Volume 3, Número 2, Mai/Ago - 1999
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este estudo, realizado na perspectiva da história social, tem como objetivo analisar o processo de invenção e de atualização de tradições nativas, pelas dirigentes da Missão Parsons, como estratégia de luta simbólica pela visibilidade e reconhecimento da enfermeira diplomada brasileira.
A missão de enfermeiras americanas, patrocinada pela Fundação Rockfeller e chefiada por Ethel Parsons, foi enviada ao Brasil com o objetivo de promover as inovações requeridas pelo Departamento Nacional de Saúde Pública, consideradas necessárias à efetivação da Reforma Carlos Chagas, e que aqui permaneceu por uma década (1921-1931).
A nova concepção de saúde pública, bem como a participação dos sanitaristas nas questões de saúde do país, indicaram a necessidade de um novo agente, cujas disposições pessoais e profissionais viabilizassem tal reforma, no sentido de complementar o trabalho médico. As formas de inserção desse novo agente decorreu da luta simbólica das enfermeiras americanas, no sentido de construir a imagem de uma enfermeira solidamente preparada, contrariando a expectativa de grande parte dos médicos do DNSP, que apenas desejavam resolver os problemas mais prementes de sua prática quotidiana. Essa luta teve como objeto a formação de uma identidade homogênea, através da imposição de um novo habitus profissional, cuja palavra de ordem era a disciplina rigorosa.
Com a criação da Escola de Enfermeiras do DNSP, em 1923, as americanas transplantaram para o Brasil um modelo de enfermagem que pode ser denominado, com propriedade, de anglo-americano. Tendo como centro difusor a escola de enfermeiras, foi desde logo iniciada a invenção das tradições, explicitadas em "símbolos rituais, de inspiração religiosa e militar, adaptados de escolas americanas, como modo de inculcação da hierarquia e da disciplina e de favorecer a construção de uma identidade nativa de enfermeira, contudo indissociável de suas figuras fundadoras, inclusive no que se refere aos aspectos étnicos" (PERES et alii, 1998, p. 72-74 e BARREIRA, 1998, p.14).
O recorte temporal do estudo engloba o período de 1923 a 1928, que corresponde às duas primeiras gestões das diretoras americanas na escola de enfermeiras, uma vez que estas representaram um marco, no que diz respeito à implantação e consolidação da nova escola feminina. A previsão era a de que essas realizações, operadas durante as gestões das enfermeiras americanas Claire Louise Kieninger e Loraine Geneviève Dennhardt (1923-1928), correspondessem ao término do trabalho da Missão no Brasil.
Este estudo tem como referência teórica principal o pensamento de Pierre Bourdieu, que estuda a configuração e origem dos diferentes espaços sociais, as hierarquias e as lutas simbólicas entre os agentes no interior desses espaços, analisando de modo concreto as relações dialéticas entre as estruturas e o habitus dos agentes (BOURDIEU, 1989, p.60).
As fontes primárias incluíram documentos do Centro de Documentação da Escola de Enfermagem Anna Nery, como: fotografias, documentos de caráter oficial e jornais da época e as secundárias, bibliografias referentes à história da enfermagem e ao contexto histórico social brasileiro da época.
A FUNDAÇÃO: GESTÃO DE CLAIRE LOUISE KIENINGER (1923-1925)
Claire Louise Kieninger foi convidada por Ethel Parsons para organizar a Escola1. Na gestão de Kieninger, a invenção de emblemas e insígnias, hinos, rituais e atos públicos, discursos e declarações à imprensa foram utilizados como armas na luta simbólica pelo conhecimento e reconhecimento social da enfermeira.
A 19 de fevereiro de 1923 foi inaugurada a Escola de Enfermeiras, instalada provisoriamente num prédio alugado, contíguo ao Hospital Geral da Assistência2. Para o início do curso, estavam presentes 13 alunas. Esse dia ficou conhecido como o "dia das benvindas" pois, "naquela ocasião, a diretora que não falava português, fez a leitura de uma saudação concluindo: sejam benvindas" (SAUTHIER, 1996, p.127).
