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Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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Ministério da Educação
CAPES

Volume 3, Número 2, Mai/Ago - 1999

INTRODUÇÃO

Este estudo foi realizado no Núcleo de Estudos de Saúde Pública no Centro de Estudos Avançados Multidisciplinar (CEAM) da Universidade de Brasília (UnB), com apoio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), Organização Panamericana de Saúde e "The Population Council"- uma organização não governamental-. O principal objetivo foi analisar as barreiras e a qualidade do atendimento às mulheres vítimas de estupro nas instituições de segurança pública e de saúde do Distrito Federal. A pesquisa obteve sustentação da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania - formada por duas Comissões de Ética da UnB e da Secretaria de Saúde - na manutenção do respeito aos direitos ético-morais e exigências das Normas de Pesquisas que envolvem Recursos Humanos. Embora os diferentes paradigmas da bioética indicam que "as dimensões morais da vida humana não podem ser capturados por uma única perspectiva", utilizou-se o Código Penal Brasileiro vigente como ponto de partida para o estudo da problemática. Este resgate possibilitou uma reflexão sobre a ética da responsabilidade dos direitos e dos valores da mulher vítima, de acordo com a sua própria consciência moral e condição humana.

Ainda que em nosso País o Código Penal Brasileiro vigente permita a realização do aborto (no seu artigo 128, incisos I e II, do Decreto Lei n. 2.848/40), nas situações de risco de vida materna e quando a gravidez for resultante de estupro, o que vem sendo observado ao longo do tempo é o descaso no cumprimento dessa Lei. Isto reflete a falta de compromisso social, em geral, e, em particular, das instituições públicas para com a situação das mulheres que passam pela difícil experiência do estupro e da gravidez indesejável. Esta situação expressa-se nas dificuldades para viabilizar, em tempo hábil, atendimento para a interrupção da gravidez - quando o caso requer - sem danos e riscos à saúde das mulheres.

Quando se trata de risco de vida materna em virtude do envolvimento da indicação médica, a questão é mais simples de ser resolvida. Todavia, no que se refere a uma gravidez resultante de violência sexual, surgem problemas que emperram e dificultam o acesso das mulheres aos serviços necessários, tanto para a obtenção das informações sobre direitos e serviços disponíveis quanto para o diagnóstico e procedimentos subséquentes às decisões da mulher. Em geral, quando o acesso ocorre, se dá através de muitas dificuldades, envolvendo autorização judicial e um conjunto de procedimentos burocráticos dificultadores. Estas dificuldades tanto podem ser identificadas nas instituições de segurança como de saúde.

Este estudo analisa estas dificuldades, bem como outras envolvidas na situação do atendimento às mulheres vítimas de estupro, resultante ou não de gravidez.

- Objetivos:

- Geral: Analisar as barreiras e a qualidade do atendimento às mulheres vítimas de estupro, resultante ou não de gravidez, nas instituições de segurança e de saúde selecionadas, no Distrito Federal.

- Específicos: - Caracterizar a demanda potencial de mulheres vítimas de estupro através de dados levantados nas delegadas em estudo.

-Verificar o grau de resolução de problemas no curso do atendimento às mulheres violentadas identificando as barreiras por elas enfrentadas.

-Analisar a qualidade do atendimento às mulheres violentadas e a integração desta atividade com os demais serviços do hospital e da rede.

 

A PROBLEMÁTICA DO ATENDIMENTO ÀS MULHERES VÍTIMAS DE ESTUPRO NO DISTRITO FEDERAL

A problemática do atendimento às mulheres vítimas de estupro envolve aspectos complexos, compreendendo fatores jurídico, ético-moral, psicossocial e religioso. A dificuldade de acesso aos serviços, a desinformação dos profissionais da área da segurança pública e da saúde destinados a esse objetivo são causas relacionadas a esta situação. Não obstante a base legal, surgem ainda os entraves burocráticos nos serviços de saúde, delegacias, IML e outros, para o atendimento a essas mulheres, que buscam os serviços necessários para o apoio, frequentemente dificultando as informações e o acesso aos serviços específicos de apoio. Na verdade, essa problemática é recorrente pela falta de definição de políticas de saúde, capazes de responder às necessidades sociais básicas das mulheres que sofrem os traumas do estupro e outros tipos de violência. Políticas estas, que priorizem metas e programas com critérios éticos, tendo como fundamental o princípio da justiça, ou seja, com novas condições humanas e posturas éticas, que contemplem a liberdade e a realização da atenção ao ser humano em sua integralidade.

