Volume 14, Número 2, Abr/Jun - 2010
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Oficinas terapêuticas para hábitos de vida saudável: um relato de experiência
Therapeutic workshops for healthy life habits: an experience report
Talleres terapéuticos para hábitos de vida saludable: un relato de experiencia
Amanda Nathale SoaresI; Amanda Márcia dos Santos ReinaldoII
I Acadêmica de Enfermagem; Escola de Enfermagem UFMG. Brasil. E-mail: mandinha0708@yahoo.com.br.
II Enfermeira. Docente do Departamento de Enfermagem Aplicada da UFMG; Escola de Enfermagem UFMG. Brasil. E-mail: amsreinaldo@enf.ufmg.br.
RESUMO
As oficinas delineiam um percurso intrínseco ao desenvolvimento paradigmático acerca da loucura, situando-se no rol das tecnologias de cuidados sob distintas perspectivas no progresso histórico-cronológico. Trata-se de um relato de experiência decorrente do projeto de extensão denominado "Oficinas terapêuticas para hábitos de vida saudável no Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário". Tem como objetivo subsidiar uma reflexão teórico-crítica acerca da aproximação principiológica e prática entre oficinas terapêuticas e educação em saúde, segundo as tendências contemporâneas que regem ambas. Observa-se que a contemplação dessas perspectivas permite a percepção das singularidades e histórias de vida dos portadores de transtorno mental. O desenvolvimento das oficinas reafirmou a relevância, a essencialidade e a eficácia dessa metodologia na abordagem aos portadores de transtorno mental. Denota-se que um espaço dialógico, construído entre a discente e os usuários, possibilita a essa o desenvolvimento crítico-reflexivo e a estes a crescente expressão de particularidades.
Palavras-chave: Saúde Mental. Serviços de Saúde Mental. Educação em Saúde. Enfermagem.
ABSTRACT
The workshops outline a course that is intrinsic in the development of a paradigm on madness and are part of the list of care technologies from different perspectives in the historical-chronological progress. This is an experience report deriving from the extension project called "Therapeutic Workshops for healthy life habits at the Community Center Arthur Bispo do Rosário". The goal is to support a theoretical-critical reflection on the principiological and practical approximation between therapeutic workshops and health education, according to the contemporary tendencies that rule both. It is observed that the consideration of these perspectives allows for the perception of the singularities and life histories of mental disorder patients. The development of these workshops reaffirms the relevance, the effectiveness of this methodology with mental disorder patients. It is observed that a dialogic space built between the student and the users allows critical-reflexive development to the former and the growing expression of particularities to the latter.
Keywords: Mental health. Mental health services. Health education. Nursing.
RESUMEN
Los talleres esbozan un camino intrínseco al modelo de desarrollo sobre la locura, ubicándose en la lista de tecnologías que existen para brindar tratamiento bajo diferentes perspectivas en el progreso histórico y cronológico. Este trabajo es un relato de experiencia producto del proyecto de extensión denominado "Talleres terapéuticos para hábitos de vida saludable en el Centro de Convivencia Arthur Bispo do Rosario". El presente estudio tiene como objetivo sustentar una reflexión teórica y critica del acercamiento principio lógico y la práctica entre los talleres terapéuticos y la educación en la salud, según las tendencias contemporáneas que rigen ambas. Se observó que la contemplación de estas perspectivas permite la percepción de las singularidades e historias de vida de los portadores de trastorno mental. El desarrollo de los talleres reafirma la relevancia, importancia y eficacia de esta metodología aplicada a la asistencia y cuidado de los portadores de trastornos mentales. Destaca como un espacio para el dialogo, construido entre el alumno y el usuario, que permite - al primero - el desarrollo de una visión critica y reflexiva y al segundo la posibilidad, cada vez mayor, de expresar sus características y particularidades.
Palabras clave: Salud mental. Servicios de salud mental. Educación en salud. Enfermería.
INTRODUÇÃO
As estratégias assistenciais voltadas ao tratamento do transtorno mental constroem-se em consonância com as concepções paradigmáticas acerca da doença, e de seu objeto, em um processo de rupturas, reformulações e inovações, características da evolução histórica política dos relevantes recortes temporais.
As lógicas distintivas de cada período configuram modelos excludentes ou justapostos que não produzem, necessariamente, uma linearidade histórica, podendo compartilhar, simultaneamente, um mesmo contexto espacial e temporal.1
As oficinas, em especial, delineiam um percurso intrínseco ao desenvolvimento paradigmático, situando-se no rol das tecnologias de cuidados desde períodos anteriores à origem da psiquiatria, embora sob perspectivas distintas no progresso histórico-cronológico.
