Volume 3, Número 3, Set/Dez - 1999
INTRODUÇÃO
Para dar conta do objeto de estudo - o uso de plantas medicinais nos espaço de vida privado-domiciliar e académico-profissional das enfermeiras - é necessário investigar o modo de estruturação da rede de saberes na trajetória de vida das enfermeiras, desde a sua infância. Acreditamos que, com o ingresso da enfermeira no universo erudito da academia, ela passa a internalizar urna série de conhecimentos e práticas acadêmicas e convencionais, próprias deste meio, que, algumas vezes, a distanciam daquelas construídas no espaço comum de suas relações e, em outras, se aproximam e até se misturam, revelando o nascimento de um novo saber, fundamentado numa rede de formações ideológicas que, dialeticamente, se fazem e se refazem, por vezes, com aparência completamente diferente da original.
A este respeito, Ansart (1978, p.241) assinala que as formações ideológicas são diretamente implicadas nas mutações, nos conflitos que preparam, favorecem ou inibem. Isto sugere que a ideologia, uma vez revestida de uma verdade que é histórica e temporal, se organiza no âmago da experiência concreta.
Quando se discute a atuação da enfermeira no seu espaço acadêmico-profissional, através do uso das plantas medicinais, aparentemente a mesma se explicita de forma paradoxal. Por um lado, existe a práxis advinda do seu cotidiano e, por isso, calcada no senso comum; por outro, há a demanda concreta de utilização de um saber profissional especializado, definido como científico, o que culmina com a geração de um conflito de formação ideológica. E a cultura erudita na contramão da cultura popular.
Em outras palavras, o processo de construção e reconstrução do saber sobre o uso de plantas medicinais por enfermeiras, mediado pela análise crítico-reflexiva, norteada pela pedagogia de Paulo Freire (1988; 1998), passa por esses três momentos da práxis de vida das enfermeiras já anunciados: o cotidiano de sua vida comum, o de formação acadêmica (intelectual) e o de seu campo de trabalho. Esses três espaços da vida - o comum, o acadêmico e o profissional - se entrelaçam na rotina das enfermeiras e interferem na posição que elas ocupam (ou devem ocupar) quando do exercício de sua profissão.
Na verdade, elas vivem um conflito ideológico, apontado por Ansart (op. cit.), gerado na ambivalência de negação e de confirmação de sua prática nesses três espaços de formação ideológica. Um deles - o de formação acadêmica - possui caráter mais temporário, muito embora, nesta área, elas desenvolvam traços marcantes que acompanham toda a trajetória de sua vida profissional. No entanto, é um espaço em que se permite, eventualmente, aflorar os conhecimentos advindos do senso comum, e apreendidos no seio de suas relações familiares ou de vizinhança.
Face a essas considerações iniciais, o estudo teve por objetivos: descrever o lugar das plantas medicinais na trajetória de vida das enfermeiras; e analisar a aplicabilidade das plantas medicinais nos espaços privado-domiciliar e acadêmico-profissional das enfermeiras.
OS CAMINHOS DO ESTUDO
Elegemos a pesquisa qualitativa para o desenvolvimento do estudo e o método criativo e sensível (MCS) teorizado por Cabral (1997; 1998; 1999) como ferramenta de investigação. Tal método tem como eixo norteador as dinâmicas de criatividade e sensibilidade, introduzidas na Enfermagem Brasileira por Maria José de Lima na "Oficina Experimental de Criatividade e Sensiblidade - da Enfermagem Tecnificada rumo à Enfermagem Tecnificante" (Cabral; 1999:61).
Das dinâmicas já aplicadas por Cabral (1998; p. 100-103), optamos pela Almanaque, implementada com dois grupos-pesquisadores diferentes. No contexto desse artigo denominaremos de Almanaque 1, quando se referir ao primeiro grupo e Almanaque 2, ao segundo.
Tal dinâmica combina imagens selecionadas a partir de um contingente de recortes de gravura, com mensagens textuais atinentes à temática em debate, organizados segundo uma seqüência ordenada de pensamento e lógica, os quais expressam o sentido e os significados construídos pelos sujeitos da pesquisa.
A condução da atividade se processou em cinco etapas, a saber: a) apresentação das participantes e da temática; b) exposição sobre a dinâmica; c) construção do almanaque; d) apresentação das participantes e o debate; e e) síntese da análise e validação coletiva.
