela vem ter isso onde? Aqui, porque em casa ela tem que ser a durona ou durão. Mas quando chega aqui a gente começa a ver como ela trata as pessoas, porque as pessoas reclamam "olha aquela pessoa tá surtando, aquela pessoa é louca [...] porque às vezes ela tá precisando ser acolhida". (Ellen - membro Igreja Católica)
Os cultos, agências, práticas e crenças religiosas em dado momento são significativamente positivos no tratamento da pessoa em sofrimento, quando comparado ao oferecido pela medicina oficial, pois o primeiro busca a compreensão do fenômeno do adoecimento dentro de um contexto sociocultural mais amplo do sofredor. Há nessa prática uma preocupação constante em não despersonalizar o sujeito e constantemente reinseri-lo em um novo contexto de relacionamentos11-13.
Eu procuro a igreja por prazer, não para tapar buraco de alguma deficiência na minha vida, até porque a maior deficiência da minha vida foi ter perdido meu marido, a igreja não me dá outro! Não me dá ele de volta. (Lourdes - membro Igreja Católica)
A pessoa em sofrimento, quando busca a agência religiosa, depara-se com diferentes formas de acolhimento, ela identifica a melhor entre o leque que lhe é oferecido para minimizar e superar seu sofrimento. O que a igreja e aqueles que ela encontra podem ou não fazer em seu benefício também é identificado.
[ ...] tem uns 30 anos que eu encontrei a doutrina espírita, em um momento muito difícil, um momento de perturbação em minha vida, em que eu tinha perdido uma filha de 18 anos em acidente de carro e eu encontrei um caminho, encontrei a vida, encontrei a paz, encontrei aquilo que eu precisava. Sem o fanatismo, sem achar que eu estou certo, não! Foi o caminho que eu encontrei, e é isso que eu procuro passar as pessoas: o meu encontro para aqueles que chegam à procura desse encontro. (Rita - membro Centro Espírita)
Às vezes pessoas que entram na igreja tem que passar por todos os santos da igreja. Aqui mesmo tem disso, tem que passar por todas as imagens, ajoelhar, beijar, fazer uma oração. Então, cria um ritual, aí vai por toda igreja. Então a gente pergunta o que o santo, a imagem, o terço, o ritual, o que isso contribui ou o que isso acrescenta ou por ele tem TOC (transtorno obsessivo compulsivo)? Penso que seja uma forma de aliviar um pouquinho a ansiedade existente na pessoa, uma forma de que ela se sinta mais aceita, acolhida. (Padre João - Igreja Católica)
O apoio de uma rede social que se mostra sensível aos problemas e dilemas vividos pela pessoa que sofre é importante. Observa-se ainda que em nenhum momento o comportamento considerado diferente é proibido, normatizado ou censurado. A expressão e compreensão do sofrimento e o modo como ele se expressa são particulares, e, sendo respeitados, no âmbito do sagrado, isto é valorizado, e curado é aquele que encontra seu caminho13-18.
[...] normalmente as pessoas, quando buscam nossa casa, tem duas motivações para estar na casa espírita: o amor ou a dor. Mas de 90% vem pela dor, pelas dificuldades, pela doença, vem em busca de uma resposta, vem em busca de uma solução, vem em busca de uma mudança, de um milagre, que nós sabemos que não existe. E que as pessoas vem, aguardando encontrar aqui uma modificação dos seus quadros. Ao chegarem, se defrontam com uma realidade que nós expomos, uma realidade do espírito. (Mateus - membro Centro Espírita)
O uso da religião pode ser classificado em: religião do tipo meio, fim e busca. A religião do tipo meio é aquela utilizada para atingir finalidades como, por exemplo, bons negócios na coletividade,
status social mais elevado, etc. A religião do tipo fim envolve a verdadeira crença, em que os relatos descritos no livro sagrado representam a resposta e o caminho final ao ser humano1-5.
A religião do tipo fim considera que o indivíduo enfrenta as questões existenciais resistindo às respostas dos relatos dos livros sagrados, posicionando-se na situação da incompletude do conhecimento e buscando o seu aperfeiçoamento.
O próprio desencadeamento do processo de adoecimento impulsiona o indivíduo e seus pares em busca de soluções, que vão desde a busca pelo tratamento convencional, passando pelos tratamentos não convencionais, até as práticas religiosas; o que importa naquele momento é a compreensão, o significado do processo, como, onde e por que o indivíduo saudável passou a ser doente. Observa-se a prática e a fé religiosa agindo sobre a vida moral do sujeito e determinando o comportamento que ele deve ter ou não diante do sofrimento infringido pelo transtorno mental.
No ambiente religioso a pessoa em sofrimento também recebe orientação e encaminhamento quando necessário, respeitando a individualidade do sujeito e os limites de cada um.
