Volume 14, Número 2, Abr/Jun - 2010
RELATO DE EXPERIÊNCIA
A cartografia na enfermagem: uma proposta de abordagem metodológica
The Cartography at Nursing: A Proposal of a Methodological Approach
La Cartografía en la Enfermería: Una Propuesta de Enfoque Metodológico
Paula Regina Virginio Moraes de CatribI; Isabel Cristina dos Santos OliveiraII
I Doutora em Enfermagem. Especialista em Enfermagem de Doenças Infecciosas e Parasitárias pelo IPEC/FIOCRUZ. Professora Assistente do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da EEAN/UFRJ. Brasil. E-mail: prvmoraes@yahoo.com.br
II Doutora em Enfermagem. Professora Associada do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da EEAN/ UFRJ. Orientadora. Líder do Grupo de Pesquisa Saúde da Criança/ Cenário Hospitalar. Pesquisadora/CNPq. Brasil. E-mail: chabucris@ig.com.br
RESUMO
Trata-se de um relato de experiência que tem por objetivo descrever a aplicação da cartografia na coleta de dados de uma tese de doutorado, cujo objeto de estudo trata das estratégias da equipe de enfermagem para a criança hospitalizada com doenças infecciosas e parasitárias. O texto aborda a técnica da geografia-cartografia e sua utilização nos estudos de enfermagem, e também sua aplicação. Essa técnica possibilita a construção de um saber, caracterizando os sistemas de ações que dão movimento e que mapeiam o espaço. Ela propicia uma leitura sobre o quadro das práticas e das realidades, e também o entendimento das especialidades, revelando-se em um processo com significado para uma leitura social do mundo. A realização de pesquisas de enfermagem que utilizam a cartografia ainda é muito escassa; porém, acredita-se que a cartografia possa colaborar para a construção de um saber, caracterizando os sistemas de ações que dão movimento e que mapeiam o espaço.
Palavras-chave: Cartografia. Pesquisa Qualitativa. Enfermagem. Criança Hospitalizada.
ABSTRACT
It is an experience based report which aims to describe the cartography application on data collection for a doctorate thesis in which the object of this study deals with strategies of the nursing team in front of hospitalized children with Infectious Diseases. The text discusses the geography-cartography technique and its usage / application for nursing studies and researches. This technique allows the construction of knowledge, characterizing the systems of actions that give movement and map the space. It favors a reading beyond the practices boarders, the realities and also an understanding of specialties, revealing itself as a process with meaning for a world social understanding. The development of nursing research using the cartography is still unusual. However, we believe that the cartography can strongly cooperate with the construction of a knowledge, characterizing the systems of actions that give movement and map the space.
Keywords: Cartography. Qualitative research. Nursing. Hospitalized child.
RESUMEN
El presente trabajo es un relato de experiencia que tiene como objetivo describir la aplicación de la cartografía a la recopilación de datos de una tesis de doctorado cuyo objeto de estudio son las estrategias del equipo de enfermería aplicadas a niños hospitalizados con enfermedades infecciosas y parasitarias.. Este estudio aborda la técnica de la geografía y la cartografía, así como su uso y aplicación en los estudios de enfermería. Esta técnica permite la construcción del conocimiento que caracteriza los sistemas de acciones que dan movimiento y trazan mapas del espacio. Proporciona una lectura del marco de prácticas y de sus realidades, que también nos ayuda a entender las espacializaciones, aportando un proceso que se vuelve importante al permitirnos hacer una lectura del mundo social.. Este estudio aborda la técnica de la geografía y la cartografía, así como su uso y aplicación en los estudios de enfermería. Esta técnica permite la construcción del conocimiento que caracteriza los sistemas de acciones que dan movimiento y trazan mapas del mundo social.La realización de pesquisas en el área de enfermería que se valgan de la utilización de la cartografía es algo todavía difícil de encontrarse. Sin embargo, se cree que la cartografía puede hacer contribuciones para la construcción del conocimiento, caracterizando los sistemas de acciones que dan movimiento y trazan mapas del espacio.
Palabras Clave: Cartografía. Investigación cualitativa. Enfermería. Niño hospitalizado.
