Volume 12, Número 4, Out/Dez - 2008
PESQUISA
Prática rotineira da episiotomia refletindo a desigualdade de poder entre profissionais de saúde e mulheres
Routine practice of episiotomy reflects the difference of power between health professionals and women
Práctica rutinaria de episiotomía que refleja la diferencia de poder entre los profesionales de la salud y las mujeres
Jaqueline de Oliveira SantosI; Antonieta Keiko Kakuda ShimoII
IEnfermeira especializada em Obstetrícia e Mestre em Enfermagem pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, e-mail: jack.oliver@uol.com.br
IIProfessora Doutora do Departamento de Enfermagem da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.
RESUMO
A episiotomia constitui-se no procedimento operatório mais comum na obstetrícia moderna, devendo ser realizada com consentimento informado da mulher. Objetivando identificar o conhecimento e a participação das mulheres nas decisões obstétricas, realizou-se um estudo qualitativo com mulheres submetidas a episiotomia durante o parto em um Hospital Escola no interior de Minas Gerais. A observação participante e a entrevista foram empregadas como meios para a coleta de dados. Da análise das 16 entrevistas, evidenciou-se que as mulheres apresentam déficit de conhecimento relacionado à intervenção. A observação demonstrou que a episiotomia foi realizada sem informação e sem autorização prévia das participantes do estudo, revelando a relação de autoridade exercida pelos profissionais durante a assistência ao parto. Emergiu a concepção de que a prática rotineira da episiotomia representa o poder exercido pelos profissionais de saúde perante o corpo feminino, destituindo a mulher de poder decisório.
Palavras-chave: Episiotomia. Saúde da Mulher. Poder (Psicologia)
ABSTRACT
Episiotomy is the most common surgical procedure in modern obstetrics, and it must be carried out with informed consent of the woman. The aim of this study is to investigate the knowledge and participation of women in obstetrics decisions during childbirth. A qualitative study was done using women submitted to episiotomy during childbirth as social actors in a Hospital School in Minas Gerais. Participant observation and interviews were the methods used for collecting data. From the analysis of the 16 interviews, we were able to prove that women present a lack of knowledge related to the surgery. The participant observation demonstrated that episiotomy was carried out without information nor previous authorization of the participants of the study. This reveals a relation of authority exerted from the health professionals during childbirth. The study revealed that the routine practice of episiotomy represents the power exerted by health professionals towards the feminine body, taking away the woman's right to decide.
Keywords: Episiotomy. Women's health. Power (Psychology)
RESUMEN
La episiotomia consiste en el procedimiento quirurgico más común de la obstetrícia moderna. Deberia ser realizada con permiso previo de la mujer. El objetivo principal de este estudio es identificar el conocimiento y la participación de las mujeres durante las decisiones obstétricas. Fue realizado un estudio cualitativo con mujeres que fueron sometidas a episiotomía durante el parto en un Hospital Escuela en el interior de Minas Gerais. Se utilizó la observación participante y la entrevista para la recolección de los datos. Del análisis de las 16 entrevistas fue probado que las mujeres no cuentan con el conocimiento básico sobre la cirugía El observación demostró que la episiotomía fue realizada sin la información requerida y sin la autorización de las participantes del estudio, demonstrando la relación de la autoridad ejercida por los profesionales durante el parto. Surge asi, la concepción de que la práctica rutinaria de la episiotomía representa el ejercicio del poder de los profesionales de la obstetricia sobre el cuerpo femenino destituyendola de su poder de decisión.
Palabras-claves: Episiotomía. Salud de la mujer. Poder (Psicología)
INTRODUÇÃO
O uso rotineiro de condutas obstétricas, a partir do século XX, legitimou a tecnologização do parto e o domínio do corpo feminino pela obstetrícia, fortalecida pela visão estereotipada dos profissionais de que a mulher é um ser destituído de conhecimento e incapaz de entender o que está acontecendo com seu próprio corpo. A premissa era que somente os obstetras estavam preparados para o parto, pois sabiam o que estava acontecendo e o que estavam fazendo, devendo a parturiente ser submissa aos seus cuidados1.
