Volume 6
INTRODUÇÃO
O lugar social que ocupo na esfera profissional, enquanto docente e membro de Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) de uma instituição do Rio de Janeiro, me ajuda a pensar os aspectos éticos que envolvem as pesquisas com crianças e como a enfermagem pode e deve lidar com eles. Os conflitos inerentes à prática do pesquisador, mediada nas atividades de trabalho de campo da pesquisa, conjugados com as bases teóricas, metodológicas, filosóficas e legais contribuem para a superação de desafios que ele enfrenta ao selecionar a criança como sujeito de pesquisa.
Inúmeras vezes, me deparo com formações discursivas de orientandas dos diferentes níveis de formação (graduação, especialização, mestrado e doutorado), de que seu projeto de pesquisa não foi compreendido pelo parecerista do Comitê de Ética da instituição A ou B. De que o seu estudo não é experimental e não testará nenhuma droga medicamentosa na criança... Então, porque tantas exigências, se o interlocutor da criança são os responsáveis legais? Porque o termo de consentimento livre e esclarecido não atende as necessidades do CEP? Por vezes, a movimentação do projeto ao Comitê leva até seis meses, o que traz prejuízos para a consecução do cronograma e o cumprimento dos prazos do programa de pós-graduação.
Em suas formações imaginárias, antecipa imagens sobre o Comitê de Ética em Pesquisa. Esse instrumento coloca-se como uma pedra no caminho e não como um aliado; embora ele seja uma etapa imprescindível ao desenvolvimento de qualquer pesquisa científica, garantindo a legalidade dos atos de moralidade científica do pesquisador. Sempre que o sujeito de pesquisa for um ser humano (criança, adulto ou idoso), e o pesquisador precisar de material humano (depoimentos, opiniões, líquidos corporais etc) como fonte primária de dados para levar a termo uma pesquisa, o projeto deve ser apreciado quanto a sua eticidade por um Comitê de Ética registrado no Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
Diante da problemática em foco, tracei como objeto de análise neste estudo, as particularidades éticas envolvendo a criança e o adolescente como sujeitos de pesquisa. O intuito é contribuir para que os pesquisadores de enfermagem possam construir seus projetos de pesquisa e conduzí-los com rigorosidade ética, além da rigorosidade metodológica. Certamente, ao apresentar essa leitura de mundo sobre a ética envolvendo a pesquisa com crianças e adolescentes, o faço, pensando-a enquanto um aliado do pesquisador e como uma proteção para o sujeito da pesquisa, centrado em duas dimensões, a da moralidade e da legalidade.
Como eixo orientador do presente estudo estabeleci como objetivos: a) analisar as dimensões morais e legais das pesquisas envolvendo crianças; b) discutir os preceitos éticos e legais que norteiam as pesquisas com esses sujeitos.
Tomei a análise de discurso (ORLANDI, 1997; 2001) como eixo teórico-metodológico para interpretar as fontes documentais (Leis, Normas, Códigos etc), que constituíram as fontes primárias do estudo. Foram buscados nos textos as condições de produção do discurso, as formações imaginárias e resignificações, os esquecimentos, as relações de sentido e as incompletudes para a enunciação de três categorias de análise: a moralidade e a legalidade, os preceitos éticos e os preceitos legais.
A DIMENSÃO DA MORALIDADE E DA LEGALIDADE DOS ATOS CIENTÍFICOS
Sobre a dimensão moral que a reflexão teórica requer, pergunto-me: Quem é essa criança-sujeito de pesquisa que interage com o adulto-pesquisador? Que concepções de mundo esse adulto-pesquisador conserva consigo ao eleger esses atores sociais como sujeitos de pesquisa?
Damazio (1988), ao refletir sobre "O que é Criança", toma como base às abordagens teóricas do empirismo e do racionalismo para explicar a relação do homem com o mundo em que vive, influenciar a conformação das abordagens científicas e a formação de novos processos e conceitos.
No empirismo, a criança é concebida como um balde vazio ao nascimento, já que sua mente é como uma página branca que deve ser preenchida ao sabor dos fatos exteriores. Para essa abordagem filosófica, a experiência é a palavra chave (enpereira= experiência). Segundo Locke15, todo o conhecimento é uma decorrência da experiência concreta, consequentemente a formação da mente resulta da ação do meio externo sobre o cérebro. Em síntese, a experiência é responsável pela formação do pensamento.
Já na corrente racionalista, a relação entre formação do pensamento e experiência é diametralmente oposta, uma vez que o mundo é compreendido pela razão humana. O homem possui consciência do mundo porque a realidade é pensável. A antológica frase de Descartes18 " Penso, logo existo" sintetiza essa concepção de mundo de que o pensamento é anterior a experiência. Segundo essa ótica, a criança é um adulto pré-formado e traz consigo as possibilidades do crescimento intelectual. Porque a razão já nasce com ela, faz-se necessário desenvolvê-la.
As reflexões assentadas nesses dois campos filosóficas levam o autor (DAMAZIO, 1988) a concluir que os vícios modernos do pensamento estruturam-se em duas idéias centrais. Na primeira, a criança é concebida como um ser passivo da ação externa, ambiental; e na segunda, como um adulto pré-estabelecido que se deve cultivar. Tanto em um caminho quanto em outro, a criança, para ele, é um mero objeto do mundo ou de uma concepção de racionalidade (e cultura) dos adultos.
