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Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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Ministério da Educação
CAPES

Volume 2, Número 3, Set/Dez - 1998

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O objeto deste estudo é a introdução de uma nova prática de saúde pública junto às famílias populares da cidade do Rio de Janeiro, qual seja a vista domiciliar, realizada por uma nova categoria profissional feminina, ou seja, a enfermeira de saúde pública.

O recorte espaço-temporal é o do Rio de Janeiro das décadas de 20 e 30, então capital federal, e o espaço institucional é o do Departamento Nacional de Saúde Pública, onde se deu a Reforma Carlos Chagas.

Ao iniciar o trabalho como bolsista de iniciação científica PIBIC/CNPq-EEAN/UFRJ, através da análise do projeto integrado de pesquisa "A Prática de Enfermagem no Brasil: a enfermeira de saúde pública dos anos 20", percebi a fraca receptividade das famílias às visitas domiciliares das enfermeiras, o que não correspondia à minha experiência como acadêmica bolsista da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro.

A implantação da enfermagem moderna no Brasil se deu no bojo da reforma Carlos Chagas. As epidemias e endemias que assolavam o Rio de Janeiro, a ineficácia dos serviços públicos e a indisposição dos médicos sanitaristas para realizar a visita domiciliar justificaram a inserção da enfermagem no Brasil.

Os médicos sanitaristas percebiam o serviço de visitação domiciliária como pouco científico e inadequado à sua posição social. Ao contrário, a figura da enfermeira de saúde pública seria ideal para preencher este espaço, como funcionária disciplinada e disciplinadora, submissa às ordens médicas, além de possibilitar o aproveitamento ideológico da mística feminina.

Para orientar o estudo, foram traçados os seguintes objetivos: 1) descrever as condições de trabalho em que eram realizadas as visitas domiciliares; 2) analisar a pedagogia utilizada pelas enfermeiras nas visitas domiciliares; 3) discutir os significados das visitas domiciliares para as famílias do Rio de Janeiro.

As fontes primárias foram levantadas no Centro de Documentação da Escola de Enfermagem Anna Nery, onde selecionei recortes de jornais, cartas, atas, fotografias, documentos referentes aos campos de prática, discursos, e as fontes secundárias foram levantadas segundo as temáticas: política sanitária, história da enfermagem e condição feminina. As fontes primárias, aliadas às fontes secundárias, se constituiram na base necessária ao desenvolvimento da pesquisa.

A seleção dos documentos foi feita em função dos objetivos. A análise documental foi realizada de forma concomitante à sua seleção e classificação cronológica e temática. O texto tem a seguinte estrutura: apresentação do contexto histórico; descrição das condições de trabalho da enfermeira de saúde pública; análise da pedagogia adotada pelas enfermeiras de saúde pública e suas implicações éticas; interpretação dos significados da visita domiciliar; e considerações finais.

 

CONTEXTO HISTÓRICO

Ao final da primeira década deste século, a crise dos serviços públicos, juntamente com os movimentos grevistas, intensificou a discussão da questão social. Diante da ineficácia dos serviços de saúde pública e das pressões do povo, fez-se evidente a necessidade de realizar uma reforma sanitária, para o que se criou o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), em 1920. Neste mesmo ano, Carlos Chagas assumiu a direção do DNSP, estabelecendo um convênio com a Fundação Rockefeller (FR), que resultou na ampliação das atividades de saúde pública e também representou uma mudança nas diretrizes sanitárias no Brasil. A partir daí, a abordagem do controle sanitário passou a ser de cunho educativo e preventivo, ao contrário do que ocorria até então (Costa, 1986, p.100 e segs.; Barreira, 1995, p.14).

Sanitaristas do DNSP, com curso de especialização nos Estados Unidos, e que lá haviam conhecido o serviço de enfermeiras de saúde pública, julgaram necessário treinar enfermeiras de saúde pública no país para que auxiliassem os médicos no desenvolvimento das diversas atividades do Departamento (Parsons, 1927, p.201 e segs.). De fato, os médicos sanitaristas vinham tentando fazer instrução nos postos sanitários e nos domicílios, tendo porém percebido este trabalho como impróprio à sua profissão ... de rua em rua , de casa em casa, de quarto em quarto, de pessoa em pessoa comecei a perceber que isto não era serviço para médico ..." (Fontenelle, 1941, p.5). No entanto, como permanecia a necessidade de um vínculo entre os dispensários e as famílias dos doentes, considerou-se que esse elo deveria ser a enfermeira de saúde pública, considerada figura da maior importância para a organização sanitária do país (Fraenkel, 1932, p.5).

