Volume 13, Número 2, Abr/Jun - 2009
PESQUISA
Experiência da gravidez após os 35 anos de mulheres com baixa renda
Experience of pregnancy beyond 35 years of age of women with low income
Experiencia del embarazo después de los 35 años de mujeres con ingreso bajo
Cristina Maria Garcia de Lima Parada I; Vera Lúcia Pamplona Tonete II
IProfessora Adjunta do Departamento de Enfermagem da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". Brasil. E-mail: cparada@fmb.unesp.br.,
IIProfessora Assistente Doutora do Departamento de Enfermagem da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho".Brasil: E-mail: vtonete@uol.com.br.
RESUMO
Objetivou-se apreender as representações sociais sobre gravidez após os 35 anos a partir de mulheres com baixa renda que vivenciaram essa experiência. A abordagem qualitativa foi empregada com base na Teoria das Representações Sociais. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 25 gestantes usuárias de um serviço público de referência do interior paulista. Os dados foram sistematizados pela técnica do Discurso do Sujeito Coletivo. Verificou-se que a opção pela gravidez tardia se atrela ao desejo da mulher de consolidar suas relações em novas uniões conjugais, à estabilidade financeira e à maturidade do casal. As mulheres representam esta experiência como positiva, se houver planejamento prévio, envolvimento do companheiro e se for bem aceita pela família, após sua constatação. Sem a satisfação destas condições, as representações revestem-se de sentimentos negativos ligados a dor, sofrimento e morte. As conclusões deste estudo enfatizam a importância de os serviços públicos de saúde considerarem estes aspectos.
Palavras-chave: Gravidez. Gravidez de Alto Risco. Idade Materna. Renda. Saúde da Mulher.
ABSTRACT
This study aimed to apprehend the social representations of pregnancy after the age of 35 by low-income women who had experienced it. A qualitative approach was used based on the Theory of Social Representations. Data were collected by semi-structured interviews with 25 pregnant women assisted by a public reference service in inner São Paulo State. The technique of the Collective Subject's Discourse was utilized for data analysis. It was verified that the choice for late pregnancy was related to the woman's desire to consolidate their relationships in new marital partnerships, to financial stability and to the couple's maturity. The women represented late pregnancy as a positive experience if previous planning including their partners' involvement had occurred and if the event had been well-accepted by their families. Without meeting such conditions, the representations are filled with negative feelings connected to pain, suffering and death. The conclusion in this study emphasizes the importance of public health care services' taking these aspects into consideration.
Keywords: Pregnancy; Pregnancy High-risk; Maternal Age; Qualitative Research; Income; Women's Health.
RESUMEN
El objetivo fue aprehender las representaciones sociales sobre el embarazo después de los 35 años de mujeres de bajo ingreso que han vivido esa experiencia. Se empleó el enfoque cualitativo y para el análisis de los datos, se utilizó el Discurso del Sujeto Colectivo. Fueron realizadas entrevistas semiestructuradas con 25 gestantes usuarias de un servicio público de referencia del interior de São Paulo. En los tres temas tratados: opción concientizada para la maternidad, conflictos y disgustos en el embarazo y la participación activa de la pareja, se puede verificar que la gestación después de los 35 años está fuertemente relacionada con el deseo de la mujer de consolidar sus relaciones en nuevas uniones conyugales, con la estabilidad financiera y con la madurez de la pareja. También, fue posible aprehender que las mujeres representan el embarazo tardío como experiencia positiva, si hay su planificación previa, con la participación de la pareja y si es un acontecimiento bien aceptado por la familia después de su constatación. Sin esas condiciones, las representaciones se revisten de sentimientos negativos ligados al dolor, sufrimiento y muerte. Se concluye destacando la importancia de esos aspectos para los servicios públicos de salud.
Palabras clave: Embarazo. Embarazo de Alto Riesgo. Edad Materna. Investigación Cualitativa. Renta. Salud de la Mujer.
INTRODUÇÃO
Sabe-se que a gravidez afeta a mulher de uma forma que transcende as divisões de classe, permeando todas as suas atividades: educação, trabalho, envolvimento político-social, saúde, sexualidade, sua vida e seus sonhos1. Ao mesmo tempo, esta experiência é influenciada por inúmeros fatores, dentre os quais se destacam as circunstâncias de vida pessoal, a situação marital e as condições socioeconômicas, assim como as crenças e valores culturais a ela relacionados2.
