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Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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Ministério da Educação
CAPES

Volume 3, Número 1, Jan/Abr - 1999

INTRODUÇÃO

O problema que estudamos relaciona-se com a preocupação demonstrada por CAMPOS (1989, p. 46-49), para quem os profissionais de saúde têm "a capacidade de proceder como sujeito social em diferentes ocasiões" e enquanto "atores políticos" são capazes de "inviabilizar uma dada política de saúde". Acreditamos que, na enfermagem, tal capacidade seja influenciada por vários aspectos, tais como: a capacidade de organização das diferentes categorias profissionais; a sua característica marcadamente feminina; os seus diferentes objetos de trabalho e o conflito decorrente deles; o ensino hospitalocêntrico e biologicista, além da maneira pela qual os agentes de enfermagem entendem, implementam e participam das políticas para o setor saúde.

Para Castro (1992, p. 15-23), na implementação de políticas de saúde surgem interesses conflitantes pela participação de diversos atores. Muller apud Castro (1992) refere-se a "atores como aqueles indivíduos ou grupos que ocupam posição estratégica no sistema de decisões e que respondem, no processo de formulação de políticas, pelas funções de articulação do campo cognitivo e do campo de poder". Para a mesma autora, os atores principais envolvidos na implantação do Sistema Único de Saúde são: o Executivo Federal, os Conselhos (o Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde), o movimento sanitário, as associações profissionais, os sindicatos, as elites médico-universitárias, o setor privado hospitalar, a medicina de grupo, os seguros privados de saúde e as cooperativas médicas. Partindo desta caracterização, identificamos a ABEn- Associação Brasileira de Enfermagem como um dos atores envolvidos na implementação das políticas de saúde.

Barros e Silva (1990, p. 126-130), referindo-se ao processo de Construção dos Sistemas Locais de Saúde e à Enfermagem, enfatizam que a ABEn, como uma das principais entidades de enfermagem do País, vem participando não só das lutas específicas da categoria e da saúde como também das lutas mais gerais dos trabalhadores brasileiros, através de discussões em eventos e mobilizações. A guisa de recomendação, as autoras reforçam a posição da entidade como defensora do SUS e afirmam que "nessa direção torna-se fundamental para a Enfermagem Brasileira a compreensão do seu processo de trabalho e sua articulação com o processo de trabalho coletivo da saúde. Além disso, os trabalhadores de enfermagem devem comprometer-se, enquanto atores sociais, na transformação da realidade, e não se transformarem em simples recursos humanos, meros insumos necessários à produção dos serviços de saúde" (BARROS e SILVA, 1990, p. 129).

Embora a ABEn venha apoiando os princípios do SUS, esta pode não ter sido a posição de grande parte da categoria. Aqui vale ressaltar a afirmação de Goulart (1992, p. 18), de "que é diferenciada e assimétrica a maneira com que os diferentes atores sociais apreendem e 'representam' as instituições e as políticas de saúde...".

Diante deste problema, várias questões surgiram e algumas nos orientaram neste estudo, tais como:

Qual a concepção que os agentes de enfermagem da rede básica dos serviços de saúde do Município de Cuiabá fazem sobre os pressupostos básicos do SUS? Qual a visão desses agentes sobre o direito à saúde garantido pelo SUS?

A partir de então, foi traçado o objetivo principal do estudo: discutir a concepção que os agentes de enfermagem fazem sobre os pressupostos do SUS, destacando-se o direito à saúde. Estamos denominando pressupostos do SUS ao conceito ampliado de saúde1, à saúde como direito do cidadão e dever do Estado e à participação popular com o controle social dos serviços de saúde. Os dois primeiros como princípios recentes garantidos na legislação e o último, embora seja um tema recorrente nas propostas do setor saúde, assumem níveis de importância diferenciados em um contexto democrático.

O nosso objeto de estudo são, portanto, as representações sociais dos agentes de enfermagem sobre os pressupostos do SUS.