No século XVII, a concepção acerca da loucura colocava-a como um dos segmentos de desordem social, cuja intervenção consistia, então, no enclausuramento em asilos, juntamente com outros indivíduos desviados, caracterizando, assim, o "grande internamento".2 A internação, nesse período, desprovia-se de premissas médicas, voltando-se somente à exclusão dos desregrados, não apresentando, portanto, questões relativas à loucura como doença, mas em relação à sociedade consigo mesma.3
A época clássica representou a lógica do desvio social, cujo contexto era marcado pela condenação burguesa à ociosidade, fazendo com que a loucura, e demais segmentos improdutivos, fosse submetida à imposição do trabalho, anteriormente ao desígnio de cura. Sendo assim, pretendia-se romper com a ociosidade e mendicância, bem como com a desordem social.3
A utilização da atividade e do trabalho no cenário da loucura resultou, portanto, dos propósitos burgueses e do Estado que visavam à manutenção da ordem e ao controle social e econômico, a partir da representação negativa atribuída ao ócio gerada por essa classe emergente. Essa estratégia fracassou socioeconomicamente, entretanto, marcou o início do uso da atividade como elemento de intervenção sobre a loucura. 3
O século XVIII assistiu ao delineamento inicial da psiquiatria, cuja perspectiva acerca da loucura retira-a do campo da incapacidade do trabalho e da desordem social, externas ao ser humano, abordando-a como uma patologia, como um distúrbio da paixão no interior da razão.4
Essa apreensão permite a apropriação da loucura pelo saber médico e o desenvolvimento de possibilidades terapêuticas, a partir dos quais a exclusão passa a ser uma imposição clínica e o trabalho, um imperativo terapêutico.5
O trabalho e a atividade desvelaram-se, nesse contexto, como recursos terapêuticos de normatização do comportamento desviado, de correção do desvio moral; ou seja, segundo uma perspectiva de tratamento moral, buscava-se a recuperação da razão.3 O trabalho é apreendido sob um aspecto moral e pedagógico, como um meio de instauração de novos hábitos.6
Portanto, o trabalho, como uma estratégia terapêutica, ocupa-se de manter a ordem inclusive econômica do espaço asilar, legitimar a psiquiatria vigente e de preencher o tempo dos internos, agora excluídos sob a égide do tratamento médico circunscrito a uma estrutura hospitalar.3
O século XX, sobretudo a sua segunda metade, marcou os limites de uma ampla denúncia de maus-tratos e precariedade dos asilos e de um momento de rupturas principiológicas, cujo campo terapêutico ultrapassa as delimitações que circunscrevem a psiquiatria, estendendo-se à saúde mental.
O movimento da Reforma Psiquiátrica apresenta-se como um processo crítico-prático que tende a romper com a abordagem excludente, calcada no saber médico e na estrutura manicomial, fundamentando-se em um novo paradigma, a reabilitação psicossocial.
Nesse contexto, a terapia ocupacional formaliza-se como um campo de saberes e práticas, consolidando-se enquanto profissão, o que configura um novo enfoque à utilização da atividade no espaço psiquiátrico, desapropriando sua submissão da figura médica.3
Essa proposta antimanicomial coaduna uma finalidade político-social à clínica, sustentando o desenvolvimento de oficinas não mais como um simplista recurso para ocupação do tempo ocioso, mas como um efetivo meio de criação e autonomização que atinge a complexa integralidade humana.
A potencialidade das oficinas terapêuticas encontra-se em sua possibilidade de produção subjetiva capaz de transformar a relação, historicamente construída e propalada, entre a loucura e a sociedade, favorecendo a convivência e a comunicação com o outro, em um processo contínuo de exercício da cidadania e de (re) inserção social.
No Brasil, particularmente, na década de 1940, essa inovadora perspectiva de aplicação da atividade foi impulsionada, pioneiramente, por Nise da Silveira, a qual, contrapondo-se à supremacia organicista, abordava a utilização da atividade em patamar equânime ao uso das intervenções biológicas.3 Sua proposta revela um compromisso em criar recursos terapêuticos de cunho humanista,7 entretanto, somente foi recuperada mais amplamente a partir da década de 1980, momento em que, no Brasil, a Reforma Psiquiátrica desenha seus passos iniciais.