Este estudo volta-se à gravidez em mulheres com mais de 35 anos de idade (gravidez tardia), devido a sua significância epidemiológica e demográfica no contexto nacional. Em especial, priorizou-se a gravidez tardia em mulheres com baixa renda, pela possibilidade de, nestas condições, haver aspectos complicadores para a sua resolução adequada, no que se relaciona aos serviços públicos de saúde.
Historicamente, no Brasil, como em todo mundo, existem mulheres que engravidam tardiamente. Entretanto, desde as últimas décadas do século XX, tem-se observado um número crescente de mulheres que passam por essa experiência com mais de 35 anos3. A análise de séries históricas evidencia um relativo aumento de primíparas nesta faixa etária4. Contudo, quando se analisam as características obstétricas gerais das parturientes mais idosas, ainda se verifica a predominância de multíparas, sendo que apenas cerca de um terço daquelas experimenta estreia funcional3.
Este fenômeno demográfico tem sido atribuído, basicamente, ao aumento no número de mulheres que se vinculam ao mercado de trabalho, indicando que a atividade produtiva fora de casa se tornou tão importante para elas quanto à gravidez e o cuidado com os filhos5. De fato, se antigamente era conferida à mulher a finalidade social da ocupação doméstica não remunerada, fazendo com que seus principais objetivos fossem casar e ter filhos, hoje em dia, a situação está bastante diferente. Cada vez mais as mulheres, de todos os níveis socioeconômicos, assumem o papel de chefes de família ou têm necessidade de complementar o sustento do lar6, o que acaba por determinar o adiamento da reprodução feminina. Aliadas a esta transformação social, a melhor situação econômica das famílias e a possibilidade de obterem suporte para a ausência materna do lar são fatores que se relacionam ao aumento da população de mulheres que optam pela gravidez mais tardiamente6.
Deve-se ressaltar que as condições acima apontadas implicaram a possibilidade de adiar a gravidez para o conjunto de mulheres em geral, inclusive para aquelas que se inserem em camadas sociais de baixa renda que, na perspectiva financeira, desde cedo se vêem na obrigação de contribuir com a renda familiar, seja realizando um trabalho remunerado, dentro ou fora do lar, e/ou se dedicando aos cuidados domésticos para facilitar a vida dos outros membros de sua família que contribuem com a referida renda. Pela associação baixa qualificação e sobrecarga de funções domésticas, as mulheres economicamente mais carentes em geral apresentam mais dificuldades em conseguirem e manterem-se empregadas em trabalho remunerado que propicie condições adequadas para a ocorrência concomitante da gravidez, o que certamente pesa no adiamento da sua opção para quando se sentirem seguras neste sentido.6
Além do aspecto socioeconômico citado, os progressos nos conhecimentos sobre reprodução artificial e sua disponibilização para a demanda dos serviços de saúde, tanto privados como públicos, estão permitindo que as mulheres pertencentes a diferentes camadas sociais concebam e se tornem mães com mais idade, inclusive na perimenopausa7. A própria existência e a qualificação de serviços de atenção à maternidade em idades extremas, por sua vez, parecem estar estimulando as mulheres mais velhas a tomarem a decisão de engravidar6
Sob o ponto de vista epidemiológico, a literatura científica tem apontado um risco maior de complicações nas gestações tardias, incluindo a hipertensão arterial, apresentação anômala, diagnóstico de sofrimento fetal intraparto, parto por cesárea e hemorragia puerperal8. Um estudo realizado em uma capital brasileira sobre a distribuição do parto vaginal e da cesariana evidenciou alta concentração de cesáreas entre mulheres com mais de 35 anos, o que foi relacionado ao fato de essas mulheres apresentarem maior risco para algumas patologias graves associadas à gravidez, como diabetes e doença hipertensiva específica da gestação, que podem exigir a interrupção da gestação antes da maturação fetal9. Um estudo realizado no sul do País, com população de baixa renda, revelou que a idade materna maior que 35 anos, entre outras variáveis, estava significativamente relacionada à prematuridade.10
Entretanto, recentes estudos têm destacado que a idade, por si só, pode não se constituir em fator de risco7, pois um bom controle durante o período pré-natal e uma adequada assistência durante o trabalho de parto e parto condicionam prognósticos materno e perinatal semelhantes aos das gestantes mais jovens.