Com base neste pressuposto, a assistência à mulher no ciclo gravídico-puerperal tornou-se intervencionista, impessoal e tecnicista, refletindo no modelo atual da obstetrícia, caracterizado pelo alto grau de medicalização e pelo abuso de técnicas invasivas2.
Entre as intervenções incorporadas à assistência à saúde da mulher durante a gestação e o parto está a episiotomia, um procedimento introduzido empiricamente na obstetrícia por Ould, em 1741, sob a alegação de que traria benefícios para o binômio mãe-filho3.
Atualmente, a intervenção foi desbancada pelas evidências científicasque demonstraram os riscos associados à intervenção, como a dor, edema, infecção, dispaurenia, lacerações de terceiro e quarto graus, além de afetar negativamente a imagem corporal feminina3-4.
A Organização Mundial de Saúde5 e o Ministério da Saúde do Brasil6, baseados nas evidências científicas, recomendam o uso restrito da episiotomia e classificam seu uso rotineiro e liberal como uma prática claramente prejudicial, que deve ser desestimulada, sendo indicada somente em cerca de 10% a 15% dos casos.
Entretanto, apesar das evidências das recentes pesquisas e das recomendações, a intervenção ainda é realizada rotineiramente em mais de 90% dos partos vaginais ocorridos nas unidades hospitalares no Brasil7. Por constituir-se um ato cirúrgico, o procedimento deve ser informado e autorizado pela mulher antes de sua realização, na qual devem ser apontados os possíveis riscos e benefícios da episiotomia.
No nosso cotidiano, observamos freqüentemente que as mulheres são submetidas a rotinas e intervenções obstétricas arriscadas e muitas vezes desnecessárias, sem ao menos serem informadas sobre o assunto. Consideramos a episiotomia realizada rotineiramente um exemplo típico da apropriação do corpo da mulher e do desrespeito ao seu direito à informação.
Estudo antropológico acrescenta que a prática rotineira da episiotomia, além de ser considerada uma forma de mutilação genital, também representa o poder exercido pela obstetrícia sobre o corpo feminino, que transforma a mulher em "objeto", destituindo-a de poder decisório8.
O presente estudo pretende identificar o conhecimento e a participação das mulheres nas decisões com respeito aos cuidados de sua saúde no cenário do nascimento em uma instituição hospitalar brasileira.
OBJETIVO
Identificar o conhecimento e a participação das parturientes nas decisões sobre a episiotomia durante o processo de parturição.
METODOLOGIA
Este estudo do tipo exploratório, com abordagem qualitativa1, foi realizado em um Hospital Escola, localizado no interior do estado de Minas Gerais, credenciado para atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e vinculado à assistência, ao ensino e à pesquisa.
Durante o ano de 2002, a instituição realizou 1.330 partos, dos quais 879 (66,1%) foram partos normais e 451 (33,9%), cesarianas, não havendo registro de parto com fórceps. Os profissionais responsáveis pela assistência ao parto são médicos obstetras e residentes em obstetrícia.
A episiotomia é realizada rotineiramente nesse Hospital como prática da assistência ao parto e como parte do processo ensino-aprendizagem; entretanto, não há registro de dados referentes à prevalência de episiotomia na instituição.
Os atores sociais do estudo foram mulheres submetidas à episiotomia durante a realização do parto vaginal na instituição, tanto as que sofreram a intervenção pela primeira vez, quanto as que já tiveram episiotomia anterior. Esta conduta foi adotada com a intenção de obter maior diversidade de informações.
Foram incluídas no estudo as mulheres com idade igual ou superior a 18 anos, com capacidade de comunicação verbal, orientadas no tempo e no espaço e com boas condições vitais. Foram excluídas aquelas que apresentaram qualquer complicação obstétrica.
Previamente à coleta de dados, o projeto de pesquisa foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da referida instituição de estudo. Seguindo as diretrizes e as normas regulamentadoras de pesquisas que envolvem seres humanos9,as mulheres participantes da pesquisa assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, garantindo o sigilo das informações.
A coleta de dados se deu no período de dezembro de 2003 a fevereiro de 2004, utilizando-se duas técnicas consideradas relevantes e essenciais para a investigação: a entrevista e a observação participante.