Em 1922, a FR enviou ao Brasil a enfermeira Ethel Parsons, para estudar a situação da enfermagem no país. Esta concluiu que o povo representava a figura da enfermeira como uma trabalhadora servil e que apenas poucas pessoas conheciam o significado e a evolução da enfermagem. Constatou, também, que os médicos do DNSP haviam instruído 40 senhoras para realizar visitas domiciliares aos doentes dos dispensários de tuberculose, porém com preparo insuficiente para exercer tal função (Fraenkel, 1934, p. 14 e Parsons, 1927, p.201-215).

Ethel Parsons chefiou a Missão de Cooperação Técnica para o Desenvolvimento da Enfermagem no Brasil, patrocinada pela FR, a fim de treinar enfermeiras de saúde pública e organizar um serviço de visitação domiciliar, sendo que o serviço de enfermeiras do DNSP ficou em posição de igualdade com as inspetorias do Departamento(Parsons,1927 p.201-215).

Ethel Parsons conseguiu fazer valer sua opinião de que, para obter êxito no projeto de reforma sanitária, seria necessário ter enfermeiras bem preparadas para se integrarem no programa de saúde pública. Assim, foi justificada a instalação e organização de uma escola de enfermagem em moldes até então inexistentes no Brasil, tarefa esta assumida por um corpo de enfermeiras norte-americanas2. A Diretora da Escola era também a Chefe do Serviço de Enfermagem do Hospital São Francisco de Assis, principal campo de prática das alunas, e a equipe de enfermeiras-professoras atuava também como instrutora de enfermagem teórico-prática (Parsons, 1927, p.201-207).

A proposta de Ethel Parsons era a de realizar um curso de enfermeiras com a duração de dois anos e meio, porém, os sanitaristas julgaram inviável esperar tanto tempo para ter à disposição dos trabalhos sanitários pessoas preparadas para realizar visitas domiciliares. Como solução conciliatória, mas emergencial e provisória, Parsons, em 1922, decidiu implementar um curso de emergência de seis meses de duração, para formar visitadoras de higiene, a fim de ampliar o quadro das visitadoras e manter o controle sanitário sobre a população. Em 1923, foi inaugurada a Escola de Enfermeiras do DNSP; neste mesmo ano, junto com o curso de enfermeiras, iniciou-se um segundo curso de emergência, com dez meses de duração. Os quatro primeiros meses, ou seja, o curso preliminar intensivo da escola de enfermeiras era comum a ambos os grupos. Após esse período inicial, as visitadoras de higiene terminavam o curso com mais seis meses de preparação em saúde pública. As alunas candidatas ao curso de enfermeiras concluíam o curso após mais 24 meses, recebendo o título de enfermeira diplomada. Em 1926, as últimas visitadoras que trabalhavam nos distritos foram substituídas pelas enfermeiras diplomadas, extinguindo-se este quadro. Em 1927, o serviço de saúde pública era composto exclusivamente pelas enfermeiras diplomadas (Barreira, 1997p:9-16).

Para tomar mais claro o papel da enfermeira de saúde pública na sociedade, Barreira (1996, p.56) classificou suas atribuições em quatro funções:

1) a função tática, corresponde à atuação da enfermeira no seio da família, ditando conselhos de higiene, detectando os casos suspeitos de doenças contagiosas (principalmente a tuberculose) e encaminhando-os para tratamento ou isolamento, bem como fazendo registros detalhados das situações encontradas, ou seja, desde os sintomas apresentados pelos suspeitos até as condições de moradia, saneamento básico, alimentação e a existência de aglomerações humanas;

2) a função de representação, que reforçava o poder da autoridade sanitária e a ordem médica, no sentido do cumprimento dos deveres de todos frente à saúde pública;

3) a função de persuasão, para a qual se utilizava a imagem ideal da enfermeira de saúde pública, a fim de demonstrar às famílias o significado de sua visita e a magnanimidade do projeto oficial;

4) e a função de controle, que correspondia a uma vigilância rigorosa através das visitas periódicas e cobranças (Barreira 1995, p. 52).

