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CAPES

Volume 14, Número 3, Jul/Set - 2010

PESQUISA

 

Hermenêutica e o cuidado de saúde na hipertensão arterial realizado por enfermeiros na estratégia saúde da famíliaª

 

Hermeneutics and health care in hypertension performed by nurses in family health strategy

 

Hermenéutica y atención de salud en hipertensión realizada por enfermeras en la estrategia de salud de la familia

 

 

Janieiry Lima de AraújoI; Elisabete Pimenta Araujo PazII; Thereza Maria Magalhães MoreiraIII

IMestre em Cuidados Clínicos em Saúde. Área de Concentração: Enfermagem (CMACCLIS), Universidade Estadual do Ceará (UECE). Professora Assistente IV do Curso de Enfermagem, Campus Avançado Profa. Maria Elisa de Albuquerque Maia (CAMEAM), Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Pau dos Ferros, RN. Bolsista PROCAD-CAPES (CMACCLIS-UECE/EEAN-UFRJ). Pau dos Ferros-RN-Brasil. E-mail: janierylima@uern.br
IIDoutora em Enfermagem. Professora Adjunta IV do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Enfermagem e Saúde Coletiva EEAN/UFRJ. Tutora PROCAD-CAPES na EEAN. Rio de Janeiro-RJ-Brasil. E-mail: bete.paz@gmail.com
IIIDoutora em Enfermagem. Docente dos Mestrados Acadêmicos em Cuidados Clínicos em Saúde. Área de Concentração: Enfermagem (CMACCLIS) e em Saúde Pública (CMASP) da Universidade Estadual do Ceará. Docente do Doutorado em Saúde Coletiva com Ampla Associação de IES (UECE-UFC). Líder do Grupo de Pesquisa Políticas, Saberes e Práticas em Saúde Coletiva. Pesquisadora CNPq. Fortaleza-CE-Brasil. E-mail: tmoreira@uece.br

 

 


RESUMO

A hipertensão arterial acomete 20% dos brasileiros, acarreta alta mortalidade e custos financeiros. Este estudo objetivou compreender os sentidos atribuídos ao cuidado de saúde na hipertensão por enfermeiros na Saúde da Família em Pau dos Ferros/RN. Aplicou-se entrevista semiestruturada a 11 enfermeiros das equipes. Na análise utilizou-se a hermenêutica de Gadamer. Como significados do cuidado de saúde, obtiveram-se: o cuidado não é realizado em equipe; o enfermeiro ocupa-se com atividades educativas eventuais e a organização do trabalho das equipes; falta apoio da gestão local ao programa de acompanhamento e controle da hipertensão. Os sentidos destes significados apontaram que o trabalho das equipes se mostra inautêntico com a proposta da Saúde da Família; os enfermeiros estão desmotivados para desenvolver a educação em saúde devido à baixa adesão dos usuários, mas as reconhecem como essenciais; e necessitam de apoio da gestão de saúde para realização de um cuidado sistematizado que atenda as necessidades de saúde.

Palavras-chave: Cuidados de Enfermagem. Hipertensão. Programa Saúde da Família. Filosofia em Enfermagem.


ABSTRACT

Hypertension affects 20% of Brazilians, causes high mortality and financial costs. This study aimed to understand the meanings attributed to health care in hypertension by nurses in the Family Health in Pau dos Ferros/RN. A semi-structured interview was applied at 11 nurses of the teams. In the analysis it was used the hermeneutics of Gadamer. The meanings of health care obtained were: the care is not realized in team; nurse is concerned with the educational activities and organize the work for the teams; lack of support from local management to the monitoring program and hypertension control. It was noticed that the work from the teams were inauthentic with the Family Health program proposed. The nurses are not motivated to develop health education due to low compliance of users, but are recognized as essential; which need support in healthy management to perform a systematic care that meets the health needs.

Keywords: Nursing Care. Family Health Program. Hypertension. Philosophy Nusing.