Retomando a primeira questão enunciada, resgato as reflexões de Damazio numa tentativa de compreender os atos de moralidade científica do pesquisador que tem a criança e o adolescente como sujeitos de pesquisa. Essa criança/adolescente sujeito, objeto do mundo, é um ser vulnerável pela sua condição de passividade na relação com o adulto-pesquisador.
Isso nos ajuda a compreender a definição de vulnerabilidade e o enquadramento da criança e do adolescente nessa condição, conforme explicitado na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 1996:03): "o estado de pessoas ou grupos que, por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido". Conseqüentemente, a criança e o adolescente enquanto sujeitos participantes de uma pesquisa, além de vulnerável são considerados incapacitados para voluntariamente tomar parte em protocolos de pesquisa, o que requerer a interseção de seus país ou responsável legal.
A criança e o adolescente são incluídos como parte de um grupo de pessoas em situação de substancial diminuição em sua capacidade de fornecimento de consentimento para participar de pesquisas, em decorrência da sua condição de vulnerabilidade e de incapacidade de tomar decisão. Não há incompletudes na formação discursiva do texto legal, pois entre o pesquisador e a criança/adolescente sujeito da pesquisa há o representante legal - pais ou tutores - nos termos da Lei 8.069/90 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
O pesquisador ao resignificar o texto da resolução toma consciência da condição de vulnerabilidade desse sujeito, e deve, ao assumir a sua posição moral diante do mundo, explicar em seu projeto, qual a razão para tê-los como sujeito de pesquisa. Conseqüentemente, o termo de consentimento livre e esclarecido, precisa enfatizar o que determina o item IV.3 da Resolução 196/96, em relação à criança e o adolescente:
"Em pesquisa envolvendo crianças e adolescentes [...] e sujeitos em situação de substancial diminuição em sua capacidade de consentimento, deverá haver justificação clara da escolha dos sujeitos da pesquisa, especificada no protocolo, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, e cumprir as exigências do consentimento livre e esclarecido, através dos representantes legais dos referidos sujeitos, sem suspensão do direito de informação do indivíduo, no limite de sua capacidade".
Quanto a segunda questão acerca das concepções de mundo do adulto-pesquisador, Stephens (2001) e a história registrada no Trials of war before the Nuremberg Military Tribunals (1949) nos mostram que toda pessoa em situação de vulnerabilidade vive e convive com os riscos das atrocidades humanas em nome da evolução da ciência, entre elas a criança e o adolescente. Para controlar essa variável humana existem os princípios da bioética e as normatizações (códigos11,12,25,29, declarações16,17,19, leis10,26,27, resoluções3,5,6,7,8,9 etc) que regulam a conduta do pesquisador, portanto, ele sujeita-se às regras moral e legal.
Goldim (2001) destacou quatro diferenças entre moral e direito. A primeira é dotada de convicções próprias, tem abrangência universal, se estrutura em longo prazo e encerram concepções ideais; enquanto a segunda é de caráter compulsório, restringe-se ao Estado, estrutura-se em curto prazo e é dotada de concepções práticas.
A diferenciação entre moralidade e legalidade fundamenta-se em Abbagnano (1970), pois segundo ele a pura concordância e discordância de uma ação com a lei, sem considerar o caráter móvel da própria ação, chama-se legalidade; já a idéia do dever que se deriva do cumprimento da lei, é o aspecto móvel da ação, portanto nesse dever está a moralidade, como resposta do homem à lei que lhe foi imputado. Enquanto a legalidade regula o homem nas relações sociais, no campo dos direitos; a moralidade regula esse mesmo homem no campo dos deveres, os quais devem ser exercitados nas relações sociais.
A transposição dessas duas questões para os atos científicos nas pesquisas envolvendo crianças e adolescentes, me leva a pensar em duas questões fundamentais: De um lado as leis, normas, declarações e regulamentações como dispositivos legais que regulam a relação do pesquisador com os seus sujeitos; de outro, a consciência do adulto-pesquisador em compreender que o cumprimento com tais exigências é uma atitude de zelo para com a criança-sujeito de sua pesquisa, um compromisso moral, um exercício de cidadania que se constrói nas relações humanas.
Segundo Kant (1724-1808), na Crítica da Razão Prática (1787: 1, 1,cap.3) apud Goldim (2001), a ação conforme a lei, porém não realizada apenas como um respeito à lei, é a ação legal. Já a ação que é feita por respeito à lei, quando o pesquisador a interpreta e ela produz sentido para ele, é a ação moral. A legalidade leva a ação legal, por ser conforme a lei, e a moralidade é a própria ação moral, por ser, em respeito à lei. O "conforme" e o "respeito" são os elementos chaves que distinguem a legalidade da moralidade dos atos científicos, uma vez que implica em uma atitude ética do pesquisador na relação com o sujeito. Compreende ainda, uma interpretação que o pesquisador constrói sobre a lei e o sentido que ele atribui a ela. Pauta a sua conduta moral em uma ética entendida como uma ciência para além da conduta humana, de um princípio sistemático moralmente correto na pesquisa científica, uma ética sintonizada com a vida - a bioética.
Os princípios da bioética - autonomia (FERREIRA, 2000), beneficência, não maleficência, e justiça e eqüidade (FORTES, 1999) - contribuem com a orientação e o disciplinamento da conduta moral do pesquisador e dos atos científicos na relação com o sujeito da pesquisa em situação de vulnerabilidade (GOLDIM, 2001) ou não. Esses quatro princípios pertencem ao campo da moral humana e têm norteado o zelo pela integridade dos sujeitos participantes de pesquisas, sejam eles vulneráveis ou não, quando o pesquisador está à procura de uma resposta para a sua questão de pesquisa.