A duração do curso era de dois anos e quatro meses, em regime de internato. Os quatro primeiros meses do curso correspondiam a um período de experiência no qual, em qualquer tempo, a aluna poderia ser desligada do curso caso fosse constatada alguma incapacidade. Após esse período ocorria o primeiro evento de grande força simbólica: a cerimônia de "Recepção de Touca" que representava a integração efetiva da aluna ao corpo discente. O significado atribuído à touca era o domínio de si mesma e a devoção à causa da enfermagem. Tal cerimônia reflete a luta pelo monopólio da nomeação legítima, por meio das quais os agentes procuram impor a sua visão das divisões do mundo social e da sua posição nesse mundo (BOURDIEU, 1989,p.146).
A formatura3 da primeira turma de enfermeiras brasileiras, com 15 formandas, denominadas "as pioneiras", foi motivo de diversas comemorações de natureza religiosa, profissional e social que duraram três dias. Em 19 de junho de 1925, dia de sábado, foi oficiada uma missa solene, realizada a cerimônia de recepção de diplomas e o juramento profissional e ainda um baile de gala. No dia 20 de junho, domingo, foram inaugurados no internato da escola os bustos de Carlos Chagas e de Claire Louise Kieninger e uma placa em homenagem a Ethel Parsons. Além disso, no dia 21 de junho, segunda-feira, uma dama da sociedade ofereceu em seu palacete um chá em homenagem às recém-diplomadas4.
A missa em ação de graças celebrada às 8:30 horas pelo arcebispo do Rio de Janeiro, d. Sebastião Leme, na matriz da Candelária, contou com as presenças de Ethel Parsons, Clara Louise Kieninger, das enfermeiras-instrutoras Louise Murray, Marie Haney, Lilian Trotteur, Bertie Mulsins Rice, Agnes E. Smith, Johanna Julia Schwartee Clara Walther Curtis. Compareceu também o embaixador do EUA, autoridades civis, militares, amigos e familiares das formandas. Consta que todas as formandas presentes comungaram5.
O registro fotográfico correspondente, foto n° 1, refere-se a uma pose do tipo grupai, registrada após a realização da missa solene em ação de graças pela formatura da primeira turma de enfermeiras, celebrada na matriz da Candelária, no Rio de Janeiro. Esta foto foi publicada (recorte de jornal sem identificação, do dia 19 de junho de 1925) para ilustrar a matéria intitulada "As Enfermeiras Diplomadas - Solenidade para entrega de diplomas". A foto em tela aparece no artigo com a seguinte legenda: 'd. Sebastião Leme, Sra Louise Kieninger e a primeira turma de enfermeiras diplomadas"6.
O confronto desta legenda com a análise das disposições espaciais evidenciadas no espaço visível da foto demonstra que a implantação da enfermagem moderna no Brasil aproximou espacialmente duas instituições (Igreja Católica Apostólica Romana e Fundação Rockfeller) que disputavam o mesmo espaço na área da educação e da saúde. O cenário da foto é a sacristía da igreja. Trata-se de um ambiente de grandes dimensões. As paredes que servem de pano de fundo apresentam duas janelas grandes fechadas e com cortinas escuras. O piso apresenta desenhos geométricos. Ao fundo da composição observa-se o confessionário. Na parede à esquerda da composição há uma enorme cruz que parece ser de madeira, ladeada por dois grandes quadros.
O grupo está disposto em forma de "L", formando um ângulo de 90°, em cujo vértice encontram-se as figuras centrais, o arcebispo d. Sebastião Leme, sentado em cadeira de espaldar alto, de sobrepeliz7 e barrete8, tendo à sua direita a diretora da Escola de Enfermeiras do DNSP, Claire Louise Kieninger, em traje de passeio completo, com chapéu, bolsa, sapatos de salto alto e luvas. Seus dois pés apoiam-se no chão, seus joelhos mantém-se unidos sob o vestido, e suas mãos enluvadas repousam sobre o colo. Neste mesmo plano, de pé e atrás das figuras centrais da foto, estão dois padres auxiliares e um coroinha.