INTRODUÇÃO
Quando o pesquisador se propõe a fazer ciência, muitas vezes constrói um modelo simplificado do objeto de estudo. Mas aos poucos, durante o transcurso, esse modelo pode se tornar mais complexo, passando a considerar um número maior de variáveis. Na realidade, o que se descobre é que a atividade científica não começa com uma coleta de dados ou com puras observações, sem ideias preconcebidas por parte do cientista. A observação, a coleta de dados e as experiências são feitas de acordo com determinados interesses e segundo certas expectativas ou ideias preconcebidas. São essas ideias e esses interesses que orientam a atividade científica.1
Assim, a escolha de um assunto ou tema de pesquisa não surge de forma espontânea, é conseqüência do contexto social em que o pesquisador está inserido. Isto significa que o olhar sobre o objeto do estudo sofre influência da posição social do cientista e das correntes de pensamento existentes.
O modelo das ciências sociais vem sendo muito utilizado nas pesquisas em enfermagem por meio da abordagem qualitativa, pois ele oferece possibilidades de construção de conhecimento confiáveis no que se refere às ações e ao comportamento humano. A pesquisa qualitativa preocupa-se com uma realidade que não pode ser quantificada, respondendo a questões muito particulares, trabalhando um universo de significados, crenças, valores e que correspondem a um espaço mais profundo das relações, dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.2
Apesar do avanço da produção científica da Enfermagem brasileira nas últimas três décadas, é preciso expandir o campo das ideias criativas e produzir conhecimento capaz de causar impacto na prática assistencial.3
Dessa forma, ao proceder à escolha do objeto de estudo da minha tese de doutorado, elegi um tema de meu interesse, com o qual tenho afinidade, pois ele faz parte do meu cotidiano na enfermagem: as estratégias da equipe de enfermagem para a criança hospitalizada com doenças infecciosas e parasitárias (DIP) em um setor especializado não pediátrico. Nesse estudo, as estratégias são o que a equipe de enfermagem faz (ação enquanto prática social) e como interpreta aquilo que faz. Dessa forma, a equipe de enfermagem explora as condições favoráveis do espaço onde atua para alcançar determinados objetivos.
A abordagem qualitativa nesse estudo permite a captação das singularidades que o tema comporta nesse espaço social. Considerando que o espaço social é aquele onde se estabelecem as relações e interações entre os grupos sociais, utilizei a cartografia como procedimento metodológico, visto que ela se apresenta como possibilidade de leitura de um espaço dinâmico e heterogêneo.
Esse estudo descreve a aplicação da cartografia na coleta de dados de uma tese de doutorado.
SOBRE A CARTOGRAFIA
A cartografia trata, entre outros elementos, de temas ligados às diversas áreas do conhecimento. Os produtos gerados constituem documentos cartográficos em diversas escalas, onde, sobre uma "base cartográfica" (extraída da cartografia topográfica), são representados os fenômenos geográficos, geológicos, demográficos, econômicos, sociais, biológicos, entre outros, visando ao estudo, à análise e à pesquisa dos temas, no seu aspecto espacial.4
O uso da cartografia, enquanto concepção, produção, difusão e utilização de cartas, é antigo. O termo foi introduzido pelo Visconde de Santarén, Manuel Francisco de Leitão e Carvalhosa (1971-1856).5 Historicamente, se constata que as atividades cartográficas estão relacionadas às fases de crescimento das atividades econômicas de um país ou região, observando-se, em contrapartida, que fases de estagnação econômica determinam quase que uma paralisação da produção cartográfica. Por exemplo, a ciência cartográfica, estudada pelos gregos dois séculos antes de Cristo, ficou estagnada na Idade Média, época em que as ciências foram consideradas, em muitos casos, como bruxarias. Porém, o conhecimento da cartografia, guardado pelos árabes, floresceu na Europa no século XV e se tornou um dos requisitos primordiais para a navegação e expansão das fronteiras econômicas da Europa em direção ao Novo Mundo.6