O número de participantes da pesquisa foi indicado pela saturação ou ocorrência dos dados coletados durante a entrevista, que ocorreu na 16a puérpera entrevistada. Ressalta-se que, para preservar seu anonimato, decidimos por identificá-las por codinomes, chamando as mulheres que não deram à luz anteriormente por nomes de flores, em analogia à beleza feminina, sua delicadeza e fragilidade, enquanto as mulheres que haviam dado à luz antes desse parto receberam nomes de frutas, representando as flores que ao se desenvolverem deram frutos.
A entrevista semi-estruturada, realizada no terceiro dia após o parto, foi a modalidade utilizada para a coleta de dados, que se baseou nas seguintes questões norteadoras:
· Você sabe o que é a episiotomia?
· Durante o seu parto, alguém te informou que faria a episiotomia em você?
· Diga-me, se você lembrar, exatamente como foi a fala dessa pessoa.
· Foi solicitado seu consentimento para a realização do corte?
Como instrumento para auxílio no registro dos dados das entrevistas foi utilizado um gravador portátil. As informações obtidas foram transcritas e digitadas fielmente em um programa de computador, e foram posteriormente analisadas pelo método de análise de conteúdo temático10, sendo seguidos os seguintes passos:
1) Pré-análise: fez-se uma leitura do material obtido em cada entrevista, organizando-o para análise, definindo unidades de registro e trechos significativos das falas;
2) Num segundo momento, realizou-se a exploração de todo material coletado por meio de uma leitura exaustiva das entrevistas, havendo delimitação e codificação das falas e transformação dos dados em núcleos de compreensão,
3) Num terceiro e último momento, houve o tratamento dos resultados e sua interpretação: destacando as informações obtidas, propondo inferências e explicações em torno de dimensões teóricas apresentadas.
Para a observação participante, a pesquisadora acompanhou os trabalhos de parto, parto e puerpério imediato de todas as participantes da pesquisa, permanecendo, em média, oito horas por dia no setor de Ginecologia e Obstetrícia da instituição durante o período de coleta de dados.
A observação participante se deu na unidade de internação de obstetrícia e na sala de parto do centro cirúrgico do referido hospital, no qual a pesquisadora acompanhou a rotina da unidade, as atividades realizadas e a atuação da equipe obstétrica e de enfermagem, acrescendo também o acompanhamento da parturiente desde o momento em que dava entrada no hospital para atendimento até o período pós-parto.
A pesquisadora utilizou o diário de campo para registrar as observações da assistência obstétrica realizada pelos profissionais de saúde na instituição, as rotinas e as condutas adotadas pelo Hospital, assim como as orientações e instruções realizadas por esses profissionais em relação à assistência durante o processo do nascimento, mais especificamente relacionado à episiotomia. Registrou-se também a participação das parturientes no processo decisório das condutas obstétricas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Das 16 puérperas entrevistadas, a grande maioria 93,8% (15) se encontrava em idade fértil, sendo que 25,0% (4) estavam com 18 anos. A média de idade encontrada foi de 22,6 anos, e mediana, de 24 anos, evidenciando que as mulheres atendidas pelo hospital durante o período de coleta de dados pariram em idade jovem, considerado o momento ideal para o desencadeamento do processo de gestação com menor risco de agravos ou complicações à saúde.
A maioria das mulheres entrevistadas (68,8%, 11) teve até oito anos de estudo, apenas cinco ingressaram no ensino médio, e destas apenas duas o concluíram. Nenhuma puérpera sequer ingressou no ensino universitário.
Metade (8) da população analisada trabalha no seu próprio domicílio, citando serem "do lar" quando entrevistadas. Das oito que realizavam atividades remuneradas, seis podem ser consideradas como uma extensão dos serviços domésticos (três empregadas domésticas, uma auxiliar de serviços gerais, uma garçonete e uma auxiliar de limpeza). Também foram citadas atividades relacionadas ao comércio, como vendedora (1) e balconista (1).
Com relação ao histórico obstétrico das participantes, 43,8% (7) eram primíparas, 50,0% (8) eram secundíparas, e apenas uma pariu pela terceira vez. Ressalta-se que, das nove mulheres que já haviam dado a luz anteriormente, todas foram por parto vaginal. O peso dos recém-nascidos variou entre 2.350 gramas (g) e 3.940 g, com média de 3.045,3 g e mediana de 2.952,5 g.