No primeiro plano horizontal, estão sentadas e "em estado de graça" as quatorze formandas católicas que acabaram de comungar: Dulce Duarte Macedo Soares, Zulema de Lima Castro, Ilka Nobrega de Ayrosa, Noeli de Almeida P. da Costa, Maria do Carmo Ribeiro, Izaura Barbosa Lima, Josephina Rocha Brito, Olga Campos Salinas, Izolina Saldanha de Lossio, Eglantina Caldeira, Maria de Castro Pamphiro, Lucinda Coutinho de Araujo, Heloisa Maria Carvalho Velloso e Laís de Moura Netto do Reys. Em segundo plano, membros do corpo discente trajando os uniformes correspondentes. O momento é de regozijo e recolhimento. As autoridades civis do sexo masculino que estiveram presentes na cerimônia da missa já se retiraram, o que reforça a idéia de que "o processo de clericalização9do catolicismo brasileiro foi, ao mesmo tempo e necessariamente, o processo de sua feminização10 (NUNES 1997,p.491) A incorporação das mulheres pela instituição deu-se em virtude da pretensão de diminuir ou anular o poder do laicato masculino. No entanto, não representou um investimento das mulheres no exercício do poder sagrado e sim a reafirmação do seu estatuto subordinado. Além disso, a caridade, essência da doutrina cristã, encontrava expressão na atividade profissional da enfermeira, compreendendo nessa visão a parte que lhe cabia amenizar o sofrimento do ser humano (SAUTHIER, 1996, p. 165 e segs).
Na solenidade de diplomação, no Instituto Nacional de Música, realizada no dia 19 de junho de 1925, às 20:30 horas, presidida pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Affonso Pena Junior, compareceram o embaixador dos EUA, Edwin Morgan, e personalidades da sociedade. O programa era composto de vários momentos. Na abertura, enquanto se executava o Hino da Enfermeira11 , entravam no recinto, por ordem hierárquica ascendente, as visitadoras de higiene, as alunas juniores da classe de 1927, as séniores da classe 1926, as formandas, e finalmente, as enfermeiras da Missão. Em seguida ao discurso de Carlos Chagas, foi feita a benção dos diplomas e distintivos, por d. Sebastião Leme; o Ministro da Justiça fez a entrega dos diplomas; a entrega dos distintivos foi feita por Claire Louise Kieninger. Após o discurso da oradora da classe, Laís Netto dos Reys, para encerrar a solenidade, todos cantaram o Hino Nacional12.
O texto fotográfico que registra a sessão solene da formatura, foto n° 2, tem como cenário o salão nobre do Instituto Nacional de Música, situado no Rio de Janeiro. A leitura dos sinais relacionados à postura corporal (cinésica) dos integrantes da composição evidencia a homogeneidade do grupo, no que se refere à disciplina do corpo no espaço social: as formandas estão perfiladas, rosto sério, costas retas, pés unidos, braços ao longo do corpo, mãos relaxadas. A participação de d. Sebastião Leme, procedendo à benção dos diplomas, configura a luta da Igreja Católica pela hegemonia na formação de recursos humanos para a saúde. A aliança entre o Brasil e Estados Unidos está representada pelas autoridades brasileiras e autoridades de instituições americanas. No mesmo dia à noite, a Missão Parsons promoveu um baile nos salões do Clube Fluminense, ao qual compareceu a alta sociedade carioca, mas da qual não foi localizado registro fotográfico13.
No dia seguinte ao da formatura, foram inaugurados os bustos de Carlos Chagas14 e de Claira Louise Kieninger e uma placa em homenagem à Superintendente Ethel Parsons. O texto fotográfico, foto n°3, registra este acontecimento, realizado na tarde do dia 20 de junho de 1925, no internato da Escola. O cenário é o salão nobre do Internato da Escola, situado na rua Valparaíso n° 40, Tijuca, Rio de Janeiro. Em ambos os lados da linha média da composição, há uma porta dupla envidraçada cujos caixilhos são claros e que se encontram parcial ou totalmente aberta. Do lado direito do espectador, há uma luminária aplicada à parede. No centro da foto, cavaletes de madeira sustentam os bustos das figuras homenageadas. No chão, à frente dos cavaletes, há três arranjos de flores. Há um tapete grande no centro do piso, indicando tratar-se de um ambiente de grandes dimensões.