RESUMEN

Hipertensión conflictual acomete 20% de los brasileños, implica alta mortalidad y gastos financieros. Este estudio objetivó comprender el significado asignado a la atención de la salud en hipertensión arterial por enfermeras en la salud de la familia en Pau dos Ferros/RN. Entrevista aplicada semi-estructurada a 11 enfermeras de equipos. El análisis utiliza hermenéutica de Gadamer. Como significados de salud se encontró: el equipo de atención médica no se celebra en conjunto; la enfermera se ocupa con actividades educativas y de la organización de la labor de los equipos; no cuentan con el apoyo de la supervisión del programa de gestión local y el control de la hipertensión. Los sentidos de estos significados apuntaron que la labor de los equipos se muestra sin autenticidad con la propuesta de salud de la familia; enfermeras no tienen motivación para desarrollar la educación en salud debido a la baja adhesión de los usuarios, pero la reconocen como esencial; que requieren soporte de administración de salud para llevar a cabo una cuidadosa pieza sistemática que se adapte a las necesidades de salud.

Palabras Claves: Atención de Enfermería. Programa Salud Familiar. Hipertensión. Filosofía em Enfermería.


 

 

INTRODUÇÃO

As doenças cardiovasculares no Brasil nos últimos cem anos aumentaram sua incidência entre os grupos populacionais, e este fato deve-se às modificações nos modos de produzir e reproduzir vivenciados pela sociedade contemporânea. Tais transformações desencadearam a necessidade de novos estilos de vida entre os indivíduos, o que determinou o surgimento de distintos modos de adoecimento e morte nos diferentes grupos sociais homogêneos, ou seja, aquelas pessoas que compartilham de semelhantes formas de vida e do perfil de morbidade.1

Com o desenvolvimento social, econômico e tecnológico, associado às descobertas científicas no campo das ciências da saúde ocorridas no final do século XIX e início do século XX, as condições de vida das populações tornaram possível a diminuição da mortalidade geral, especialmente pelo controle das doenças infecciosas, o que contribuiu para um novo quadro demográfico e epidemiológico, com predomínio de doenças crônicas não infecciosas, como as do sistema cardiovascular, que passaram a representar a primeira causa de morte entre adultos na maioria dos países desenvolvidos no Ocidente.1

As doenças cardiovasculares são responsáveis por 284.685 dos falecimentos em 2004 no Brasil e representam 25% da mortalidade geral, com 10,1% da mortalidade geral para doenças cerebrovasculares e 9,7% para isquemias cardíacas, sendo a associação à hipertensão arterial fator de risco para tais doenças.2

No grupo dessas doenças, temos a hipertensão arterial em destaque, visto que sua prevalência atinge 20% da população adulta nas suas diferentes classes sociais, etnias, raças e culturas. Há, entretanto, diferenças na repercussão da doença na vida humana, a depender da inserção social do indivíduo e da organização dos serviços de gestão e cuidado em saúde à sua disposição. Concretamente, 'ser hipertenso' poderá gerar déficits no processo saúde-doença individual e/ou coletivo, influenciado pelos determinantes sociais e de saúde distintos.

Em relação à magnitude, o problema da hipertensão arterial para o Sistema Único de Saúde é um dos mais importantes. Dos 35% da população diagnosticada com HAS (17 milhões de brasileiros), 75% do atendimento deste grupo é realizado na Atenção Primária por serviços ligados ao SUS, o que determina a necessidade de investimentos financeiros constantes para o desenvolvimento das ações ligadas à promoção, prevenção e tratamento, mas, principalmente, na recuperação dos acometidos por complicações dessa doença decorrente do mau controle pressórico no decorrer da vida.3

A resposta integrada de cuidado às doenças crônicas não infecciosas, como também à hipertensão arterial, é influenciada pela combinação de estratégias multiprofissionais e a coletividade, desenvolvimento de políticas públicas saudáveis, de campanhas de comunicação, marketing social, reorientação dos serviços de saúde para o trabalho interdisciplinar e a intersetorial, estratégia individual voltada ao manejo dos fatores de risco e das doenças crônicas não infecciosas e implantação de um sistema de vigilância à saúde.3