Dentre as funções da enfermeira de saúde pública, ressaltava a educação dos indivíduos quanto aos preceitos de higiene. "A enfermeira de saúde pública, em contato direto com as condições particulares de vida, ponto essencial para o sucesso de uma questão tão nitidamente pessoal como a higiene, foi considerada a mensageira da saúde" (Fraenkel, 1933, p.5). No entanto, ditar conselhos de higiene para a população era uma missão difícil de cumprir. A enfermeira de saúde pública entrava de casa em casa, inspecionando o número de cômodos, o número de pessoas que ali residiam, a ventilação, o isolamento, as condições de saneamento, entre outras; ensinava como cuidar das crianças, da alimentação, o perigo das moscas e mosquitos (Thenn, 1924, p.2)3. Apesar da população desconhecer a mulher nos serviços de saúde pública, sua presença nos lares era vantajosa para as autoridades sanitárias, pois, através das suas qualidades como bondade, paciência e devoção, ela era a pessoa mais indicada para trabalhar em função da coletividade. A enfermeira de saúde pública é a melhor propagandista, a professora mais ouvida, a instrutora mais agradável..." (Fontenelle, 1941, p.21).

Além de combater os males do corpo, ditando preceitos de higiene, a enfermeira deveria cuidar também dos males da alma, transmitindo carinho, bondade, simpatia, esperança, cuidados estes considerados indispensáveis para a recuperação do todo "... sobre modo elevada é essa profissão, que tem um tão nobre objeto social de sanear e prevenir os males do corpo, cuidando de reanimar e fortalecer o espírito ..."(Reys,1925)4.

No final da década de 20, as enfermeiras começaram a atuar também dentro dos dispensários, atendendo às crianças e aos tuberculosos. Este trabalho era exclusivamente educativo: depois de serem submetidas à consulta médica, as pessoas eram encaminhadas à enfermeira de saúde pública, que lhes fornecia "recomendações e instruções indispensáveis quanto à higiene pessoal e profilaxia" (Fraga, 1928, p.214-215). Essa nova trans ferência de atribuições ocorreu porque mais uma vez os médicos perceberam o trabalho educativo nos dispensários como pouco científico e inapropriado à sua posição. Para as enfermeiras, foi muito importante essa ampliação de suas atividades, pois a partir de então sua atuação junto ao público passava a se dar tanto nos domicílios como nos dispensários. Além disso, nestes locais o trabalho seria mais ameno por estarem "...ao abrigo das intempéries e grosserias, pela presença e autoridade dos médicos ..." (Barreira, 1992, p.58).

 

AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DA ENFERMEIRA DE SAÚDE PÚBLICA

O trabalho da enfermeira de saúde pública se destaca pelas inúmeras dificuldades a serem enfrentadas. O esforço para realizar o seu trabalho era grande, porém as recompensas não correspondiam a tanta dedicação. Quando se comparam as condições de trabalho da enfermeira de saúde pública com a dos médicos, em relação ao número de horas de trabalho e à remuneração, conclui-se que elas trabalhavam mais e recebiam de seis a oito vezes menos do que aqueles, o que de nenhum modo corresponderia ao valor de cada tipo de profissional (Fontenelle, 1941, p.6).

O trabalho na comunidade era fisicamente penoso "...O calor é de fornalha ... Raros, raríssimos são os que se expõem ao perigo de um ataque fulminante de insolação... nas ladeiras íngremes daquele morro viúvo de vegetações cujo granito escalda ..." O tipo de uniforme usado certamente agravaria o desconforto térmico: paletó de mangas compridas, punhos e colarinhos brancos e saia a trinta centímetros do chão; cinto preso ao paletó com dois botões de cada lado, chapéu de palhinha preta de abas e fita em tomo da copa; os sapatos eram brancos e as meias de seda. O ambiente físico dos domicílios onde realizavam suas tarefas era também desestimulante por suas precárias condições de higiene "... uma dama que entra em choças pestilentas, sai das casinhas infectas que toma a penetrar em antros insalubres ..." (Gayoso, 1924p.3 e 4)5.Apesar de se ressaltar o risco que as condições das moradias representavam para as enfermeiras que ali realizavam visitas esporádicas, nada se fala dos prejuízos ocasionados à saúde das famílias que aí residiam.