O Brasil tem entre seus graves problemas de saúde a alta taxa de mortalidade materna, que reflete as iniquidades no acesso à rede assistencial e a precariedade da assistência médico-sanitária. A Organização Mundial de Saúde (OMS), citada em Mateus e Lago (1996, p.10), estima que os países em desenvolvimento respondem por 99% das 500 mil mortes maternas anuais, dentre as quais entre 115 e 204 mil resultam das freqüentes complicações dos abortos clandestinos, correspondendo a um total de 22 a 40% das mortes maternas.

As recomendações emanadas da Conferência de População promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU) e realizada no Cairo (1994), ressaltam a importância "do reconhecimento do aborto como um direito das mulheres e um problema de saúde pública e que sua descriminalização integre a agenda dos direitos reprodutivos fundamentais, assim como seja considerada condição primeira para redução efetiva da morbi-mortalidade reprodutiva". Nesse sentido, na Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995), também promovida pela ONU, o Brasil subscreveu documento em que se compromete a estudar a revisão das leis que punem as mulheres que se submetem a abortos ilegais.

O termo aborto, segundo Tardieu, citado in Matielo (1994, p.22), é expresso em vários conceitos, tomando como referência a situação da legislação restritiva ou permissiva ao aborto. Classifica como: "aborto criminoso a interrupção ilícita da gravidez, a contar da concepção ou de outro prazo estabelecido em lei até o início do parto, sendo indiferente o fato de ocorrer ou não a expulsão do produto; enquanto, o aborto legal é aquele admitido estritamente pela lei face a circunstâncias especiais e devidamente comprovadas".

Nessa perspectiva conceituai, a Organização Mundial de Saúde (OMS) define o aborto como : " A expulsão ou extração de um produto de concepção com menos de 500 gramas ou menos de 22 semanas de gestação tenha ou não evidências de vida e seja ou não espontâneo ou induzido", citada em CASTRO (1997:22).

Gabiatti (1995) cita que estudiosos da Organização Mundial da Saúde (OMS) avaliaram a questão do aborto espontâneo e induzido e concluíram que: " não há dúvida de que a interrupção da gravidez pode precipitar reações sérias, psiconeuróticas ou mesmo psicóticas em um indivíduo susceptível". O estresse emocional experimentado pelas mulheres está associado às circunstâncias sobre as quais o aborto foi realizado -legal ou clandestino -, o período da gestação e as atitudes dos familiares, bem como dos profissionais envolvidos.

O autor citado (Op. cit., 1995) relata ainda em seus estudos que a OMS estima em 40 a 60 milhões o número de abortamentos que ocorrem no mundo a cada ano, sendo que metade destes é realizada de forma clandestina e por pessoas não qualificadas. Portanto, com exposição da mulher a condições de risco. Neste mesmo ano, o aborto foi responsável, nas estatísticas oficiais, por 9,3% das mortes maternas. O risco de óbito está muito mais relacionado às condições em que ele é atendido, e não à sua forma de início espontâneo ou provocado. De fato, quando está garantido o acesso da mulher a um serviço de atendimento de qualidade, o índice de mortalidade decresce consideravelmente.

É sabida a dificuldade de se contabilizar a ocorrência de abortos no Brasil, em virtude da grande maioria ocorrer na clandestinidade, sendo apenas oficializados nas estatísticas os casos que resultam em seqüelas e que chegam à internação hospitalar. Neste contexto, estima-se que, a cada 100 abortos realizados, 42 apresentam complicações e 29 acabam em hospitalização, sendo que boa parte desses abortos deixam seqüelas permanentes como, por exemplo, a infertilidade. Segundo estudo do Conselho Nacional de Direitos da Mulher, do Ministério da Justiça (1995), jovens - adolescentes, entre 10 e 19 anos, praticam a metade desses abortos.

Outro aspecto que fica evidenciado neste estudo, é o temor dessas instituições, e dos médicos em particular, de serem incriminados, investigados e processados judicialmente pela prática de ato de interrupção da gravidez, mesmo sendo esta intervenção amparada pela Lei.