Outra situação que agrava a saúde da população adulta deve-se a ineficácia e iniquidade dos serviços de saúde ofertados nos espaços locais de construção das políticas de gestão e de cuidado. Estes fatores representam um dos pontos de estrangulamento para a efetivação das ações de acompanhamento e tratamento da hipertensão nos serviços primários de saúde, associado à não adesão terapêutica do usuário e práticas profissionais fragmentadas, com base no paradigma biomédico que traz em sua concepção a cura do corpo mediante intervenções focadas na clínica tradicional.4

Para conhecer como se processam as práticas cotidianas de cuidado em saúde realizadas por enfermeiros junto aos adultos hipertensos assistidos pelas equipes da Estratégia Saúde da Família no município de Pau dos Ferros/RN, nos propusemos a investigar esta realidade assistencial, pois o tratamento da hipertensão arterial sistêmica não se dá de modo unidirecionado e sofre influência dos costumes e hábitos de vida que os indivíduos assumem ao longo de sua existência.

Este artigo apresenta um dos objetivos da pesquisa, que foi compreender os sentidos atribuídos pelos enfermeiros da Estratégia Saúde da Família às ações de cuidar que realizam junto aos usuários cadastrados no Programa de Acompanhamento e Controle da Hipertensão Arterial em Pau dos Ferros/RN.

 

MÉTODO

Pesquisa qualitativa que utilizou a abordagem hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. Este artigo apresenta os resultados encontrados na pesquisa "Sentidos do Cuidado na Hipertensão Arterial na Saúde da Família para Enfermeiros e Usuários: uma aproximação à hermenêutica gadameriana realizada no Mestrado Acadêmico em Cuidados Clínicos em Saúde da Universidade Estadual do Ceará e no Mestrado Sanduíche na Escola de Enfermagem Anna Nery (UFRJ). O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará (CEP-UECE) sob protocolo nº 08622973-7, emitido em 20 de março de 2009.

A pesquisa foi realizada no município de Pau dos Ferros/RN, localizada na mesorregião do Alto Oeste Potiguar. A população recenseada e estimada é de 26.728 habitantes, e cerca de 90% da sua população é urbana. O município conta atualmente com 27 estabelecimentos de saúde. Em relação à assistência primária, o município conta com 11 Unidades Básicas de Saúde (UBS), que funcionam como Unidades Saúde da Família, o que representa uma cobertura total da população adscrita no Sistema Local de Saúde.5

Para coleta dos dados, aplicou-se entrevista semiestruturada com 11 enfermeiros integrantes das equipes de saúde da família de Pau dos Ferros/RN. O critério de inclusão para os participantes foi: a existência do programa de acompanhamento às pessoas com HAS na UBS onde o profissional atua. Os critérios de exclusão para o referido grupo foram: o enfermeiro encontrar-se de férias ou gozando de licença de qualquer natureza durante o período de coleta de dados; e estar atuando na unidade como substituto.

As entrevistas foram agendadas e gravadas após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A análise do material constou de três fases: na primeira foi feita a transcrição das falas e organização dos trechos comuns. Na segunda, buscou-se apreender nas falas dos depoentes os significados atribuídos aos questionamentos; e a terceira fase buscou identificar o sentido oculto nestes significados a partir dos pressupostos de Hans-Georg Gadamer nas obras Verdade e Método I e II e O Caráter Oculto da Saúde.

Para o entendimento do texto foi desenvolvido um processo de juntar a parte e o todo, de forma que sempre houvesse a incompletude textual. Gadamer6 chama isto de circulo hermenêutico, ou seja, a lógica interna da compreensão hermenêutica. Para ele, é fundamental que se compreenda o todo de um texto. Esta compreensão só se fez quando compreendemos este todo a partir de suas partes e estas a partir do todo. Nesta interpretação, não partirmos do ponto zero, como se nada conhecêssemos. Ao contrário, já tínhamos uma pré-compreensão daquilo que nos propúnhamos interpretar, pois a compreensão apenas se tornou explícita quando as partes que definiram este todo foram compreendidas e constituiu o todo do texto.