As oficinas terapêuticas, nesse vigente cenário, assumem uma importância basilar nos diversos serviços substitutivos concebidos com a Reforma Psiquiátrica Brasileira, tais como Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPSs), Centros de Atenção Psicossocial (CAPSs) no caso de Minas Gerais, são denominados Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAMs) Centros de Convivência e Cultura, entre outros.
Os Centros de Convivência e Cultura, em especial, conforme a Portaria nº 396, de 7 de Julho de 2005, tratam-se de dispositivos públicos que integram à rede assistencial substitutiva em saúde mental, nos quais espaços de sociabilidade, produção e intervenção na cidade devem ser construídos e oferecidos aos portadores de sofrimento psíquico. Para tanto, oficinas e atividades são desenvolvidas visando a relações de convívio, à sustentação das diferenças e à edificação de laços sociais.8
A articulação dos Centros de Convivência com outros serviços substitutivos e diferentes dispositivos de atenção à saúde e a criação de parceiras com diversos campos de trabalho, cultura e educação fazem-se necessárias na medida em que favorecem a captação de recursos, a realização de oficinas e a troca de saberes.8
Sendo assim, o presente trabalho, referenciando a abordagem supraexposta, tem por objetivo subsidiar uma reflexão teórica crítica acerca da aproximação principiológica e prática entre oficinas terapêuticas e educação em saúde, segundo as tendências contemporâneas, vivenciada a partir da experiência decorrente da realização do projeto de extensão intitulado "Oficinas terapêuticas para hábitos de vida saudável no Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário", desenvolvido por discentes da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais.
PROJETO
O projeto de extensão denominado "Oficinas terapêuticas para hábitos de vida saudável no Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário" consiste em uma proposta desenvolvida, a priori, por uma docente do Departamento de Enfermagem Aplicada, doutora em Enfermagem Psiquiátrica, da Universidade Federal de Minas Gerais. Posteriormente, uma docente do curso de Nutrição integrou o referido projeto.
O objetivo geral que sustenta essa proposta é a realização de oficinas terapêuticas de hábitos de vida saudável voltadas aos usuários do Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário, situado em Belo Horizonte/MG, como uma estratégia de educação e promoção da saúde.
No que tange aos objetivos específicos, busca-se potencializar o repertório de assistência do serviço ao portador de sofrimento mental; difundir junto à comunidade local e acadêmica o trabalho realizado, propondo intervenções capazes de modificar a cultura manicomial e o estigma, no esforço de tornar a inclusão social do portador de transtorno mental objeto constante de pauta; aprimorar a formação crítica, tanto técnica quanto política, de alunos e professores, no contato com as necessidades do público alvo, de forma que o conhecimento adquirido seja uma produção resultante do confronto com a realidade; estabelecer interfaces entre as atividades de extensão e pesquisa; avaliar a relação entre a realização das oficinas de saúde e sua contribuição para a qualidade de vida dos usuários; e participar do trabalho interdisciplinar, que favorece a visão integrada da problemática dos usuários, construindo metodologia de atuação que contribua para a resolução dos impasses.
O desenvolvimento do projeto divide-se em dois momentos, sendo o primeiro destinado ao reconhecimento e integração ao serviço, por parte dos alunos envolvidos; organização e planejamento das oficinas, contemplando os interesses apreendidos durante os encontros; e confecção do cronograma de atividades. O segundo momento consiste na realização das oficinas, cuja coordenação caberá aos três discentes envolvidos, sob supervisão da docente responsável.
A realização do projeto compreende o período situado entre o mês de maio de 2008 e abril de 2009, com duas visitas semanais ao Centro de Convivência. O retorno avaliativo do trabalho se constitui em um momento após as oficinas no qual são feitas colocações pelos usuários participantes. Estas, bem como o transcorrer da atividade, serão relatadas em um livro de registro, o qual será utilizado como fonte de pesquisa durante a realização do projeto. Segundo a perspectiva dos profissionais de saúde e dos três discentes envolvidos, a avaliação também se dá por meio de reuniões periódicas e por um instrumento de avaliação, aplicado ao término de cada semestre.
O projeto encontra-se atualmente na fase de implementação das oficinas.
RELATO DE EXPERIÊNCIA
O projeto em questão permite concorrer dois espaços, quais sejam a oficina terapêutica e a educação em saúde, que ora se complementam, ora se entrecruzam em diversos aspectos. As tendências que regem ambas mostram-se inerentes ao período contemporâneo, à modernidade tardia, cujas marcas consistem na consciência crescente das diferenças, na necessidade do diálogo e da polifonia.9
Os percursos paradigmáticos que moldam a atual essência da educação em saúde e das oficinas terapêuticas, respectivamente, integram um conjunto de reformas sociais que visam à ruptura com modelos anteriores, buscando uma adequação crescente às emergentes demandas sociais.