No Brasil, a expansão da fronteira econômica do litoral em direção ao interior do Brasil, na primeira fase do governo Vargas, a chamada "Marcha para o Oeste", foi em grande parte impulsionada pelo projeto de identificação das fronteiras internacionais implementado pelo Marechal Cândido Rondon e pela obrigação, determinada em decreto presidencial, de cada um dos 1.540 municípios brasileiros de elaborar seu mapa municipal, sob pena de ter sua área anexada ao município vizinho se a tarefa não fosse cumprida. Essa obrigação foi motivada pela necessidade de se produzir uma base territorial de referência para o Recenseamento de 1940. Os dados referentes a todos os municípios, juntamente com os mapas e as informações estatísticas, municiaram o Governo na composição de seus planos de ocupação e expansão econômica na direção do interior do Brasil. 6
A abordagem tradicional da cartografia nos remete a um conceito como um conhecimento que vem se desenvolvendo desde a pré-história até os dias de hoje e que, por intermédio da linguagem cartográfica, se torna possível sintetizar informações, expressar conhecimentos, estudar situações, entre outras coisas, sempre envolvendo a ideia de produção do espaço, sua organização e distribuição. A linguagem cartográfica é útil para obter informações e representar a espacialidade dos fenômenos geográficos, sugerindo blocos temáticos, tais como a leitura e a compreensão das informações.7
Pensando em abordar a comunicação e a representação desses novos espaços, foi necessário o desenvolvimento de uma técnica/arte apropriada. O conceito amplo de Cartografia, que atendia como toda forma de representação do mundo que envolvesse algum tipo de mapa, deixou de ser aceito, e ela passou a ser mais precisa e específica.8
Dessa forma, nas ciências sociais, a utilização da cartografia permite, do concreto ao abstrato de um dado espaço e tempo, ler o seu significado, o local em que vivemos e o espaço construído, e assim conhecê-lo, interpretando as realidades, possivelmente algumas então desconhecidas. Permite, também, entender as transformações do ambiente que se experimenta por meio das influências econômicas e sociais expressas em símbolos que codificam o espaço e emitem mensagens para a compreensão do espaço.9
A cartografia consiste em uma técnica da Geografia, que em uma perspectiva tradicional representa uma imagem estática, bem demarcada do espaço e possibilita leituras dos limites físicos de cada lugar. A obra de Milton Santos é inovadora ao abordar o conceito de espaço, que passou de território onde todos se encontram a um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações. 9
Santos11 explica que não há consenso na geografia sobre a definição do seu objeto, porém ele considera que a geografia é uma ciência que tem por objeto o espaço que é criado através das relações entre o homem e o meio. Para o autor 9:145, "se uma ciência se define por seu objeto, nem sempre a definição da disciplina leva em conta esse objeto. Este é (...) o caso da geografia, cuja preocupação com o seu objeto explícito o espaço social foi sempre deixada em segundo plano".
A geografia estuda tanto aspectos físicos quanto humanos da Terra. As inter-relações espaciais são a chave para esta ciência, que utiliza mapas como ferramentas-chave. A cartografia, enquanto possibilidade de leitura dos limites físicos de cada lugar, estuda a representação da superfície de Terra com símbolos abstratos. 9
Além disso, a cartografia utiliza a psicologia cognitiva e ergonômica para compreender os símbolos que conduzem a uma informação mais eficaz sobre a terra e a psicologia do comportamento para induzir os leitores dos seus mapas a atuar de acordo com a informação.
Sobre o espaço, Santos9 afirma que, assim como outras instâncias sociais, ele tende a se reproduzir de forma ampliada acentuando seus traços dominantes. A estrutura espacial ou espaço organizado pelo homem é uma estrutura subordinada-subordinante, assim como as demais estruturas sociais. Porém, apesar de ser submetido à lei da totalidade, dispõe de certa autonomia que se manifesta por meio de leis próprias e específicas de sua própria evolução.
Dessa forma, o autor9 destaca que o espaço deve ser entendido como estrutura social, sendo capaz de interagir com as demais estruturas da sociedade e sobre esta como um todo. Não se pode ignorar as condições espaciais concretas preexistentes.
