Volume 12, Número 4, Out/Dez - 2008
PESQUISA
Formação das enfermeiras para a parturição: implantação de um hospital universitário na década de 80
Formation of nurses for labour and childbirth: implantation of a university hospital in the decade of 80's
Formación de enfermeras para el parto: implantación de un hospital universitário en la década de 80
Tatiana Augustinho RochaI; Ana Lúcia de Lourenzi BonilhaII
IMestre em Enfermagem pela UFRGS, Professora Substituta na Escola de Enfermagem/UFRGS - Departamento de Saúde Materno-Infantil (DEMI) - Disciplina Enfermagem no Cuidado à Saúde da Mulher e-mail: rochataty@yahoo.com.br
IIDoutora em Enfermagem pela USP, Professora Adjunta da Escola de Enfermagem/UFRGS - Departamento de Enfermagem Materno-Infantil (DEMI)
RESUMO
Tem-se por objetivo conhecer o contexto político e de ensino que nortearam a formação de enfermeiras gaúchas na área obstétrica e como isso se deu nos primeiros anos de funcionamento de uma maternidade em hospital universitário de Porto Alegre, RS. Utilizaram-se os pressupostos da Nova História e a metodologia da História Oral. A coleta de dados foi feita por meio de entrevista semi-estruturada, com análise temática. A análise e discussão focalizam-se nas políticas de saúde no período, na formação e nas práticas das enfermeiras para o partejar. Considerou-se que a não-remuneração dos partos realizados por enfermeiras, o aumento do número de estudantes em cursos de medicina e a competição pelo espaço de prática, regida pela lógica tecnicista, foram motivos para a desistência do partejar pelas enfermeiras. No entanto, ressalta-se que não foi um processo tranqüilo e sem resistências.
Palavras-chave: Obstetrícia. História da Enfermagem. Prática Profissional.
ABSTRACT
The objective of this study is learn the political context and the teaching environment of the formation of gaucho (from the State of Rio Grande do Sul) nurses in the obstetrical area and how this took place in the first years of operation of a University hospital in Porto Alegre, RS. The method used was the presuppositions of the New History and the methodology of the Oral History. The recollection of data was made using a semi-structured interview with thematic analysis. The analysis and discussion was focused on the health policies of that period of time, and on the education and practice of the nurses for labour and childbirth. We considered that the non-remuneration of the births performed by the nurses, the increasing number of students in Medicine courses and the competition in obtaining spaces for practice were reasons for nurses to give up performing labour and birth procedures. We must point out that, notwithstanding, it was not a peaceful and non-resistance process.
Keywords: Obstetrics. History of Nursing. Professional Practice.
El objetivo del presente estudio es conocer al contexto político y de Educacional que regía la formación de enfermeras gauchas en el área obstétrica y como esto se llevó a cabo en los primeros años del funcionamiento de la maternidad en un hospital universitario de Porto Alegre, RS. Se utilizaron los conceptos de la Nova Historia y la metodología de la Historia Oral. La recolección de datos se realizó por medio de la entrevista semi-estructurada con el análisis temático. El análisis y la discusión tuvieron como foco las políticas de salud del periodo en cuestión en la formación y en las prácticas de las enfermeras para la realización del parto. Se consideró que la no remuneración de los partos realizados por enfermeras, el aumento del número de estudiantes en los cursos de medicina y la competencia por el espacio de práctica fueron motivos para la renuncia de las enfermeras a asistir en los partos. Sin embargo, se resalta que éste no fue un proceso tranquilo y sin resistencias.
Palabras-claves: Obstetricia. Historia de la Enfermería. Práctica Profesional.
INTRODUÇÃO
Estratégias e recomendações internacionais têm sido implementadas com o intuito de diminuir as taxas de mortalidade materna em países em desenvolvimento. Entre outras, encontra-se a da inserção das enfermeiras no atendimento ao parto1. No Brasil, estima-se que mais de 90% dos casos de mortes maternas poderiam ser evitados com atendimento adequado durante o pré-natal e o parto2. Para que este atendimento seja efetuado de modo a garantir as recomendações internacionais, o Ministério da Saúde, com a Portaria de número 2.815, de 29 de maio de 1998, concede à enfermeira obstétrica o pagamento pela realização de partos em hospitais 3.