Para Bongertz (1999) a ética na pesquisa científica deve indicar a busca do conhecimento, por observação, identificação, descrição, investigação experimental, produzindo resultados que possam ser reproduzidos, porém realizado de forma moralmente correta, daí o caráter indispensável dos preceitos éticos e legais para assegurar atos científicos moralmente aceitos e corretos no mundo social.
OS PRECEITOS ÉTICOS QUE ENVOLVEM A PESQUISA COM CRIANÇA E ADOLESCENTE
Quanto às disposições éticas que regulam a conduta do pesquisador, cujas crianças e adolescentes são seus sujeitos de pesquisa, cabem destacar dentre outros o papel do Código de Nuremberg, da Declaração de Helsinque, do Código de Direitos de Saúde das Comunidades, da "Good Clinical Practice (GCP)", das Diretrizes Éticas Internacionais para a Pesquisa Envolvendo Seres Humanos e as recomendações da Associação Mundial dos Amigos das Crianças - AMADE e UNESCO de abril de 2000, como norteadores da elaboração dos projetos de pesquisa e sua operacionalização pautadas por condutas moralmente corretas dos atos científicos.
As barbaridades que foram levadas a termo em nome da ciência, pela Alemanha Hitleriana e pelos países que a apoiaram, mobilizaram a comunidade científica internacional a elaborar o primeiro código de ética em pesquisa da história da humanidade. A Alemanha centrada em um discurso eugênico, de purificação da raça, realizou experimentos com seres humanos. Se por um lado, essa prática chocou a opinião pública, por outro fomentou o debate em torno da necessidade de uma ética em pesquisa. O Código de Nuremberg e a Declaração de Helsinki surgem nesse contexto de produção discursiva, e encerra os princípios de autonomia do sujeito para tomar parte em qualquer pesquisa, com justiça e eqüidade, beneficência e não maleficência.
CÓDIGO DE NUREMBERG
O caráter voluntário, a proteção contra danos temporários ou permanentes e a autonomia do ser humano em participar de uma pesquisa são essenciais. Isso significa que os participantes devem ser legalmente capazes de dar consentimento e exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão. Esse último aspecto exige que sejam explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito da investigação; os métodos segundo os quais será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos que eventualmente possam ocorrer sobre a saúde ou sobre o participante. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige a pesquisa ou se compromete com ele, e não podem ser delegados a outrem impunemente.
A voluntariedade da criança e do adolescente para participar como sujeito de uma pesquisa, depende da autorização de seus pais ou responsáveis legais. Entretanto, isso não exime a responsabilidade do pesquisador em considerá-los como parte do processo de voluntariedade, respeitando a sua decisão em tomar parte da investigação, em especial aquelas cuja etapa de desenvolvimento a habilita a compreendê-lo. O respeito à habilidade cognitiva da criança em compreender o processo de investigação em que tomará parte, é uma atitude sensível do pesquisador diante da necessidade de sua inclusão como uma pessoa cidadã e autônoma, que respeita o princípio da bioética de justiça e eqüidade.
As precauções recomendadas pelo Código de Nuremberg na condução de pesquisas com seres humanos incluem as crianças e os adolescentes, qualquer que seja a sua condição (indígena, portador de necessidade especial, ou outra qualquer). Dentre elas, destacam-se: a) evitar todo sofrimento e danos físicos e materiais desnecessários, b) não trazer riscos que possam levar a morte ou invalidez permanente; c) limitar o grau de risco a um nível de aceitabilidade e de resolução que o pesquisador possa intervir; d) suspender os procedimentos de pesquisa em qualquer estágio, diante da possibilidade de ocorrência de dano, invalidez ou morte do participante.
DECLARAÇÃO DE HELSINQUE
Além das diretrizes constantes no Código de Nuremberg, sobre a voluntariedade, autonomia do sujeito e minimização de riscos e danos, a declaração de Helsinque (FREITAS, 2000) traz outras diretrizes para as pesquisas que envolvem seres humanos, no que concerne a finalidade, o planejamento e a operacionalização da pesquisa, bem como a relação do pesquisador com o sujeito de pesquisa, tais como: a) a finalidade da pesquisa clínica deve ser o aperfeiçoamento do diagnóstico, procedimentos terapêuticos e profiláticos e a compreensão da etiologia e da patologia da doença; b) o planejamento e a execução de qualquer procedimento de pesquisa devem ser claramente formulados em protocolo de pesquisa a ser encaminhado para consideração, comentários e orientação, a um comitê independente do pesquisador e do patrocinador. Este comitê deve estar de acordo com as leis e regulamentos do país no qual a pesquisa irá se desenvolver; c) a pesquisa biomédica deve ser conduzida apenas por pessoal com qualificação científica e sob a supervisão do pesquisador com competência clínica. A responsabilidade sobre o ser humano deve recair sempre sobre o pesquisador e nunca sobre o sujeito da pesquisa, mesmo que tenha dado seu consentimento; d) todo projeto de pesquisa deve ser precedido por uma avaliação cuidadosa dos riscos previsíveis e dos possíveis benefícios, tanto para o sujeito da pesquisa como para os outros. Os interesses das pessoas e a integridade física, mental e social, a privacidade e a minimização de dano devem ser respeitadas, e sempre, devem prevalecer sobre os interesses da ciência e da sociedade; e) na publicação dos resultados da pesquisa, o pesquisador é obrigado a preservar a precisão dos resultados. Não devem ser aceitos para publicação relatos de experimentos que não estejam em conformidade com os princípios estabelecidos por esta Declaração; e) no caso de incapacidade legal ou física ou se o participante for menor de idade - as crianças e adolescentes -, o consentimento informado é fornecido pelo responsável legal, porém se a criança for capaz de dar seu consentimento, este deve ser obtido em acréscimo àquele fornecido pelo seu responsável.