Outra dificuldade em realizar a visita domiciliar era a novidade da figura feminina nos espaços públicos, uma vez que nos serviços sanitários predominava antes o sexo masculino, médicos e guardas sanitários "... Estávamos habituados às repartições compostas quase que exclusivamente por médicos ..." (Fontenelle, 1941, p. 9).

Além disso, a enfermeira de saúde pública, por trabalhar na comunidade visitando as famílias, poderia muitas vezes se deparar com uma situação de emergência e, sem dispor de recursos necessários, teria que improvisar os seus instrumentos de trabalho, além de tomar decisões sozinha, ao contrário da enfermeira hospitalar, que dispunha de material adequado, colegas e médicos ao alcance ( Fraenkel, 1934, p: 15).

O esforço em educar os indivíduos para o melhoramento da saúde e o progresso da obra de saúde pública esbarravam em tantas dificuldades que muitas vezes a enfermeira de saúde pública poderia perceber seu trabalho como tendo poucas possibilidades de êxito. Esse trabalho desgastante e insalubre era pouco reconhecido. "Quem é essa abnegada? ... É a enfermeira visitadora ... insulada e sozinha no rigoroso, severo e positivo cumprimento dos seus deveres..." 6 (Gayoso, 1924).

Enfim, a visita domiciliar dependia de um grande investimento pessoal, visto que o trabalho era insalubre, desgastante, difícil, não tinha remuneração compensadora nem recompensas sociais e ainda enfrentava as resistências das famílias ... "O trabalho delas é penoso - ao sol, à chuva, fazendo face à ignorância e à falta de educação (Fontenelle, 1941 p:38).

Apesar de tanta devoção, dedicação, carinho, "...o trabalho não oferecia quase nada que pudesse despertar o interesse em continuar o seu penoso mistér, a não ser a emancipação econômica. Diante dessas desfavoráveis condições de trabalho, observou-se a freqüente evasão das enfermeiras de saúde pública, pela busca de cargos menos trabalhosos e mais tranqüilos como os de enfermeiras particulares ou hospitalares, ou mesmo pelo abandono da profissão".7

 

A PEDAGOGIA SANITÁRIA E A ÉTICA PROFISSIONAL

No início do século, o modo de atuação das repartições sanitárias era o da coerção. A vacinação obrigatória da época de Oswaldo Cruz é um exemplo característico deste tipo de ação da polícia sanitária8. Contudo, a partir da década de 20, a abordagem para atingir a população passou a ser a educação, mais conveniente às autoridades sanitárias, diante da crise política e sanitária instalada na capital do país (Costa, 1986, p. 85 segs).

No entanto, tal abordagem pedagógica não se constituiu num rompimento radical com o modelo anterior, uma vez que as repartições sanitárias ainda exerciam suas atividades de controle sanitário junto à população de ambas as formas, de acordo com os seus interesses econômicos, ou seja, através da persuasão ou da coerção. Um exemplo da persistência de métodos mais antigos é a posição das autoridades sanitárias perante o problema da tuberculose, separando os doentes em dois grupos: os que ainda trabalhavam, e os inválidos para o trabalho, que eram tipificados como "gratuitos distribuidores do mal". Neste caso era obrigatório o isolamento domiciliar, havendo fiscalização do cumprimento das medidas recomendadas, como a desinfeção dos escarros, à proporção em que fossem expectorados, sob pena de multa e remoção para o hospital de isolamento. Quanto à população geral, o modo de atuação era o da educação, realizada com auxílio de cartazes, das emissoras de rádio locais e principalmente pela atuação das enfermeiras de saúde pública, assegurando o que mais interessava às autoridades sanitárias ou seja a preservação da força de trabalho (Fontenelle, 1941, p.6).