Ao se realizar a análise das unidades de conteúdo das falas das puérperas entrevistadas, emergiram categorias de pensamentos que sintetizam o conhecimento da episiotomia para as mulheres. A identificação da participação na decisão sobre a realização da episiotomia e se elas receberam informações sobre o procedimento durante o processo de parturição foi obtida por meio da entrevista que foi confrontada com a observação participante.
Déficit de conhecimento das mulheres sobre a episiotomia
Ao serem questionadas quanto ao conhecimento prévio em relação à episiotomia, 31,2% (5) das entrevistadas relataram total desconhecimento da intervenção, afirmando que não sabiam o que é o procedimento, conforme observamos nas falas.
Nunca ouvi falar disso. Eu nem sabia que fazia pique [...] Nunca ouvi falar de pique na minha vida, nunca, nunca, nunca. (Cereja)
Não. Não. Ah, eu não sei o que é não. (Tulipa, Pêra, Açucena, Maçã)
Destaca-se a fala de Cereja, que mesmo na sua segunda gestação, com histórico de parto vaginal com episiotomia, demonstrou total desconhecimento sobre o assunto, o que denota a falta de informação associada ao descaso dos profissionais que a atenderam durante o pré-natal e processo de parto.
Como era de se esperar, todas as puérperas que não souberam dizer do que se tratava a intervenção, responderam que não sabiam por que ela era realizada.
Pra que mesmo serve ninguém falou não. Estou sem saber até agora. (Cereja)
Não. Ah, eu não sei o porquê não [...] nem sei por que que precisa. (Tulipa)
Apesar de ser uma prática realizada em quase a totalidade dos partos por via vaginal assistidos nas instituições de saúde no Brasil, e de sua realização rotineira na instituição de estudo, menos da metade das mulheres entrevistadas desconhece a episiotomia e o motivo pelo qual ela é realizada.
O desconhecimento evidenciado por essas mulheres reforça, por um lado, o poder do profissional de saúde e, por outro, a exclusão da parturiente do ato decisório. O que mais surpreende é que, tida como objeto do cuidado, ela não participa das decisões sobre seu próprio corpo, pois é considerada inabilitada para dar conta da complexidade dos cuidados que necessita, restando-lhe resignar-se com o que lhe é oferecido.
Chama atenção o fato de que a maioria das mulheres entrevistadas (68,8%, 11) respondeu que o objetivo da episiotomia era facilitar o processo do nascimento, colaborando na expulsão do bebê e evitando a laceração. Percebeu-se que, para as mulheres que tinham alguma informação prévia sobre a intervenção, sua realização é benéfica para mãe e filho.
[...] Pro neném sair mais fácil. (Rosa)
O pique é dar o corte lá na vagina pro neném sair melhor, mais fácil. (Azaléia)
É porque, se não cortar, rasga, aí eles pega e corta. [...] se rasgar, eu acho que é pior. (Orquídea)
Apesar das mulheres verbalizarem que a episiotomia facilita o nascimento, em 54,5% das respostas (6) pairaram dúvidas em relação à sua definição e sua finalidade, visto que foi comum encontrarmos em suas respostas conotação de indagação se realmente a intervenção é realizada para facilitar o processo do nascimento, conforme descrito nas frases seguintes.
Eu acho que eu sei, faz é pra facilitar que o neném saia (...) eu acho que é pra isso. Porque realmente a utilidade que tem é pra facilitar que o neném saía, não é? (Orquídea)
Pra mim é pra ajudar a criança nascer, passar. Pra ficar maior lá na vagina (...) e com mais espaço, pra ajudar a gente. Eu acho que é isso, eu não sei. (Kiwi)
Observamos que as mulheres, apesar de acreditarem que a realização da episiotomia durante o parto vaginal facilita a expulsão do feto e evita laceração, beneficiando mãe e filho, elas também têm dúvidas em relação às suas próprias afirmativas, demonstrando incerteza sobre seu pensamento relacionado à intervenção.