No centro da foto, figuram os bustos de Claire Louise Kieninger e de Carlos Chagas. Entre os bustos, vê-se aposta à parede a placa em homenagem a Ethel Parsons, (na qual constam os seguintes dizeres: "A Mrs Parsons - A grande organizadora do Serviço de Enfermagem Moderma no Brasil, Homenagem da 1ª Turma de Enfermeiras Brasileiras 19/06/1925".
A foto evidencia uma estratégia de manipulação simbólica para formação de uma identidade grupai, que tem em vista determinar a representação mental que os outros podem ter destas propriedades e de seus portadores. Na realidade, são lutas pelo monopólio de se fazer ver, de se dar a conhecer e de se fazer reconhecer (BOURDIEU 1989, p.112). É uma foto do tipo posada, no qual 27 pessoas (três homens e vinte e quatro mulheres) estão dispostas lateralmente, formando um semicírculo. A divisão da fotografia em três planos verticais revela que no centro da composição figuram os bustos de Carlos Chagas e de Clara Louise Kieninger sobre pedestais. A bandeira do Brasil recai sobre os ombros do busto de Carlos Chagas, deixando aparecer as últimas letras da legenda da bandeira. Sobre os ombros do busto de Kieninger repousa a bandeira dos Estados Unidos. Neste plano central estão Carlos Chagas (diretor do DNSP), Edwin Morgan (embaixador americano), Kieninger, (diretora da escola), Anita Lander (Instrutora das Alunas) e Josephina Rocha (pioneira).
Os atributos individuais dos componentes do grupo fotografado (no centro da foto) e as bandeiras dos respectivos países realçam as alianças existentes entre o Brasil e os Estados Unidos. Além disso, a articulação dos conteúdos do texto fotográfico e dos textos escritos possibilita a apreensão de outros significados. Deste modo, podemos articular a imagem da Bandeira Nacional, com um lema positivista, sobre o busto de Chagas, com o discurso de Marina Bandeira de Oliveira (turma de 25), o qual exalta os atributos intelectuais de Carlos Chagas e os beneficios extraordinários por ele realizados em prol do progresso do Brasil. Ao contrário, as palavras que a oradora dirige à Kieninger enunciam atributos sublimes como bondade, carinho, honestidade, dedicação, com ênfase nas qualidades morais.
"...a nossa Escola cumpre gostosamente o dever de salientar e apontar a abnegação rara, a distinção única, o caráter diamantino, a delicadeza excessiva, o porte fidalgo, a figura honesta, a dedicação extrema, a paciência evangélica, a cultura sólida, a bondade infinita, a tolerância máxima, os dotes altruísticos e a perfeição não comum de nossa Kieninger..."15
Deste modo, as figuras homenageadas representam os papéis atribuídos ao homem e à mulher na sociedade da época. Assim, podemos deduzir que a enfermagem assimilou os discursos masculinos dominantes, os quais determinavam como características femininas o cuidado, a sensibilidade e a vigilância, em decorrência do que as profissões femininas necessitariam ser apoiadas e controladas por homens. Neste sentido, "os ofícios novos, que foram abertos às mulheres, levaram a dupla marca do modelo religioso e da metáfora materna: dedicação-disponibilidade, humildade submissão, abnegação-sacrifício" (LOURO 1997, p.453), o que novamente nos lembra a figura ambígua da virgem mãe como modelo para as enfermeiras.