Ainda, Santos9 ressalta a relação entre espaço e o movimento dos grupos. A cartografia permite o registro de paisagens que se formam a partir das relações entre os grupos sociais, mapeando esse fenômeno no tocante ao espaço, às objetivações e às subjetivações.
A cartografia serve de instrumento para que se possa mapear o espaço onde estão presentes os sentimentos e as ideias de um grupo a partir das experiências vividas naquele mesmo espaço. Sobre práxis e espaço, Santos9 enfoca a existência de práxis individuais e práxis sociais. A referência à sociedade organizada, segundo esse autor, supõe a precedência das práxis coletivas, isto é, impostas pela estrutura da sociedade e às quais se subordinam as práxis individuais. Vale destacar que "o espaço, por suas características e por seu funcionamento, pelo que ele oferece a alguns e recusa a outros, pela seleção de localização feita entre as atividades e entre os homens, é o resultado de uma práxis coletiva que reproduz as relações sociais" 9:95-96.
Para Santos9, o conceito de espaço mostra-se indivisível dos seres humanos que o habitam e que o modificam todos os dias, através de sua tecnologia. Portanto, o espaço é ao mesmo tempo a forma, as estruturas e a função, ou seja, as ações humanas que constroem a paisagem. Esta noção do espaço mostra uma permanente mudança, pois, para o autor,9:181 "o espaço é um conjunto de objetos e um conjunto de ações". Pode-se, então, compreender a importância que a cartografia assume para si, não somente como uma técnica e arte, mas por uma cartografia que permite revelar traços dos movimentos que representam a realidade social nos territórios
A CARTOGRAFIA E A ENFERMAGEM
Por suas características, a cartografia se apresenta como uma possibilidade para descrever as relações que se estabelecem em um espaço social. O cenário hospitalar é um dos espaços onde se revela a práxis da enfermagem.
Santos9 ressalta que atentar para o conteúdo geográfico do cotidiano permite enxergar a relação entre espaço e o movimento dos grupos. A utilização da cartografia nas pesquisas em Enfermagem permite o registro de paisagens que se conformam pelas relações sociais no cenário hospitalar.
De acordo com uma pesquisa ao banco de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), constata-se que na enfermagem, a cartografia foi utilizada a partir da década de 90, com os temas mais diversificados. Assim, autores como Moreira10, Lunardi 11, Souza,12 dentre outros, utilizaram essa técnica em seus estudos, conforme a experiência de trabalho e o objeto selecionado para investigação.
No estudo de Moreira10, sobre as identidades e distinções na produção de uma cultura dos profissionais de enfermagem, a cartografia possibilitou os norteadores e indicadores presentes na produção da cultura técnica desses profissionais.
Para trazer respostas a como se dá a governabilidade na enfermagem, Lunardi11 optou pela realização de uma cartografia das relações de força, buscando entender as estratégias e lutas mediante as quais saberes, sujeitos e práticas têm se construído; e pelo delineamento de técnicas que possibilitam a ampliação dos espaços de autonomia do cliente e da enfermagem, na perseguição de um agir ético, entendido como a ação resultante da decisão e vontade autônomas. A cartografia realizou-se por dois caminhos diferenciados, enfocando a ruptura do modelo religioso com Florence Nightingale e do pensamento religioso na produção da Revista Brasileira de Enfermagem, de 1980 a 1995.
A cartografia foi também utilizada na pesquisa de Fortuna13 que conta a análise e intervenção institucional produzida com trabalhadores de saúde de uma unidade básica do município de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil, que também possui trabalhadores do Programa de Saúde da Família. A pesquisa cartográfica chama o leitor para distintos devires, multiplicando sentidos e buscando os "entres" e as "entrelinhas". O estudo se propõe a delimitar as linhas em produção molares, moleculares e de fuga, os "marcos" acerca do trabalho produzido na Unidade e também da produção da equipe de saúde nesse cotidiano.