Nesse sentido, é importante destacar como um avanço no sentido da autonomia profissional do enfermeiro - a Lei 7.498/86, de 25 de junho de 1986, e o Decreto 94.406, de 08 de junho de 1987, estabelecendo e regulamentando, respectivamente, as atividades exercidas pelo enfermeiro, com destaque para a consulta de enfermagem - como atividade privativa do enfermeiro. A filosofia desses documentos define, ainda, a ampliação da esfera de ação do enfermeiro, não só na parte técnica mas também na administração e organização dos serviços de assistência de enfermagem e introduz mudanças no cenário de prática.

A esse respeito, Lima (1993, p.84) ressalta a importância da lei para a autonomia profissional, destacando "o direito da categoria de defender seus interesses e de controlar a vida profissional e suas circunstancias, sem perder de vista a pluralidade na coordenação desse exercício Mas, quando se contempla o mundo do trabalho, onde atuam concretamente uma equipe multiprofissional, como é o caso da atenção às mulheres violentadas, verificam-se sérias lacunas quanto ao alcance do propósito requerido. Observa-se que os serviços evidenciam a falta do enfermeiro na participação desta importante atividade em seus quadros, e quando ocorre, por deficiências nos serviços de saúde e maternidades, costuma ser limitado e muito deficitário. Concluindo, portanto, que a lei é condição necessária, mas não suficiente para equacionar os problemas.

No cenário atual da atenção à violência contra a mulher vítima de estupro, resultante de gravidez, voltado para o atendimento ao aborto legal, os resultados são ainda mais insatisfatórios.

Há seguramente um importante desconhecimento da lei por parte das mulheres e da população em geral, mas há também uma grande descrença popular na possibilidade de ser apoiada pelas instituições de segurança e de saúde nesta situação. Isto ocorre, em parte, pela impunidade do agressor e da falta de humanização no atendimento prestado pelos funcionários, geralmente, despreparados e insensíveis aos fatos vividos pela mulher violentada.

Desta forma, a mulher acaba sentindo-se humilhada e vitimada pela dupla violência - o estupro e a omissão das instituições e profissionais - e, não raro, buscam alternativas arriscadas na clandestinidade para a interrupção da gravidez decorrente. Isto manifesta-se na relação encontrada neste estudo entre a busca do procedimento nos hospitais de referência e o registro de boletins de ocorrência do estupro nas delegacias, deixando clara a existência da baixa notificação às delegacias.

O que não pode ser desconsiderado é o fato de que a desatenção à mulher violentada tem, em sua base explicativa, o preconceito de natureza moral e religiosa sobre o aborto. A mulher que busca o atendimento nos serviços de saúde e de segurança, quer para interrupção da gravidez, ou para orientações gerais sobre os procedimentos que deve adotar para prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, Aids e outros -como a "pílula do dia seguinte", de vítima é transformada em ré, no julgamento de muitos dos que a atendem nesses serviços.

Outro desafio para as instituições diz respeito à humanização do atendimento e encarar esta situação como problema é muito doloroso para o ser humano, visto que sua vocação primeira é a humanização na condução da construção do processo civilizatório. Mas, infelizmente, o que prevalece são o atendimento não individualizado, a frieza da relação profissional e pessoa atendida, a falta de solidariedade, cuidado e zelo.

Por outro lado, o desafio de suportar e tolerar o que vem do outro coloca sob questão a onipotência que sempre marcou as atitudes e comportamentos dos profissionais de saúde como via de regra. Também não será simples para estes profissionais o respeito à expressão dos desejos e aspirações da mulher de afirmação do direito de opinar sobre o seu próprio corpo, antes reduto exclusivo da autoridade médica.

No caso do atendimento da vítima de violência sexual, o problema parece ter maior complexidade. Pinho (1997, p. 59), sob o ponto de vista do atendimento à clientela, ressalta que " desafia nossa capacidade de equilíbrio e de resistência igualmente constatar a derrota de esperança de sobrevivência de um ser humano", alertando para os sentimentos e emoções que a situação de violência desencadeia em cada um, atendido e atendente.

Nery (1990, p.5) reforça esse pensamento quando se refere às mudanças no setor saúde e o redirecionamento da prática assistencial como sendo uma: " tomada de consciência dos profissionais de enfermagem, para cumprir e assumir o seu compromisso social de mudanças no setor saúde. Da mesma forma, no redirecionamento de sua atuação, uma vez que limitado seu papel ao desempenho de atividades burocráticas, o enfermeiro prejudica a expansão de sua prática assistencial".