 

RESULTADO

Após a organização das entrevistas com os enfermeiros, foram construídas as unidades de significados (US). O conjunto dessas US representa a compreensão imediata sobre os significados atribuídos por nossos depoentes em relação ao cuidado de saúde que oferecem como ações de acompanhamento e controle da hipertensão arterial nas Unidades de Saúde da Família.

US-1: O cuidado em saúde realizado pelos enfermeiros não é integrado com o de outros profissionais.

Deveria haver um contato profissional/profissional mais apurado. A gente registra tudo no prontuário, mas e aí? Será que só saber que você prescreveu Captopril® é importante?(ENF-C)

Porque eu já conversei, eu sempre passo para a secretaria que nós temos que trabalhar em conjunto...(ENF-D)

(...) o acompanhamento médico, para variar, é aquele acompanhamento solto... Ele não é integral (...) E é assim: Aí eu fico conversando com o médico, o senhor vai atender ele?! Aí ele fica falando, respondendo, que vai e que não vai. Aí você se sente só. Porque se tiver algum problema, uma coisa que seja mais grave (...). Eu me preocupo muito. E eu naquela luta. Se acontecer qualquer coisa, você tem que correr atrás...(ENF-G)

O não trabalhar em equipe gera nos enfermeiros a sensação de estarem sozinhos ao executar as ações de saúde com a população, pois estes não conseguem estabelecer ações coletivas com os médicos. Sentem-se sobrecarregados com as outras atribuições à população adscrita e com a organização dos serviços das USF. Colocam que têm dificuldades para dialogar com os demais membros da equipe no dia-a-dia da unidade de saúde.

O trabalho fragmentado e individual não favorece ao enfermeiro condições para modificar sua atuação, que se encontra focada na organização das ações individuais, repetindo um modelo que, ao invés de aproximá-lo dos princípios do trabalho em equipe, que considera os problemas e as necessidades de saúde dos usuários na coletividade, afasta-o da população e do próprio movimento de integração entre as ações que a USF é capaz de oferecer.

US-2: O cotidiano do cuidado realizado por enfermeiro compreende realizar atividades educativas eventuais e organizar e administrar o trabalho das equipes.

Nesta unidade, os enfermeiros expõem como realizam suas atividades no cotidiano das USF. Eles estão envolvidos na realização de tarefas que englobam atividades educativas eventuais, atendimentos individuais ao usuário com HAS e a execução de ações administrativas do processo de trabalho das equipes de saúde.

Eu trabalho com ações educativas e atendimento é... Demanda livre com os hipertensos. A atividade educativa é mensal ou de dois em dois meses, com a gente da unidade. Aí é orientação da medicação, sobre a conduta médica, não é? Muitas vezes eles ficam com dúvida. Às vezes, querem mudar, quando não estão se sentindo bem. A gente encaminha novamente para procurar o médico. É orientação alimentar. É encaminhamento que a gente pode fazer para nutricionista. Na necessidade... e solicitação de exames também, que a gente pode fazer e encaminhar para o médico na unidade.(ENF-I).

A hipertensão, nesta Unidade de Saúde, com relação à parte da enfermagem, é feita única e exclusivamente pela dispensação da medicação. Eles não têm nenhum tipo de cuidado a mais. Ele [o usuário] vem com a carteirinha. Por isso, digo que é um despacho, por que a gente não faz nem essa avaliação. Ele vem com essa carteirinha e diz: "minha medicação acabou". E aí a gente olha qual foi a medicação do mês anterior e transcreve a medicação, somente isto. (...) E o que eu posso fazer? Muitas vezes é o que acontece. São alguns poucos esclarecimentos sobre alimentação, atividade física, quando vêm receber essa medicação. Mas eu não concebo isso como acompanhamento. Eu não concebo! Acho bastante falho.(ENF-E).