Para fazer a análise espacial da endemia hansênica no município de Fernandópolis, São Paulo, Brasil, Mencaroni14 utilizou a base cartográfica georreferenciada do setor de planejamento da prefeitura municipal. A pesquisa teve como objetivo analisar a endemia hansênica na área urbana do referido município, segundo sua distribuição espacial, descrevendo sua relação com as condições de vida da população, visando orientar o planejamento local das políticas públicas de controle e eliminação da hanseníase.
A pesquisa de Matumoto15 tratou da produção cartográfica da experiência de análise produzida com a equipe de trabalhadores de uma unidade básica de saúde, na perspectiva da produção do acolhimento. O estudo buscou destacar as perdas de sentido que capturam a produção do cuidado e os movimentos que apontam para novas formas de acolher o usuário, e defendeu a ideia de que é possível explorar linhas de fuga para produzir vida na saúde.
A cartografia foi utilizada na tese de Maranhão16, a qual analisa os efeitos da Reforma Psiquiátrica nas práticas cotidianas dos técnicos e auxiliares de enfermagem, partindo do trabalho enquanto produção de sentidos e da reforma que postula um saber construído na ação. O estudo buscou contribuir para a criação de grupos de escuta sobre o trabalho desta categoria. Quanto à formação profissional, a pesquisa aponta para a necessidade de mudanças no campo teórico-técnico, importando uma abertura de espaço para o seu saber construído na prática (e só assim pode ser), reiterando a importância fundamental desta categoria no acontecer da reforma.
Souza12 considerou a cartografia como possibilidade para descrever o cotidiano das enfermeiras no cenário especializado junto aos adolescentes com distúrbio onco-hematológico. Para a coleta de dados, foram conjugados quatro procedimentos metodológicos: a observação participante, consulta ao prontuário dos adolescentes; dinâmica denominada o mapa do lugar e entrevista focalizada. A cartografia evidenciou que as enfermeiras superam as atividades reiteradas no cotidiano a partir do contato com os adolescentes adoecidos; relatam preocupação com o adolescente pela inexistência de um espaço próprio, apontando questões referentes à indissociabilidade espaço-relação; apresentam questões acerca da finitude do adolescente com distúrbio onco-hematológico, e a (re) dimensão da experiência pelos afetos que emergem do contato cotidiano no cenário especializado.
Em outra pesquisa, o objetivo delineado por Fernandes17 foi cartografar os atos cuidadores do enfermeiro no contexto hospitalar, analisando as linhas postas em ação e as superfícies predominantes, com suas potências e resistências, para a produção da vida. Buscou-se tônus teórico às inquietações postas, com a construção de um mapa conceitual que abordasse o cuidado, a gestão do cuidado e as implicações do hospital com a temática, sendo possível lançar mão de uma trama conceitual, com destaque para alguns conceitos pertencentes à esquizoanálise e à saúde coletiva e outros referentes à área da enfermagem.
Por meio de uma pesquisa desenvolvida com técnicas de enfermagem de uma unidade de terapia intensiva infantil de um hospital geral público de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, Guazina18 propõe e analisa a musicoterapia como estratégia de produção de saúde do trabalhador, produzindo novas questões teórico-conceituais, práticas, éticas e políticas no campo da musicoterapia, que estão ligadas ao território do trabalho e suas configurações contemporâneas, ao "ser" trabalhador e à saúde, e que têm implicações sobre a musicoterapia e o musicoterapeuta na contemporaneidade. Esse estudo foi baseado na pesquisa-intervenção e inspirado nos modos de ação da cartografia.
O estudo de Silva19 teve como objetivo identificar a percepção de mães e profissionais de saúde sobre a atenção à saúde de crianças/adolescentes soropositivos no município de Natal, Rio Grande do Norte, Brasil. As categorias prevalentes em relação à cartografia da atenção às crianças e adolescentes soropositivos em Natal foram: organização e dinâmica da atenção; gestão institucional e desenvolvimento humano; controle e prevenção; outros entornos de atenção; relacionamento/comunicação equipe-paciente e organização e funcionamento do serviço.
As investigações na enfermagem têm buscado maior aproximação entre o pesquisador e os sujeitos do estudo, valorizando as relações sociais que se estabelecem como resultado dessas aproximações.