Para as pesquisas clínicas é preciso ser observados os possíveis benefícios, riscos e desconfortos de um novo método terapêutico, os quais devem ser contrabalançados com as vantagens dos melhores métodos correntes de diagnóstico e terapia. Qualquer que seja o estudo, o melhor método diagnóstico e terapia existente devem ser disponibilizados para o sujeito da pesquisa, incluindo os do grupo-controle, se for o caso, sem qualquer prejuízo para a relação terapêutica. O consentimento livre e esclarecido deve conter as razões específicas para o propósito da pesquisa, os quais fazem parte do protocolo de pesquisa para conhecimento do Comitê de Ética.
Para as pesquisas biomédicas não-terapêuticas envolvendo seres humanos, o pesquisador detentor de uma atitude moralmente correta em seus atos científicos, deve orientarse pelos seguintes pressupostos: a) permanecer como protetor da vida e da saúde da pessoa na qual a pesquisa está sendo realizada; b) assegurar o caráter voluntário de participação dos sujeitos da pesquisa; c) o pesquisador ou a equipe de pesquisa deve interromper a pesquisa se julgar que a continuação possa ser prejudicial ao participante; d) as considerações sobre o bem-estar dos participantes da pesquisa devem prevalecer sobre os interesses da ciência e da sociedade.
CÓDIGO DE DIREITOS DE SAÚDE DAS COMUNIDADES
Esse Código orienta a atitude dos pesquisadores que têm a Comunidade como laboratório social de pesquisa, tais como as Escolas e os domicílios, por exemplo. Dispõem em seus nove artigos os seguintes aspectos: a) a organização da comunidade para participar ao longo das investigações, através de suas lideranças e organizações; b) o direito a informação sobre a natureza, objetivos, vantagens e eventuais riscos da pesquisa a ser realizada; c) direito a recusar-se em submeter-se à investigação sem que tenha sido previamente informado e concordado; d) nenhum procedimento experimental poderá ser planejado de maneira a suprimir medidas preventivas e/ou terapêuticas, seja parcial ou totalmente; e) nenhuma comunidade poderá ser submetida a experimentos que agravem qualquer risco de saúde preexistente no seu meio; f) nenhuma comunidade poderá ser privada de qualquer cuidado de saúde que tenha direito, em função de ter recusado previamente a se submeter a uma pesquisa; g) o trabalho comunitário não deverá terminar até que seja completada a investigação; h) os seus resultados deverão ser traduzidos em ações úteis à comunidade. Os serviços locais de saúde deverão ser informados sobre a investigação e, sempre que possível, fazerem parte dela; i) todo o conhecimento derivado da investigação deve ser encaminhado às autoridades de saúde competentes, para que os resultados sejam utilizados por todos.
GOOD CLINICAL PRACTICE - NORMAS DA BOA PRÁTICA CLÍNICA
De acordo com Kalakun (1986) a "Good Clinical Practice (GCP)" ou "Normas da Boa Prática Clínica" foram definidas pela Comunidade Européia em 1989, para orientar a realização de estudos clínicos com produtos medicinais em seres humanos, dentro dos preceitos éticos. Elas objetivam proteger os direitos dos usuários, com respeito a sua integridade física, mental e social e a confidencialidade dos dados que eles fornecem, portanto preservando os princípios da bioética na relação entre o pesquisador e o sujeito da pesquisa.
Penso que em se tratando de criança e adolescente como sujeitos de pesquisa, há que se considerar a sua condição de vulnerabilidade, uma vez que fazem parte de um grupo, cuja autodeterminação encontra-se reduzida, no que se refere ao consentimento livre e esclarecido. Ademais, os estudos com testagem de novos fármacos requerem uma etapa anterior a sua operacionalização, qual seja a submissão do protocolo de pesquisa (Item VIII.4.3 da Resolução 196/96 do CNS) ao Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), através de um comitê local.
DIRETRIZES ÉTICAS INTERNACIONAIS PARA A PESQUISA ENVOLVENDO SERES HUMANOS23
Das quinze diretrizes éticas internacionais estabelecidas para a pesquisa envolvendo seres humanos, cabe destacar as de número 2, e 4 a 10.
A segunda diretriz diz respeito às informações essenciais para os possíveis sujeitos da pesquisa, desenvolvendo o princípio da autonomia. Recomenda-se o modo como o pesquisador deve informar os propósitos da pesquisa aos sujeitos participantes, e assim eles possam exercer a sua capacidade de julgamento, e de modo consciente, participar voluntariamente. O tratamento dessa pessoa com dignidade, o respeito a sua voluntariedade e a defesa de sua vulnerabilidade são os aspectos centrais que a diretriz encerra. A entrada e a saída da pesquisa ocorrerá em qualquer momento sem prejuízos ou perda de benefícios os quais ele ou ela tenham direito.