A partir da temática "os conhecimentos acumulados por enfermeiras sobre o uso de plantas medicinais e sua aplicabilidade no espaço comum de suas relações e no âmbito acadêmico-profissional", as participantes das duas dinâmicas foram orientadas para que procedessem da seguinte maneira: numa folha de papel ofício, elas registrassem suas vivências e experiências com plantas medicinais oriundas de suas relações pessoais e privadas; em outra folha, aquelas relativas à esfera acadêmico-profissional; e ainda, numa terceira, o que era comum as duas primeiras mencionadas.
Na sistemática de produção de dados, que totalizou 04 horas de encontro e intenso diálogo grupai, optamos por trabalhar com um grupo diferente em cada dinâmica. A vinculação das participantes ao contexto das dinâmicas ocorreu através de consentimento informado, obedecendo ao disposto na Resolução N° 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, que regula as Normas de Pesquisa envolvendo Seres Humanos2. A identificação das enfermeiras se fez por meio de iniciais de seus nomes e pseudônimos de nomes de plantas escolhidos por elas mesmas, para garantir o anonimato das participantes. Além das pesquisadoras, a primeira dinâmica contou com a participação de 10 enfermeiras pediatras e a segunda teve a participação de 04 enfermeiras docentes, sendo 01 da área de ortopedia e 03 com atuação em enfermagem comunitária.
Os dados produzidos e analisados coletivamente nos permitiram incluir as parceiras do estudo como co-produtores da pesquisa. Como nos alerta Gauthier et al. (1998: 151), só o grupo pode dar sentido às descobertas da pesquisador". Segundo eles, cabe ao pesquisador "restituir ao grupo uma descrição das suas estruturas de pensamento, limitando tanto quanto possível suas estruturas interpretativas". Consideramos o espaço dialético, dialógico e plural das referidas dinâmicas, favorável à prática do grupo-pesquisador coprodutor da pesquisa.
As dinâmicas implementadas geraram relatórios que nos serviram como fonte primária, juntamente com as produções artísticas expostas, os quais totalizaram 14 quadros de almanaques, que utilizamos para efeito ilustrativo. Após exaustivas leituras e releituras dos relatórios, procedemos a sistematização das situações problemas apresentadas. Codificamos os temas geradores de debate, buscamos os elementos constitutivos dos temas desdobrando-os em subtemas, através da descodificação, e formulamos a síntese por meio da recodificação. Desse modo, desenvolvemos a análise dos dados segundo o recomendado pelo Método Criativo e Sensível.
Para dar conta da análise, foi preciso apropriar-nos de conceitos da pedagogia crítico-reflexiva (Freire, 1980; 1988); do uso da linguagem (Bakhtin, 1995) e recodificação temática (Cabral, op. cit).
O UNIVERSO SÓCIO-FAMILIAR -LOCUS DAS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS DAS ENFERMEIRAS COM O USO DAS PLANTAS MEDICINAIS
O primeiro tema emergente da situação problema "experiência de vida das enfermeiras" foi o universo sócio-familiar como locus das primeiras experiências das enfermeiras com o uso das plantas medicinais, como nos ilustra o relato da Enfermeira A, participante da Dinâmica Almanaque 01 :
_ "Logo que eu olhei pra essa foto aqui, eu lembrei das situações... como era na minha casa, eu achava que tudo era possível (referindo-se às ervas medicinais), então, eu coloquei o sinal verde. O amarelo é tudo que é horrível. Hum!!! Acho que não vou tomar isso, não... Só vou tomar porque isso vai me melhorar mesmo, mas tem gosto muito ruim. E o vermelho...: não, não vou tomar, não... Isso não vai resolver mesmo... Prefiro tomar um remédio alopático. [...] Meu pai é paraense, lá de Belém. Então, tudo pra ele é com coisa natural. Por exemplo, sofreu alguma contusão, é angiroba. Está resfriado, chá de alho. Então, sempre que nós vamos a Belém, o primeiro lugar que a gente vai é aqui" (loja de ervas, que a fez lembrar do Mercado "Ver o Peso" de Belém-Pa, Região Norte do Brasil).
Para a Enfermeira A, as ervas medicinais eram viáveis quando associava tolerância ao sabor à sua eficácia. Todavia, há momentos em que ela não as utiliza, em especial quando tem gosto desagradável fazendo uma associação ao sinal vermelho, indicativo de pare na sinalização do trânsito.