Considerando o exposto, a finalidade deste estudo foi obter subsídios para a promoção da saúde de mulheres com possibilidade de gestações tardias, especialmente as com baixa renda, tendo em vista a prevenção das complicações que possam advir destas experiências.
Dentre as diferentes possibilidades de abordagem sobre o tema, optou-se pela busca do significado da gravidez tardia para as próprias mulheres, por entender que, ao privilegiar suas perspectivas, buscando as representações que elaboram sobre esta experiência, pode-se, por um lado, apreender importante conhecimento do senso comum e, por outro, facilitar suas participações efetivas no processo de prestação de serviços públicos de saúde, caminhando para uma assistência de melhor qualidade.
Ressalta-se que a revisão da produção científica sobre o tema gravidez tardia em mulheres com baixa renda, utilizando a perspectiva compreensiva a qual evidencia a compreensão da realidade humana vivida socialmente, elegendo como conceito central de investigação o significado do fenômeno pesquisa do para os sujeitos sociais11 revelou a inexistência de publicações nacionais neste sentido.
Assim, o objetivo deste estudo foi apreender as representações sociais sobre a gravidez após os 35 anos, a partir de mulheres com baixa renda que vivenciaram essa experiência.
O estudo foi desenvolvido por meio da abordagem qualitativa, definida como aquela que se preocupa com um nível de realidade que não pode ser quantificado, trabalhando com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes que, por sua vez, correspondem a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis12.
pesquisa s que exploram os aspectos qualitativos na área da saúde apontam as representações sociais como possível referencial a ser utilizado, definindo-as como senso comum, ideias, imagens, concepções e visão de mundo que os atores sociais possuem sobre a realidade11. Para a realização deste estudo, adotou-se a perspectiva sociológica das representações sociais.Sob essa perspectiva, considera-se que a realidade vivida é representada e, por meio dela, os atores sociais se movem, constroem sua vida e a explicam mediante o seu estoque de conhecimentos. Sendo as representações sociais fruto da vivência das contradições que permeiam o dia-a-dia dos grupos sociais, sua expressão marca o entendimento deles com seus pares, seus contrários e as instituições, possuindo núcleos de transformação e de resistência na forma de conceber a realidade12.
O estudo foi realizado em um hospital universitário do Sistema Único de Saúde (SUS) de um município localizado na região centro-sul do estado de São Paulo que apresenta uma população aproximada de 120.000 habitantes. No referido hospital, os dados foram colhidos de gestantes com mais de 35 anos usuárias de um ambulatório especificamente voltado ao atendimento obstétrico de gestantes nesta faixa etária. Assim, este grupo de mulheres foi definido como população de estudo, considerando que a sua vinculação ao SUS permitiria classificá-lo como de baixa renda13.
Por se tratar de estudo qualitativo, a seleção da amostra considerou a quantidade, a variabilidade e a qualidade dos sujeitos a serem entrevistados, a fim de que eles pudessem fornecer dados ricos, interessantes e suficientes para compor e reconstituir o pensamento sobre a gravidez após os 35 anos de idade. Assim, trabalhou-se com amostras intencionais e com critérios eminentemente qualitativos de coleta e processamento de dados12.
Como técnica de coleta de dados, empregou-se a entrevista semiestruturada, a qual possibilita, partindo de questões norteadoras relacionadas ao objetivo do estudo, ampliações para outras, que surgem à medida que as respostas vão sendo obtidas, permitindo aos entrevistados participar da elaboração do conteúdo da pesquisa 14.
Foram entrevistadas 25 gestantes, partindo das seguintes questões: Você pode dizer como é para você ter um filho após os 35 anos? Você decidiu ficar grávida ou foi por acaso? Fale um pouco sobre isso. Conte-me como você passou nesta gravidez. Fale-me sobre como foi esta gravidez para o seu companheiro.
O critério adotado para encerrar a inclusão de novas entrevistadas foi o da saturação teórica, entendida como a inexistência de dados novos que já não tenham sido mencionados12.