Diante do exposto, é evidente a necessidade de um redirecionamento de sua atuação e do espaço que o enfermeiro deverá ocupar, no âmbito da equipe multiprofissional. Nesse sentido, Tyrrell (1994, p.320), numa visão crítica acrescenta que "o papel do enfermeiro nos programas nacionais de saúde materno-infantil ainda é limitado" (...).

Quanto ao direito de livre escolha da mulher em relação à reprodução, a Conferência do Cairo (1994) recomenda: "os direitos reprodutivos das mulheres só estarão assegurados quando estiverem reunidas as condições para escolhas efetivamente livres e conscientes. Embora, o Estado ocupe um lugar central na definição e implementação destas medidas, outros agentes sociais devem assumir sua responsabilidade enquanto promotores de políticas sociais".

Considerando a dimensão da violência contra a mulher, algumas propostas têm emergido como alternativas de mudança do modelo de atendimento a ela. O Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), anunciado no ano de 1993 pelo Ministério da Saúde, estabeleceu as bases e diretrizes para as estratégias de qualificação e resolução dos problemas relacionados à saúde da mulher, e consiste em um conjunto de orientações para Estados e Municípios realizarem atenção à saúde da mulher, buscando impacto nos indicadores epidemiológicos e na satisfação da usuária. É urgente rever práticas assistenciais, e há igualmente necessidade de avaliar os resultados dos serviços prestados e os componentes da administração dessa atenção à clientela, que exigem, entre outros pré-requisitos, integração, envolvimento e compromisso da equipe como um todo.

Assim sendo, o enfermeiro com formação específica nesta área pode contribuir, efetivamente, para uma assistência de qualidade à saúde da mulher violentada, auxiliando no atendimento integral e multiprofissional. Essa atuação é enfatizada pela Organização Mundial da Saúde, desde 1997, quando definiu o papel de cada membro da equipe de enfermagem, e ressaltou que estas funções profissionais devem ser adaptadas às variações sócio-econômico-culturais de cada país. Identifica, como principais funções do enfermeiro, as do tipo assistencial, educativa, administrativa e de pesquisa. As funções citadas têm igual importância, embora se admita que uma ou outra adquira prioridade, em função dos encargos assumidos pelo enfermeiro, na equipe de saúde, ou das necessidades da clientela em determinada fase do acompanhamento.

Aliado o aspecto da qualidade técnica do serviço de saúde aos princípios da promoção à saúde, o PAISM orienta privilegiar especialmente as práticas educativas em saúde. Sua base de planejamento deve ser a epidemiología, portanto, o combate à mortalidade materna está posto como prioridade em toda a extensão territorial brasileira. E, neste caso, estratégias de interrupção das mortes por abortamentos clandestinos, arriscados e precários, também deveriam ser prioritárias.

De alguma forma, o PAISM vê sua doutrina de promoção à saúde da mulher referendada pelo documento emanado do Cairo, da Conferência de População e Desenvolvimento (1994, p.9), onde se lê: "o Governo brasileiro deve propor a criação de mecanismos globais de financiamento das políticas de desenvolvimento humano dentro da concepção de responsabilidade compartilhada. Estas devem ser conformadas numa perspectiva de assegurar o bem estar da população e a qualidade de vida (...)".

As ações da equipe envolvida com esta modalidade de assistência devem ainda estar centradas na melhoria da qualidade dos serviços, incluindo capacitação dos profissionais da área específica e incorporando novas atitudes e posturas, tendo como referência a humanização e as relações de gênero.

A participação da enfermeira na equipe de profissionais que desenvolvem este trabalho ainda está incipiente - e neste estudo distanciada -, e é um fator que deve ser explorado, buscando o espaço necessário e a definição do seu papel na integração desses profissionais no atendimento à mulher violentada. A realidade detectada nos cenários da violência contra a mulher na sociedade e nas famílias é preocupante. Cabe-nos ampliar o conhecimento das bases legais associados ao Código de Ética Profissional para que conjuntamente possamos defender os direitos da mulher e grupos comunitários afins, e amenizar o sofrimento dessas mulheres em situações conflituosas e desesperadoras. Os profissionais de saúde também devem ser preparados para prestar assistência nessa área, numa abordagem que permita assegurar a atenção integral à saúde da mulher de forma humanizada e de qualidade.