Dois dias após a formatura, a sra Jerônima Mesquita16 ofereceu um chá em honra das novas enfermeiras (foto n° 4). O documento que registra este evento social é uma foto cujo cenário é um salão do seu palacete; Um pouco à esquerda da linha média da composição há uma porta dupla envidraçada cujos caixilhos são claros, e que se encontra fechada e parcialmente encoberta por cortinas. No canto direito da foto aparece parte de outra porta, com as mesmas características. A direita e à esquerda de uma das portas, há luminárias aplicadas à parede. O piso parece ser de madeira, há dois tapetes grandes, indicando tratar-se de um ambiente de grandes dimensões. À esquerda do espectador, atrás do grupo, há um aparador de madeira escura e sobre ele um castiçal com uma vela.
Trata-se de uma pose grupai, no qual 10 pessoas (quatro homens e seis mulheres) estão dispostas em uma única fileira, em forma de arco. São elas, da esquerda para direita: Claire Louise Kieninger (diretora da Escola) Maria do Carmo Ribeiro e Zulema Lima de Castro "pioneiras"; Affonso Penna (ministro da Justiça); Carlos Chagas, (diretor do DNSP); Edwim Morgan (embaixador americano); George Strode (diretor da Comissão Rockfeller); Lais Netto dos Reys e Olga de Campos Salinas "pioneiras" e Ethel Parsons (Superintendente do Serviço de Enfermeiras). A distribuição espacial toma como figura central, em posição frontal, Carlos Chagas, autoridade sanitária máxima do país. Este encontra-se ladeado à direita pelo ministro da justiça e à esquerda pelo embaixador americano; ao lado deste, encontrase o representante da Fundação Rockfeller. As enfermeiras brasileiras homenageadas aparecem em duplas de cada lado das autoridades acima citadas. Olga de Campos Salinas é a única enfermeira disposta frontalmente. A anfitriã não aparece na foto, o que indica o caráter oficial do documento. Evidencia-se na foto a influência norte-americana na política de saúde e de formação de enfermeiras, pois há quatro integrantes da Fundação Rockfeller. As figuras que ocupam o espaço central da foto põe em destaque sua influência na política sanitária nacional. As enfermeiras norte-americanas, Ethel Parsons e Clara Louise Kieninger, estão estrategicamente posicionadas nas duas pontas do arco o que determina uma forma de distinção, pois aparecem em primeiro plano (situação esta que se repete em outras fotos).
Embora a homenagem fosse dirigida às enfermeiras brasileiras recém-diplomadas, a foto não as coloca em relevo. A ausência da anfitriã na fotografia parece indicar uma intenção de eternizar e divulgar o prestígio das fundadoras e das figuras da nova profissão feminina pelas autoridades governamentais à época. A disposição das pessoas no espaço fotográfico evidencia o que Bourdieu chama de estratégias de condescendência, através das quais os agentes que ocupam uma posição superior demonstram seu apoio a um outro grupo, assegurando o reconhecimento da distância pela denegação simbólica da distância, pois a fotografia favorece a aproximação fugaz dos agentes. Assim, podemos inferir que a intenção do grupo foi a de eternizar a presença de figuras importantes para a comunidade nacional e internacional de saúde pública e da enfermagem, indicando as pretensões de inserção, posicionamento e reconhecimento da profissão na sociedade brasileira. Desse modo, o texto fotográfico revela uma das estratégias de luta pela conquista de um espaço social por uma nova categoria profissional emergente.
A CONSOLIDAÇÃO: LORAINE GENEVIÈVE DENNHARDT (1925-1928)
A segunda diretora, Loraine Geneviève Dennhardt chegou ao Brasil em 18 de julho de 1925 e, após uma curta transição, assumiu a direção da Escola, em 25 de julho de 1925, cargo que ocupou até 26 de julho de 192817.
No plano pedagógico, "Dennhardt incorporou as recomendações do Relatório Goldmarck (1923), no sentido de uma melhor relação teoria-prática no currículo do curso de enfermagem, a exemplo dos EUA, resistindo aos insistentes apelos dos médicos, que desejavam suprir as deficiências de mão-de-obra no campo hospitalar" (SAUTHIER, 1996, p.143).