As atividades individuais e coletivas desenvolvidas nas unidades são relacionadas à orientação para mudanças no estilo de vida, esclarecimentos sobre como tomar a medicação corretamente (incluindo a transcrição da receita mensal), sobre a importância da incorporação de uma alimentação saudável e encaminhamentos aos outros profissionais que dão apoio à ESF local. No entanto, percebem que suas ações são limitadas em relação às suas atribuições definidas pelo Plano Nacional de Reorientação do Acompanhamento e Controle da HAS. Há tal avaliação, pois suas atividades não ocorrem de forma sistemática e dependem diretamente do interesse do usuário em participar das ações coletivas de educação em saúde ou ida à USF para consultas individuais com os enfermeiros.

US-3: Para os enfermeiros há falta de apoio da gestão ao trabalho nas Unidades e as ações do Programa de Controle da Hipertensão Arterial.

A unidade mostra que os enfermeiros se sentem desassistidos pela gestão local de saúde para realizarem o seu trabalho junto aos usuários com HAS, com sobrecarga de responsabilidades que inviabiliza que se dediquem ao cuidado de pessoas com HAS. O trabalho das equipes de saúde, teoricamente, permitiria uma abordagem multidisciplinar com vistas à resolução dos problemas e necessidades de saúde apresentados pelos usuários, garantindo, assim, o cuidado integral ao indivíduo, mas isto não ocorre na visão dos enfermeiros.

(...) Nós estamos numa unidade, como você vê que não tem estrutura física adequada para uma unidade de saúde. A gente não tem sala de espera, não tem sala de reunião. Você já imaginou eu ter que organizar alguma coisa aqui? Eu não tenho como! Fico de mãos atadas. (...) Sugestões para melhoria da assistência a gente tem muitas, mas muitas vezes não tem como colocá-las em prática. Infelizmente, pela falta de tempo e pela estrutura da unidade. (...) Sempre vêm as coisas para gente fazer de hoje para amanhã. Então, sempre existem coisas que vão atropelando, que a gente deixa de fazer. Então, a gente tem vários programas para dar conta. Tem várias coisas para dar conta, vários papéis para preencher, várias produções para fazer. E aí, muitas vezes não sobra tempo, nessas 20 horas, para desenvolver uma atividade mais de impacto. Não dá!(ENF-A)

Eu acredito que têm que ser desprendidos mais recursos para trabalhar mais ações educativas. Não tem como fazer educação sem investimentos financeiros.(ENF-J)

Que dê apoio à formação de grupos, de fazer atividade física... Um envolvimento de material educativo, mais investimento nessa parte, sabe? A gente não tem muito esse apoio. A gente trabalha, trabalha muito... pela boa vontade do profissional de querer.(ENF-K)

Os poucos recursos disponibilizados para a execução do trabalho de educação em saúde parecem ser marcantes para o grupo de entrevistados, pois limita a difusão das informações sobre a saúde e o cuidado na hipertensão arterial, tanto para hipertensos quanto para a comunidade. Não se trata apenas da restrição de recursos financeiros para apoiar tais atividades, e sim do apoio logístico, como material educativo para distribuição nas comunidades, de dotar as unidades saúde da família de infraestrutura física adequada que favoreça o acolhimento e o trabalho coletivo de reestruturação do modelo assistencial.

 

DISCUSSÃO

A partir da análise hermenêutica que busca identificar o sentido oculto nos significados, procurou-se apreender o modo de vivenciar a 'experiência do cuidado de saúde' por quem o realiza no cotidiano das USF de forma a atingir os objetivos propostos. É importante considerar que a hermenêutica gadameriana não está limitada apenas ao que se apresenta no texto escrito, a partir das transcrições advindas das entrevistas obtidas. A hermenêutica procura responder às questões relativas ao "ser de cada um de nós e a sua facticidade".