Como citam Pereira e Mota (1996, p.1) em seu Manual para o estabelecimento de um serviço de atendimento nos casos de aborto previsto em lei: " a nossa motivação se deve ao fato de que em muitas ocasiões, apesar da vontade, e da necessidade premente por parte de profissionais de saúde em poder atender àquelas mulheres que precisavam interromper uma gravidez resultante de violência sexual ou por ter a vida em risco, tal não ter sido possível por não haver um serviço constituído para se proceder a um abortamento dentro da instituição, ou até mesmo em qualquer instituição local de saúde. Alguns grupos de rede nacional de saúde da mulher continuam trabalhando para instituir tais serviços em suas cidades e/ou estados, persistindo nesta tarefa". Isto mostra que a incidência de morbimortalidade materna como resultado de abortos clandestinos no Brasil são alarmantes e, segundo Alan Guttmacher Institute (AGI,1994), está próxima à cifra de 1,4 milhão por ano.

Em relação à problemática da demanda reprimida, Faúndes et al. (1997) descrevem a importância dos procedimentos que os hospitais deverão seguir em casos de solicitação da interrupção da gestação por estupro e risco de vida, relatando que: " os hospitais devem ter definido um procedimento para atender as solicitações de aborto legal e, no mínimo, saber para onde encaminhar a mulher e que orientações gerais fornecer".

Outro importante fator que contribui para o acréscimo de óbito materno é a condição social das subpopulações em estado de pobreza, que, sem acesso ao atendimento adequado, buscam resolver seus problemas por vias transversas e arriscadas. Alguns programas governamentais tentam concentrar esforços isolados e episódicos. Entretanto, enfatiza Moura (1997, p. 42), que: " nada de significativo e consistente ocorreu para garantir mudanças na qualidade de vida dessa população; os graves problemas sociais e econômicos persistem e o direito à saúde, por isto, ainda permanece no plano da retórica".

 

METODOLOGIA

Estudo retrospectivo e prospectivo, com abordagem quanti-qualitativa. Utilizou-se para o estudo retrospectivo, o levantamento de 1600 boletins de ocorrências de violência sexual, no período de 1996 a 1997; com 83 casos de estupro nas 15ª e 19ª Delegacias de Polícia da Ceilândia e 234 registros na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher /DEAM. No Hospital Materno-Infantil de Brasília (HMIB) foram atendidas sessenta (60) mulheres vítimas de estupro, resultante ou não de gravidez, no período de agosto de 1996 a dezembro de 1998. O estudo prospectivo ocorreu com oito (08) mulheres voluntárias vítimas de estupro que participaram das entrevistas no HMIB, dezenove (19) profissionais de saúde do HMIB e quarenta e três (43) profissionais de segurança das 15ª e 19ªDelegacias Policial, além da observação participativa. Foi utilizado o consentimento informado para proceder às entrevistas com as mulheres e resguardar a identidade, conforme acompanhamento da Comissão de Ética da Pesquisa, anteriormente mencionado. Esta análise privilegiou aspectos do atendimento nos serviços em estudo.

 

ANÁLISE E DISCUSSÕES

O estupro é crime muito freqüente no Distrito Federal. Acontece ao longo de todo o ano e, na agregação de dados extraídos dos boletins das delegacias estudadas, a média de ocorrência, nos anos de 1996 a 1997, evidencia dois picos: abril e agosto, não tendo relação entre a variação climática e estação do ano, segundo pesquisadores como Bandeira (1996) e Charam (1997). Já em relação ao horário de freqüência maior da agressão não há dúvida: 71,8% dos casos registrados aconteceram à noite, o que guarda relação com as dificuldades de locomoção e a carência dos meios de transportes no retomo do emprego dessas mulheres e um menor número de transeuntes nas vias públicas. No que concerne ao local, dos 234 casos verificados da DEAM, a via pública é preferida em cerca de 82 casos (35%), seguida da própria residência com 62 casos (26,5%); além de 51 em local ermo (21,9%), 16 casos em área rural (6,9%),

07 em motel (2,9%), 04 em setor comercial (1,8%), 02 em área escolar (0,8) e 10 (4,2%) casos não foram informados. Estes dados mostram que a via pública e a possibilidade do ato ser testemunhado não intimidam o agressor. Este resultado é importante para a programação de ações de repressão ao crime, pois uma maior vigilância à noite em determinados lugares tipificados como de risco, aliada a outras estratégias educativas, pode influir na ocorrência do estupro no Distrito Federal.