O surgimento desse tema, assentado na infância, configurou-se, inicialmente, no plano da dimensão simbólica do processo de construção de saberes sobre o uso de plantas medicinais. Posteriormente, lembrou-se do pai e das incursões pelo Mercado "Ver o Peso", em Belém.
Boff (1998, p. 11), ao definir símbolo, refere que "o sentido é: lançar as coisas de tal forma que elas permaneçam juntas. Num processo complexo significa reunir as realidades, congregá-las a partir de diferentes pontos e fazer convergir diversas forças num único feixe".
A primeira característica simbólica que pode ser encontrada em sua fala refere-se ao fato de que, quando criança, em seu ambiente familiar, ela acreditava que "tudo era possível". Outra marca da linguagem simbólica retratada na sua produção é a combinação desta com a imagem. Boff (op. cit., p. 12) destaca que na origem da palavra e do conceito "símbolo" existia por detrás uma experiência singular e curiosa. A referida Enfermeira se reportou a uma experiência passada, sistematizada em uma imagem da foto do mercado de ervas, para relatar aspectos curiosos e particulares da sua relação familiar com as plantas medicinais quando relaciona a imagem do sinal de trânsito à sua experiência de vida.
A estrutura cognitiva do saber se assenta no signo atribuído à expressão "sinal de trânsito". Para analisar o exemplo citado, recorremos à contribuição de Bakhtin (1995), quando ressalta que o signo transformou-se em símbolo; ou seja, ganhou um significado próprio neste contexto específico. Apoiamos essa inferência no valor simbólico peculiar atribuído pela Enfermeira A ao sinal de trânsito, associando-o às circunstâncias em que recorre às plantas medicinais na atualidade. Como ficou claro em suas palavras, o sinal de trânsito adquiriu significado diferente do original.
Na continuidade do desenvolvimento do tema "o universo sócio-familiar", eis um momento de diálogo entre enfermeiras no interior da Dinâmica Almanaque 02:
Enfermeira Boldo: _ "O conhecimento sobre ervas eu trouxe primeiro do meio onde eu vivi, o meio familiar... E eu coloque! a minha avó. E o conhecimento que ela trouxe pra gente, sempre dominadora. E esse conhecimento que ela proporcionava pra toda família, que era das verduras, que ela mesma plantava[...]".
Enfermeira Camélia: _ "A questão das plantas na minha vida é muito parecida com a da Enfermeira Boldo, que tem toda uma relação com família, campo, como nos velhos tempos. Então, quem mora em sítio utiliza normalmente a planta, chá de laranjeira, chá de folha de romã, frutas...".
As enfermeiras vão confirmando o uso das plantas medicinais como uma prática cotidiana no cuidado à saúde no espaço privado-domiciliar, mais especificamente no seio da família. Como refere Oliveira (1985, p.08), a medicina popular está incorporada ao cotidiano vivido das pessoas, aos seu atos concretos, "cristalizados em hábitos, costumes e tradições".
Um aspecto bastante peculiar que se confirma no diálogo enunciado pelas enfermeiras é o respeito às tradições e às heranças de família. É a figura da mulher enquanto curadora e detentora de um saber próprio que, transmitido por sucessivas gerações, se intensifica e se aprofunda no seio popular. Não está ligado às razões físico-químicas desses recursos, mas calcado nas observações empíricas, na suposta "intuição" de mãe de família. Este fato remonta a tempos passados, como na Idade Média, por exemplo, a par de épocas ainda mais antigas, em que as mulheres camponesas "(as curadoras) eram as cultivadoras ancestrais das ervas que devolviam a saúde, e eram também as melhores anatomistas do seu tempo. Eram as parteiras que viajavam de casa em casa, de aldeia em aldeia, e as médicas populares para todas as doenças" (Maleficarum, 1991, p. 14).
Retomando com a Dinâmica Almanaque 01, alguns relatos serviram para consolidar a marca da infância no saber das enfermeiras sobre o uso de ervas medicinais, surgindo como subtema descodificado a partir do tema "o universo sócio-familiar", a marca da infância no uso e indicação das plantas medicinais.
A MARCA DA INFÂNCIA NO USO E INDICAÇÃO DAS PLANTAS MEDICINAIS
Enfermeira B :"Então, tinha alface pra fazer dormir, quando estava com insônia... Depois da janta, minha tia enchia de chá de alface e todo mundo dormia".