Entretanto, as tentativas de reinserção das enfermeiras nas práticas do partejar têm encontrado grande resistência por parte de profissionais médicos na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, embora a realização do parto por não-médicos não seja uma novidade nesta cidade. Até a primeira metade da década de 1950, pouco mais de 50% dos partos eram realizados em ambiente hospitalar. Isto implica dizer que um número significativo ocorria em ambiente doméstico e era atendido provavelmente por parteiras4. A partir da segunda metade da década de 1950, o atendimento ao parto sofreu mudanças significativas, pois passou a ser um evento eminentemente hospitalar5. O partejar no ambiente hospitalar tornou-se, primeiramente, uma atividade da enfermeira, até o final da década de 60, em Porto Alegre, passando a ser uma atividade predominantemente médica, a partir dos anos 70. Desta forma, houve o afastamento das enfermeiras no cotidiano hospitalar das ações específicas no momento da parturição.
Tem-se como pressuposto que "essa relação entre o passado e o presente se estabelece na busca do conhecimento, de maneira a se questionar o passado numa série de questões que são o `agora'. Esse `agora' provavelmente influenciará no futuro da profissão"6:536. Ou seja, entender o passado pode trazer a compreensão do presente e subsidiar caminhos futuros. Assim, compreender como as enfermeiras se afastaram do momento mais crucial da parturição pode proporcionar alguns subsídios para implementar mudanças das práticas obstétricas atuais. Em vista disto, objetivou-se conhecer o contexto político e de ensino que nortearam a formação de enfermeiras gaúchas nesta área e como isso se deu nos primeiros anos de funcionamento de uma maternidade em hospital universitário.
Como recorte institucional, tem-se um hospital universitário da cidade de Porto Alegre, local de formação de grande parte dos profissionais atuantes no Estado. Deste modo, é um local privilegiado para a mudança do modelo de atenção em saúde, inclusive para disseminar idéias que em alguns momentos eram consideradas inatingíveis7. O recorte espaço-temporal consistiu nos anos de 1976 a 1984, período que compreendeu a nomeação de comissão para a estruturação do serviço de enfermagem da área materno-infantil, na qual estão incluídas as unidades de atendimento à mulher durante o trabalho de parto, até o final do mandato da primeira chefia deste serviço.
Foram utilizados os pressupostos da Nova História, que possibilitou o emprego de recursos diferenciados para a coleta dos dados devido à escassa documentação e à singularidade da temática. A Nova História foi um movimento que se caracterizou por revolucionar a história tradicional, ao postular que toda a atividade humana, não apenas a vida e os fatos "heróicos", são passíveis de serem reconstruídos historicamente. Constitui-se em uma das formas de reconstruir a história.
Compartilha-se, neste estudo, do ponto de vista de alguns pesquisadores que vêem na pesquisa histórica uma oportunidade de envolvimento não isento do processo do descortinar dos fatos8;9;10.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo histórico qualitativo que, segundo os pressupostos da Nova História, utilizou como método de pesquisa a História Oral. A História Oral é um método de pesquisa a qual "privilegia a realização de entrevistas com as pessoas que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo como forma de se aproximar do objeto de estudo"8:18. Esta aproximação com o objeto de estudo confere à História Oral características peculiares, tais como a relação entre o pesquisador e a fonte/narrador.
Além dos entrevistados, utilizaram-se como fonte de dados os documentos do Centro de Memória da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e outros estudos que contribuíram para reconstruir o contexto sociopolítico do período estudado.
O narrador, neste estudo, é denominado colaborador, pois "[...] colaborador é um termo importante na definição do relacionamento entre o entrevistador e o entrevistado"9:28. Assim, o uso deste termo é fundamental, sobretudo porque estabelece uma relação de afinidade entre os pares. Desta forma, o entrevistador deixa de olhar o entrevistado como objeto de pesquisa, comprometendo-se de forma empática e sensível com os atores envolvidos e a história narrada.
A escolha dos colaboradores foi intencional e estratégica, visto que interessou ao estudo quem vivenciou intensamente o assunto pesquisado10. O nome e endereço das colaboradoras foram obtidos por meio da indicação de outro colaborador, considerando a relevância do mesmo na implantação do serviço. Entre os critérios de inclusão dos colaboradores, têm-se: (a) ter exercido profissão de enfermeira obstétrica na implantação do serviço no referido hospital, podendo ou não ser docente; (b) ter assinado termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o Termo de Cessão sobre Depoimento Oral.