O consentimento da pessoa e/ou seu responsável legal para os que pertencem ao grupo de vulneráveis (crianças e adolescentes, por exemplo) requer do pesquisador o fornecimento de informação, em linguagem compreensível. O pesquisador na relação com o sujeito de pesquisa explicita os objetivos e métodos de pesquisa e procedimentos a ser adotado; o tempo de participação e os benefícios que se espera obter com o resultado da pesquisa, tanto para o sujeito como para os outros. Ademais, é destacado qualquer risco ou desconforto previsível, os procedimentos ou tratamentos alternativos que poderiam ser tão vantajosos quanto o que está sendo testado; e explicita-se a extensão da confidencialidade dos dados e a preservação da identidade; a responsabilidade do pesquisador na ocorrência de qualquer dano e no provimento de atenção médica de forma gratuita, na vigência do dano; bem como, na presença de incapacidades ou morte resultantes de tais danos, a família é compensada.
A quarta diretriz encerra orientações para o pesquisador considerar em sua relação com o sujeito da pesquisa, o princípio da justiça e eqüidade, quanto à minimização do ônus para os sujeitos vulneráveis, o que garante a igual consideração dos interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio-humanitária. Os sujeitos da pesquisa poderão ser pagos pela inconveniência e pelo tempo gasto, e devem ser reembolsados das despesas decorrentes da sua participação na pesquisa; eles podem receber, igualmente, serviços médicos gratuitos. Entretanto, os pagamentos não devem ser tão grandes ou os serviços médicos tão abrangentes a ponto de induzirem os possíveis sujeitos a consentirem participar na pesquisa contra o seu melhor julgamento ("indução excessiva"). Todos os pagamentos, reembolsos e serviços médicos propiciados aos sujeitos da pesquisa devem ser aprovados por um Comitê de Ética.
A quinta diretriz coloca a criança em situação de destaque, e considera a sua condição de vulnerabilidade. Os princípios de autonomia, beneficência, não maleficência, justiça e eqüidade são considerados no escopo das diretrizes.
Antes de iniciar a pesquisa envolvendo crianças, o pesquisador deve assegurar-se de que as crianças não devem ser envolvidas em pesquisas que possam ser desenvolvidas igualmente em adultos. O objetivo da pesquisa deve ser o de gerar conhecimentos relevantes para a saúde das crianças. Os pais ou representantes legais devem assinar o termo de consentimento livre e esclarecido e o consentimento de cada criança deve ser obtido na medida da sua capacidade. A recusa da criança em participar na pesquisa deve sempre ser respeitada, a menos que, de acordo com o protocolo de pesquisa, a terapia que a criança receberá não tenha qualquer alternativa medicamente aceitável. O risco apresentado pelas intervenções que não beneficiem individualmente a criança sujeito da pesquisa seja baixo e proporcional com a importância do conhecimento a ser obtido e as intervenções que propiciarão benefícios terapêuticos devem ser, pelo menos tão vantajosas para a criança-sujeito da pesquisa, quanto qualquer outra alternativa disponível.
A sexta diretriz, envolve pessoas com distúrbios mentais ou comportamentais, e foi considerada, nessa reflexão teórica acerca da criança e do adolescente enquanto sujeito da pesquisa, pelo agravante de dupla incapacidade - legal e mental -, o que aumenta a sua condição de vulnerabilidade. O pesquisador deve assegurar-se de que, como sujeitos da pesquisa, elas são absolutamente indispensáveis e o presente estudo não pode ser realizado com pessoas dotadas de plena capacidade mental. A pesquisa tem como objetivo gerar conhecimentos relevantes para as necessidades especiais de saúde peculiares a pessoas com distúrbios mentais ou comportamentais. O consentimento do participante deve ser obtido na medida de sua capacidade e a sua recusa sempre será respeitada. A assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido será obtido com o responsável legal ou outra pessoa devidamente autorizada pela autoridade judicial. No caso das crianças e adolescentes, aplica-se o juizado da vara da infância e da juventude local, nos termos da Lei 8.069/90, como visto adiante. Lembrar-se de que o grau de risco associado às intervenções que não beneficiem o sujeito pesquisado deve ser baixo e proporcional a importância do conhecimento a ser gerado, e as intervenções que possivelmente propiciem benefícios terapêuticos devem ser, no mínimo, tão vantajosas para ele, quanto qualquer outra alternativa.
A sétima diretriz aplica-se às pesquisas com crianças maiores de 12 anos de idade (Lei 8069/90 do Estatuto da Criança e do Adolescente)23, que se encontram na condição de cumprimento de medidas sócio-educativas em instituições fechadas, por determinação do poder público. Além da condição de vulnerabilidade própria da faixa etária, para os adolescentes sujeitos as medidas sócio-educativas, previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a sétima diretriz orienta o pesquisador sobre como agir quando a pesquisa por ele desenvolvida envolve temática direcionada a reclusos com doenças graves ou em risco de doença grave. O grupo de adolescentes não deve ser arbitrariamente impedidos de ter acesso a drogas experimentais, vacinas ou outros agentes que demonstrem possível benefício preventivo ou terapêutico, desde que observado os aspectos mencionados na quinta e sexta diretrizes.
A oitava diretriz trata da vulnerabilidade das pessoas que vivem em comunidades economicamente desfavorecidos, portanto, acentua a condição de fragilidade da criança-sujeito de pesquisa. Nessas situações o pesquisador deve estar seguro de que: as pessoas da comunidade subdesenvolvida não serão ordinariamente envolvidas na pesquisa que possa ser realizada, de forma adequada, em comunidades desenvolvidas; a pesquisa é uma resposta às necessidades de saúde e às prioridades da comunidade na qual será realizada; todos os esforços serão tomados no sentido de assegurar o preceito ético de que o consentimento livre e esclarecido será informado; o projeto de pesquisa será apreciado e aprovado por um comitê de ética que tenha entre os seus membros ou consultores pessoas familiarizadas com os costumes e tradições da comunidade.