O momento da infância aparece marcante na definição de valores, preferências e hábitos das enfermeiras. Em relação ao consumo das plantas medicinais no espaço privado-domiciliar, elas vão resgatando de sua memória, um saber latente, na concepção de Cabral (1998), para intermediar com as outras enfermeiras e as pesquisadoras o uso e a indicação das plantas mediadas pela prática concreta no seio popular.
A Enfermeira I, complementando o discurso anterior, anunciou: _ "Saião com leite também, pra qualquer dor muscular. Caiu, machucou qualquer área, era tomar o saião e ainda colocar no local. Pra febre, ela (a mãe) usava chá de laranja da terra ou então xarope mesmo. Esse era doce, né, todo mundo gostava de tomar; botava bastante açúcar... Tomava, assim, nas colherzinhas esse chá"
Nesse sentido, acreditamos que parte da rede de saberes da enfermeira tem suas bases construídas no seu universo sócio-familiar, a partir de experiências cotidianas concretas, no lugar em que "o sujeito se faz como ser diferenciado do outro, mas formado na relação com o outro; singular, mas constituído socialmente e, por isso mesmo, numa composição individual, mas não homogênea" (Cabral, op cit. p. 108).
Enfermeira J: _ "Quando o filho está machucadinho, lá em casa, a gente costuma fazer, botar saião com vinagre e sal e botar uma compressa bem apertada. Unha encravada... Lá em casa, é muito difícil usar remédio alopático; só no último caso. Mas mesmo assim, primeiro, a gente faz xarope em casa, bota açúcar, bota mel, limão, eucalipto, mentruz, alho, junta tudo, agrião... bate no liqüidificador e vai tomando" (Almanaque 01).
Em relação ao momento em que a utilização das plantas medicinais toma lugar na vida das enfermeiras, o exemplo trazido pela Enfermeira J se contrapõe ao enunciado pela Enfermeira A, também participante da Dinâmica Almanaque 01, em relação à sua infância. Enquanto para esta as ervas "tem gosto muito ruim" e, portanto, somente viáveis quando da certeza de sua eficácia, para aquela, é a alopatía que emerge como a última alternativa. Tal circunstância parece convergir nos relatos a seguir:
Enfermeira I: _ "Minha mãe não era muito adepta da medicação; ela foi criada na roça [...] e ela tinha, assim, o dom... Sempre quando tinha alguma pessoa doente, ela era chamada, e ela sempre tinha alguma coisa para fazer e sempre usando coisas naturais. Eu lembro que ela usava erva de Santa Maria pra febre, pra verme; e surtia efeito! A gente tinha até medo de tomar, porque, se tomasse, ia eliminar verme. [...] Então, muita coisa eu aprendi... era laranja da terra com casca de cebola e colocava bastante açúcar, era xarope mesmo! Tinha que tomar em colherzinha! Se tomasse muito, fazia mal. Os chás quentes, tomava bem quente, botava um cobertor e a febre sumia" (Almanaque 01).
As falas das Enfermeiras, compartilhadas no movimento dialógico, são muito elucidativas no sentido de revelar o enraizamento da crença no processo de cura da cultura popular, o suficiente para se sobrepor à cultura científica, especificamente no espaço sócio-familiar, onde a herança de saberes, ainda que de caráter genérico e heterogêneo, possui um sentido forte e verdadeiro para seus usuários, que se beneficiam com os seus efeitos satisfatórios, tomando-se "dispensável" questionar sua validade. Nesta perspectiva, observamos que, apesar do desenvolvimento técnico-científico do mundo atual, em que se privilegiam outros recursos de promoção e restauração da saúde das pessoas, as plantas medicinais permanecem legitimadas na sabedoria popular, cujas parceiras deste estudo têm o cuidado de salientar a respectiva comprovação empírica.
No entanto, com o prosseguir do diálogo, começaram a se delimitar os campos de aplicação desse saber, muito mais comum no seio das classes populares do que nas eruditas, representada pelo universo acadêmico (científico). Vejamos:
Enfermeira D: _ "Eu fiz um apanhado de fotos e aí eu identifiquei chá de erva doce pra cólica, camomila pra acalmar o bebezinho... Isso aqui na prática, né, fora da academia" (Almanaque 01).