A educação em saúde, constituída sob as perspectivas atuais, apresenta, como premissa central, a construção contínua da interação entre saberes, abordando o indivíduo em sua multidimensionalidade, incitando a participação popular na busca pelo desenvolvimento da qualidade de vida, em um processo dialógico no qual educador e educando contribuam, cada qual com suas potencialidades.
Essa propensão da educação em saúde prevê a atribuição ao indivíduo do papel de sujeito do seu processo saúde-doença, mediante a consideração da particularidade na qual ele se insere, dos saberes culturalmente acumulados durante sua experiência de vida e de seu entendimento prévio a respeito do conhecimento a ser compartilhado, buscando, em última instância, sua autonomização.
Sob essa perspectiva, a essência da educação em saúde converge-se aos propósitos das oficinas terapêuticas, cuja abordagem volta-se à retirada do portador de transtorno psíquico, muitas vezes inserido totalmente em um mundo próprio, da posição passiva, colocando-o em patamar ativo de atuação e participação.10 As oficinas terapêuticas visam à (re)socialização, ao favorecimento da comunicação e interação entre os membros do grupo, e entre esses e o contexto circundante, à expressão de sentimentos e vivências, favorecendo, assim, o desenvolvimento de autonomia.
FASE DE PLANEJAMENTO
Partindo-se do encontro de desígnios supraexposto, a fase de planejamento do projeto, desenvolvida entre os meses de maio e julho de 2008, voltou-se à apreensão das realidades e vivências, coletivas e particulares, durante os encontros entre a discente e os usuários no Centro de Convivência. Esses encontros efetivaram-se por meio da participação da aluna nas oficinas previamente oferecidas no cotidiano do serviço e demais eventos proporcionados nele, tais como festa junina, nas atividades realizadas extrasserviço e na consequente construção de vínculo com os usuários e com os técnicos em saúde mental. A fase de planejamento consistiu, igualmente, na apreensão de temas, requeridos pelos usuários, a serem abordados nas oficinas concernentes ao projeto, desenvolvidas posteriormente.
As incitações que permearam a discente, durante os encontros da fase de planejamento, retiraram do campo de observação a investigação clínica e diagnóstica, voltando-se a uma perspectiva subjetiva, entretanto extraclínica, dos usuários, visando assim, a uma humanizada e horizontal interação aluna-paciente, capaz de refletir em uma coparticipação mais efetiva nas oficinas referentes ao projeto. Para tanto, o diálogo construído entre os usuários e a discente, durante os encontros, desviou-se da história propriamente dita do transtorno mental e suas consequências, focando, principalmente, as produções artísticas no serviço, as atividades realizadas exteriormente ao Centro de Convivência, os interesses, gostos e desejos particulares.
A construção de uma relação linear, destituída de hierarquias, entre discente e usuários, tanto nos encontros quanto nas oficinas terapêuticas remete à tendência atual de democratização nos discursos e práticas modernas, verificada, direta e/ou indiretamente, nos propósitos contemporâneos, supraexpostos, da educação em saúde e das oficinas terapêuticas. A democratização refere-se à eliminação das assimetrias e desigualdades de direitos, obrigações e prestígio discursivo existentes entre diferentes grupos sociais.11
A democratização discursiva compreende cinco segmentos, quais sejam, relações entre línguas e dialetos sociais; acesso a tipos de discurso de prestígio; eliminação de marcadores explícitos de poder em tipos de discursos institucionais com relações desiguais de poder; uma tendência à informalidade das línguas; e mudanças nas práticas referentes ao gênero na linguagem.11 Dentre essas cinco áreas, a atuação discente no Centro de Convivência mostra-se permeada, mais significativamente, pela eliminação de marcadores explícitos de poder e, também, pela tendência à informalidade das línguas.
A primeira desvela-se na ruptura com a distância, teoricamente construída, entre a acadêmica, dotada de algum nível de saber formal, e os usuários, providos de saberes e experiências fundados em vivências particulares. Elimina-se, nesse contexto, vocabulário inacessível ao outro, rígido controle interacional, possibilitando aos usuários participar ativamente, conforme seus desejos e demandas, dos diálogos criados, sejam esses informais ou nas oficinas integrantes ao projeto.