A nona diretriz traz as orientações para os estudos de natureza epidemiológica e como o princípio da autonomia será respeitado.
Para muitos tipos de pesquisas epidemiológicas o consentimento livre e esclarecido individual é impraticável ou desaconselhável. Nestes casos o comitê de ética deve determinar se é eticamente aceitável realizar sem o consentimento individual e se os planos do pesquisador garantem e respeitam a privacidade dos sujeitos da pesquisa, e se a confidencialidade dos dados está adequadamente assegurada.
Em estudo epidemiológico que acontece o contato direto entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa, seja criança e seus responsáveis legais ou não, as diretrizes gerais para a utilização do consentimento livre e esclarecido têm de ser respeitadas. No caso de grupos populacionais com estruturas sociais, costumes comuns e lideranças reconhecidas, o pesquisador deverá buscar a liderança local para envolvimento no estudo.
O princípio da justiça e eqüidade é enfatizado na décima diretriz, quando ressalta que a captação dos sujeitos e a escolha da comunidade devem ser pensadas de tal maneira que os riscos e benefícios da pesquisa sejam eqüitativamente distribuídos. Justificativas especiais devem ser, particulares e estritamente, aplicadas para quando inserir pessoas vulneráveis, de modo a garantir todos os meios necessários à proteção dos seus direitos e bem-estar.
A décima primeira diretriz traz orientações particulares para as gestantes e nutrizes, com o objetivo de proteger a mulher e a criança, portanto das diretrizes internacionais de ética em pesquisa situa a mulher grávida como um sujeito vulnerável, porque carrega consigo um ser vulnerável. Gestantes ou nutrizes não devem ser, sob quaisquer circunstâncias, sujeitos de pesquisa, a menos que a pesquisa não acarrete risco maior para o feto ou bebê em aleitamento e o objetivo da pesquisa for a geração de novos conhecimentos sobre a gestação ou bebê.
Como regra geral, gestantes e nutrizes não devem ser sujeitos de quaisquer pesquisas, exceto aquelas planejadas para proteger ou melhorar a saúde da gestante, nutriz, feto ou lactentes em aleitamento, e que outras mulheres não-grávidas não possam ser sujeitos adequados a este propósito.
RECOMENDAÇÕES DA ASSOCIAÇÃO MUNDIAL DOS AMIGOS DAS CRIANÇAS-AMADE E UNESCO DE ABRIL DE 2000
O Simpósio Internacional sobre Bioética e Direitos da Criança realizado em Mônaco de 28 a 30 de abril de 2000 elaborou o documento que destaca a proteção aos direitos da criança que participa de pesquisas científicas, com base na Declaração dos Direitos da Criança in Wong (1999). O reconhecimento de que a infância é uma realidade complexa em evolução e que merece consideração especial, e apesar de sua fragilidade, a sua autonomia não deve ser mal compreendida. Daí, os seus direitos à sobrevivência, ao desenvolvimento e à participação. O documento foi construído em três pontos: as origens, os laços e o corpo da criança.
Quanto às origens da criança, devem ser respeitados, dentre outras: a sua singularidade; a dignidade do embrião produzido in vitro; a utilização dos dados genéticos e fetais sem discriminação, redução ou eliminação da diversidade humana nos casos de reprodução assistida; a incapacidade da criança, independente de sua gravidade não é um elemento de desvantagem.
Acerca dos laços da criança, faz-se necessário assegurar: medidas de proteção dos direitos da criança de acordo com seu grau de autonomia; os interesses da criança, seus pais ou responsáveis legais na orientação do volume de informação a ser compartilhada com ela, no que se refere às circunstâncias de seu nascimento, para as situações de reprodução assistida; a melhor situação para que ela receba cuidados, educação no seio de uma família, cujos integrantes são os responsáveis pela criança; a inclusão da criança na tomada de decisões relativas a sua saúde, educação de forma crescente e qualificada em função do firmamento de sua autonomia; a preservação do interesse da criança sobre o do adulto.
Os aspectos éticos concernentes ao corpo da criança enfatizam: a inclusão da criança nos momentos de esclarecimento da atenção a saúde, a pesquisa, o termo de consentimento livre e esclarecido, de acordo com seu grau de autonomia, nas situações de procedimentos terapêuticos como exames, coleta de amostras; a proteção dos direitos da criança portadora de incapacidade ou de necessidade especial de saúde, envolvendo questões relativas à prevenção e tratamentos e nunca as levando a exclusão; o papel da sociedade na promoção, em especial, de pesquisas relativas a doenças raras e ao desenvolvimento de terapias eficazes.
Entendo que a atitude do pesquisador frente à criança e o adolescente sujeitos da pesquisa precisa fundamentar-se, não só nos quatro princípios da bioética contido nos códigos, declarações e normas destacadas anteriormente, mas também nos preceitos legais previstos pelas disposições reguladoras da prática profissional do enfermeiro e da enfermeira e de sua conduta como pesquisador ou pesquisadora com seres humanos.
OS PRECEITOS LEGAIS QUE ENVOLVEM A PESQUISA COM CRIANÇA E ADOLESCENTE
Para os casos específicos das pesquisas envolvendo crianças e adolescentes, trarei para a reflexão desse item os aspectos legais contidos na Lei 7.498/86 do Exercício Profissional e no Código de Ética de Enfermagem, na Lei 8069/90 do Estatuto da Criança e do Adolescente, e na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.