No entanto, as novidades mais espetaculares ocorreram no plano simbólico, a começar pela própria denominação da escola que, por influência da Cruz Vermelha Brasileira (PARSONS, 1926, apêndice, p. 2) adotou como patrona a figura de uma heroína que encarnava, ao mesmo tempo, os ideais religiosos e patrióticos. Assim, em 1926, a Escola de Enfermeiras do DNSP passou a chamar-se "Escola de Enfermeiras d. Anna Nery"18. No dia 20 de maio, 46° aniversário de sua morte, a Escola pela primeira vez promoveu uma romaria ao seu túmulo19, tradição que se manteve por quase meio século.
A adesão de Denhardt à ideologia da Missão se reflete na continuidade das estratégias de luta simbólica pela construção da identidade da enfermeira e pela ocupação do espaço social através dos emblemas, rituais e discursos e da continuidade na construção do habitus profissional (BOURDIEU, 1989, p. 119).
Fatores de grande visibilidade e repercussão foram a instalação definitiva da Residência e a inauguração do Pavilhão de Aulas da Escola. Desde a gestão anterior foram insistentes os reclamos das dirigentes da Missão no sentido da necessidade de uma residência definitiva para a Escola.
A foto n°5 tem como cenário o salão nobre do Internato da Escola, situado na enseada de Botafogo. Trata-se de uma pose coletiva, na qual 37 pessoas, 10 homens e 27 mulheres, estão dispostas em "L". Todos os participantes apresentam-se em trajes formais: os homens de terno e gravata, um militar fardado e as mulheres com toaletes ou uniformes de enfermeira. Apenas dois homens estão portando chapéus, polainas e bengalas, caracterizando o desuso de tais objetos. A figura central da foto é a da homenageada, Ethel Parsons, que segura o cartão de ouro, por ela recebido durante a cerimônia. Ela encontra-se ladeada por Carlos Chagas, diretor do DNSP, e por Raul Leitão da Cunha, diretor dos serviços sanitários do Rio de Janeiro e assessor de Carlos Chagas. Mais atrás e mais ao alto, o retrato de Ethel Parsons, preso à parede, em moldura oval da qual pendem, de cada lado, as bandeiras do Brasil e a dos EUA. Na foto não figura a diretora da escola Loraine Geneviève Dennhardt e a Instrutora das Alunas, Edith de Magalhães Fraenkel.
A articulação do tema da foto com a posição ocupada por Ethel Parsons no espaço fotográfico coloca em relêvo a distinção e prestígio que lhe é conferido, ao tempo em que consagra a importância da presença americana na efetivação da reforma sanitária da capital do Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O internato da Av. Rui Barbosa, o Pavilhão de Aulas e o Hospital São Francisco de Assis passaram a se constituir em monumentos-documentos da memória da enfermagem brasileira, capazes de produzir o que Bourdieu denominou de "efeitos de lugar", ou seja, na medida em que são apropriados pelos agentes / enfermeiras, constituem-se em propriedades que os situam e simbolizam no espaço social. E ainda mais, porque as estruturas do espaço físico apropriado são uma das mediações através dos quais as estruturas sociais se convertem progressivamente em estruturas mentais". Assim, "o espaço é um dos lugares onde o poder se afirma e se exerce... os espaços arquitetônicos cujas injunções mudas se dirigem diretamente ao corpo...são tanto mais importante em razão de sua invisibilidade, da simbólica do poder e dos efeitos reais do poder simbólico" (Bourdieu, 1997, p.160-163).
Um traço marcante das gestões das diretoras americanas na escola é a (re) invenção de tradições já institucionalizadas em seu país, pela repetição, ano após ano, de solenidades que aglutinavam pessoas de diferentes setores da sociedade. Esses rituais simbólicos, tinham a função de fortalecer o sentimento de unidade interna e de transmitir uma imagem homogênea do grupo, dando visibilidade à nova profissão, em busca do conhecimento e reconhecimento social.