A tendência à informalidade das línguas, concorrente à primeira, revela-se na adequação conversacional ao contexto sociocultural dos usuários, desconstruindo artificiais formalidades, abordando histórias de vida singulares, favorecendo, assim, uma sensibilização superiormente particular, ou seja, que atinja subjetividades em um meio, a priori, coletivo.
Os encontros representaram momentos profícuos de compreensão do contexto familiar e social dos usuários, de modo mais particular do que coletivo, de suas necessidades de diálogo e de espaços de expressão e produção, demandas essas que, juntamente com as temáticas requeridas para as oficinas, foram e são apreendidas, especialmente, nas entrelinhas, nas manifestações faciais e corporais elucidadas quando se relata um caso, um fato, uma história.
Foi possível perceber a necessidade de expressão dos familiares que, ao se depararem com momentos dialógicos, manifestaram angústias, preocupações e expectativas, ratificando, assim, a constante necessidade de inserir os membros da família na rede assistencial, abordando-os como indivíduos que apresentam demandas de ordens variadas, tais como a dificuldade para lidarem com situações de crise, o isolamento social a que ficam sujeitos, o sentimento de culpa e desesperança, dentre outras.12 Portanto, nos momentos em que a discente convergiu atenção aos familiares acompanhantes, tentou-se aliviar angústias, reforçar expectativas e renovar potencialidades.
Outro aspecto de surpreendente relevância, verificado nos encontros, refere-se ao valor atribuído, pelos usuários, à utilização frequente de seus nomes, quando a eles pretende-se destinar algo. A legitimação nominal parece resgatar as singularidades, o sentimento de significância e identidade no grupo, fazendo com que o reconhecimento da individualidade ocupe o espaço historicamente preenchido por rótulos e atribuições negativas.
No que tange à elaboração e ao planejamento das oficinas, visando à contemplação das expectativas, interesses e temas apreendidos no decorrer dos encontros, buscou-se, no momento de organização, abordar as temáticas por meio de dinâmicas capazes de colocar os usuários em posição central e ativa, atribuindo aos mesmos um papel crucial no desenvolver das atividades.
Os momentos de planejamento das oficinas mostraram-se um tanto quanto desafiadores à discente, uma vez que uma abordagem dinâmica, interativa, capaz de sensibilizar os usuários requer uma ampla criatividade. Para tangenciar esse desafio, buscou-se trazer a cada elaboração o cenário vivido nos encontros, composto pelos diversos usuários, cada qual com suas peculiaridades. Ao resgatar as apreensões, em seu coletivo e em seus detalhes, construíram-se subsídios reais para a organização dinâmica das oficinas.
FASE DE IMPLEMENTAÇÃO
A fase de implementação do projeto, iniciada em agosto/2008, consistiu em realizar oficinas terapêuticas desenvolvidas com base nos interesses e nas demandas requeridas e apreendidas durante os encontros referentes à fase de planejamento. Essa fase compreendeu os meses de agosto, setembro, outubro e novembro, sendo realizadas uma vez por semana, em, aproximadamente, noventa minutos.
Os aspectos teóricos que fundamentam a efetivação das oficinas correspondem, igualmente, àqueles citados na descrição da fase de planejamento, quais sejam as tendências contemporâneas de educação em saúde e oficinas terapêuticas, bem como os segmentos da democratização discursiva a eliminação de marcadores explícitos de poder e, vinculada a essa, a tendência à informalidade das línguas.
As temáticas abordadas durante as oficinas já realizadas compreenderam a saúde bucal; a higienização das mãos, dos pés e das unhas; a atenção, a concentração e a memória; a convivência; e a sexualidade. Cada temática permaneceu como eixo das oficinas durante o tempo demandado para se trabalhar, detalhadamente, os seus segmentos. Sendo assim, cada tema estendeu-se por mais de uma oficina.
A primeira oficina realizada voltou-se à apresentação das propostas e à apreensão das expectativas de cada usuário participante. Como meio de integrar todos os presentes, utilizou-se a "dinâmica do barbante". A partir desta, cada participante, enquanto segurava a ponta do rolo de barbante, expressava seus desejos, suas expectativas e seus interesses acerca das oficinas subsequentes. Para desenrolar a rede criada com o barbante, foi proposto que os participantes se comunicassem e, então, desconstruíssem a trama na ordem em que foi criada, possibilitando, assim, um clima de descontração e ajuda mútua.