A cartografia, enquanto técnica e arte de produzir mapas, é a linguagem de representação que se apresenta como instrumento fundamental da análise dos fenômenos sociais. Portanto, a cartografia pode também ser compreendida como fonte de saber e de poder, uma vez que um mapa consiste em um recurso ideológico transmutado seu texto em uma linguagem gráfica.9
A CARTOGRAFIA E O MAPA DO ESPAÇO
Os cenários das pesquisas que utilizam a cartografia são, em geral, variados, pois estão relacionados com seus objetos de estudo. No caso específico da minha tese de doutorado, o cenário é setor de Doenças Infecciosas e Parasitárias (DIP) de um hospital universitário do município do Rio de Janeiro. Os sujeitos do estudo são as enfermeiras, técnicos e auxiliares de enfermagem que atuam no referido setor. Como critério de inclusão da pesquisa, os sujeitos já deveriam ter vivenciado, em algum momento, contato com crianças hospitalizadas com DIP, e não necessariamente no momento da coleta de dados.
Para esse estudo, a cartografia se apresentou como possibilidade de leitura de um espaço dinâmico e peculiar, tendo em vista que as estratégias da equipe de enfermagem para a criança hospitalizada com DIP podem produzir conceitos e ações simbólicas, que envolvem tanto o espaço (cenário) como os sujeitos.
A justificativa para a proposta desse desenho metodológico nesse estudo apresenta-se fortalecida à medida que se entende que as estratégias da equipe de enfermagem são marcadas pelas ações (in)diretas e são influenciadas pelas ações simbólicas (determinadas pela cultura enquanto estrutura de significados), tendo um espaço peculiar (setor de DIP de um hospital geral).
O conjunto das perspectivas emergentes da dinâmica do mapa do espaço resultou em uma cartografia do espaço social, onde ocorrem as estratégias da equipe de enfermagem.
Os temas abordados na dinâmica de confecção do mapa do espaço foram baseados no objeto e nos objetivos da pesquisa.
Com o intuito de proceder aos ajustes necessários dos temas para atender ao objeto desse estudo foi realizada a validação metodológica. A dinâmica do mapa do espaço foi previamente agendada com duas enfermeiras e uma técnica de enfermagem, e realizada em uma sala reservada no setor de DIP, com duração de aproximadamente uma hora. As participantes sentaram-se lado a lado na sala reservada e a pesquisadora se posicionou em frente a elas, com o objetivo de formar um círculo.
As participantes da dinâmica foram orientadas quanto à realização da pesquisa e quanto ao atendimento dos aspectos éticos da pesquisa. Foi-lhes entregue o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e foi feita a leitura deste para que elas pudessem sanar quaisquer dúvidas em relação ao desenvolvimento da pesquisa. Após todos os esclarecimentos, as participantes assinaram o referido Termo, e passamos ao preenchimento do questionário de caracterização dos sujeitos da pesquisa.
A seguir, as participantes da dinâmica receberam uma folha de papel A4 com o mapa em branco, uma folha de papel A4 com o mapa com temas e canetas hidrocor coloridas. Elas foram orientadas para que preenchessem o mapa em branco com palavras, frases ou desenhos, que representassem para cada uma delas o significado dos temas contidos no mapa do espaço orientador da dinâmica. Após o preenchimento do mapa em branco, cada uma das participantes explicou o significado dos temas e das expressões utilizadas por elas no mesmo. Todos os depoimentos foram gravados em meio digital.
Foram realizadas cinco dinâmicas além daquela realizada para validação metodológica. As quatro primeiras dinâmicas foram realizadas com grupos de três pessoas e a quinta dinâmica foi realizada com um grupo de quatro pessoas. A duração de cada dinâmica variou de uma a duas horas.
Na perspectiva da cartografia e do espaço social, buscou-se o momento em que os sujeitos, a partir do seu próprio entendimento, preenchessem um mapa do espaço estilizado, considerando a função desse espaço e as ações desenvolvidas pelos sujeitos nesse espaço junto às crianças com DIP. Santos 9:315 destaca que "o que se vê precisa ser olhado e interpretado a partir do lugar que os indivíduos ocupam no mundo social como uma realidade constituída pelo sentido que os indivíduos lhe atribuem". Essa perspectiva busca destacar o ponto de vista (interpretação) da equipe de enfermagem sobre a prática assistencial voltada para as crianças hospitalizadas em um serviço de DIP de um hospital geral por meio de uma dinâmica, que tem o objetivo de traçar o mapa do espaço onde ocorrem as estratégias.