As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas na íntegra, e devidamente destruídas ao término da pesquisa . Para a sua realização, o objetivo e a finalidade do estudo foram apresentados previamente às gestantes, quando lhes foram garantidos o sigilo no tratamento e na divulgação dos dados e o direito de não participarem ou desistirem da entrevista, em qualquer momento, sem nenhum prejuízo. Em seguida, foram solicitadas às informantes suas anuências em participarem da pesquisa , bem como para utilização do gravador, quando foi oferecido o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para assinarem, se concordassem com o proposto.
Destaca-se que a mediação privilegiada para a compreensão das representações sociais é a linguagem, tomada como forma de conhecimento e interação social. Por sua veiculação dialética com a realidade, a compreensão da fala exige, ao mesmo tempo, a compreensão das relações sociais que ela expressa, pois as palavras não são a realidade, apenas a representam12.
Para possibilitar a análise das falas apreendidas, foi adotado o método do Discurso do Sujeito Coletivo, considerado eficaz para o processamento e expressão de opiniões coletivas. Foram utilizadas as seguintes figuras metodológicas: ideia central (IC), expressão-chave (EC) e discurso do sujeito coletivo (DSC). Tomando por base a Teoria das Representações Sociais, no referido método, a IC pode ser entendida como a(s) afirmação(ões) que permite(m) traduzir o essencial do conteúdo discursivo explicitado pelos sujeitos em seus depoimentos; a EC é constituída por transcrição(ões) literal(is) de parte dos depoimentos, que permite(m) o resgate do que é essencial no conteúdo discursivo; e o DSC é a reconstrução, a partir de discursos individuais, de tantos discursos-síntese quantos forem necessários, para expressar um dado pensar ou representação social sobre um fenômeno15.
Em observância às orientações contidas na Resolução CNS 196/96, o projeto desta pesquisa foi submetido à revisão ética e ao acompanhamento de Comitê de Ética em pesquisa da instituição onde foi desenvolvido, tendo sido aprovado.
Como uma breve caracterização sociodemográfica da população de estudo, tem-se que mais de dois terços das 25 entrevistadas eram mulheres na faixa etária entre 35 e 37 anos, com três ou quatro filhos, casadas ou em união conjugal estável. Quanto ao trabalho e a escolaridade, metade delas se ocupava com afazeres domésticos e tinha até quatro anos de aprovação escolar. Entre aquelas que referiram uma ocupação, o destaque foi para as empregadas domésticas e trabalhadoras rurais, embora a maioria delas estivesse desempregada no momento da entrevista. Essas características confirmam a baixa escolaridade e renda disponível por essas mulheres, conforme o esperado para populações que frequentam serviços do SUS13.
Em resposta às questões norteadoras das entrevistas, foram obtidas as representações sociais pretendidas. Os DSC construídos a partir destas respostas foram identificados pelas IC correspondentes e organizados nos três temas abordados pelas referidas questões, conforme se apresenta e discute a seguir:
Tema 1 - Opção consciente pela maternidade
Considerando que, de um modo geral, o perfil social da mulher tem se alterado ao longo dos anos, como anteriormente apontado, certamente seus planos e anseios no que tange à maternidade, também têm mudado, podendo-se afirmar que, atualmente, há uma tendência universal de adiar a gravidez para anos mais tarde5. Os dois primeiros DSC mostram-se coerentes ao exposto:
Eu casei com trinta e dois anos, então eu resolvi, nós resolvemos, eu e meu marido, termos um filho agora, com trinta e cinco. Foi uma gravidez esperada, programada, uma alegria. Foi e está sendo muito bom, uma experiência maravilhosa. Eu estou contente, consciente. É quando você tem certeza que quer mesmo, a gente está mais madura, já sabe o que quer certinho, tem mais centrado o que quer da vida. É diferente de quando você tem antes, por acaso, sem querer. Quando você decide mesmo, opta por isso, é melhor e, a felicidade, eu acho que é dobrada
(DSC1 - IC: A gravidez foi planejada).
Agora é uma coisa diferente, parece que a gente vai aproveitar mais esse bebê do que os outros. A gente é mãe mais madura, experiente, mais formada pra ser mãe, né? Já que Deus permitiu ter meu filho, a gente ficou feliz, foi uma coisa assim, uma benção de Deus na nossa vida. Acho que, na verdade, eu estava mais preparada agora do que antes, em tudo (DSC2 - IC: A gente está mais formada e preparada pra ser mãe).