Foram entrevistadas 12 colaboradoras, sendo todas enfermeiras que trabalharam no período da implantação na área obstétrica do hospital nos primeiros anos de funcionamento. Do total de entrevistadas, oito também exerceram atividade de ensino.
A entrevista, principal método de coleta de dados em História Oral, caracteriza-se por estabelecer uma relação entre "pessoas diferentes, com experiências diferentes e opiniões também diferentes, que têm em comum o interesse por determinado tema, por determinados acontecimentos e conjunturas do passado"8:15. Optou-se por utilizar um roteiro para a entrevista semi-estruturada, com questionamentos sobre o que se fazia e como eram as divisões das tarefas nos primeiros anos de funcionamento do serviço durante o parto. O tempo de duração das entrevistas variou de 15 minutos a quatro horas.
O local para a realização das entrevistas foi combinado conforme a escolha do colaborador. Em muitos momentos, foram realizadas no domicílio do colaborador ou no seu local de trabalho.
Uma das exigências da História Oral é registrar as falas. Neste caso, foi utilizado um gravador digital, ou seja, um MP3 player de 512 MB de memória. E para a execução das entrevistas foi empregado o Windows Media Player®. As transcrições foram realizadas por uma das autoras do estudo.
Para a análise dos dados, empregou-se a análise de conteúdo do tipo temática11. Esta metodologia permite o aprofundamento argumentativo de duas formas: por meio da análise da freqüência como caráter objetivo e científico, ao mesmo tempo em que ultrapassa a mera descrição, atingindo, mediante inferência, uma interpretação mais profunda.
De acordo com a Resolução 196/96, foi oferecido aos colaboradores um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O pesquisador explicou que o colaborador poderia desistir de participar da pesquisa quando lhe aprouvesse, sem que isto lhe acarretasse quaisquer danos ou sanções. Conservou-lhe, ainda, o direito ao anonimato. A pesquisa teve seu início após aprovação pelo Comitê de Ética e Pesquisa do hospital universitário deste estudo, o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Contexto político: reflexos sobre o partejar
Em 1960, foi emitida a Lei Orgânica de Previdência Social de número 3.807, iniciando o processo de unificação da previdência social brasileira, antes dividida em Institutos de Aposentadorias e Pensões, organizados por categorias profissionais. Após o golpe militar de 1964, os cargos diretivos dos Institutos de Aposentadorias e Pensões passaram a ser de responsabilidade de juntas interventoras, nomeadas pelo governo militar12. A unificação da previdência teve sua consolidação em 2 de janeiro de 1967, denominando-se Instituto Nacional de Previdência Social (INPS).
Com a criação do INPS, o governo militar, ao incorporar os benefícios oferecidos pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões, também precisou assegurar o atendimento médico aos contribuintes. O sistema previdenciário, na época responsável pelo atendimento à saúde da população brasileira, precisou ampliar a oferta de serviços; para tanto, escolheu alocar os recursos na iniciativa privada, de modo a obter o apoio de camadas importantes e influentes da sociedade12. Assim, o governo passou a fazer convênios com hospitais e médicos, estes últimos sendo pagos pela produção de serviços (pró-labore), capitalizando este segmento da sociedade12. O acúmulo de verbas no setor hospitalar e médico gerou o efeito cascata de maior uso de medicamentos e equipamentos médico-hospitalares, características que acompanharam o período estudado. Assim, o hospital tornou-se o local privilegiado da realização do parto, sendo o médico o único profissional pago para atender ao parto
A questão da não-remuneração por parto realizado por enfermeira foi um fator relevante apontado pelas colaboradoras para a saída das enfermeiras do partejar. A partir de 1967, com a consolidação da unificação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões e a criação do Instituto Nacional de Previdência Social, esta mudança resultou em que só os médicos credenciados passaram a receber pelos partos realizados. Assim, ficou difícil para as enfermeiras atuarem, conforme relata a colaboradora:
Tinha toda a diferença, porque o parto realizado pela enfermeira, não era nem permitido que fosse registrado na folha de parto que tinha sido realizado pela enfermeira. Poderia ter o nome da enfermeira que tinha realizado o parto, mas tinha que ter o nome do contratado daquele dia, então o nome do contratado sempre! [...] Ou era o médico ou o hospital, nunca nós, nós recebíamos o salário de enfermeira, como é hoje. [...] Porque como é que tu vais fazer este parto se não tens o direito de assinar e nem de receber por este parto? (C11)
De acordo com a fala anterior, embora realizassem o parto na prática, as enfermeiras não podiam registrá-lo como tal e, conseqüentemente, não eram gratificadas por isso. Assim, a não-remuneração pela atividade de partejar foi um marco importante para desistência das enfermeiras de atuarem no parto. Sem o devido pagamento pela prática efetuada, as profissionais sentiram-se desestimuladas e passaram a perceber o parto não mais como ação de sua competência. Embora fosse atribuição legal da enfermeira, o não-pagamento simbolizou, em nível nacional, por meio do INPS, a marginalização do parto realizado por esta categoria.