O sentido que as unidades de significados velam pode se dá pela compreensão do mundo dos enfermeiros, mundoeste que é permeado de ocupações, tarefas individuais coletivas e preocupações que são próprias das situações imediatas (mundo ôntico).

Os resultados mostraram que os enfermeiros atuam com dificuldades para realizar o que consideram ser importante para cuidar do grupo de usuários. Tais dificuldades estão relacionadas à forma como o trabalho em saúde na Estratégia Saúde da Família está organizado neste cenário que privilegia as ações curativas e o trabalho individual dos profissionais de saúde.7

Este modo de organização da dinâmica local dos serviços não facilita que os enfermeiros coloquem em ação modos de cuidar particularizados e dialógicos, que atendam às necessidades de saúde daqueles usuários que procuram as USF.

O cotidiano assistencial do tratamento a este grupo em Pau dos Ferros/RN tem como eixos centrais do cuidado: a consulta médica e a dispensação dos medicamentos. Na tradição dos serviços de saúde local, o cuidado necessita organizar-se de modo que o trabalho dos profissionais seja coletivo, sistemático e em um continuum, onde cada usuário saiba o que precisa ser feito, desde o momento que este chega à Unidade de Saúde até o momento do seu retorno para determinado procedimento ou atendimento profissional.

Esta forma de organização integra um conjunto de protocolos normatizados pelo Programa Nacional de Acompanhamento e Controle da HAS, no qual cada município, aderindo à proposta, coloca em prática modos de cuidar de acordo com suas experiências, perfil epidemiológicos da população, capacidade instalada de serviços de saúde e disponibilidade de atendimento dos seus profissionais. Parte deste programa é a adesão pelas secretarias municipais de saúde ao HIPERDIA.8, 9

Em Pau dos Ferros, os enfermeiros preocupam-se com a alimentação do Sistema HIPERDIA, atitude positiva que não pode ser confundida com o cuidado a este grupo pela ESF, pois o HIPERDIA se constitui somente no Sistema de Informação e Cadastramento dos Usuários; portanto, uma estratégia organizativa e logística de formação do banco de dados sobre a saúde clínica e epidemiológica da clientela cadastrada nas áreas de atuação da ESF.8

O modo de cuidar evidenciado nesse estudo mostrou que o princípio da integralidade do cuidado, este valorizado pela Estratégia de Saúde da Família, não consegue se efetivar nas Unidades. O trabalho das equipes se mostra inautêntico com a proposta da ESF, que preconiza ações coletivas de saúde realizadas em equipe.10

Quando não são consideradas as complexidades do usuário e sua experiência diante do desequilíbrio da sua saúde, há dificuldades em se obter resultados positivos com a decisão terapêutica.

Esse modo de cuidar centrado na doença, e não na pessoa humana, sobressai no discurso dos enfermeiros que atuam na realidade em estudo:

"Na mente deles, medicações para hipertensão e diabetes se equiparam à medicação psicotrópica, controlada com receita específica. Mas eles têm esse estigma de serem dependentes de medicação. Então eles, simplesmente, querem tomar medicação somente quando a pressão está alta". (ENF-F)

Esta visão medicalizante da saúde não é uma característica exclusiva do cuidado de saúde oferecido na ESF de Pau dos Ferros. Estudos sobre o adoecimento crônico revelam que há a valorização da medicação no tratamento das doenças crônicas e que a adoção de um estilo de vida saudável é necessária para o tratamento apropriado, entretanto, é de difícil adesão no cotidiano do cuidar da saúde.11,12

Neste sentido, é importante considerar que o modo de cuidar baseado apenas no controle dos níveis pressóricos com uso contínuo de medicamentos anti-hipertensivos, sem considerar o contexto e o existencial da pessoa hipertensa, não aproxima o(s) profissional(is) do sentido de equilíbrio que é a saúde do homem. O usuário deve ser visto como um ser complexo e único, que vive sua saúde e doença a partir do cotidiano existencial.