Quando a Enfermeira D menciona que as plantas medicinais têm um valor de uso para a prática popular, ela esclarece que tal prática tem lugar fora da academia e do espaço profissional. E uma prática exterior ao universo acadêmico que subsidia o pensar e o fazer da Enfermeira no seu exercício profissional; e, indubitavelmente, pertencente ao locus privado-domiciliar. Já na academia... reforça a Enfermeira Boldo, no âmbito da Dinâmica Almanaque 02:
"A minha formação acadêmica foi para a racionalidade... E a fitoterapia não tinha vez mesmo".
Aí se desenha mais um tema gerador de debate: "O lugar das plantas medicinais no universo acadêmico-profis-sional", descodificado no subtema "o uso atual das plantas medicinais na vida das enfermeiras"
O LUGAR DAS PLANTAS MEDICINAIS NO UNIVERSO ACADÊMICO-PROFISSIONAL
Este tema apresenta as idas e vindas do movimento de construção e reconstrução do conhecimento que vai compor a rede de estruturação de saberes sobre o uso de plantas medicinais. Existe um saber que é gerado no universo sócio-familiar e um outro que é adquirido no acadêmico, que, por vezes, incorpora saberes e práticas do mundo sócio-familiar e, outras, do profissional. Isto quer dizer que, na formação acadêmica, a enfermeira lida tanto com o processo ensino-aprendizagem formal (próprio deste meio) quanto com o informal (trazido de seu mundo sócio-familiar).
O USO ATUAL DAS PLANTAS MEDICINAIS NA VIDA DAS ENFERMEIRAS
Para introduzir o surgimento do mencionado subtema, a Enfermeira A, prosseguindo com a apresentação de sua produção artística no espaço da Dinâmica Almanaque 01, ilustra que o conhecimento que ela trás do seu âmbito sócio-familiar desde a infância combina-se, em certas ocasiões, com as experiências de ensino-aprendizagem adquiridas quando ela ingressa na academia:
_ "(...) Na academia, eu me lembro do PCI-III5, das apostilas que ensinavam, né. Então, eu lembro muito da beringela; se está com colesterol alto, faz um chazinho de beringela; o chá de melissa é calmante; o chá de boldo, que é para o fígado, pra indisposição de intestino, chá de louro... Isso tudo eu centralizei na minha casa, né".
Ela chega à conclusão de que tanto o que ela aprendeu sobre o uso de plantas medicinais na experiência de ensino-aprendizagem formal (PCI-III), quanto o que ela trouxe de sua experiência de vida comum (informal) se materializam no âmbito de sua própria casa. Na verdade, o que parece denotar a sua fala é que a formação acadêmica (formal) permite fazer essa junção com o que se trás da prática informal. Afinal, a academia (base intelectual) não se restringe à formação científica, apesar da estreita relação existente entre ambas. Ou seja, podemos pressupor que existe uma abertura do currículo acadêmico para o estudo de plantas medicinais, como se confirma nas falas a seguir:
Enfermeiro H: _ "[...] Então, durante a graduação, tive a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre as ervas" (Almanaque 01).
Enfermeira I: _ "[...] e depois, quando eu entrei para a faculdade, como o Enfermeiro H falou, eu também tive a oportunidade de trabalhar com uma professora maravilhosa, naturalista. Então, a gente trabalhava com um grupo de hipertensão no consultório de enfermagem e lá era enraizado de chazinho. Tinha chazinho pros clientes... a gente tomava chazinho o tempo todo. Era chá de tudo que você possa imaginar com uma finalidade. Antes da consulta, nós oferecíamos o chazinho. Muitas chás realmente funcionavam. Eram tranquilizantes, relaxantes... (Almanaque 01)".
O exemplo da Enfermeira I refere inclusive que o uso de ervas na prática curricular pode se configurar como facilitador no processo de atendimento à clientela. Em outros termos, pode servir para aproximar os clientes dos estudantes de enfermagem que devem prestar-lhes os cuidados pertinentes à saúde.
Neste momento, ainda que não se discuta, particularmente, a respeito da eficácia das plantas para fins específicos de problemas de saúde sobre os quais elas possam agir, pelo menos elas parecem atuar sobre questões mais genéricas que propiciam o ambiente adequado aos referidos cuidados. No entanto, embora tais relatos tenham evidenciado a possível abertura da academia a esta forma de tratamento, outros, porém, mostraram direção diferente:
Enfermeira Rosa: _ "Eu tive uma formação (acadêmica) totalmente biomédica" (Almanaque 02).