A LEI DO EXERCÍCIO PROFISSIONAL E O CÓDIGO DE ÉTICA DE ENFERMAGEM
O pesquisador enfermeiro, enquanto profissional de enfermagem, está sujeito às normas legais previstas na Lei 7.498/86, do exercício profissional e aos princípios fundamentais previstos no Código de Ética de Enfermagem. O comprometimento da enfermagem com a saúde do ser humano e da coletividade exige de seus exercentes uma atitude eticamente responsável, de respeito à vida, a dignidade e os direitos da pessoa humana, em todo seus ciclo de vida, sem discriminação de qualquer natureza, com justiça, competência e honestidade. As diretrizes contidas nos códigos, declarações e normas anteriormente apresentadas precisam fazer parte da vida do enfermeiro pesquisador e da enfermeira pesquisadora, no que concerne aos atos de moralidade científica que venham a realizar na relação com a criança e o adolescente enquanto sujeitos da pesquisa.
Quanto à questão específica da pesquisa, os artigos 35, 36 e 37 do Capítulo IV, abordam os deveres do profissional de enfermagem no Código de Ética, o termo de consentimento livre e esclarecido e a interrupção da pesquisa.
"Art. 35 - Solicitar o consentimento do cliente ou do seu representante legal, de preferência por escrito, para realizar ou participar de pesquisa (...), mediante a prestação da informação completa dos objetivos, riscos e benefícios, de garantia do anonimato e sigilo, do respeito à privacidade e intimidade e a sua liberdade de participar ou declinar de sua participação no momento que desejar".
Art. 36 - Interromper a pesquisa na presença de qualquer perigo à vida e à integridade da pessoa humana.
Art. 37 - Ser honesto no relatório dos resultados da pesquisa".
Os quatro princípios fundamentais da bioética em pesquisa estão contidos nesses três artigos do Código Profissional de Enfermagem, e devem ser respeitados pelo enfermeiro pesquisador eticamente comprometido com os atos científicos moralmente corretos.
No entanto, o discurso textual resignificado me permite enunciar alguns paradoxos em sua formação discursiva, pois se conflita com o disposto na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e todas as diretrizes internacionais e nacionais de pesquisa. No art. 35, o termo de consentimento livre e esclarecido deve ser por escrito e assinado pelo representante legal da criança e adolescente, portanto tem um caráter de obrigatoriedade e não de voluntariedade (preferência). Esse equívoco precisa ser corrigido, pois deixa o enfermeiro pesquisador e a enfermeira pesquisadora em situação de vulnerabilidade diante da condição igualmente de vulnerabilidade do sujeito de pesquisa, no caso, as crianças e os adolescentes. O termo de consentimento livre e esclarecido é um instrumento legal que regula as relações sociais do pesquisador com o sujeito da pesquisa (CABRAL et al, 2002), portanto deve ser obrigatoriamente utilizado.
Outro aspecto a ser considerado na formação discursiva encontra-se no Art. 37 quando destaca a honestidade do profissional quando da elaboração do relatório dos resultados da pesquisa. A incompletude do texto, traduzida pelo não dito, deixa o profissional enfermeiro ou enfermeira em seu papel como pesquisador ou pesquisadora em uma situação, mais uma vez, de vulnerabilidade. Obviamente, que todo pesquisador ou pesquisadora sério se pautará em métodos e técnicas de pesquisa conduzidos com honestidade, portanto, para atos desonestos o Código de Ética Profissional deve prever sanções disciplinares, ao invés de recomendar que haja honestidade.
Além dessas diretrizes orientadoras da conduta do pesquisador no trabalho de campo da pesquisa em sua relação com a criança ou adolescente-sujeito existem preceitos legais que normatizam as suas ações morais. O não cumprimento a legislação em vigor traz prejuízos a sua pessoa enquanto cidadã inserida na sociedade geral, com possibilidades de perda temporária de sua cidadania plena.
O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. LEI 8069/90
A Lei 8.069 de 13 de julho de 1990 dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que visa a proteção integral desses grupos etários. Portanto, além das normas e regulamentações específicas referentes à pesquisa, o pesquisador deve conhecer os preceitos legais que se encerram no ECA para ter as crianças e adolescentes como sujeitos de pesquisa.
Estão sob a proteção dessa lei, as crianças até 12 anos de idade incompletos e adolescente 12 a 18 anos. A eles são assegurados os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral, através da todas as oportunidades e facilidades, que lhes facultem o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Portanto, o pesquisador deve estar atento a condição de liberdade e de dignidade na obtenção do consentimento livre e esclarecido e na aplicação dos procedimentos de pesquisa junto a esse grupo, visando à minimização do risco, o equilíbrio entre o risco e o benefício e a prevenção de danos.
Enquanto parte da totalidade social, o pesquisador ou a pesquisadora tem por dever assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Conseqüentemente, nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, e quem o fizer será punido na forma da lei, seja por atentado, por ação ou omissão aos seus direitos fundamentais.
A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. É assegurado à gestante, a nutriz, a criança e os adolescentes, através do Sistema Único de Saúde, o atendimento a saúde, nos aspectos de promoção, proteção e recuperação da saúde. Nesse sentido, as pesquisas clínicas devem assegurar o cumprimento desse direito, proporcionando informações sobre todas as etapas do processo de pesquisa aos pais ou responsável legal que se encontram em acompanhamento de seus filhos durante a internação de criança ou adolescente.