O estudo retrospectivo das ocorrências realizado neste período (1996/1997) mostra ainda que, apesar de todo o conflito que gera a denúncia para as mulheres, a maior parte das ocorrências não chegou a transformar-se em inquérito policial, sendo portanto arquivadas. As justificativas apontadas para isso é o fato de o estupro ser um crime de ação pública condicionada à representação da vítima, o que muitas vezes faz com que ela própria, sob influência das dificuldades psicológicas decorrentes do trauma da violência, aliado aos preconceitos sociais, familiares, culturais e/ou religiosos, decida pelo arquivamento da "queixa".

Da mesma forma, a ritualística que as mulheres têm que cumprir para conseguir acessar o serviço de atendimento ao aborto legal é penosa e longa, necessitando disponibilidade de tempo, dinheiro para deslocamento e exposição dos profissionais de segurança e de saúde. Igualmente as justificativas apresentadas é o fato da própria condução do processo criminal ser demasiadamente burocratizado e lento, tendo a vítima que se sujeitar a comparecer na mesma delegacia em vários momentos, ou ser encaminhada a diferentes locais. O reconhecimento do autor é realizado de forma empírica e subjetiva, por estar estritamente vinculado à vítima e ao retrato falado do estuprador.

As histórias relatadas pelas mulheres, no estudo prospectivo evidenciam a indignação, insegurança, desconfiança e o medo destas vítimas após a violência sexual. Mesmo a pesquisa não tendo gerado informações quantitativas sobre o número relativo de mulheres violentadas que não denunciam ou não procuram qualquer assistência, constata-se que entre as que buscam qualquer amparo institucional o fazem precocemente.

As entrevistas com os personagens envolvidos nesta problemática evidenciam, via de regra, desinformação e preconceito no tratamento das mulheres. Isto é fortemente lembrado na referência que as mulheres fazem quando falam das delegacias comuns. A delegacia especializada (DE AM) é bem lembrada por elas como o lugar onde tiveram apoio. No entanto, a observação participativa realizada nas delegacias permitiu caracterizar precariedade nas instalações físicas e no atendimento: não há privacidade para a vítima falar sobre o que lhe ocorreu além do que, ali também está posta, a desconfiança de que as mulheres estejam dizendo mentiras.

Há evidente subregistro das notificações e, para explicar esta questão, vem a dificuldade que as mulheres têm de retomar a lembrança do fato, a vergonha e a indignação, que sempre prevalecem após a experiência dramática. Mas pelas depoentes a impunidade dos agressores é o principal fator que desestimula o ato da denúncia.

Entre as mulheres que notificaram a ocorrência do estupro, a grande maioria o fez precocemente, ou seja, nas 24 horas subseqüentes ao fato. Entretanto, a falta de encaminhamento oportuno para os serviços de saúde claramente contribui negativamente na qualidade e na eficácia do atendimento na prevenção da gravidez e doenças sexualmente transmitidas. No entanto, entre as que demandaram o serviço de atendimento ao aborto legal, são muitas as que só procuraram as delegacias para realizarem as suas denúncias depois de constatarem a gravidez. A chegada tardia inviabiliza o procedimento de interrupção da gravidez que, pelas normas do serviço, só é realizada até a 12ª semana gestacional. Esta rotina não foi ainda reajustada à recente norma técnica para atendimento à violência sexual que o Ministério da Saúde adotou, definindo a possibilidade de interrupção até a 20ª semana, restringindo o processo.

Especificamente sobre as questões de saúde que estão presentes na violência sexual contra mulheres, a pesquisa mostrou que, apesar de inaugurado há mais de um ano, o serviço de atendimento ao aborto legal, inserido no Programa SOS - Mulher no Hospital Materno-Infantil de Brasília (HMIB), ainda não é do conhecimento da maioria dessas mulheres. O mais grave é que elas nem mesmo sabem que têm direito a uma assistência pré-natal, psicológica, medidas preventivas para as doenças sexualmente transmissíveis e, caso o estupro resulte em gravidez, o aborto legal.