O ato de cuidar na contemporaneidade não é direcionado à manutenção da saúde, mas ao controle da doença. É na capacidade terapêutica dos profissionais de saúde em dominar a doença que se constroem modos de cuidar impessoais, que não cuidam das pessoas, mas de suas perturbações. Dessa forma, no cotidiano atual do cuidado: A saúde não chama atenção por si mesma, pois é a doença que toma a dianteira no encontro terapêutico.13

Os enfermeiros das equipes de saúde da família de Pau dos Ferros não estão conseguindo atuar satisfatoriamente no modelo programático das ações de cuidar da hipertensão arterial, nem no modelo da vigilância à saúde, situação evidente no privilégio do atendimento à demanda espontânea. Tal situação reforça a necessidade da utilização do planejamento das ações de base populacional segundo critérios clínicos e epidemiológicos pelas equipes, bem como da avaliação da efetividade das ações dos serviços ofertados nas USF.

Pensar a saúde a partir do olhar objetivante da ciência é desconsiderar que "(...) o corpo é vida, é o vivo; alma é o que anima, de modo que, no fundo, ambos já estão refletidos um no outro (...)"13:103.

No cuidado da saúde, objeto é o homem, é o corpo biologicamente acometido por doença, todavia, é alma com sua experiência íntima diante do adoecimento. A ciência moderna evoluiu de tal maneira que pode, decerto, estabelecer valores padrões para 'medir' o quanto temos saúde.13

É parte essencial do equilíbrio da saúde manter-se a si mesma na sua medida própria; ou seja, a medida individual da saúde é, ao mesmo tempo, considerar o que é apropriado para o indivíduo em uma determinada situação de adoecimento. "(...) Trata-se da moderação e da mensurabilidade interna do todo que se comporta como vivo" 13:105.

Quando pensamos na saúde como elemento vital do viver humano, seja no espaço individual ou coletivo, cabe aos profissionais:

(...) Não permitir que imponham (...) [ao 'Ser'] valores padronizados com base em medidas obtidas [a partir] de diferentes experiências. Tal imposição seria inadequada para o caso individual. (...) Se a saúde não pode medir-se, é, na realidade, porque se trata de um estado de convivência interna e de concordância consigo mesmo, que não pode submeter-se a outro tipo de controle. Por isso, tem sentido perguntar ao paciente se sente doente. Tem-se a impressão que na capacidade do grande (...) [profissional de saúde] intervêm fatores de sua mais íntima experiência de vida. Não é apenas o progresso científico da (...) clínica ou a introdução de métodos químicos na biologia dos fatores que faz o grande (...) [profissional de saúde].

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta investigação evidenciou que o cuidado de saúde aos hipertensos desenvolvido por enfermeiros em Pau dos Ferros/RN ainda se encontra distante do sentido de encontro dialógico entre profissionais e usuários dos serviços básicos. As falas remetem ao fato de que os enfermeiros se sentem desmotivados para práticas educativas com este grupo, pois julgam que os usuários não assumem de forma responsável as mudanças requeridas em seus estilos de vida, como: melhorar e seguir a dieta, não fumar e evitar o consumo de bebidas alcoólicas.

Gadamer,12 quando fala da saúde, refere que os profissionais atuam movidos na tradição de uma autoridade sanitária. Segundo o filósofo "quem apela à autoridade e à tradição não tem autoridade nenhuma"6:416 porque está preso a conceitos que reproduz ao longo do tempo, e, muitas vezes, não é capaz de questionar ou refletir criticamente sobre o que transmite.