Os DSC1 e 2 revelam que, em contextos de baixo poder aquisitivo, a opção pela gravidez após os 35 anos pode ser tomada de modo consciente, tanto por primíparas como por multíparas, por representarem essa experiência como positiva, capaz de fornecer muita satisfação, devido à maturidade atingida pelo casal. Deste modo, a segurança da estabilidade financeira e na relação entre os progenitores da criança pode ser inferida como fator determinante dessa perspectiva positiva, seja quando a formação dos casais ocorrem mais tarde na vida das mulheres, ou quando os casais decidem engravidar mais tarde, anos após a união conjugal.
Por outro lado, a perspectiva positiva da gravidez nesta faixa etária pode ser atrelada, também, ao desejo dos casais em consolidarem novas uniões, mesmo que um dos cônjuges ou ambos, já tenham filhos, frutos de outras uniões, conforme ilustra o DSC 3:
Foi uma gravidez esperada, uma coisa que a gente queria muito, porque esse meu marido é o meu segundo marido, e é a primeira filha dele. Então, foi uma coisa assim, que a gente desejou muito. Ele queria esse neném, e eu também. Do meu primeiro casamento eu tive três, e como ele não tinha nenhum... Foi assim, um pouco mais pro meu lado, eu resolvi ter. Eu queria ter um filho com ele (DSC3 - IC: É meu segundo casamento e a gente queria muito).
O DSC3 confirma que a opção pela gravidez tardia pode ser tomada de modo consciente, ao corresponder a um desejo, principalmente da mulher, que, mesmo já sendo mãe de outros filhos, decide "dar um filho" ao novo companheiro. É importante reconhecer que, atualmente, coexistem várias formas de organização familiar, em todos os níveis socioeconômicos16. Às formas tradicionais, como as famílias nucleares, com pai, mãe e filhos, somam-se outras, como a extensa, que inclui mais de duas gerações consanguíneas, a ampliada, que inclui pessoas não aparentadas, mas que atuam no grupo familiar, as monoparentais, quando um dos pais é responsável pelos filhos, e a simultânea, relatada no DSC3, onde um ou ambos os cônjuges tiveram desfeito uma união anteriormente e há filhos de diferentes pais, num mesmo grupo familiar16-17.
Mantendo convergência com os achados sobre a opção consciente pela gravidez após os 35 anos e com a perspectiva positiva desta experiência, foram apreendidas representações sobre o período gestacional como algo absolutamente normal:
Foi uma gravidez tranquilíssima, tudo normal. Passei bem, trabalhei a gravidez inteira, fazia de tudo na minha casa, limpava, saía pra andar de moto, que geralmente o médico fala que não pode. Graças a Deus, correu tudo bem. Das gravidezes, essa foi a melhor que eu tive. Foi uma coisa emocionante, eu curti, prestava atenção a cada movimento do neném e eu não tive essa atenção nas outras gestações. Eu acho que eu tive filho muito nova. Eu ficava contente, assim, de ver minha barriga crescendo.(DSC4 - IC: Foi uma gravidez tranquilíssima).
O DSC4 mostra que o período gestacional de mulheres com mais de 35 anos, do estrato socioeconômico pesquisa do, pode ser considerado como tranqüilo, prazeroso e que permite a manutenção de todas as atividades cotidianas, representações estas que podem estar ancoradas no princípio socialmente aceito de que gravidez não é doença.
Além disso, o DSC4 evidencia que a gravidez tardia pode se configurar como um período em que as mudanças decorrentes do desenvolvimento do bebê, como o aumento da barriga e a movimentação fetal, são muito mais percebidas e apreciadas do que em épocas anteriores, devido ao próprio amadurecimento da gestante, conforme elas mesmas reconhecem. Ressalta-se que os sentimentos de personificação do feto se instalam na mãe mais decisivamente com a percepção dos movimentos fetais. A interpretação destes movimentos constitui mais uma etapa da formação da relação materno-filial em que, na fantasia da mãe, o feto começa a adquirir características peculiares e a se comunicar com ela5.
Tema 2 - Conflitos e desprazeres na gravidez
Permeando as representações positivas sobre a gravidez tardia entre as mulheres com baixa renda, sentimentos conflituosos e negativos também puderam ser apreendidos quando este fenômeno não era esperado, embora tenha havido aceitação com o passar do tempo, conforme revela o DSC5, e quando, definitivamente, não era desejado diante da situação financeira difícil e das possibilidades de complicações gestacionais, como ilustrado no DSC6.