Do total das sessenta (60) mulheres violentadas atendidas no HMIB, 23 interromperam a gravidez e 37 não interromperam. Os motivos relacionados a esta última condição têm maior significado no acesso tardio da vítima ao serviço; além de outras falas, como apoio familiar e de cunho religioso. A faixa etária variou entre 17 e 22 anos, em maior incidência. Quanto ao estado civil, a maior parte era solteira, trabalhava fora, e o nível sócio-econômico mostrou uma renda familiar média oscilante entre 1 a 5 salários mínimos. Predominou a religião católica, seguida da evangélica. Das oito (08) entrevistadas, cinco (05) tinham o 2° Grau completo e as demais 1° Grau incompleto. O fato destas mulheres terem instrução talvez possa contribuir para a busca dos direitos de cidadania e de informações para o atendimento em saúde, incluindo o diagnóstico e a interrupção da gravidez.

Caracterizando o perfil dos sujeitos da pesquisa, verificou-se que os profissionais de saúde estão pouco comprometidos com a assistência à mulher violentada, exceto aqueles que trabalham no Programa SOS - Mulher Aborto Legal. Embora se perceba nos depoimentos verbalizados pelos profissionais o interesse na participação nesse programa, outras falas refletiram de fato os preconceitos e o desinteresse na integração do programa. Isto se verifica por ser este ainda um programa vertical, não integrado ao serviço da Gineco-obstetrícia no HMIB, e perpetua o isolamento e a discriminação dos profissionais do referido programa.

As mulheres referem-se positivamente ao atendimento no HMIB e na DEAM, enquanto o IML é tido como insatisfatório e desintegrado do processo. O preconceito acerca do serviço de atendimento ao aborto legal fica evidenciado na forma como os demais profissionais do HMIB referem-se aos profissionais que nele trabalham.

Em relação aos profissionais de segurança, demonstraram boa receptividade na participação da pesquisa, embora deixassem preocupações. A observação participativa e os depoimentos possibilitaram mostrar a falta de compromisso profissional no que se refere ao interesse, motivação e individualidade no atendimento específico às mulheres. Prevalece o desconhecimento entre os profissionais de segurança pública da existência dos serviços de referência à saúde e de apoio às mulheres vítimas de violência sexual. Percebe-se que a maioria dos profissionais possui curso superior, mas isto não interfere de forma positiva nas opiniões manifestadas sobre a violência sexual e as mulheres, tampouco no atendimento requerido.

A observação participante nos locais de atendimento às mulheres permitiu também uma análise em que se verificou nas delegacias, como porta de entrada para a ação institucional de amparo, que não têm como rotina alguma preocupação com os riscos à saúde ou gravidez que decorrem do ato de estupro. Assim sendo, mesmo recorrendo às delegacias precocemente, as mulheres chegam ao serviço de atendimento ao aborto legal em idade avançada da gestação, o que impede a assistência e orientação quantos aos procedimentos necessários ou medidas preventivas à gravidez pelas normas adotadas no serviço.

 

CONCLUSÃO

A intenção deste estudo foi o de avaliar o atendimento realizado no Distrito Federal para as vítimas de violência sexual que têm risco ou confirmação de gravidez. Considerando os objetivos do estudo e abordagem metodológica apresentados, estas conclusões pretendem avançar na formulação de algumas recomendações e informações encontradas no sentido de melhorar e aperfeiçoar esses serviços.

Desta forma, espera-se que os resultados obtidos possam estimular pesquisas e reflexões de outros pesquisadores e estudantes sobre a questão polêmica e controvertida do atendimento às mulheres vítimas da violência sexual e da participação da enfermeira nesse contexto. Apresentar-se-á algumas das principais conclusões, resultado do discurso dos atores envolvidos (mulheres e profissionais), na perspectiva de contribuir para a ampliação e melhoria da qualidade do atendimento e humanização da atenção à mulher vítima de estupro.

Este estudo evidenciou profundo grau de discriminação vivenciado pelas mulheres vítimas de estupro. Essa discriminação parte de uma forma geral, da própria família, da sociedade, dos profissionais e das instituições que as atendem. Os resultados apresentados, embora em universo limitado, permitiram extrapolar a reflexão e os encaminhamentos, numa visão prospectiva e abrangente.

Observou-se dificuldades e burocracia nas instituições estudadas (15ª, 19ª delegacias e DEAM) ao acesso dos pesquisadores e bolsistas na obtenção das ocorrências, em virtude da necessidade de serem resguardadas e mantidas em sigilo judicial, o que representaria um crime de ação pública, caso fossem expostas. Igualmente, a falta de informatização, as precárias condições dos equipamentos em uso e a reduzida infra-estrutura nas delegacias pesquisadas, dificultaram uma melhor caracterização do perfil sócio- cultural dessas vítimas por falta de registros, no estudo retrospectivo.