O ensino para o partejar
O ensino sistemático na área obstétrica, na capital gaúcha, teve início em 1897 com o curso de formação de parteiras, que, ao longo de sua existência, recebeu diferentes denominações: Curso de Partos (1897-1899), Curso de Obstetrícia (1900-1932) e Curso de Enfermagem Obstétrica (1933-1951). Este último esteve ligado à cátedra de Medicina Obstétrica e Ginecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e em momento algum se configurou como curso de nível superior no que se refere às suas exigências de ingresso. Até então não era necessário conhecimento acadêmico para a formação do partejar. A tentativa de tornar de nível superior o curso de formação para o parto esteve pautada pela industrialização e pela exigência de maior especialização da mão-de-obra, mais intensamente a partir da década de 50.
A Lei 775/49, que dispõe sobre o ensino de Enfermagem, além de alterar o processo seletivo dos cursos superiores, criou uma possibilidade de acesso aos cursos superiores para as mulheres, pois refere que toda faculdade de Medicina brasileira poderia implantar uma escola de Enfermagem anexa. A partir disso, o diretor da Faculdade de Medicina da UFRGS, Dr. Guerra Blessmann, teve a idéia de criar a Faculdade de Enfermagem, pois era necessário "qualificar a assistência de enfermagem a fim de facilitar e auxiliar o trabalho médico"13:88. Assim, segundo a Lei 1.254, de 8 de abril de 1950, a Escola de Enfermagem de Porto Alegre foi criada, anexa à Faculdade de Medicina, cujo decreto de fundação data de 4 de dezembro de 1950, iniciando seu funcionamento em março de 1951.
O currículo básico do curso de Enfermagem possuía 36 meses de duração composto por quatro períodos, sendo que no terceiro havia a disciplina de Enfermagem e Clínica Obstétrica. O campo prático das atividades da Escola de Enfermagem era na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Na área Obstétrica, a Santa Casa foi campo de estágio unicamente para os alunos da UFRGS até a criação da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre (FFFCMPA), em 1953, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em 1969, e da Escola Ana Moeller, que a partir de 1972 foi incorporada como curso de Enfermagem pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). A partir da divisão dos campos de estágio, os alunos passaram a reivindicar um hospital próprio, de acordo com a colaboradora:
Mas é um hospital escola, e até então, tanto a enfermagem como a medicina, eles tinham como campo de estágio a Santa Casa, e havia uma reivindicação de que os estágios pudessem ser realizados num hospital escola próprio da universidade. (C6)
Desta forma, houve um aumento significativo de faculdades de medicina em Porto Alegre, e, em função da valorização da tecnologia, foi necessário especializar cada vez mais estes profissionais. O início das residências deu-se na especialidade de Medicina Interna, em 1966, sendo a primeira turma organizada em 1967, na Santa Casa. O Serviço de Ginecologia e Obstetrícia teve seus primeiros residentes apenas em 1978, e assim teve início a formação específica para o parto normal dentro da Medicina, ainda na Santa Casa, local único de estágio das Faculdades de Enfermagem e Medicina. Com a implantação de uma área obstétrica própria para a Universidade, no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), em 1980:
Os residentes da primeira turma vieram da Santa Casa porque o Centro Obstétrico abriu em maio. Então vieram alguns residentes terminar a residência da Santa Casa no Clínicas, e alguns médicos contratados que hoje muitos são professores [...]. (C5)
Assim, a modalidade de formação para o partejar como especialidade médica teve sua continuidade dentro do hospital universitário deste estudo. Possivelmente, a criação dos cursos da FFFCMPA e da PUCRS foram reflexos do aumento do número de cursos médicos ocorridos principalmente na década de 70 em todo o Brasil. Este evento foi denominado "boom" dos cursos de medicina14.