 

REFERENCIAL TEÓRICO

O campo teórico deste trabalho foi construído a partir dos estudos sobre cidadania realizados por TEIXEIRA (1987), SOUZA JR. (1987), BARRETO (1987), PAIM (1987) e COHN (1991); e das análises de CARVALHO e SANTOS (1992) e DALLARI (1995) sobre a Constituição Federal de 1988, Lei 8080, de 19/09/90, e Lei 8142, de 28/12/90. A relação da enfermagem com a política de saúde está embasada em textos dos Anais dos Congressos Brasileiros de Enfermagem realizados no período de 1977 até 1993.

A leitura desse referencial levou-nos a destacar a questão da cidadania, que só tem sentido se remeter o cidadão às aspirações do bem comum, que devem caracterizar a construção de uma sociedade mais justa. Desta forma, a busca do bem comum se faz também com a luta pela preservação dos direitos à saúde, através de políticas de saúde, que se situam dentre as políticas sociais.

As políticas de saúde enquanto políticas sociais, nas sociedades capitalistas, tratam de combater a doença num sistema que se encarrega de repô-la, mostrando a ambiguidade de representarem, ao mesmo tempo, conquista do cidadão e estratégias governamentais de atenuação das tensões sociais.

Para contextualizarmos o problema é preciso registrar que a década de 80 no Brasil se caracterizou por várias propostas de mudança para o setor saúde - Ações Integradas de Saúde - Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde - Sistema Único de Saúde - em que a participação de técnicos oriundos do movimento sanitário, nos diferentes níveis de governo, contribuiu para a sua implementação.

Os serviços de saúde, em nível municipal, a partir de 1986, procuraram organizar - se de acordo com os princípios da Reforma Sanitária, que foram garantidos na legislação específica para o setor (Constituição 1988, Lei 8080, de 19/09/90, e Lei 8142, de 28/12/90).

Para entendermos a questão da cidadania, precisamos considerar seus elementos a partir da divisão elaborada por Marshal (1967), que se constituem em três tipos de direitos: o político, o civil e o social. Estes elementos, frutos da evolução da Inglaterra, foram conquistados em épocas diferentes. Os direitos civis surgem no século XVIII e compreendem os direitos da liberdade individual. Os direitos políticos aparecem após a revolução do século XIX e devem ser entendidos como direito de participar do exercício do poder político. O terceiro elemento, gerando os direitos sociais, somente aparece no século XX: "o elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade" (..)"...Os direitos sociais incorporam-se plenamente à condição de cidadania, na medida em que a sociedade reconheceu a necessidade do Estado fornecer as condições mínimas de sobrevivência a todos os cidadãos"(Teixeira, 1987, p. 97- 98).

Já para os marxistas, a cidadania é identificada apenas "como um ingrediente do discurso ideológico da burguesia e teria a função de escamotear a realidade das desigualdades entre as classes através da equalização puramente formal na figura abstrata do cidadão" (Barreto - 1987, p.5).

Carvalho e Santos (1992, p.45) destacam alguns pontos básicos para a leitura e a prática da Lei Orgânica da Saúde, que significaram avanços para o setor, que são: a Saúde está contemplada dentre os direitos sociais (art. 6º da Constituição), sendo hoje considerada um direito publico subjetivo (art. 2º LOS); a Saúde passou a figurar como única atividade pública, socialmente útil, caracterizada constitucionalmente como de "relevância pública" (art. 197 da Constituição); houve determinação da participação da comunidade na formulação e gestão das ações e dos serviços de saúde; a municipalização das ações e dos serviços de saúde passou a ser tratada como prioridade na solução do macro -problema sanitário do País; e ainda, o conceito de saúde deixou de significar apenas serviços médicos assistenciais.

Em estudo realizado por Dallari (1995, p. 15-42), observamos que, no Brasil, a incorporação constitucional dos direitos sociais deu-se lentamente e que, até a Constituição de 1988, nenhum texto constitucional referia-se explicitamente à saúde como integrante do interesse da sociedade. Além disso, essa Constituição Federal não isentou qualquer esfera de poder político da obrigação de proteger, defender e cuidar da saúde. Seu art. 196, que trata da saúde enquanto dever do Estado, colocou-a sob a responsabilidade da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Outro fato importante, destacado pela autora na Constituição de 1988, é o conceito de saúde preciso e seu conteúdo detalhado.