A incerteza e o desconhecimento tornam a mulher vulnerável à influência dos pensamentos definidos pela obstetrícia há séculos, que conceituam a episiotomia como uma intervenção necessária e benéfica, e que ainda continuam impregnados na cultura de alguns profissionais que assistem aos partos.
A representação feminina de que seu corpo, especificamente sua vagina, não é adequada para o nascimento fisiológico do seu bebê, e que é necessária a intervenção do obstetra para o bom desfecho do parto, confere poder ao profissional que a assiste. Assim, a prática rotineira da episiotomia, fortalecida pelo déficit de conhecimento das mulheres com relação à intervenção, contribui para a manutenção da hegemonia obstétrica.
Como as mulheres desconhecem a capacidade do seu corpo de parir fisiologicamente, como também seus direitos, elas aceitam a dominação do profissional com normalidade. Esse fato foi evidenciado durante a observação participante, na qual nenhuma mulher questionou a realização da intervenção ou mesmo solicitou informações sobre a mesma durante o processo de parturição, apesar do déficit de conhecimento apresentado.
Um exemplo de que a prática da episiotomia foi naturalizada a ponto de ser considerada parte inevitável do processo, diante da qual à mulher só restam a passividade e o sofrimento resignado, é a experiência de Morango no seu parto.
Morango, com histórico de parto vaginal anterior com episiotomia, encontrava-se na sala de pré-parto, e no momento não havia ninguém acompanhando seu trabalho de parto, em virtude de outra assistência obstétrica prestada pelos profissionais no mesmo setor. Ao perceber que seu bebê estava nascendo, ela gritou avisando os funcionários do setor, que imediatamente chamaram o obstetra de plantão. Não houve tempo para transferi-la para sala de parto no centro cirúrgico, como é de rotina.
Logo que chegou, o profissional rapidamente realizou a episiotomia sem anestesia e fora do período de contração. Quando a incisão foi feita, Morango gritou de dor, seus gritos de tão intensos ecoavam por toda a ala da maternidade do hospital. Esse foi o modo que ela encontrou para manifestar seu sofrimento. Então, a parturiente solicitou que parasse o corte, mas seu pedido não foi aceito.
A justificativa apresentada pelo profissional somente após o nascimento da criança foi que a intervenção foi necessária porque o bebê já estava nascendo e, por ser grande, poderia rasgá-la. Apesar do sofrimento desencadeado pelo corte, Morango aceitou calmamente a explicação do profissional de saúde e não questionou o procedimento, demonstrando submissão e aceitação dos dizeres médicos.
A submissão feminina, conforme observado no estudo consubstancia e interfere na relação assimétrica e hierarquizada institucionalizada, entre a mulher e a maioria dos profissionais da saúde11. Essa diferença se converte em assimetria e desigualdade, tendo como pano de fundo a exploração, a opressão e a dominação de um indivíduo sobre outro ou de uma classe sobre outra12.
Ausência de transmissão de informação e a falta de participação feminina no processo decisório
Outra questão a ser mencionada é o fato de que a maioria das mulheres entrevistadas (81,3%, 13) quando questionada, respondeu que não recebeu qualquer tipo de informação em relação à intervenção durante seu processo de parturição, conforme se observa nas falas:
Não. Não, falaram nada não. Só cortaram [...] Não falaram nada. (Morango).