Enfermeira B: _ "Eu fiquei frustradíssima, né. Em primeiro lugar, eu descobri que fora da academia eu consegui identificar mais elementos; porque dentro da academia só ficou isso (mostrou o papel em branco). O que é comum, ficou isso aqui (referindo-se ao seu almanaque). [...] _ Dentro da academia, então eu botei assim: "saúde é vital" (referindo-se ao almanaque produzido). Porque uma das coisas que me chamava atenção é que os chás, quando eu fiz a minha graduação, eram altamente condenados, entendeu? Então, foi substituído todo aquele conceito que eu tinha. Então, o chá foi substituído pelo remédio, as ervas pelas drogas... as ervas toleradas, só aquelas comprovadas científicamente". (Almanaque 01).
A ruptura do saber sobre o uso de plantas medicinais sofrida no momento em que a Enfermeira B ingressou no curso de graduação fica clara no seu discurso. Ou seja, este saber foi inibido na academia, entrando na zona de latência, porém não destruído, tanto que ela lembra que algumas ervas são "toleradas" neste espaço, e reconstruído sob um novo enfoque. Ela chama atenção para a comprovação científica, acrescentando-a como uma necessidade que dá subsídio ao uso de uma determinada droga, fundamentada no espaço acadêmico de formação da enfermeira.
A vertente sócio-familiar deste saber toma-se complexa frente à formação acadêmica. Isto porque, apesar de a primeira ser dirigida por laços fortes, assentada em ações concretas, como já referimos anteriormente, segue orientação diferente daquela que norteia o conhecimento construído na academia, como confirma a Enfermeira D: _"[...] Na academia, nunca ninguém me explicou e também eu não procurei saber direito" (Almanaque 01).
Qual terá sido a razão que levou ao desinteresse da então aluna frente ao saber sobre o uso das plantas medicinais neste ambiente específico? Tal questionamento pode encontrar respaldo no fato de que, como é notório, ao penetrar na academia, a aluna se depara com o mundo da cultura erudita, não que a mesma, necessariamente, não faça parte de seu contexto de vida anterior ao seu ingresso na academia; só que, neste momento, ela passa a comprometerse com os ditames deste meio. Assim, ela pode, por vezes, neste espaço específico, negar, ignorar ou inibir os referenciais que reforçam sua cultura advinda do senso comum.
Gradativamente, as enfermeiras e as pesquisadoras vão descobrindo as razões que levam, ainda nos dias de hoje, ao uso de plantas medicinais como uma prática marginal e de pouco valor e prestígio profissional. Muitos são os elementos que dificultam a inserção dessa terapêutica no conjunto das condutas das enfermeiras. Nesse sentido, no espaço da Dinâmica Almanaque 02, a Enfermeira Melissa após sua reflexão, postula sua crítica, ao associar as plantas medicinais a uma prática da saúde coletiva, que tem um estereótipo de "brega", no meio científico. Consequentemente, quem trabalha em saúde coletiva e/ou com plantas medicinais tem uma postura brega, em oposição ao chique, que usa medicação alopática e atua na saúde hospitalar: _ "Tinha lá poucas pessoas (referindo-se ao tempo de estudante no estágio), que tinham um discurso popular no meio da academia.(...) A saúde coletiva ainda tem essa visão do brega, do cara que não tem saber, não é? Então, no meio do chique ele estava lá (referindo-se à saúde hospitalar e a medicação alopática). Então, às vezes, eu me sentia, até enquanto acadêmica, por ter escolhido a saúde pública como brega, tinha essa visão. E dentro da faculdade, hoje ainda, tem muita dessa mistura, né, dos saberes, achar que a saúde coletiva é só um saber popular sem fundamentação. Então, eu me identifico com esse cara brega no meio do chique".
Nestas circunstâncias, em sua ambivalente formação, o "chique" é representado pela tecnologia de ponta e sofisticada, sustentada na ciência. Enquanto o "brega" (o popular), nesta óptica, não tem "fundamentação".
Além disso, é importante assinalar que a prática acadêmica está voltada, geralmente, para o preparo do estudante visando as características demandadas do mercado de trabalho. Assim, o aluno, levado pelas circunstâncias deste mercado, opta por uma especialidade que venha a atender às exigências do mundo do trabalho.