Embora de incorporação gradual e lenta, o direito à saúde expresso no Capítulo da Seguridade Social da Constituição Brasileira de 1988 oferece instrumental jurídico necessário à sua aplicação, principalmente através de uma definição clara do que seja saúde, não permitindo que os governantes possam ignorá-lo e possibilitando que os cidadãos organizados tenham como garantílo.

 

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo de caso, de natureza qualitativa, realizado com agentes de enfermagem que trabalhavam na Secretaria Municipal de Saúde de Cuiabá, por um período maior ou igual a cinco (5) anos, por ocasião da coleta dos dados.

Nosso referencial metodológico baseou-se em Minay o (1992) que entende as representações sociais como "um termo filosófico que significa a reprodução de uma percepção anterior ou do conteúdo do pensamento. Nas ciências sociais são definidas como categorias de pensamento de ação e sentimento que expressam a realidade, explicam-na, justificando-a ou questionando-a" (MINAY0,1992,158). Elas são simultaneamente "ilusórias, contraditórias e verdadeiras", podendo ser consideradas valiosas "para análise do social e também para ação pedagógico-política de transformação, pois retratam a realidade (...)" mas "(...) não conformam a realidade e seria outra ilusão tomá-las como verdades científicas, reduzindo a realidade à concepção que os atores sociais fazem dela" (MINAYO, 1992,174).

Os dados foram obtidos através de entrevistas semi-estruturadas, gravadas e transcritas. Os sujeitos (20) foram escolhidos intencionalmente, procurando garantir a presença daqueles que possuíam uma vinculação mais significativa com a implementação do SUS no Município e com o problema investigado. Dos vinte (20) entrevistados, dezesseis (16) eram enfermeiros, dois (2) auxiliares, um (1) atendente e um (1) técnico de enfermagem. Do roteiro semi-estruturado, constaram questões que procuraram apreender a concepção dos sujeitos sobre a saúde, a avaliação deles sobre a implantação do SUS no Município e o seu entendimento de como o direito à saúde se inseria nessa implantação.

Na análise procuramos dar conta da relação existente entre a concepção dos agentes de enfermagem sobre o direito à saúde do cidadão e sua articulação com a política de saúde tanto no âmbito do Município como naquele garantido na Constituição de 1988.

A homogeneização dos discursos permitiu agrupá-los nos seguintes núcleos temáticos: o direito negado na prática dos serviços de saúde e o direito a ser conquistado.

 

AS REPRESENTAÇÕES DOS AGENTES

O discurso dos agentes de enfermagem foi organizado em duas categorias empíricas. A primeira evidencia a negação desse direito no dia-a-dia dos serviços de saúde e a segunda trata do direito ainda a ser conquistado.

 

O DIREITO NEGADO NA PRÁTICA DO SERVIÇO

Cohn (1991, p. 13), discutindo o direito à saúde na perspectiva das propostas de política de saúde no Brasil, demonstra que o Estado interferiu nesta questão de duas formas. A primeira, se responsabilizando "por ações de caráter coletivo de natureza preventiva no controle das endemias, e programáticas na atenção a grupos selecionados da população materno-infantil, tuberculosos, hansenianos e outros". A segunda, através do seguro-saúde, iniciado com as Caixas de Aposentadorias e Pensões - CAPs (Decreto-Lei n° 4682/23), passando pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões - lAPs, na década de 30, o Instituto Nacional de Previdência Social - INPS, em 1967, e o Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social - INAMPS, nas décadas de 70 e 80. Nesta modalidade, a atenção é individual, baseada na ação do médico e com finalidade curativa.

O direito à saúde esteve vinculado à segunda modalidade e, como contrapartida, à contribuição previdenciária paga pelos trabalhadores à Previdência Social. A população que não estivesse coberta pela Previdência Social teria a seu dispor os "serviços" dos centros de saúde.

Com as Ações Integradas de Saúde -AIS -(1983), o Sistema Unificado Descentralizado de Saúde - SUDS (1987) e o Sistema Único de Saúde - SUS (1990), procurou-se articular nos Centros de Saúde a atenção individual curativa -antes ligada à Previdência e compreendida como "direito", àquelas ações preventivas, programáticas, dispensadas à população descoberta previdenciariamente - entendida como "serviço".