A implantação do novo modelo de enfermagem se fazia acompanhar por um conjunto de estratégias controladoras que homogeneizavam atitudes e gestos, ao tempo em que ratificavam as distâncias sociais. O uniforme das alunas e enfermeiras sempre esteve carregado de valor simbólico, uma vez que representava a mística da enfermagem encarnada como valor universal e se constituía ao mesmo tempo em uma estratégia de igualdade e diferenciação do grupo. A primeira porque significava por parte de quem usava o sentido de pertença ao grupo, conferindo regalias e obrigações, e a segunda, demarcava o espaço ocupado pelos agentes dentro do grupo.
A utilização dos meios de comunicação como programas radiofônicos, fotografias publicadas em jornais acompanhadas de artigos, não apenas propiciaram o reconhecimento social da enfermeira como também determinaram as relações de poder dentro do espaço social, pois as relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas relações e que podem permitir acumular poder simbólico.
Esta promoção de figuras e feitos da enfermagem tinha como propósito e resultado a apropriação (como no caso de Carlos Chagas, o pai fundador da enfermagem) ou a construção de figuras míticas da enfermagem (como as dirigentes da Missão Parsons e Rachel Haddock Lobo).
Estratégias de manipulação simbólica, ou seja, de "representações em coisas" como a invenção de emblemas, insígneas, hinos, rituais e atos públicos, discursos e declarações à imprensa pretendiam determinar a impressão que os outros deveriam ter destas propriedades e de suas portadoras, visando a criar representações mentais e manifestações sociais conforme as propriedades assim apresentadas (BOURDIEU, 1989, p.112).
Com efeito, o que estava em jogo nesses primeiros anos da Escola era o poder de impor uma visão de mundo legítima através da luta pelo monopólio de fazer ver, de dar a conhecer e de se fazer reconhecer (BOURDIEU, 1989, p. 112).
Vale lembrar, contudo, que se a presença e interferência das enfermeiras americanas se revestiu de um caráter impositivo de uma visão de mundo hegemônica e portanto considerada legítima, constituindo-se assim em uma violência simbólica, por outro lado contribuiu para a valorização da mulher na sociedade brasileira e para o reconhecimento social da profissão de enfermeira diplomada, primeira categoria essencialmente feminina a ingressar no campo da saúde.
Vale ainda comentar que a utilização das fotografias, em seus aspectos tanto visíveis como invisíveis, permitiu que esta pesquisa chegasse a produzir resultados novos, os quais, acreditamos, não teriam sido possíveis com a exploração apenas de documentos escritos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1.BARREIRA, Ieda de Alencar. Contribuições da historia da Enfermagem brasileira para o desenvolvimento da profissão. Conferência do concurso de professor titularEEAN/UFRJ, 1998. (Mimeog.)
2.BOURDIEU. Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
3.Efeitos de lugar in Bourdieu (org) A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997.
4.FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.
5.HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas 1850-1937.São Paulo: Brasiliense, 1981.
6.HOBSB AWN, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
7.LE GOFF, J. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
8.LEITE, Miriam L. Moreira. Retratos de Família: Leitura da fotografia histórica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993.
9.NUNES, Maria José Rosado in PRIORE, Mary Del e B ASS ANEZI, Carla. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
10.PARSONS, Ethel. A enfermagem moderna no Brasil. In: Exposições e relatórios. Rio de Janeiro, 1927. Localizado no Centro de Documentação da Escola de Enfermagem Anna Nery / Universidade Federal do Rio de Janeiro.
11.PERES, Maria Angélica de Almeida, FALLANTE, Barbara de Souza, BARREIRA, Ieda de Alencar. Significado dos uniformes da enfermeira nos primórdios da profissão. In: Colóquio PAN-AMERICANO DE ENFERMAGEM, 6, Ribeirão Preto, maio, 1988. Anais... Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/Universidade de São Paulo, 1988.
12.SANTOS, Tânia Cristina Franco. A câmera discreta e olhar indiscreto: a persistência da liderança norte-americana no ensino da enfermagem na capital do Brasil (1928-1938). Rio de Janeiro: UFRJ, 1998 Tese (Doutorado) - Escola de Enfermagem Anna Nery / Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1998.