Não, ninguém falou nada não. Até hoje nunca me explicaram não. (Orquídea)
Que ia me dá um pique? Que ia fazer o pique em mim? Não. (Carambola)
Não. (Pêssego, Tulipa e Margarida)
A fala de Jasmim evidencia ainda mais o fato da ausência de informação proveniente dos profissionais que assistem ao parto em relação à intervenção, demonstrando, de certo modo, o descaso dos profissionais de saúde quanto ao direito à informação dessas mulheres:
Não pra mim, assim eu pensava que era só um piquezinho e nada mais, né. Só que até agora eu não vi como é que é. Eu perguntei e eles não me responderam [...] Eu não faço nem idéia do jeito que é, só se eu pegar um espelho pra ver. (Jasmim)
Poucas puérperas (3) referiram que foram informadas quanto à intervenção. Entretanto, por meio da observação participante, a pesquisadora observou que essas mulheres não foram esclarecidas com relação à questão. Na verdade, houve apenas uma comunicação proveniente do profissional que as assistia de que a intervenção seria feita. Esta comunicação ocorreu somente durante o período expulsivo do trabalho de parto ou somente após sua realização, e não permitindo questionamentos, conforme descrito:
[...] Só a médica falou que tudo que ia fazendo ela ia falando [...] Fazer o pique, vou costurar, e tal. (Cereja)
Só na hora que eu falei que tava doendo muito, aí ela falou assim: Ah! É porque o neném está muito grande, e ele está te machucando muito. Mas eu sabia que ela tinha cortado. (Morango)
Não, não. Só lembro que a médica falou assim que deu o pique e rasgou muito, só isso que ela falou. (Azaléia)
Apesar das afirmativas de que receberam orientações, suas falas demonstram dúvidas se elas realmente foram esclarecidas, como podemos observar:
Falou, mas também eu não tô lembrada não, porque eu tava muito nervosa. (Açucena)
Não só quando foi fazer e falou: olha a gente vai te dar um cortezinho aqui, vou fazer o pique em você, tudo bem? Eu acho que foi o pique mesmo, a gente fica tão assim né! Que às vezes [...]. (Acerola)
As falas das puérperas mostram que poucos profissionais informaram sobre a realização da intervenção, no entanto não esperaram para obter o consentimento da mulher, subordinando-as à aceitação do discurso médico.
Por meio da observação participante, a pesquisadora detectou que nenhuma mulher foi previamente informada sobre a intervenção, seus riscos e benefícios, e nenhuma delas participou do processo de decisão sobre sua realização.
Em alguns casos os profissionais apenas comunicaram que a episiotomia estava sendo realizada, não permitindo qualquer questionamento e sem explicitar o direito de escolha e participação das mulheres.
Olha, agora vou anestesiar e vou dar o pique. (Palavras da profissional que assistiu ao parto).
Agora eu só vou costurar. (Palavras do profissional que assistiu ao parto)
Esta realidade demonstra o autoritarismo exercido pela equipe da unidade hospitalar. A relação autoritária é fruto da afirmação do poder de um grupo sobre o outro, que não se dá entre profissionais e cidadãos, mas entre instituição médica e doença. A organização dos serviços, a dinâmica de trabalho e as tecnologias transformam as relações e a comunicação, subordinando-as aos rituais, aos meios e ao discurso médico13.
A imposição autoritária e não-informada de condutas obstétricas atenta contra o direito à condição de ser humano e são consideradas violações do direito da mulher à sua integridade corporal, à privacidade, o direito de estar livre de humilhações e de maus tratos tão almejados pelos movimentos feministas e outras entidades2.
De acordo com Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, a mulher tem por lei o direito a receber informações claras, objetivas e compreensíveis sobre hipóteses diagnósticas, ações terapêuticas, riscos, benefícios e inconvenientes das medidas propostas e duração prevista de tratamentos, assim como sobre os exames e as condutas que será submetida14.
CONCLUSÃO
Observou-se no estudo que menos da metade das mulheres desconhece a episiotomia e sua finalidade. Para a maioria das mulheres entrevistadas, a intervenção deve ser realizada para benefício do binômio mãe-filho, idéia defendida há séculos pela obstetrícia, que foi desbancada pelas evidências científicas recentes.
A maioria das mulheres entrevistadas respondeu que não recebeu qualquer tipo de informação em relação à intervenção durante seu processo de parturição, enquanto uma minoria referiu que foi informada.
Entretanto, por meio da observação participante, a pesquisadora observou que as mulheres não foram esclarecidas com relação à questão. Na verdade, houve apenas uma comunicação proveniente do profissional que as assistia, realizada somente durante o período expulsivo do trabalho de parto ou após sua realização, e não permitindo questionamentos.
Revelou-se no estudo a omissão de informações sobre a episiotomia, suas indicações, vantagens e desvantagens, e possíveis complicações, assim como a não solicitação do consentimento informado às mulheres. Isto contribui para a manutenção da desigualdade de poder existente entre o binômio médico-cliente, pois impede a tomada de decisões da parturiente em relação a sua realização.