Assim, as representações dos agentes refletem esta ambigüidade tanto por parte dos profissionais como por parte dos usuários, como podemos observar abaixo:

"A saúde como direito, a população não tem ainda muito claro isso, não tem muita consciência disso, e a gente, profissional também não tem. Porque o profissional acha que ele não está fazendo uma obrigação, está fazendo um favor, e quando é a população é que está pagando, que sai dos impostos, sai do próprio bolso da população, o atendimento que a gente tá dando (...) não é um atendimento bom ainda, e a população não reclama muito,(...) num reconhece como direito seu um serviço de boa qualidade, um atendimento digno ". (Enf. )

"(...) é um direito mas eu acho que a pessoa, por exemplo, eu enquanto cidadã também tenho que reivindicar este direito, eu acho que é uma relação que se trava aí, entre quem vai ofertar mas também o outro (...). E isso também eu não vejo na população; (...) este direito eu acho que não está claro pro cidadão também "'. (Enf. ) Com relação à eqüidade no acesso e à qualidade dos serviços de saúde, é importante citar o artigo de Faveret Filho e de Oliveira (1990, p. 257-283), no qual eles analisam a universalização desde as CAPs até o SUS. Para os autores, as mudanças que ocorreram neste período apontavam para universalização e eqüidade. A mudança das CAPs para os lAPs implicou numa ampliação dos benefícios dos empregados de uma empresa para uma categoria de trabalhadores. Aqui inicia a universalização, mas mantém a desigualdade de benefícios entre os diferentes lAPs. Com a criação do INPS, procura-se garantir a universalização e a eqüidade entre os segurados. Na década de 70, ocorreu a ampliação da base destes segurados, com a incorporação dos trabalhadores rurais, autônomos, empregadas domésticas, acarretando uma perda da qualidade dos serviços, expulsando da população usuária a classe média, que buscou junto aos serviços privados, principalmente as empresas de medicina de grupo, manter os padrões anteriores. Este fator se repete na vigência do SUS, saindo, além da classe média, trabalhadores mais organizados. Esta acomodação dos usuários permite uma racionalidade ao sistema, mantendo sua crescente desqualificação. Com a saída da camada que em tese pressionaria o setor por melhora dos seus serviços, correu-se o risco da "(...) perpetuação do circuito: má qualidade - expulsão de setores organizados; baixa atividade reivindicatória - má qualidade".

A universalização dos serviços de baixa complexidade tecnológica e as dificuldades concretas do Município de criar uma rede hierarquizada eficiente permite que em suas representações os sujeitos recriem a noção de direito à saúde, como o que colocamos a seguir:

"Então não existia mais, quem tinha carteirinha do INPS ia ser atendido, você teria que pagar, descontar de seu vencimento, prá você poder ter direito (...). Então acabava com isso, todo mundo passaria a ter direitos à saúde, certo; de uma forma igual. (...) era isso que tinha que ser, e que a gente passou na prática, você começou a ver que as coisas não aconteciam dessa forma. Que quem, que realmente tinha direito à saúde, que conseguia ser atendido, fazer os exames, que tinha resolutibilidade, mesmo, é quem tinha é Golden Cross, quem tinha Unimed, né, esses outros planos.(Enf.)

No texto abaixo, o seu autor demonstra a dificuldade de aliar na prática os direitos sociais, dentre eles a saúde, com núcleo civil e político da cidadania:

"(...) então essa questão da saúde enquanto direito, ela sai sim, agora o único problema que eu vejo é que nós temos uma tendência a restringir às questões das entidades organizativas, no trabalho delas de articulação realmente dessa comunidade de divulgação e discussão deste direito.". (Enf.)

 

O DIREITO O SER CONQUISTADO

Para conquista do direito à saúde, várias questões são importantes, mas aqui queremos destacar a concepção de saúde como o orientador da busca por esse direito.

A análise que propomos busca identificar a aproximação ou o afastamento entre a concepção saúde-doença, representada pelos agentes de enfermagem, com aquela expressa no Art. 3º da Lei 8080, de 19 de setembro de 1990, onde está explicitado que "a saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País" (CARVALHO e SANTOS, 1992, p.55).