Sob este prisma, ele vive a ambivalência de, em sua estrutura curricular, capacitar-se para a realização de ações de promoção e de proteção à saúde, segundo os preceitos que regem a saúde pública, no momento em que o que predomina no país é a saúde vista sob a óptica capitalista neoliberal, rendendo-se aos interesses de grupos econômicos que se sobrepõem ou se contrapõem ao bem-estar da clientela.
Historicamente, a formação acadêmica dos profissionais de saúde, em especial das enfermeiras, a partir da década de 30, vem sendo sustentada no modelo biomédico, que atende prontamente à visão de política neoliberal, também da saúde.
Em estudo anterior, Alvim (1997, p.47) teve a oportunidade de iniciar análise acerca dos condicionantes históricos da formação profissional das enfermeiras, relacionando-os com as práticas de saúde que a norteiam. Nele, destacou que a profissão se desenvolveu numa época em que o modelo biomédico estava se consolidando e a eficiência da medicina se respaldava no desenvolvimento tecnológico e na medicalização.
O cenário sócio-político e econômico da ocasião se direcionava para o sistema industrial emergente e os serviços de saúde se voltara para a manutenção e/ou recuperação do corpo que deveria estar em condições satisfatórias para a produção; e a orientação biomédica, por meio de uma visão e uma prática mecanicistas e fragmentadas de assistir, foi eleita neste momento.
Assim, contrariamente ao novo quadro nosológico que se instalara na década de 303, gerado pelas condições insalubres das periferias da cidade, povoadas pelo efeito migratório do campo para a cidade a partir do capitalismo industrial, e, a despeito da reforma sanitária que teve lugar na década de 20, quando da criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), o exame do processo de formação das enfermeiras nos mostra que várias escolas foram criadas anexas a faculdades de medicina e o currículo de enfermagem já então atendia às incipientes especialidades médicas (Baptista, 1997, p.101).
A mencionada autora constata que, diferente do preconizado pelas enfermeiras norte-americanas, as escolas de enfermagem católicas, criadas a partir da década de 30, estavam em sua maioria, ligadas a hospitais. Ainda mais, seu corpo docente constituía-se por médicos e enfermeiras, cabendo àqueles a responsabilidade por lecionar além das disciplinas básicas, a parte teórica relacionada aos 'princípios científicos', bem como as clínicas básicas. E por assim ter-se constituído, Baptista (op. cit. p. 101) conclui que o ensino da enfermagem no Brasil foi configurado como uma área ou disciplina da área médica.
Para firmar-se enquanto ciência e também para obter prestígio e reconhecimento social, a enfermagem permanece ainda hoje subordinada às especializações médicas, logo, ao modelo biomédico de assistir ao cliente.
Diante dessas considerações, é compreensível que outros saberes e práticas de saúde fossem marginalizados no cenário de formação acadêmica, inclusive porque o ensino de enfermagem preconizado como de "alto padrão" deveria seguir, além dos moldes científicos da época, os interesses econômicos e políticos.
Notadamente, até o início dos anos 80, como destacou Alvim (op. cit., p.47), as técnicas que eram ensinadas através de procedimentos não invasivos7, muitas vezes se perdiam no espaço hospitalar, cedendo lugar às práticas alopáticas.
Neste contexto, é importante considerar que a formação acadêmica poderia (ou deveria) respaldar a prática profissional da enfermeira também no terreno específico da utilização de plantas medicinais, assim como ocorre em outras áreas do conhecimento da enfermagem já legitimadas academicamente..
É mister reforçar a existência de vários estudos experimentais que apresentam o uso e a eficácia das ervas medicinais para fins terapêuticos, muitos deles inclusive ligados a projetos acadêmicos em parceria com institutos de pesquisa e com a comunidade usuária. Também não são poucos os endereços eletrônicos, disponíveis na INTERNET, de grupos de pesquisa que investigam o assunto.
Particularmente, no campo da enfermagem, a partir da década de 80, época em que algumas terapias não alopáticas de saúde obtiveram respaldo governamental, encontramos algumas iniciativas de pesquisas que focalizam experimentos com plantas medicinais no âmbito preventivo e curativo. Apesar disso, percebemos que o relato das enfermeiras confirmam que o conhecimento gerado ainda não se difundiu suficientemente no meio acadêmico-profissional para tomá-lo uma prática concreta e aplicável nesta espaço. Assim, questionamos quais as possíveis razões que têm feito com que os órgãos de formação de enfermeiras ainda não estejam investindo com maior profundidade nesta área do conhecimento.