A fim de realizar a sua principal tarefa, que era a de ensinar a todos normas para manter uma boa saúde, a enfermeira teria que utilizar para cada família a estratégia mais adequada para levar a cabo a pedagogia sanitária, procurando atingir as mães que não sabiam 1er, substituindo a linguagem técnica dos médicos e das repartições sanitárias, por palavras e atos de uso comum no lar, confortando os desolados e instruindo os ignorantes. Ressalta-se ainda, que ela teria que confortar os doentes pobres da cidade, oferecendo carinho e todos os cuidados para combater a enfermidade e, ao mesmo tempo, observar rigorosamente os preceitos higiênicos, a fim de evitar a propagação da doença e dar conhecimento às autoridades sanitárias "...a atitude de uma visitadora varia de ambiente para ambiente, os processos empregados para convencer A de que isto ou aquilo é um mau hábito de higiene, falham completamente com B ou C ...''(Taborda, 1933, p.176).

Para poder desempenhar seus complexos encargos, a enfermeira deveria, por suas aptidões profissionais e qualidades morais, apesar dos maus tratos que por vezes recebia por parte das famílias, conquistar a confiança popular. A ética profissional era considerada um dos princípios fundamentais do trabalho da enfermeira de saúde pública, cujos ditames deveriam ser por elas cumpridos com severidade e responsabilidade. Para tanto ..."ela precisa saber ouvir, saber ver e saber calar. A enfermeira deve aliar à sua afabilidade, atenção, indulgência e bondade, agindo sempre com discrição em relação aos seus doentes e à coletividade e inclusive não criticar atitudes tomadas pelos doentes durante a visita...''(Alves, 1933, p.23).

No entanto, as rígidas normas de trabalho e a submissão às ordens médicas faziam com que as enfermeiras às vezes nem mesmo pudessem respeitar a individualidade de cada paciente. Como relata uma aluna: "cumprimos as suas prescrições à risca, independente da vontade do enfermo ..."( Cabral, 1926)9. Ao se referirem ao cumprimento dos seus deveres, as enfermeiras mostravam-se surpresas com o rigor e a severidade com que elas teriam que desenvolvê-las, objetivando o controle sanitário, o progresso da saúde pública e o resultado do seu trabalho. "... Ela é senão a ditadora, ao menos a executora das leis de proteção à integridade do material humano". Para dar conta dessa responsabilidade, as enfermeiras cumpriam com precisão todas as tarefas, visando apenas seu impacto na comunidade, o que a obrigava a tomar decisões autoritárias. "Quando ela se vê obrigada a separar a mãe de seus filhos? o marido da mulher, o irmão da irmã, levanta-se logo a celeuma da população caluniando-a, apedrejando-a. Porém calma, a enfermeira não se perturba ... o que a interessa é a massa..."10

Ao contrário, a notificação dos casos de tuberculose aberta dos doentes acompanhados por médicos particulares, apresentava problemas éticos relacionados a privilégios de classe. O médico clínico fazia valer seu prestígio para proteger sua clientela particular das regras do código sanitário. As enfermeiras de saúde pública só poderiam notificar esses casos mediante uma série de precauções. São elas:

1) quando houver suspeita de doença contagiosa entre os seus doentes, em tratamento com o médico particular, será dever da enfermeira, usando a máxima diplomacia, oferecer ao médico o serviço de laboratório do DNSP;

2) se o mesmo aceitar o oferecimento e pedir à enfermeira para providenciar a colheita do material, ela assim o fará enviando uma nota explicativa;

3) se porém o médico recusar o oferecimento, a obrigação da enfermeira será a de notificar o caso, dando explicação detalhada sobre os sintomas que a levaram a suspeitar tratar-se de um caso de doença contagiosa;

4) a notificação ao médico será considerada confidencial;

5) a enfermeira só deve comunicar ao médico depois do caso ser cuidadosamente discutido com a enfermeira chefe da zona distrital11.

Não obstante, a instrução sobre os métodos de prevenção de doenças era considerada função primordial das enfermeiras de saúde pública, já que as mudanças dos hábitos de higiene eram estratégias fundamentais para evitar a disseminação das doenças infecto-parasitárias. Na educação do doente de tuberculose, as enfermeiras de saúde pública instruíam e fiscalizavam o uso da escarradeira, do lenço e dos sapatos (para não pisar no chão frio), e ainda induziam as pessoas que ali conviviam, e os suspeitos, a procurarem o médico particular ou os dispensários (ver fotos 1 e 2). E aos portadores de doença contagiosa, instruíam quanto à técnica de isolamento e da desinfecção concorrente, assim como encaminhavam os comunicantes para colheita de material para exame, e se fosse necessário, utilizavam recursos de imunização. Nos casos de doenças venéreas, elas aconselhavam os doentes a não abandonar o tratamento e encaminhavam os outros membros da família para fazer exames no dispensário especializado (Fontenelle, 1930, p.5 e 6).