Acreditamos que esta maneira de conceber a saúde possui um caráter estratégico, na medida em que permite integrar as lutas por saúde, no bojo das reivindicações mais gerais da sociedade.

A maioria dos sujeitos entrevistados (12) entende a saúde como o resultado do acesso a bens e serviços, como:

"Então, uma boa saúde seria assim,(...) um salário mais digno, que desse prá eles comprar melhor os alimentos, saber distribuir melhor, né, então seria, mais saúde com mais saneamento básico, né, e água tratada,(...) isso que é boa saúde, porque tendo essas condições a pessoa quase nem adoece". (Aux)

Como desdobramento dessa concepção, vamos identificar a relação dinâmica do processo saúde - doença, onde a concepção defendida na Lei 8080 é um ideal a ser atingido, que passa ainda por uma ênfase na garantia da vida e no atendimento à doença, como o próximo trecho:

"Bom, a questão da saúde, eu uso até o jargão, a questão da qualidade de vida. E um jargão mesmo, a gente tem que assumir isso, está no discurso dos teóricos e é isso prá mim, eu concordo até com o discurso deles, mas na prática a gente tem que entender saúde de uma outra forma, que é conseguir que as pessoas elas sobrevivam mesmo. (. ..)Se você pensar até do ponto de vista econômico, a pessoa ter condições de trabalhar prá se sustentar e sustentar as pessoas que dependem dela". (Enf.)

Na representação abaixo o autor alia o entendimento estratégico do processo saúde - doença à garantia da democracia.

"O atendimento médico prá mim é um reparo à saúde. Que a saúde seria um bem estar completo (...). Ter saúde é ter moradia, ter salário digno, é poder participar nas decisões, é ter lazer, é ter espaço prá fazer cursos, aperfeiçoar e se impor como pessoa, (...) ter liberdade de expressão, liberdade de ir e vir". (Téc.)

Aqui fica mais fácil identificar quais os problemas que a população enfrenta, entendendo problema enquanto uma diferença entre "o que é" e "o que deveria ser", partindo da perspectiva destes sujeitos entrevistados.

A representação a seguir foi uma das mais elaboradas, e se aproxima da forma como BREIHL (1990) aborda a questão, quando afirma que os problemas determinantes das doenças - talvez os mais importantes - se encontrem na dimensão social da vida, nos modos de organização da sociedade, nos padrões de trabalho e consumo dos diferentes grupos sociais.

"Bom, saúde prá mim, ela tem uma determinação social, eu acho que a saúde é um processo. Saúde/doença prá mim é um processo, você nunca está totalmente sadio ou totalmente doente, você pode até estar bem doente, mas totalmente sadio, não, isso é um processo, é algo dinâmico e que tem uma determinação social. (...)Entenda também, não é só a questão ocupacional, mas a relação toda que se trava no processo de trabalho que vai determinar o processo saúde/doença". (Enf.)

Para este sujeito, a prática até agora vivenciada pelos serviços de saúde está centrada numa concepção do processo saúde - doença muito biologicista, orientada para um atendimento individual. Embora considere a concepção proposta pelo Sistema Único boa, teme que, na demora de sua efetivação prática, o idealizado se perca no caminho de sua construção.

Observamos que, pelas suas representações, estes agentes, em sua maioria, recriam as concepções saúde - doença com base em situações objetivas e concretas; o que pode significar um dado positivo para implementação da proposta.

O direito denota uma obrigação do Estado para com os seus cidadãos como reconhecimento de sua cidadania, enquanto o "serviço" parece mais ligado a um favor, caridade prestada pelo poder público aos seus "carentes". Alguns dos sujeitos representaram o direito à saúde como inato ao cidadão e responsabilidade exclusiva do Estado, como no trecho a seguir:

"O direito à saúde é o direito de estar vivo, né. O direito à saúde é o direito do homem, eu acho que é o principal direito. Você sem saúde, você é limitado, e você limita você e limita sua família, limita seu grupo social, limita tudo. E esse direito, ele não pode ser questionado, é o Estado que tem que providenciar '. (Enf.)