E bem verdade que sua incorporação ao sistema oficial de saúde teve razões políticas e econômicas que demandaram implicações no plano científico e institucional, com desdobramentos éticos e legais e que são responsáveis, em parte, pelos conflitos ideológicos por que passam os profissionais de saúde, em particular as enfermeiras, na sua opção pelo uso ou não das plantas medicinais no seu campo de trabalho.
A APLICABILIDADE DAS PLANTAS MEDICINAIS POR ENFERMEIRAS: OS POSSÍVEIS CAMINHOS
A aplicabilidade das plantas medicinais por enfermeiras no mundo científico-tecnológico atual enfrenta inúmeros desafios, uma vez que a prática profissional dominante vem se sustentando nos cânones da ciência experimental, portanto na prática alopática.
Como ilustraram as participantes do estudo, a formação acadêmico-profissional da enfermeira não vem explorando suficientemente o conhecimento sobre o uso de plantas medicinais e essa deficiência implica fragilidades em defender este uso neste cenário específico.
Acreditamos que para a enfermeira difundir esse conhecimento para as áreas de demarcação científica é necessário que ela faça do espaço do cuidado um laboratório de investigação empírica, reconstruindo o seu saber partindo de sua própria herança cultural articulada com o saber adquirido na academia. Neste espaço, é preciso que ela crie o seu banco de dados, o seu laboratório experimental, pois, se ficar no plano da experiência, sem registro detalhado da eficácia dessa prática na saúde do cliente de enfermagem, sem acompanhamento sistemático de um laboratório físico-químico que possa investigar o princípio ativo da planta, a enfermeira não terá poder de argumentação para sustentar a aplicabilidade dessa prática no âmbito acadêmico-profissional.
Contudo, é oportuno lembrar que as plantas medicinais fazem parte do cotidiano de vida comum do cliente; logo, é preciso que se considere não somente a cientificidade desse recurso mas a práxis cultural da clientela à qual se destina o cuidado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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7.CABRAL, I. E. Aliança de saberes no cuidado e estimulação da criança-bebê: concepções de estudantes e mães no espaço acadêmico de enfermagem. Rio de Janeiro: UFRJ/EEAN, 1997. Tese (Doutorado). Escola de Enfermagem Anna Nery/ Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997.210p.
8.O método criativo-sensível: alternativa de pesquisa na enfermagem. In: GAUTHIER, Jacques H. M. et al. Pesquisa em enfermagem: novas metodologias aplicadas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1998.177-203p.
9.A interdependência entre o pesquisar, ensinar e cuidar no espaço das dinâmicas de criatividade e sensibilidade. Artigo encaminhado à Revista Latinoamericana de Enfermagem, Santa Catarina, 1999. No prelo.
10.FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da libertação. São Paulo: Moraes, 1980.102p.
11.Pedagogia do oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1988.184p.
12.GAUTHIER, J. H. M. et al.Pesquisa em enfermagem: novas metodologias aplicadas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1998.302p.
13.MALEFICARUM, M. O martelo das feiticeiras. 3. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991.528p.
14.MONTERO, P. Da doença à desordem: a magia na umbanda. Rio de Janeiro:Graal, 1985.201p.
15.OLIVEIRA, E. R. de. O que é medicina popular. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1985.91p.
1. Recorte da tese de doutorado "Práticas e saberes sobre o uso de plantas medicinais na vida das enfermeiras: uma construção em espiral", defendida e aprovada na EEAN/UFRJ
2. A Resolução encontra-se publicada em sua íntegra no livro "Pesquisa em Enfermagem. Novas Metodologias Aplicadas" (Gauthier et al., 1998: 278-291).
3. Esta enfermeira graduou-se pela EEAN/UFRJ. Nesta instituição, o currículo desenvolve-se por Programas Curriculares Interdepartamentais, que se apresentam em um conjunto de três partes integradas. O PCI-III (Programa Curricular Interdepartamental III), mencionado pela Enfermeira A, intitula-se "A saúde das pessoas que trabalham".
4. Montero (1985, p.51) comenta que, neste momento, "a febre amarela, a varíola, a lepra, doenças pestilenciais do passado, dão lugar às chamadas doenças de massa (verminose, esquistossomose, desnutrição etc)...".
5. Tais como, aplicação de cataplasmas, ventosas, massagens terapêuticas, entre outras.