É, planejado ele não foi, eu achava que não ia ter mais. Então, quando eu fiquei sabendo, fiquei sem ação, foi aquela surpresa, mas não é que eu não gostei. Ficava pensando que eu já era, que eu já tinha idade, que se ficasse grávida tinha risco pra mim e pro bebê. Mas, depois dos seis meses acostumei, fui ficando contente, comecei a fazer pré-natal, ultrassom, fui pegando amor e aceitei numa boa. E bateu a maternidade em mim... (DSC5 - IC: Com o tempo, bateu a maternidade em mim).
Cientificamente, constata-se que a gravidez é um período de grandes transformações psíquicas para a gestante, do qual decorre uma importante transição de papéis e de status sociais. Assim, especialmente no primeiro trimestre de gravidez, a ambivalência entre querer e não querer a gravidez é comum3.
Pelo DSC5, é possível apreender a importância do período gestacional para que a gestante conviva com o bebê e assimile a ideia de sua chegada. Essa percepção ancora-se na visão da maternidade como algo instintivo, que ao "bater" transforma a mulher, que passa a vivenciar a gravidez de forma prazerosa. Neste caso, emerge a visão romântica da existência de uma conexão biológica da mulher com a maternidade.
Tais representações, se por um lado assumem o sentido da organização psíquica/emocional necessária para a espera e acolhimento do concepto, por outro lado, apontam a falta de qualquer preocupação crítica em se considerar as mulheres apenas na dimensão reprodutiva. Acima de tudo, a reprodução feminina é determinada pela organização social e cultural; uma análise parcial de seu significado pode cercear os esforços das mulheres na busca de um pouco mais de espaço de controle sobre suas vidas e seus corpos, permitindo-lhes expressar livremente sua sexualidade1.
A possibilidade da escolha sobre o momento de ter um filho coloca-se como um fator decisivo para uma gravidez e maternidade/paternidade saudáveis, o que se constituía em algo pouco provável algumas décadas atrás. Atualmente, os avanços relativos à anticoncepção, e mesmo à fertilização assistida, têm viabilizado maior poder de decisão aos casais. Tal decisão resulta da interação de vários motivos, conscientes e inconscientes, como: aprofundar uma relação, manter um vínculo, concretizar o desejo de transcendência e continuidade, preencher um vazio e buscar extensão de si mesma, entre outros3, que nem sempre afastam sentimentos conflituosos.
Como anteriormente citado, deste mesmo grupo social emergiram representações impregnadas por sentimentos negativos sobre a experiência da gravidez após os 35 anos, relativos a uma gravidez definitivamente não desejada pela falta de condições financeiras e pelo medo das complicações obstétricas que poderiam advir de uma gravidez tardia, como revela o seguinte DSC6:
Na hora que fiquei sabendo, olha, foi revolta, viu? Eu fiquei muito nervosa porque eu não queria, mas aconteceu. Eu estava desempregada e aí ficar grávida é difícil. Chorei na frente do meu marido, sabe, mas depois que a gente faz, tem que assumir, né? Nos primeiros três, quatro, seis meses eu fiquei muito nervosa. Então, eu falei: "ai meu Deus, não desejo Senhor, não quero, não desejo, mas se for pra eu morrer e deixar meus filhos que estão grandes aqui sem pai, eu prefiro eu do que a criança". Eu pensei assim, porque o menor não sente, se dá um negócio não vai sofrer tanto. O mais duro é que eu tinha medo de morrer na mesa. A gente, assim, com mais idade, fica difícil(DSC6 - IC: Não queria e não podia, até tive medo de morrer).
Apreende-se do DSC6 a representação da gravidez tardia como algo perigoso, que poderia levar à morte. Esse discurso se mostra impregnado de invocações a Deus e com uma entrecortada ancoragem no papel/dever materno, socialmente estabelecido, de que, se tivesse que fazer uma opção entre sua vida ou a da criança, gostaria de ser preservada para poder cuidar dos outros filhos. Atrelada a estas preocupações, percebe-se no DSC6, também, a preocupação com gastos financeiros que a gravidez poderia trazer.