Ficou evidente que a decisão sobre a realização da episiotomia continua sendo de responsabilidade do profissional de saúde ou da instituição que presta assistência à parturiente, cabendo à mulher apenas sua aceitação. Expressa-se assim a relação de autoridade exercida pelos profissionais no cenário do nascimento, situando a mulher como subordinada e, principalmente, desrespeitando os direitos humanos, bioéticos, sexuais e reprodutivos adquiridos por elas após anos de luta.
São primordiais o compartilhamento e a co-responsabilização dos eventos do ciclo gravídico-puerperal entre profissionais de saúde e mulheres, respeitando-se a fisiologia da gravidez e do parto e os direitos à saúde sexual e reprodutiva. Acreditamos que o fortalecimento da opinião feminina e do seu poder de decisão se dará principalmente por meio da transmissão de informações específicas direcionadas às mulheres, focando não somente o período de gestação e parto, mas também informando todos os seus direitos.
Acreditamos que a Enfermagem tem papel essencial na construção de um novo panorama da saúde da mulher no Brasil, sendo primordial a preparação destes profissionais, para que possam atuar mais efetivamente como veículo de informações referentes à saúde e aos direitos femininos e para que sejam capazes de decidir sobre seu próprio corpo, tornando a relação profissional-mulher mais simétrica.
REFERÊNCIAS
1. Pereira WR. O processo de medicalização do corpo feminino. In: Sacavone L, Batista LE, organizadores. Pesquisas de gênero: entre o público e o privado. Araraquara (SP): Saboratoni /Ed Unesp; 2000.p.12752.
2. Diniz CSC. Entre a técnica e os direitos humanos: possibilidades e limites da humanização da assistência ao parto. [tese de doutorado]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo; 2001.
3. Santos JO. Episiotomia: um sofrimento necessário? [dissertação de mestrado]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2004.
4. Carroli G, Belizan J. Episiotomy for vaginal birth (Cochrane review). In: The Cochrane Library. Oxford (USA): Update Software; 2007.
5. Organização Mundial de Saúde - OMS. Assistência ao parto normal: um guia prático. Saúde materna e neonatal. Unidade de maternidade segura. saúde reprodutiva e da família. Genebra (CH); 1996.
6. Ministério da Saúde (BR). Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília (DF); 2001.
7. Rede Feminista de Saúde. Direitos sexuais e direitos reprodutivos. Dossiê humanização do parto. São Paulo (SP); 2002.
8. Kitzinger S, Simkin P. Episiotomy and the second stage of labor. 2ª ed. Seattle (USA): Pennypress; 1984.
9. Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Resolução n° 196, de 10 de outubro de 1996. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Inf Epidemiol SUS 1996;5(2 supl 3):13-41.
10. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 3ª ed. São Paulo (SP)/Rio de Janeiro (RJ): Hucitec/ABRASCO; 1994.
11. Almeida MS. Assistência de enfermagem a mulheres no período puerperal: uma análise das necessidades como subsídios para a construção de indicadores de gênero. [tese de doutorado]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo; 2005.
12. Chauí M. Participando do debate sobre mulher e violência. In: Cardoso R, organizador. Perspectivas antropológicas da mulher. Rio de Janeiro (RJ): Zahar; 1985.v.4p.25-62.
13. Ramos CL, Melo JAC, Soares JCR. Quem educa quem? Repensando a relação médico-paciente In: Costa NR, Minayo CLR, Stotz EM, organizadores. Demandas populares, políticas públicas e saúde: movimentos sociais e cidadania. Petrópolis (RJ): Vozes; 1989.v.2p.145-64.
14. Conselho Regional de Medicina -CREMESP. Ética em ginecologia e obstetrícia. 2ª ed. São Paulo (SP); 2002.
15. Barsted LL. Família, sexualidade e reprodução no direito brasileiro. In: Giffin K, Costa SH, organizadores. Questões da saúde reprodutiva. Rio de Janeiro (RJ): FIOCRUZ;1999.p.51-66.
16. Riffel MJ. Episiotomia: a dimensão oculta. [dissertação de mestrado]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal de Santa Catarina; 1997.
1 Parte da Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.
Recebido em 24/09/2008
Reapresentado em 03/03/2008
Aprovado em 14/03/2008