O aumento dos cursos médicos trouxe conseqüentemente um número maior de profissionais médicos e a necessidade de criar vagas de emprego para absorver a demanda excedente de mão-de-obra14, inclusive com a criação da especialidade médica em Obstetrícia. Este fato acarretou a superlotação de alunos no serviço recém-criado do hospital universitário e a disputa cada vez mais acirrada pela prática do partejar. O espaço foi disputado na Medicina; eram os acadêmicos do quinto semestre, os alunos do último semestre e os residentes, minimamente três: o R1 (residente do primeiro ano), o R2 (residente do segundo ano) e o R3 (residente do terceiro ano), além do contratado e do professor de Medicina. Da Enfermagem, eram apenas a professora e a aluna.
Um dos motivos de entrave, apontados pelas colaboradoras, para a atuação das enfermeiras, foi o número de enfermeiras com formação para atender o período expulsivo do parto, que era reduzido, quando comparado ao número de alunos e profissionais da Medicina. Assim:
Ah, como não existia enfermeira obstetra. [...] não tinha 24h uma enfermeira obstetra, em lugar nenhum. Não vou mentir. Na internação, lá no CO, [...] mas, a grande não, algumas delas tinham a especialização, habilitação, mas nunca tinham exercido. (C4)
Com o número reduzido de enfermeiras para o atendimento ao parto, foi necessário redistribuir os turnos com o número de enfermeiras habilitadas, conforme é descrito:
Ela tentou colocar uma em cada turno com habilitação, né. Na época, algumas não eram nem especialistas, tinham curso de habilitação. A [...] fez. A [...], que eram pessoas que eu convivia mais. A [...] era chefe da unidade. Então, a [...] colocou pelo menos uma por turno. (C5)
A forma encontrada, então, foi alocar pelo menos uma enfermeira habilitada em cada turno. No entanto, surgiu mais um empecilho: muitas delas não possuíam experiência suficiente para assumir de imediato as atividades planejadas, de acordo com o relato:
Então era muito complicado para [...] dizer: "eu vou assumir a sala de admissão ou vou assumir a emergência", [...] tinha que ter enfermeira 24h, e obstetra, como é que [...] tinha até gente que não era obstetra, e que não tinha experiência. (C4)
Assim, o aumento de fluxo de profissionais e estudantes de Medicina, o número reduzido de enfermeiras e a falta de experiência destas para atenderem ao parto diminuíram drasticamente as possibilidades de as enfermeiras atuarem diretamente no parto.
A atuação das enfermeiras durante o parto
As atuações dos profissionais foram e são construídas de acordo com as mudanças históricas, legitimadas pelos discursos oficiais e reproduzidas por meio do ensino. Ressalta-se que a vinculação entre estas instâncias nem sempre ocorre de forma conjunta e nem guiada pelo mesmo paradigma, pois uma série de fatores, entre eles os diferentes interesses e concepções ideológicas dos indivíduos, misturam-se a este processo de evolução contínuo das instituições e das relações interpessoais. Como exemplo destas mudanças e divergências de interesses, encontram-se as práticas das enfermeiras na atenção às mulheres durante o parto ao longo de sua história.