Em estudo realizado com gestantes de uma comunidade de baixa renda, do interior paulista, verificou-se que, quando estas não encontravam soluções para seus problemas, pediam a ajuda de Deus, pois para elas o amparo Dele era essencial para suportar a situação de adversidade e conseguir prosseguir na sua trajetória, marcada pela incerteza em relação ao futuro; este era um dos poucos recursos de que dispunham neste sentido2.
Ainda, pelos depoimentos sobre a vivência do período gestacional, pode-se identificar que a gravidez tardia pode provocar dor e desconforto, os quais podem ser suportáveis e facilmente superáveis, mas que também podem provocar dor intensa e indesejável, como ilustram o DSC7 e o DSC8, respectivamente:
A gravidez nesta idade foi meio complicada, um pouquinho difícil, judiou um pouco. No começo eu fiquei nervosa, tive enjôo, um pouquinho de ânsia, mas depois passou. Às vezes, eu tinha uma dorzinha na barriga, mas normal. Eu tive dois sangramentos, no segundo e no quarto mês e foi difícil aguentar aquele peso, pelo tamanho do neném. Tive que parar de trabalhar logo e esse problema no final, de diabetes gestacional...
(DSC7 - IC: Foi uma gravidez difícil, mas depois passou).
Pra mim foi péssimo, eu passei supermal. Em vista das outras, esta foi a pior. Tinha muita dor, sentia dor de tudo quanto é jeito. Andava a noite inteira pela casa com dor no pé da barriga. Com sete meses começou a dar outros problemas: nas pernas, no rim, precisei de antibiótico, a pressão subiu muito, tive diabete e que cuidar do nervoso. Fiquei supernervosa porque foi indesejável, porque achava que um casal que eu tenho era ideal, porque pesa pra cuidar, dar uma boa educação, fica difícil, né? Além da dificuldade pra tratar, porque eu estava trabalhando. Assim que eu falei pra minha patroa que eu estava grávida, ela me mandou embora. Aí eu fiquei muito magoada, abalada, deprimida ( DSC8 - IC: Foi indesejável e péssimo).
Mesmo considerando que as experiências de dor ou desconforto podem ser inerentes a qualquer gravidez, a análise científica dos aspectos emocionais do período gravídico-puerperal evidencia a ocorrência de ansiedades, medos e mudanças nos vínculos afetivos. O terceiro trimestre de gravidez é caracterizado pelas ansiedades e temores que se intensificam com a proximidade do parto, incluindo o medo da dor e da morte. Consequentemente, há um aumento nas queixa físicas. Neste período da vida da mulher, afloram muitas ansiedades e medos primitivos1 e, assim, não se deve julgar a gestante, mesmo quando ela se refere à gravidez como algo indesejado, como observado no DSC8. Também, deve-se considerar que não existe gravidez totalmente aceita ou totalmente rejeitada: mesmo quando há clara predominância de aceitação ou rejeição, o sentimento oposto jamais está inteiramente ausente3.
Em estudo já citado, verificou-se que a vivência da gravidez de mulheres de faixas etárias mais jovens, advindas de estratos socioeconômicos mais carentes, é permeada por sentimentos de ambivalência diante das inúmeras alterações físicas e emocionais, na proporção direta das dificuldades enfrentadas por elas, sendo que as incertezas nos aspectos financeiros, de situação conjugal, profissional e familiar, peculiares àquelas mulheres, influenciaram sobremaneira as perspectivas negativas sobre a experiência gestacional2. Em síntese, para as gestantes mais idosas, verificou-se, pelo presente estudo, as mesmas correlações.
Tema 3 - A participação ativa do companheiro
Os DSC9 e 10, agrupados neste tema, confirmam que participação do companheiro em todas as etapas da gravidez e no parto é essencial para seu desenvolvimento saudável, aproxima o casal, permite a troca de carinho e a manifestação de emoção e contribui para que ele e a gestante representem a gravidez de forma positiva.
Ele está muito feliz, contente, adorou eu ter ficado grávida, ele estava esperando. Ele ama (o filho) desde o momento que soube que eu estava grávida; é o primeiro dele. Durante a gravidez ele falava com o bebê, acordava durante a noite e tocava minha barriga, estava sempre beijando ela, era muito carinhoso, tanto comigo como com o bebê... Sempre perguntava como ele estava dentro de mim, sempre preocupado com minhas consultas, procurando acompanhar quando dava, acompanhou certinho a gravidez junto comigo, curtindo junto. Meu filho mais velho também, foi assim praticamente, tivemos em quatro: eu, ele, meu filho e o neném(DSC9 - IC: Ele curtiu junto).