Na implementação deste estudo, constatou-se que existe um grande intervalo entre a data do fato, do registro de ocorrência e a chegada no hospital, prejudicando ou retardando seu comparecimento nas instituições de segurança e/ou de saúde. Isso dificulta o seguimento que deveria ser dado à mulher e à sua conduta, na prevenção de uma possível gravidez e a possibilidade de optar pelo aborto legal, em tempo hábil. Este fato contribuiu para uma reflexão em relação às questões do atendimento à essa mulher, uma vez que a quantidade de queixas não corresponde ao número de vítimas apresentadas no período analisado, o que nos infere a uma possível demanda reprimida. Pode-se inferir um alto grau de subnotificações de ocorrências de violência sexual no Distrito Federal, o que deve merecer estimulo das mulheres vitimadas para realizá-lo.

Na observação feita ao atendimento realizado nessas delegacias, sobressai o fato da ausência de privacidade mínima para o acolhimento das mulheres que procuram o serviço. No mesmo nível de qualidade estão os profissionais diretamente responsáveis pelo atendimento, em geral, restritos aos aspectos criminalísticos em detrimento do humanístico.

A ausência constatada de anticoncepção de emergência, ainda nas delegacias a desinformação dos profissionais da segurança pública e de saúde sobre a possibilidade deste recurso, são situações que claramente contribuem de forma negativa na qualidade e eficácia do atendimento às mulheres vítimas de estupro no DF. Quanto ao HMIB essa prática da utilização da "pílula do dia seguinte" já vem sendo orientada desde que a mulher esteja dentro do prazo de 72 horas após o estupro e que tem acesso ao serviço. Mas esse contingente não tem ainda significado estatístico condizente às necessidades.

A recente indicação de uso de medicamentos na prevenção da SIDA, administrados imediatamente à relação de risco de contaminação, vem sendo difundida por diversos setores, mas ainda requer a necessidade de repensar estratégias que possam difundir e avaliar estas questões para os casos de violência sexual.

Observou-se uma precária divulgação e informação sobre os direitos sociais das mulheres entre as mulheres e os profissionais da segurança e da saúde. Isso fica explícito no desconhecimento do próprio conceito de estupro, o direito de denúncia e opção pelo aborto legal em serviço público. Nestes casos, verificou-se a falta de difusão de informações e de comunicação tanto em relação as vítimas de estupro como para os próprios profissionais das diferentes instituições estudadas.

Constatou-se que há uma efetiva desarticulação entre as instituições de segurança e de saúde, e os procedimentos utilizados para a melhoria da assistência dos serviços prestados à essa clientela merecem reflexões. Outro problema relaciona-se à possibilidade de o serviço estar restrita a única modalidade de procedimento, o que se reflete na necessidade de limitar a idade gestacional para 12 semanas.

As condições físico-ambientais de trabalho dos profissionais das delegacias não condizem com a necessidade do atendimento às mulheres violentadas que procuram esse serviço. A pesquisa mostra que falta privacidade para atendimento às vítimas durante os depoimentos nas delegacias.

Soma-se ao fato de que muitos profissionais que lidam diretamente com essas mulheres vítimas de estupro desconhecem os Programas existentes no DF e, portanto, os métodos contraceptivos de emergência e o Programa SOS-MULHER (HMIB). Agreguese a isso o preconceito social, os valores morais e religiosos que interferem diretamente na orientação e encaminhamentos às vítimas. No mesmo nível de qualidade estão os profissionais diretamente responsáveis pelo atendimento, em geral, restritos aos aspectos criminalísticos em detrimento do humanístico. O encaminhamento para a saúde não é rotineiramente realizado, tendo a equipe de pesquisa contato com profissionais que atendem às mulheres nas delegacias das cidades satélites que não sabiam da existência do serviço no HMIB.

De forma geral, o atendimento às mulheres vítimas de violência sexual necessitam de normas, condutas e rotinas institucionais e de maior articulação entre as diversas instituições de porta de entrada (delegacias) com os serviços de saúde. As normas e rotinas hoje existentes não são adequadamente difundidas entre as instituições envolvidas nem entre a própria equipe da instituição que a cria.

 

BIBLIOGRAFÍA

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