O Capítulo II refere-se ao direito à liberdade, ao respeito e à dignidade pois são pessoas em processo de desenvolvimento. A cidadania da criança e do adolescente é garantida nos termos da Constituição Federal, já que como sujeitos, eles têm os direitos civis, humanos e sociais.
Para o interesse particular do pesquisador que tem esse grupo como sujeito de pesquisa, o artigo 16 destaca dentre outros aspectos o de que deve ser respeitado o direito da criança ou adolescente permanecer ou retirar-se do estudo quando desejar, garantindo a sua voluntariedade e a autonomia enquanto um princípio fundamental. Já os artigos 17 e 18 enfatizam o respeito ao direito de inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais; e ao dever de se velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Nesses dois últimos, os princípios da beneficência, não maleficência, justiça e eqüidade são os mais evidentes.
O pátrio poder sobre a criança e o adolescente é previsto no artigo 21 (Capítulo III), enquanto o artigo 24 determina a sua suspensão e o artigo 28 apresenta as bases de suas inserções em famílias substitutas, no caso de não contar com o suporte de uma família natural. Todos indicam quem é o responsável legal pela criança para efeito de assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.
No primeiro, a responsabilidade é exercida, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer um deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência. O segundo, destaca que a perda e a suspensão do pátrio poder serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações. E o último, regula a colocação da criança em família substituta mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente.
Pode aplicar-se a situação da pesquisa que envolve crianças e adolescentes o previsto no artigo 143, com referência a divulgação da imagem da criança que permita a sua identificação como sujeito da pesquisa, em especial as que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional. O parágrafo único ressalta que qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco e residência.
No caso de infração de qualquer artigo previsto nessa Lei, o artigo 191 contém os procedimentos de apuração de irregularidades em entidade governamental e não-governamental. Tal apuração inicia-se mediante portaria da autoridade judiciária ou representação do Ministério Público ou do Conselho Tutelar, onde conste, necessariamente, resumo dos fatos. As penalidades variam em função da gravidade do ato infracional determinada através de decisão fundamentada.
Para as situações previstas no artigo 232 de submissão da criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou o constrangimento, a pena de detenção varia de seis meses a dois anos. Conseqüentemente, os atos de moralidade cientifica, do pesquisador ou pesquisadora, não podem provocar tais situações à criança ou adolescente. Ao descrever os procedimentos de pesquisa, quando da busca de depoimentos ou coleta de material produzido pela criança ou adolescente, o pesquisador ou pesquisadora deve preocupar-se com a criação de uma atmosfera de pesquisa que assegure o conforto, o bem-estar e a privacidade, respeitando-se as etapas de desenvolvimento de cada sujeito.
RESOLUÇÃO 196/96 DE PESQUISA ENVOLVENDO SERES HUMANOS
Para o interesse da reflexão a que me propus realizar nesse estudo, destaco os itens da presente resolução que trata especificamente da situação da criança enquanto sujeito de pesquisa, uma vez que os demais aspectos nela contidos preserva as recomendações das Diretrizes Internacionais de Pesquisa com Seres Humanos, o Código de Nuremberg, a Declaração de Helsinque, entre outras.
Para efeito de compreensão do lugar que a criança ocupa nesse dispositivo regulador, o item II, referente aos termos e definições, "pesquisa envolvendo seres humanos" é toda a pesquisa que envolva o ser humano, direta ou indiretamente, em sua totalidade, por partes dela, incluindo o manejo de informações ou materiais. Já "sujeito de pesquisa" é todo participante, na forma individual ou coletiva, de caráter voluntário, vedado qualquer forma de remuneração. Enquanto "incapacidade" é a condição do possível sujeito de pesquisa que não detém capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido, devendo ser assistido ou representado, em conformidade com a legislação brasileira em vigor.
O item III.3.Í. traz entre outras coisas a proteção da imagem, que no caso da criança, tem normatizações específicas prevista na Lei 8069/90, anteriormente apresentada. No item VI.3 concernente as informações relativas ao sujeito da pesquisa, cabe ao pesquisador explicitar as razões que os leva a utilização de grupos vulneráveis. Nos casos em que a pesquisa envolver testes de vacinas, fármacos, reprodução humana, populações indígenas, entre outras previstas no item VIII.4, caberá ao Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) a apreciação e aprovação do projeto.
Os demais aspectos referentes a presente Resolução, procurei analisá-los ao longo do texto.
Uma síntese provisória
As questões éticas envolvendo pesquisas com crianças situam-se em duas dimensões, a da moralidade e da legalidade dos atos científicos. Cabe ao pesquisador assumir uma atitude eticamente responsável e comprometida com a geração de novos conhecimentos que possam ser reconhecidos pela comunidade científica. Nesse sentido, os códigos, as diretrizes, as normas regulamentadoras (Resoluções e Leis) e o papel dos Comitês de Ética em nível local e nacional existem para auxiliar o pesquisador em sua trajetória de pesquisa, desde o estabelecimento do desenho até a divulgação de seus resultados, a fidedignidade e a validação junto a essa comunidade. Além disso, asseguram a proteção à pessoa humana zelando pela sua integridade física, mental e social, seja no plano individual ou coletivo.
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NOTAS
1 Recorte da pesquisa "Os saberes e práticas das famílias de crianças com demandas de cuidados especiais na ação dialógica da enfermeira educadora". Apoio CNPq.