Foi elaborado um mapa do espaço com temas, que incluem o cuidado à criança com DIP; o comportamento da equipe de enfermagem diante da criança e da família da criança com DIP; sentimentos perante a criança e a família da criança com DIP; relacionamento interpessoal entre equipe de enfermagem e criança e família da criança com DIP e um mapa do espaço em branco. O preenchimento do mapa em branco pelos sujeitos da pesquisa tem como objetivo evidenciar estratégias para as crianças com DIP, bem como a subjetividade constituída e constitutiva desse processo de reflexividade.
Com a utilização da dinâmica do mapa do espaço, buscou-se evidenciar não apenas os afetos dos sujeitos, mas também a cultura do grupo. Essa perspectiva refere-se ao que Santos9:256 define como psicoesfera, ou seja, o "reino das ideias, crenças, paixões e lugar da produção de um sentido desse entorno da vida".
A vantagem do contato imediato com questões relevantes pode aprofundar a significação do fenômeno estudado. Com a dinâmica do mapa do espaço procura-se enfocar o fluxo do comportamento enquanto ação simbólica, que emerge das estratégias da equipe para a criança com DIP.
Assim, entende-se que a equipe de enfermagem, perante as crianças com DIP, pode trocar de papéis, pode transformar seu estilo de cuidar e lançar mão de estratégias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A utilização da cartografia possibilita a síntese de informações, a transmissão de conhecimentos, o estudo de situações, entre outros, envolvendo a ideia de produção do espaço, sua organização e sua distribuição. A cartografia, enquanto técnica de pesquisa, contribui para a construção e a representação das relações sociais em interação com o espaço.
A realização de pesquisas de enfermagem que utilizam a cartografia ainda é muito escassa. Porém, acredita-se que a cartografia possa colaborar para a construção de um saber, caracterizando os sistemas de ações que dão movimento e que mapeiam o espaço.
Os mapas são a representação simbólica de um espaço real, um lugar onde se vive, lugar de sentimentos, manifestações, alegrias, desejos e conquistas.
A cartografia não é simplesmente uma técnica, mas, se a enfermagem pretende investigar e representar conteúdos espaciais por meio dela, não poderá fazê-lo sem o conhecimento prévio da essência dos fenômenos que estão sendo representados, e sem o suporte das ciências que os estudam.
Os mapas temáticos são mapas projetados para apresentar características ou conceitos particulares do espaço geográfico em estudo. As feições necessárias para esta representação devem prestar clareza e precisão para que possam efetivamente comunicar o objetivo proposto e construir conhecimento.
Dessa forma, nesse estudo, o cenário hospitalar traduzido pelo setor de DIP é o espaço onde ocorre a prática da equipe de enfermagem com as crianças.
A cartografia serve de instrumento para mapear o espaço onde estão presentes os sentimentos e as ideias de um grupo a partir das experiências vivenciadas nele. Acredita-se que as estratégias da equipe de enfermagem contribuem para modelar o espaço onde ocorrem.
Para esse estudo, a cartografia se apresenta como possibilidade de leitura de um espaço dinâmico e peculiar, visto que as estratégias da equipe de enfermagem para a criança hospitalizada com DIP podem produzir conceitos e ações simbólicas que envolvem tanto o espaço (cenário) como os sujeitos.
Por fim, acredita-se que a cartografia permite refletir sobre os fatores sociais, constituintes na dinâmica socioespacial. Ela propicia uma leitura sobre o quadro das práticas sociais e das realidades, e também o entendimento das especialidades, revelando-se em um processo com significado para uma leitura social do mundo.
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Data de recebimento: 20/03/2009
Data de reapresentação 14/10/2009
Data de aprovação: 03/02/2010