Então, na minha igreja a orientação é essa, o pastor vai acompanhar, vai estar junto da pessoa, família, comunidade, mas a orientação é que ela procure um tratamento profissional. (Joana - Igreja Protestante)
[...] chega determinado momento, que nós entendemos que, além do acompanhamento pastoral, do aconselhamento, do apoio, da conversa, é necessária a participação de um profissional da área de saúde. É muito comum encaminharmos para o psicólogo, médico psiquiátrica. (Pastor Tito - Igreja Evangélica)
Em alguns momentos, os ministros religiosos e as pessoas que fazem parte dessas agências são proativos em relação ao cuidado com o sujeito em sofrimento. Nesse momento ele é encaminhado para o cuidado especializado que pode lhe dar respostas além do que é possível no âmbito da igreja, templo ou casa espírita. Cabe o acompanhamento de um profissional diante da angústia que o sofredor vivencia. A procura por um milagre, pela salvação e cura, deixa de ser do âmbito exclusivo da fé e do sagrado e passa a não excluir a ciência e a medicina do repertório de possibilidades para o retorno à saúde.
O preconceito e o estigma ainda estão presentes quando se fala em transtorno mental, mas observa-se uma mudança no comportamento e no discurso do próprio sujeito que sofre ou sofreu por conta dele. Esse discurso é acolhido no ambiente religioso.
[...] porque às vezes a família renega, e às vezes a pessoa não quer procurar um tratamento psicológico. Porque ainda existe o mito que o psicólogo é médico de doido, é o profissional que cuida de doido e a gente vê isso, eu vejo aqui na igreja, e até mesmo na minha vida, se você fala: "eu faço terapia" ou "eu já fiz terapia", "nossa você era louca?" porque as pessoas não sabem nem o que é uma doença mental. Tem esse desconhecimento, na igreja, a gente vê isso,[...] (Ellen- membro Igreja Evangélica)
[...] a gente vê algumas pessoas que têm problemas mentais, por exemplo, que têm um descontrole, que usam remédios, e creio que podem ter uma vida normal como outra pessoa qualquer; ela tem uma espécie de fuga na religião com a busca, que ela está tendo por alguma coisa, e isso pode ajudá-la na recuperação. (Oscar - membro Igreja Evangélica)
O entendimento de que o transtorno mental deve ser uma patologia que merece acompanhamento como qualquer outra se faz presente nesse discurso, assim como o discurso da dificuldade de uma parcela da população em compreender essa realidade.
As particularidades dos transtornos mentais são equacionadas diante da necessidade de ajudar o outro, e a religião em alguns casos é compreendida ora como um refúgio seguro onde o sujeito pode expressar seus sentimentos, ora como uma fuga para o enfrentamento das adversidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O esforço para compreender a relação dinâmica entre doença mental e religião tem desdobramentos que fazem o pesquisador repensar suas representações acerca do transtorno mental e de todo o encadeamento de ações direcionadas para o acompanhamento do sujeito em seu sofrimento, que é particular e único
A rede social de apoio, composta pelos sujeitos dessa pesquisa, movimenta-se e se desloca diante do entendimento e da interpretação do sagrado, compreendela é uma tarefa que merece dedicação e flexibilidade, dado que a mola propulsora desse deslocamento é algo tão poderoso como é o sofrimento e a fé.
Apreender esse fenômeno em sua totalidade não é possível, pois ele é permeado por questões que perpassam desde a subjetividade de cada sujeito colaborador da pesquisa até a compreensão do comportamento humano. Seria pretensioso considerar o fenômeno em tela como algo totalmente compreensível a nossa razão e sujeito a teorias e números que possam definitivamente explicá-lo.
O que a pessoa em sofrimento procura nas agências religiosas, seja qual for sua orientação, é aceitação, acolhimento, continência e sentimento de pertença diante de um mundo que nem sempre o compreende. O mundo da razão nem sempre está pronto para perceber e conviver com a complexidade e singularidade da desrazão e seus atravessamentos.
O elemento motivador para procurar o alento da religião é o sofrimento, quando o sofredor encontra esse alento ele permanece fiel ao local e às pessoas que encontrou e lhe proporcionaram tal sentimento.
A pessoa em sofrimento encontra apoio e compreensão para sua vida e seu momento singular. A rede social de apoio nas agências religiosas assume seu papel de protagonista e não abandona aquele que a procura. Ela aconselha, acolhe e encaminha quando necessário, mas não o exclui.
Diante da complexidade do tema é necessária a reflexão por parte do pesquisador que se debruça sobre ele, cabe também a revisão necessária de conceitos que perpassam a realidade vivida pelo sujeito em sofrimento mental.
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