Apreendeu-se, a partir dessa primeira oficina, que os usuários demandam uma abordagem relacionada à autoestima e a atividades lúdicas; anseios esses evidenciados pelo desejo expresso de uma maior identificação social, e, principalmente, de uma melhor identificação subjetiva, bem como de integrar a momentos de descontração e alegria.
As segunda e terceira oficinas trataram da temática de saúde bucal, abordando, a priori, a representação do sorriso como forma de manifestar sentimentos diversos correlacionados ao bem-estar pessoal e a saúde bucal como um relevante aspecto na comunicação interpessoal. Para tanto, utilizou-se a dinâmica "Cometa Halley", cuja essência volta-se a uma sensibilização acerca do processo comunicacional, e de suas dificuldades e necessidades. Posteriormente abordaram-se os aspectos preventivos acerca de cáries, métodos ideais de higienização bucal, a relevância da manutenção de dentes saudáveis para a saúde corporal, bem como sua repercussão na vida social. Nesse momento, foi utilizado um filme educativo que dispõe de uma apresentação descontraída acerca dos métodos preventivos e materiais ilustrativos referentes ao processo de desenvolvimento da cárie. Ao final, discutiram-se a disponibilização e o acesso a serviços gratuitos de odontologia, apresentando-lhes diversos serviços disponíveis na comunidade.
Nessas oficinas, a participação dos usuários se deu, principal e efetivamente, por meio da expressão de vivências particulares e familiares concernentes à temática, incluindo a apresentação de dúvidas e questionamentos referentes, sobretudo, à instalação de processos patológicos. Criou-se uma roda de discussão composta, essencialmente, por experiências, evidenciando, portanto, um caráter de respeito, (re) construção de saberes e intercâmbio de vivências. Como resultados obtidos pode-se citar as alterações positivas dos hábitos de higiene bucal, a procura por serviços odontológicos, bem como a promoção do caráter de multiplicadores do conhecimento.
A segunda temática abordada foi a higienização das mãos, dos pés e das unhas, utilizando-se, para tanto, três oficinas. A princípio, optou-se por realizar a "dinâmica dos sentidos", como meio de sensibilizar os participantes acerca da relevância e essencialidade do tato. Essa dinâmica consiste na descoberta dos objetos tocados, com os olhos vendados. Posteriormente a essa sensibilização inicial, procedeu-se a uma roda de conversa sobre a higienização das mãos e unhas, o uso de hidratantes e a confecção de cosméticos caseiros, mais acessíveis economicamente. Abordou-se, igualmente, a higienização dos pés, como um cuidado integrado à saúde corporal, e as micoses enfocando os aspectos preventivos. Utilizaram-se figuras ilustrativas acerca dos estágios das micoses e da melhoria pós-tratamento.
No que tange ao uso de hidratantes, essa temática atingiu diferenças de gênero, ou seja, gerou discussões acerca de sua utilização dentre os participantes do sexo masculino, o que, após uma detalhada conversa, desconstruiu conceitos prévios e subsidiou uma abordagem acerca da higienização de mãos e pés direcionada essencialmente ao bem-estar corporal e à qualidade de vida, independente de questões de gênero.
Como na oficina de saúde bucal, os relatos de experiências e as vivências particulares, expostas pelos usuários, foram o eixo norteador das atividades e discussões construídas, evidenciando um segmento simbólico e de identidade essencial à sensibilização para o autocuidado.
Outro assunto discutido durante as oficinas realizadas foi a atenção, a concentração e a memória, cuja abordagem deu-se por meio de jogo e dinâmicas descontraídas, em dois dias de oficina. Utilizaram-se, portanto, os "escravos de Jó", a "dinâmica das mãos entrelaçadas", um jogo de cartas chamado "presidente" e a "dinâmica da observação". Os três primeiros voltaram-se ao desenvolvimento da atenção e da concentração, e a "dinâmica da observação" objetivou trabalhar a memória. Abordaram-se, como eixos de discussão, os tipos de memória fixação e evocação, os fatores capazes de treinar e aperfeiçoar os aspectos abordados atenção, concentração e memória, bem como o efeito dos medicamentos utilizados no desenvolvimento destes, temática levantada pelos próprios usuários.
Essa oficina, particularmente, dispôs de uma participação especial, quando, durante o decurso da discussão, um usuário, dotado de sua flauta, propôs uma retrospectiva de diversas músicas como meio de trabalhar a memória. A partir de tal proposta, evidenciou-se, superiormente, a posição protagonista assumida pelos usuários nos espaços construídos com a realização dessas oficinas, ratificando, portanto, a relevância dessa metodologia na abordagem ao portador de sofrimento mental. Igualmente, os jogos e as dinâmicas utilizados nas referidas oficinas constituíram, conforme os usuários e a percepção da discente, um meio de abordagem mais interativo e atrativo e, portanto, mais eficaz no alcance dos objetivos pré-estabelecidos.