O DSC9 traz a representação da gravidez tardia como algo que aproximou não só o companheiro, mas também os outros filhos, compondo uma família. Um estudo realizado no mesmo município com gestantes diabéticas evidenciou que o apoio da família e/ou companheiro foram essenciais para que a gravidez ocorresse de forma tranquila17-18. Mesmo quando existe preocupação associada a alguma intercorrência, a gravidez também é representada como fator de aproximação, como se pode observar no DSC10:
Ah, quando ele soube que eu estava grávida, ele foi até a porta da minha casa e me levou pra morar com ele, disse que a maior felicidade da vida dele era morar comigo, ainda mais carregando um filho dele. Ele inclusive ficou muito preocupado, eu internada, o neném ia nascer antes do tempo, falou que não ia estar aqui pra ver. Eu reclamava muito de dor, ele virava pra mim e falava que, se tivesse como dividir a dor que estava passando pra ele, ele aceitaria numa boa. No sábado ele passou o dia inteiro comigo aqui, preocupado, me alegrou muito, deu bastante força (DSC10 - IC: Ele ficou preocupado, mas deu força).
A gravidez e o parto são períodos relativamente curtos em tempo, mas longo em vivências e expectativas. O DSC10 foi construído com representações sobre a gravidez tardia, pautadas por sentimentos ambíguos de felicidade e preocupação, alegria e dor. Mas dele apreende-se, acima de tudo, a aproximação do casal decorrente desta experiência compartilhada. De outra forma, o sentimento de resignação está claramente posto pelo DSC11:
Ele aceitou, né? Tem que aceitar! Aconteceu, fazer o quê? Ele falava que um a mais era normal. E, ele é uma pessoa tranquila, sabe? Falava pra eu ficar tranquila também, desde que ele fosse o pai, pra eu ficar tranquila(DSC11 - IC: Ele teve que aceitar, fazer o quê?).
Além da resignação, o DSC11 indica a importância da oferta de apoio do companheiro para a gestante manter a calma necessária neste período. Constata-se também que a gestante admite, sem qualquer outra consideração ou elaboração a respeito, a tranquilidade da gravidez condicionada à certeza da paternidade pelo companheiro.
Conforme objetivado, a realização deste estudo permitiu apreender as representações sociais de mulheres com baixa renda que engravidaram após os 35 anos de idade sobre esse acontecimento. A análise dos resultados permitiu considerar que a gravidez tardia pode significar para as mulheres uma experiência permeada de percepções e sentimentos de satisfação/realização pessoal e familiar, relacionada à possibilidade de seu planejamento e à maior segurança na relação com o companheiro (por vezes, numa segunda união), com a família e com próprio o bebê, e, até mesmo, em relação à melhor estrutura financeira, devido à estabilidade econômica já alcançada. Também, pode significar a possibilidade de superação das eventuais intercorrências gestacionais que venham a ocorrer por qualquer motivo. Por outro lado, vivenciar a gravidez após os 35 anos pode significar um período de desprazeres e conflitos, devido a questões biológicas relativas à gravidez nesta faixa etária e a outros fatores de seu cotidiano familiar e econômico. A participação ativa do companheiro é considerada como fundamental para que a experiência da gravidez tardia transcorra sem maiores problemas.
Portanto, deve-se considerar que mesmo processos naturais como a gravidez e o parto necessitam de análise e manejo diferentes, conforme os aspectos individuais e do âmbito familiar e sociocultural em que estejam inseridos, que devem ser a todo tempo valorizados, pois intrinsecamente relacionados a esses aspectos estão as representações sobre esses processos. Estas possíveis contradições no modo de vivenciar/representar a gravidez tardia devem ser consideradas pelos serviços públicos de saúde de forma a viabilizar uma assistência mais coerente e efetiva.
À enfermeira Fabiana Bonfante Alvin pelo auxílio durante a coleta de dados.
REFERÊNCIAS
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Recebido em 13/03/2008
Reapresentado em 28/06/2008
Aprovado em 11/09/2008