A enfermeira de saúde pública exercia o papel de vigilância intensa a todos os doentes que poderiam difundir sua doença para os indivíduos sadios. Na visita a um paciente portador de doença infecto-contagiosa, era preenchida uma ficha epidemiológica completa e a família recebia os conselhos denominados medidas de profilaxia. E o seu trabalho não terminava aí, a vigilância continuava até que a saúde se restabelecesse ... "a enfermeira voltará em breve para exercer sua vigilância atenta, a fim de evitar a propagação do mal em questão, que é a sua finalidade ...''(Souza, 1931, p. 1)

FOTO 1: Visita domiciliar a uma pessoa com tuberculose. O cenário é o quintal de uma casa, um jovem negro e emagrecido, encontra-se recostado em uma espreguiçadeira. O ambiente é pobre, mas há muita vegetação ao fundo. Ao lado do doente, fazendo às vezes de mesinha, há uma caixa de madeira forrada com papel branco sobre a qual está a imprescindível escarradeira. A enfermeira e saúde pública encontra-se, de pé, ao seu lado. FONTE: CD/ EEAN nº 28.33 1930.

 

 

FOTO 2: Visita domiciliar a uma pessoa com tuberculose pulmonar aberta. O cenário é um quarto de dormir, ambiente pobre. Sentado na cama um jovem negro e caquético, vestido de calças compridas e camisa branca, com a mão direita mantém boca e na mão esquerda uma escarradeira. Tais gestos, significam ter sido catequizado pela doutrina sanitária. De perfil, a enfermeira de saúde pública apresenta-se de uniforme, cujo chapéu lhe cobre parte do rosto. A maleta de saúde pública está segura na sua mão direita. No fundo, um vizinho observa a cena. Fonte: CD /EEAN n° 28.28 1924.

 

 

FOTO 3: Visita domiciliar a um recém nascido. Uma das principais atribuições da enfermeira de saúde pública era a de realizar a educação higiênica "face a face". O cenário é um quarto de dormir. A enfermeira de saúde pública apresenta-se com as mangas do uniforme arregaçadas (sobre o braço esquerdo aparece a braçadeira com a cruz de malta, símbolo da Escola Anna Nery), usando um avental branco e encontra-se fazendo a demonstração do cuidado a ser prestado pela mãe, que a seu lado, com o semblante sério, observa atentamente seus gestos. O ambiente é organizado, limpo e com boa aparência. Sobre a cadeira forrada de papel, a maleta de visitação e o chapéu de palhinha da enfermeira. Fonte: CD/ EEAN n° 25.28 1926.

 

 

SIGNIFICADOS DA VISITA DOMICILIAR

A atitude coercitiva das autoridades sanitárias, adotada na época das campanhas de Oswaldo Cruz, ainda estava presente nas representações das famílias populares, o que dificultava a aceitação das visitas das enfermeiras de saúde pública. Tanto assim que as famílias provenientes do interior recebiam-nas com bons modos "... No limiar da porta entrego o meu cartão de visita, a dona da casa me acha muito gentil ... porém, é preciso que os leitores saibam que esta família chegou recentemente do interior do país ...''(Fraenkel, 1931)12.

O papel da enfermeira de saúde pública era reconhecido principalmente pelos sanitaristas que tinham realizado curso de especialização nos EUA. Na visão de um deles "... o caráter imperativo da atuação da enfermeira e seu significado frente as condições sanitárias, não está assimilado de forma correta por muitas pessoas, que vêem a enfermeira como uma impertinência intrometida e viciosa de pessoas estranhas na intimidade do lar e não como um avanço da medicina preventiva, desenvolvimento da higiene e conseqüentemente o zelo pelo futuro do país ..." (Pinto)13

A atitude da população em geral frente ao trabalho da enfermeira de saúde pública era interpretada pelos órgãos de saúde como sendo devida à ignorância e à falta de educação das famílias ... "Dura a missão foi a delas, mal recebidas pelo povo, que não compreendia sua nobre função e resistia encastelado no reduto da ignorância...". E as próprias enfermeiras testemunhavam sua pouca aceitação: "... durante meses pelos morros da cidade, sob sol causticante, Rachel Hadock Lobo14, no seu uniforme azul, levou aos casebres e às crianças o sorriso de sua doçura habitual envolta com ensinamentos higiênicos quase sempre mal recebidos e mal criadamente retribuídos ..."(Fraenkel, 1933. p.3).