Assim, as falas das colaboradoras descrevem alguns fatores que contribuem para a compreensão do afastamento da enfermeira do atendimento da mulher durante o período expulsivo do parto. Algumas enfermeiras que tentaram realizar partos nos primeiros anos do serviço não conseguiram adequar-se às dificuldades enfrentadas para a sua atuação e abandonaram o cargo, conforme afirma uma das colaboradoras do estudo:
A [...] era incrível, mas ela não agüentou ficar muito tempo, porque ela não agüentou esta forma de trabalho, este processo de trabalho que no final das contas foi imposto para nós não realizar partos [...] ela ficou poucos meses, mas foi embora, e, assim como ela, teve outra que também foi embora. Então o parto que era para ser todinho de enfermeira obstetra [...]. E aí com a saída da [...] e de não sei mais quem ficou faltando enfermeira obstetra. (C11)
O motivo de saída das enfermeiras do hospital não está claramente verbalizado, mas pode-se inferir que algo estava dificultando a atuação da enfermeira durante o parto. Em outro momento, a colaboradora refere que foi imposto que as enfermeiras não realizassem partos. Na fala a seguir, talvez fique mais claro como era imposto este distanciamento:
[...], a gente era impedida de fazer exame de toque. `Mas como tu vem fazer exame de toque? Quem te mandou fazer este exame de toque' Era assim! [...] quando a gente fazia o registro eles vinham imediatamente falar conosco: `aqui enfermeira não faz exame de toque, aqui enfermeira não chega perto de paciente, aqui enfermeira não faz parto!' Aí nós argumentávamos: `não foi isto que nós viemos fazer aqui, o plano é outro', e eles diziam: `pode ser o plano que for, aqui enfermeira não vai fazer parto, não vai fazer toque [vaginal], não vai fazer acompanhamento de gestante em trabalho de parto!'. (C11)
Esta limitação da atuação da enfermeira possivelmente causou descontentamento e o abandono do serviço da profissional que não conseguiu se adaptar a esta situação. A interdição explícita por parte do pessoal médico gerou desconforto e por vezes medo em muitas enfermeiras, conforme descreve uma colaboradora em outro momento:
[...] que tínhamos o interesse de fazer uma outra coisa funcionar, elas [enfermeiras] não tinham o menor interesse ou tinham muito medo de realizar partos. Eu acho na realidade que era uma mistura dos dois. Acho que é mais ou menos o que as enfermeiras de lá dizem hoje: `pra que realizar parto se tem um monte de médico e residente que faz?'. (C11)
Neste sentido, outra colaboradora indica a dificuldade de realização de parto em decorrência da disputa de espaço e do número diminuído de enfermeiras habilitadas:
Então no Clínicas, na época que abriu, até tinha gente que tinha habilidade, mas como é que eu professora da escola ia pleitear [...] mesmo aquelas[...] assim que só tem obstetra mesmo, vamos começar a fazer parto, fazer uma noite que só tenha obstetra; muitas se acovardaram, porque com o rompante que tinham aqueles professores, então, ainda mais com eles contra, eles iriam ficar no pé pra cada coisa dar errado. Então foi o grande problema. (C4)
Não bastaria apenas ter vontade pessoal ou coragem, a presença da enfermeira com atuação permanente no parto dependia da ação de todas e mais o respaldo da chefia, além do ambiente propício para a prática da enfermeira no partejar. A falta de espaço para atuação muitas vezes provinha da superlotação de profissionais e estudantes no setor, assim:
Algumas que tinham interesse em continuar fazendo parto [...] estabeleceram contatos com um ou outro plantonista. E eventualmente conseguiam fazer parto, fora deste período. Mas depois que o pessoal voltou de greve, eram mais residentes do que pacientes, eram mais doutorandos que pacientes. Não são tempos atuais que uma paciente empilhada em cima das outras... Era outro movimento, tu entende? (C9)
No entanto, as enfermeiras não deixaram de realizar outras atividades na área obstétrica, sendo desviadas da função proposta inicialmente. Apropriaram-se de outras atividades:
Tinha o histórico, tinha todas as orientações. O papel da enfermeira era ficar do lado, era meio Doula, que a gente vê hoje de ficar junto, era para ser o papel da enfermeira; e no parto também, a gente ficava no lado da paciente todo o tempo. E atendia o nenê... o pediatra, depois trazia o nenê e ficava com a mãe. (C5)
Nota-se que as enfermeiras passaram a concentrar suas práticas às mulheres no pré e no pós-parto. Durante o parto, atuavam como acompanhantes, oferecendo suporte emocional às mulheres. Então, as enfermeiras não deixaram de ter uma atividade relacionada ao parto, porém se afastaram da atuação no período expulsivo. O parto passou a ser um evento fragmentado, estando de acordo com o pensamento mecanicista vigente nas décadas de 70 e 8014. Ou seja, o parto foi dividido em pré-parto, parto e pós-parto, sendo a mulher atendida por diferentes profissionais, como ocorreria em uma linha de montagem. O distanciamento das enfermeiras do partejar teve reflexos no ensino, pois se perdeu este conhecimento na formação das alunas. Além do atendimento às mulheres, as enfermeiras reforçaram sua atuação no atendimento imediato ao recém-nascido normal.