Outra questão importante que emergiu no estudo referese à sensação de desamparo dos enfermeiros diante das demandas e necessidades colocadas pelos usuários e pela gestão municipal da rede de saúde local. O profissional se sente impotente diante da falta de recursos e dificuldades para vencerem os desafios postos pela lógica do atendimento centrado na medicalização e na atenção curativa individualizada. Este modo de cuidar presente em Pau dos Ferros não evidencia o encontro terapêutico, pois, mesmo que os enfermeiros e usuários compartilhem do mesmo cuidado de saúde na hipertensão arterial, estes vivenciam seus saberes e práticas em hemisférios distintos.13,14

O diálogo, de fato, hoje não está presente nas práticas assistenciais de modo geral. Mas pode passar a existir, ser construído e fortalecido, diminuindo as distâncias entre quem cuida e quem precisa de cuidado/orientação. Para isso, assumir uma postura consciente de abertura do eu para compreender o outro é importante. Como proposição a novos modos de cuidar de saúde, Gadamer13 nos diz que muitas coisas se tornam essenciais no momento da definição do tratamento, situação que implica permissão e não somente em prescrição de normas, procedimentos e condutas de comportamento.

Ao dialogar, profissionais de saúde e usuários poderão escolher construir pontes ao invés de muros, pois têm por atribuição colaborar com o tratamento mais apropriado à situação vivenciada pela pessoa com HAS valorizando-se a dimensão humana, ética, política, social e familiar que é presente no conceito ampliado de saúde.

No cenário do estudo é fundamental que os enfermeiros rediscutam com seus pares (gestores e demais membros da equipe de saúde) suas atribuições e necessidades como trabalhadores no cotidiano dos serviços de atenção à saúde primária direcionada à pessoa com hipertensão.

Efetivar o cuidado integral em saúde para a população requer: assumir processos de planejamento e avaliação em saúde no cotidiano da ESF; dotar os serviços de saúde de condições de infraestrutura nos diversos níveis de atenção à saúde para mudanças no processo do cuidado; estabelecer diálogos terapêuticos; considerar a experiência da saúde e da doença do usuário na decisão do tratamento e ultrapassar os protocolos técnicos. Assumindo o diálogo terapêutico no cotidiano das USF, o fundamental permanecerá como ação do cuidado coletivo: a saúde, e não a doença.

 

REFERÊNCIAS

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3. Ministério da Saúde(BR) Hipertensão: um mal que pode ser evitado. Brasília(DF); 2009.[citado 30 ago 2009]. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=22837>..

4. Conh A. et al. A saúde como direito e como serviço. 4ª ed. São Paulo(SP): Cortez; 2006.

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9. Ministério da Saúde (BR) Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Plano de reorganização da atenção à hipertensão arterial e ao diabetes mellitus. Manual de hipertensão arterial e diabetes mellitus. [citado 01 set 2009]. Brasília (DF); 2004. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/miolo2002.pdf>

10. Saito RXS, organizador. Integralidade da atenção: organização no programa saúde da família na perspectiva sujeito-sujeito. São Paulo(SP): Martinari; 2008.

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12. Assis LS, Stipp MAC, Leite JL, et al. A atenção da enfermeira à saúde cardiovascular de mulheres hipertensas. Esc Anna Nery Rev Enferm 2009 abr/jun;13(2):265-70. [citado 03 abr 2010]. Disponível em http://www.eean.ufrj.br/revista_enf/20092/artigo%203.pdf.

13. Gadamer HG. O caráter oculto da saúde. Tradução de Antônio Luz Costa. Rio de Janeiro(RJ): Vozes; 2006.

14. Souza LB,et al.Hipertensão arterial e saúde da família: atenção aos portadores em município de pequeno porte na região sul do Brasil. Arq Bras Cardiol 2006;87:496-503 [citado 08 set 2009] Disponível em: <http://www.scielo.brhttp://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0066782X2006001700015&script=sci_arttext>.

 

NOTAS

a Artigo baseado em resultados parciais da Dissertação Sentidos do cuidado na hipertensão arterial para enfermeiros e usuários na saúde da família: uma aproximação à hermenêutica Gadameriana, defendida no curso de Mestrado Acadêmico em Cuidados Clínicos em Saúde. Universidade Estadual do Ceará em 26.01.2010.

 

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