13.SAUTHIER, Jussara. A missão das enfermeiras norte-americanas na Capital da República 1921-1931. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. Tese (Doutorado) - Escola de Enfermagem Anna Nery / Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996.
1. Kieninger graduara-se pela Escola de Enfermagem do Hospital Luterano de St Louis-Missouri, fora assistente da diretora da escola de enfermagem do Hospital St Joseph-Missouri, por dois anos, e a seguir diretora da escola por onde se graduara. Atuara como enfermeira militar, por dois anos e dois meses, na Força Expedicionária Americana, na França, durante a Primeira Guerra Mundial, trabalhara no campo de saúde pública em Nova York, fizera cursos de enfermagem de saúde pública no Canadá e de administração de escolas no Massachussetts General Hospital em Boston (Sauthier, 1996, p. 122-123).
2. Localizado na rua Itaúna n° 399.
3. Este acontecimento foi publicado nos jornais da época. Artigo intitulado "A Primeira Turma de Enfermeiras Brasileiras" e artigo intitulado "As Enfermeiras Diplomadas" Localização: UFRJ, EEAN, PA, Cd, Mód. A, does 52 e 53, cx 7, 1925.
4. UFRJ, EEAN, PA, CD, Mód. A, does 52 e 53, cx 7, 1925.
5. Luiza de Barros Thenn, que não era católica, como estava viajando não pôde comparecer à cerimônia.
6. Localização: UFRJ, EEAN, PA, CD, Cx 07, Doc 53, 1925.
7. Vestimenta, espécie de mantelete, com ou sem mangas, que os padres vestem sobre a batina, em certas cerimônias da Igreja.
8. Cobertura quadrangular para a cabeça de clérigo.
9. "A partir da metade do século XIX, alguns bispos se esforçaram no sentido de colocar ordem na igreja do Brasil. No entanto, é apenas depois de 1889, com a proclamação da República e a separação legal entre a Igreja e o Estado, que o processo de recomposição institucional tem lugar. Um dos elementos fundamentais dessa reforma é o processo de "clericalização " (sistema ou tendência em que o clero ocupa-se dos negócios públicos e tende a fazer predominar sua influência) do catolicismo brasileiro" (Nunes, 1997, p. 491).
10. "A necessidade de um público dócil às novas normas torna as mulheres um alvo privilegiado da açào da Igreja. A partir de então, esta desenvolve projetos específicos, dirigidos à população feminina católica, com o intuito de incorporá-la ao seu projeto reformador. Criam-se asssociações femininas de piedade, desenvolvem-se movimentos religiosos nos quais o concurso das mulheres ¿fundamental" (Nunes,1997 p. 491).
11. Letra de Maria Eugênia Celso e música de Eduardo Souto.
12. Recortes de jornais. Localização: EEAN, CD, mód A, cx 07, doc 52 e 53, 1925.
13. Localização: UFRJ, EEAN, PA, CD, Cx 07, Doc 53, 1925.
14. O busto de Carlos Chagas encontra-se hoje exposto no hall de entrada do Pavilhão de Aulas da EEAN, mas o destino do busto de Clara Louise Kieninger é ignorado.
15. Discurso de Marina B. de Oliveira. Localização: UFRJ, EEAN, PA, CD, Mód A, Cx 44, Doc 02, 1925.
16. Jerônima Mesquita, mencionada em vários documentos, de família de fazendeiros de Minas Gerais, freqüentava a alta sociedade, dedicava-se à filantropia, pertencia ao grupo SOS (Serviço de Obras Sociais), era colaboradora direta de Bertha Lutz na Federação Brasileira para o Progresso Feminino, e grande incentivadora da enfermagem (Hahner, 1981, p. 117).
17. Ao terminar seu contrato, em 26 de julho de 1928, Denhardt partiu para os EUA, assumindo, naquele país, a direção da Lincoln School for Nurses, em Nova York.
18. Decreto n° 17.268 de 31 de março de 1926.
19. Cemitério São Francisco Xavier, no bairro do Cajú, Rio de Janeiro.