Realizou-se, em uma oficina posterior à supracitada, um momento de avaliação parcial e de apreensão de sugestões, cujos resultados apontaram uma evolução positiva na construção conjunta dos saberes, por meio da abordagem dialogada e horizontalmente estabelecida; melhoria crescente das dinâmicas oferecidas; e temáticas requeridas relativas à convivência, à sexualidade, a doenças sexualmente transmissíveis, à ecologia, e a diferenças entre promoção e prevenção da saúde.
Como requerido por usuários, abordou-se, na oficina seguinte, a convivência, partindo-se, para tanto, do próprio nome do serviço substitutivo em questão. Durante esta oficina, foram expostas, pelos usuários, várias situações vivenciadas no Centro de Convivência relacionadas à necessidade de respeito, solidariedade e ajuda mútua. Como meio de reafirmar a relevância dos aspectos citados, realizou-se a "dinâmica dos braços", cujo objetivo traduz-se na utilização da comunicação e de relações interpessoais saudáveis como meio de resolução de problemas; e a "dinâmica dos balões", cuja essência volta-se à ajuda ao próximo como aspecto essencial à manutenção do bem-estar pessoal e coletivo.
Os resultados dessa oficina desvelaram-se durante o seu próprio decurso, por meio de atitudes simples, mas relevantes, de ajuda ao próximo, tais como a busca de cadeiras ao outro; a procura de um cinzeiro para um usuário fumante; e a ajuda na preparação dos balões. Entretanto, os resultados não se restringiram a esses; estenderam-se a outros momentos, quando, frequentemente, usuários remeteram às dinâmicas realizadas e às discussões construídas.
A última temática, também requerida pelos usuários, consistiu na sexualidade, em tema tratado em três dias de oficina. O recurso inicial selecionado para a sua realização compreendeu a "garrafa de questões", colocada no Centro de Convivência uma semana antes da realização da oficina em questão, destinada ao armazenamento de perguntas, visando, assim, à manutenção do anonimato das questões e, por conseguinte, à manifestação de dúvidas. Utilizou-se, igualmente, a "dinâmica rede de contatos", que consiste na simulação de relações sexuais a partir da troca de pares em uma dança, por meio da qual se abordaram as doenças sexualmente transmissíveis, bem como a multiplicidade de parceiros que poderiam ter transmitido doenças ao parceiro atual, afirmando, assim, a relevância do uso de preservativos. Posteriormente, apresentou-se a diversidade de métodos contraceptivos e distribuíram-se preservativos.
Os resultados obtidos com a vivência da oficina evidenciaram a carência de conhecimentos prévios, por parte dos usuários, acerca da diversidade de doenças e os meios de transmissão; o forte aspecto cultural relacionado à fatalidade da AIDS, em detrimento às possibilidades reais de prolongamento da vida; e a necessidade de trabalhar temáticas relativas à sexualidade com os portadores de transtorno mental, visto que o interesse e a demanda mostram-se altamente perceptíveis.
Pretendeu-se, mais do que construir um saber objetivo acerca das temáticas, utilizar esse espaço para trabalhar os sentidos representativos do corpo, abordando a autoestima, as singularidades, a possibilidade de os usuários tornarem-se multiplicadores de conhecimento, buscando, continuamente, a integração saber-contexto e, por conseguinte, a autonomização dos portadores de transtorno mental.
Para tanto, possibilitou-se a construção de uma rede de solidariedade entre educadores e educandos, cujo cerne volta-se ao compartilhamento e ao desenvolvimento de potencialidades, visando a superar limites e dificuldades, concedendo autonomia aos sujeitos envolvidos.13
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os momentos de encontro entre discente e usuários, pertencentes à fase de planejamento do projeto de extensão "Oficinas Terapêuticas para hábitos de vida saudável no Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário", apresentaram-se como períodos de relevância inquestionável, ao permitir a apreensão de experiências, vivências e particularidades essenciais ao planejamento e à realização das oficinas concernentes ao projeto.