Algumas falas associaram o direito à saúde como direito ao atendimento nos serviços, com eqüidade: "Do direito à saúde... por exemplo se ele chega numa unidade de saúde, ele tem o direito de ser atendido (...) a gente não pode discriminar". (Enf.)

E com disponibilidade e qualidade:

"Direito à saúde é isso, é bater numa porta e ela abrir, e te atender bem,(...) eu disse agora há pouco; assim como a gente tem feito, atender a todos iguais, sem olhar quem e sem escolher cara; porque esse negócio de escolher cara é barra." (Atendente)

O direito à saúde no texto Constitucional é entendido enquanto um avanço importante a ser legitimado pela população através da conquista, como no depoimento seguinte:

"(...) direito à saúde tem que ser conquistado, porque, que é dever do Estado a gente sabe, que é; que é dever do setor público a gente sabe que é, e eu acho que... que isso aí tá garantido agora, a... o direito deles, assim a saúde, é... vai ter que ser conquistado mesmo, e prá ser conquistado eu acho que tem que ser através de (...)organizações mesmo". (Enf.)

Além de ser conquistado pela sociedade civil organizada, necessita existir uma posição efetiva que valorize este direito, principalmente por parte dos trabalhadores de saúde, qualificando suas ações no cotidiano e não usando as paredes dos centros de saúde como espaços para propaganda de empresas privadas de saúde, entre outras. A representação que colocamos a seguir reforça bem este aspecto que defendemos aqui:

"Sabemos que o cidadão tem direito de usar dos seus bens como ele quer, né, porém a grande massa brasileira é pobre e conhecedores da importância que nós temos de contribuir com isso, com o sistema, que é o país que mais paga impostos, então nós temos que ter a clareza que temos essa saúde assegurada, paga por nós adiantado, né, então não justifica a gente querer e ainda alimentar essa questão da saúde privada". (Enf.)

 

CONCLUSÃO

Para Minayo (1992, p.73), na "práxis" da relação entre teoria e prática, observa-se que a "transformação de nossas idéias sobre a realidade e a transformação da realidade caminham juntas". Embora muitas das propostas elaboradas pela Secretaria Municipal de Saúde de Cuiabá, no período de 1986 a 1988, não tenham sido efetivadas, algumas foram incorporadas na prática, ainda que de forma incipiente. Atualmente identificamos que, ao lado das garantias constitucionais para implementação de um SUS de caráter redistributivo, assistimos paradoxalmente à afirmação do projeto neo-liberal de caráter compensatório, caracterizado por imprimir ao setor uma grande iniqüidade, e a reafirmação de uma "universalização excludente" (MENDES, 1993, p. 39).

Nas representações aqui analisadas destacamos que os sujeitos, em seu cotidiano, entendem o direito à saúde através da universalização dos serviços; apontam a contradição existente entre o princípio da universalização e o da eqüidade; evidenciam a permanência da cultura histórica do direito atrelado ao pagamento, que é reforçada, na prática, pela baixa complexidade tecnológica e pouca resolutividade dos serviços de saúde. Para Cohn (1991, p. 22-23), "reverter esse processo, isto é, perseguir a eqüidade, significa não apenas eliminar os privilégios dos grupos e pessoas, mas também contemplar a discriminação positiva, a fim de garantir "mais" direitos a quem tiver "mais" necessidades, dada a própria especificidade da saúde, em que doenças iguais não significam doentes com necessidades iguais".

O modelo assistencial proposto pelo Município aponta para esta discriminação positiva e, embora as representações que os sujeitos façam da realidade não sejam a própria realidade, permitem que façamos uma aproximação com ela e visualizemos, através do entendimento dos agentes sobre o direito à saúde, a possibilidade de estes participarem na efetivação do modelo proposto.

 

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1. Neste trabalho, apresenta-se de forma resumida a questão da cidadania e a enfermagem, tema que orientou as dissertações de mestrado das autoras. Os dados aqui analisados foram retirados da dissertação de mestrado de SILVA (1994).
2. A saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde, organização social de produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida (M.S. 1987, p.382).

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