O afastamento das enfermeiras não foi constante, mas composto de uma série de estratégias e movimentos em que elas conseguiram partejar. Um dos momentos descritos como fruto da estratégia das enfermeiras diz respeito a uma greve de residentes no início da década de 80. Além do HCPA, muitos hospitais de Porto Alegre também estavam em greve, e apenas as enfermeiras não aderiram ao movimento, realizando partos normais e sem distocia, conforme narra a colaboradora abaixo:
Sabe quando é que eu fui assumir partos dentro do Centro Obstétrico: quando teve uma greve de residentes [...]. Como é que a gente ia largar esta pessoa que ia ganhar este bebê no meio do caminho! Então a gente ficava e acompanhava, não foi uma nem duas vezes que o pessoal médico entrava para ver como era a nossa atuação, para ver o que a gente tava fazendo. (C11)
A greve não foi um momento no qual o Centro Obstétrico deixou de funcionar, pois muitas das enfermeiras eram treinadas e conseguiram manter o hospital funcionando sem intercorrências. Em média, acredita-se que foram realizados dez partos por dia e a avaliação de 200 a 300 mulheres em trabalho de parto por dia. Outra possibilidade de as enfermeiras atuarem no parto era quando o médico não estava presente ou não podia atender, conforme exposto abaixo:
Olha não sei te dizer se realmente estava escrito na rotina se a gente podia ou não fazer parto. Eu acho que não estava escrito na rotina, eu não me lembro, mas também nunca houve um "não", um impedimento, até porque era melhor que a enfermeira fizesse um parto; a paciente estava dentro do hospital de clínicas, e ninguém. (C1)
Algumas colaboradoras argumentam que realizavam o parto apenas na sua iminência, visto que não daria tempo de chamar o médico. Assim, têm-se ao menos duas estratégias que as profissionais utilizaram para continuar partejando: a oportunidade da greve e a ausência do profissional médico. Foram os modos encontrados para tentar manter esta prática entre as enfermeiras, porém estes momentos não foram suficientes para que se ampliasse a atuação das enfermeiras de modo contínuo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A metodologia da História Oral foi imprescindível para a realização deste estudo, pois possibilitou outra forma de abordar o assunto transpondo os documentos oficiais e gerando outro modo de contar as histórias vivenciadas pelas enfermeiras entre as décadas de 1970 e 1980.
Os motivos que levaram as enfermeiras a deixarem de partejar foram certamente inúmeros; no entanto, este estudo identifica três. O primeiro, relacionado à unificação da previdência e centralização dos pagamentos em saúde pelo Governo Federal, o qual determinou que apenas os médicos credenciados em hospital reconhecido pelo sistema previdenciário recebessem pelo parto. O segundo motivo foi o aumento do número de profissionais médicos e estudantes nos campos de estágio e o reduzido número de enfermeiras habilitadas para o partejar, dificultando às enfermeiras a exclusividade pela realização do parto. Outro motivo consistiu na intimidação das enfermeiras por outros profissionais para que desistissem do partejar. Permeando todos estes fatores, a lógica mecanicista, tecnicista e fragmentada do atendimento à mulher durante o parto fez com que a parturição fosse dividida em momentos e que, no período expulsivo, a hegemonia médica prevalecesse.
A contribuição deste estudo foi conhecer como ocorreu o afastamento das enfermeiras do partejar em um hospital responsável pela formação de profissionais na área obstétrica. O processo de afastamento das enfermeiras no momento expulsivo não ocorreu de modo tranqüilo, houve avanços e retrocessos. As estratégias utilizadas pelas enfermeiras para se manterem realizando partos foram pela ausência do profissional médico, por greve ou outro motivo. No entanto, tais estratégias não foram suficientes para preservar-lhes esta prática.
Uma possível sugestão para que as enfermeiras voltem a partejar é que se institua a reserva de cotas de atendimento por enfermeiras ao parto em hospitais universitários, para que elas não deixem de aprender a partejar e exerçam as ações de um espaço que lhes é dado legalmente por meio da Lei do Exercício Profissional, de número 7.498, de 25 de junho de 198615.
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Recebido em 09/12/2007
Reapresentado em 07/03/2008
Aprovado em 14/05/2008