O desenvolvimento das oficinas reafirmou a relevância, a essencialidade e a eficácia dessa metodologia na abordagem aos portadores de transtorno mental, visto que permite uma real assunção da posição ativa na (re) construção de saberes e de reflexões acerca do próprio bem-estar. Abordar questões relativas à saúde integral, em detrimento da condição psíquica, por meio de dinâmicas voltadas à sensibilização, possibilitou aos usuários não somente agregar conhecimentos relativos às temáticas, mas, igualmente, percebê-los enquanto sujeito biopsicossocial.
As perspectivas teóricas acerca das tendências contemporâneas da educação em saúde e das oficinas terapêuticas subsidiam a percepção de horizontes inatingidos quando se dispõe, unicamente, de olhares objetivos. Denota-se uma constante necessidade de ampliar significações para além daquelas inerentes ao transtorno mental, alcançando as peculiares histórias de vida que se secundarizam em meio às representações sociais, mas se protagonizam perante o reconhecimento das singularidades.
A potencialidade do referido projeto não se restringe às experiências explícitas e práticas necessárias à sua consolidação, estendendo-se a campos implícitos e subjetivos que permitem à discente desenvolver competências crítico-reflexivas diante das diversas realidades. A convivência com os portadores de transtorno mental, e seus familiares, e o constante confronto com subjetividades tão peculiares desvelam multilateralidades de uma existência inserida em uma transição paradigmática viva, possibilitando, continuamente, o encontro dessas experiências com âmbitos sensoriais internos, que tomam uma dimensão inefável nos percursos acadêmicos e pessoais da discente envolvida.
Nesse sentido, o desenvolvimento do referido projeto permite à discente e aos usuários o delineamento de posições protagonistas, por meio de processos conjuntamente construídos, sob uma perspectiva de coparticipação e corresponsabilização direcionada, em todos seus eixos, à autonomização do portador de sofrimento psíquico. Portanto, a partir da dessa percepção, de ambos os lados, do papel transformador que lhes cabem e da lídima aproximação entre o real predominante e o ideal necessário, é que se efetivará o mais profícuo diálogo entre a educação em saúde, as oficinas terapêuticas e a qualidade de vida.
REFERÊNCIAS
1. Foucault M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro (RJ): Forense; 1987.2. Foucault M. História da loucura na idade clássica. 4a ed. São Paulo (SP): Perspectiva; 1995.
3. Guerra AMC. Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de uma prática. In: Costa CM, Figueiredo AC. Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania. Rio de Janeiro (RJ): Contra Capa; 2004.p.23-58.
4. Amarante P, organizador. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro (RJ): FIOCRUZ/ ENSP; 1995.
5. Resende H. Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica. In: Tundis SA, Costa NR, organizadores. Cidadania e loucura: políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis (RJ): Vozes; 2000.p.15-74.
6. Botti NCL. Oficinas em saúde mental: história e função. [tese de doutorado]. 2004. São Paulo (SP): Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/USP; 2004.
7. Lima EA. Oficinas e outros dispositivos para uma clínica atravessada pela criação. In: Costa CM, Figueiredo AC. Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania. Rio de Janeiro (RJ): Contra Capa; 2004.p.59-81.
8. Portaria nº 396 de 07 de julho de 2005. Divulga as diretrizes gerais para o Programa de Centros de Convivência e Cultura na rede de atenção em saúde mental do SUS. Diário Oficial da republica Federativa do Brasil, Brasília (DF), 8 jul 2005:Seção 1.
9. Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro (RJ): J Zahar; 2002.
10. Assis E. Arte e oficinas terapêuticas em tempos de reconstrução. In: Costa CM, Figueiredo AC. Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania. Rio de Janeiro (RJ): Contra Capa; 2004.p.95-104.
11. Souza V, Czeresnia D. Considerações sobre os discursos do aconselhamento nos Centros de Testagem anti-HIV. Interface: comunic saude educ 2007 set/dez;11(23):531-48.
12. Colvero LA, Ide CAC, Rolim MA. Família e doença mental: a difícil convivência com a diferença. Rev Esc Enferm USP. [periódico na internet] 2004 [citado 21 jul 2008];38(2):[aprox.9 telas]. Disponível em: www.ee.usp.br/reeusp/upload/pdf/112.pdf
13. Gazzinelli MFC, Penna CMM. Conhecimentos, representações sociais e experiência da doença. In: Gazzinelli MFC, Reis DC, Marques RC, organizadores. Educação em saúde: teoria, método e imaginação. Belo Horizonte (MG): Ed. UFMG, 2006.p.25-33.
Data de recebimento: 12/03/2009
Data de reapresentação 22/12/2009
Data de aprovação 05/02/2010