Além da incompreensão sobre o papel da enfermeira de saúde pública, sua visita poderia indicar a presença de doença contagiosa na casa. Por isso, quando a enfermeira visitava um doente, o fato era sempre objeto de falatórios e boatos e havia o medo de ser rejeitado pelos vizinhos ou pela própria família, pois as pessoas acometidas por uma doença transmissível poderiam ser levadas compulsoriamente para um hospital de isolamento, experiência terrível, devido aos enormes constrangimentos impostos aos direitos dos doentes (Alves, 1933, p.23 e24).

Outro aspecto a ser abordado são as diferenças sócio-culturais entre as autoridades sanitárias (nelas incluídas as enfermeiras de saúde pública) e a população. Os objetivos das autoridades sanitárias em manter o controle do corpo social e a vigilância epidemiológica não seria do interesse da população, uma vez que seria outra sua visão de mundo devido à própria diferença de classe. Então, o que era entendido como racional pelas autoridades poderia ser considerado pela população como uma invasão de privacidade (Pinto, 1928 p.1).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A inserção da enfermeira na sociedade como uma nova categoria feminina foi uma resolução das autoridades brasileiras e não uma reivindicação da população e causou espanto à sociedade do Rio de Janeiro da época. As circunstâncias em que era feita a visita domiciliar determinavam que esta se realizasse de modo penoso para as enfermeiras. Abnegação, caridade e investimento pessoal não bastavam para o êxito desse serviço que, além de sofrer a oposição de certos setores da sociedade, e até de certos grupos de médicos, ainda enfrentava a relutância das famílias em receber a visita sanitária. Assim, o trabalho de visitação domiciliar realizado pelas enfermeiras de saúde pública não só dependia de seu esforço pessoal mas também de investimentos de cunho político, econômico e social.

A visita domiciliar da enfermeira de saúde pública se revestia de diferentes significados segundo a posição e o papel dos diversos grupos da sociedade: para as famílias pobres, poderia significar uma ameaça; para os médicos sanitaristas, constituiría numa poderosa estratégia de controle social; para os médicos particulares, a atuação dessa profissional seria percebida como uma intromissão no exercício liberal da medicina; para os setores conservadores da sociedade, uma injustificada mudança no papel feminino tradicional. Mas para as enfermeiras de saúde pública, esse trabalho abnegado significava uma missão impregnada da mística da enfermagem e do sanitarismo internacional, mas poderia significar também seu ingresso no mundo masculino do trabalho e a perspectiva de emancipação econômica e de realização pessoal, como ocorreu de fato na trajetória de várias pioneiras (Barreira 1997, p.29).

 

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1. Primeiramente Miss Clara Louise Kieninger, depois Loraine Geneviève Dennhardt e ainda Bertha Lucille Pullen, a última Diretora da Missão.
2. CD/EEAN mod. A cx.05 doc. 39 1924.
3. Ficha de inscrição para ingressar no curso de diplomadas da EEAN na qual descrevia suas idéias, objetivos e por qual razão decidiu dedicar-se a esta profissão.( LMNRJ924)
4. CD /EEAN mod.A cx.05 1924
5. Conferência realizada por Rimidia Gayoso na EEAN intitulada "A enfermeira na unidade " CD/EEAN mod. A cx.05 1924
6. CD/EEAN mod. A cx. 05 doc.45 1924.
7. Conceito eminentemente autoritário e paternalista que se preocupava sobretudo com os aspectos legais das questões de saúde (Scliar, 1987, p.43).
8. Ficha de inscrição preenchida por uma candidata ao curso de enfermeira diplomada da EEAN. ( 1SC, 1924 ).
9. Conferência realizada por Luiza Thenn em 1924 CD/EEAN mod. A cx.05 doc.39 1924
10. CD/EEAN mod. A ex. 12B doc. 108 1927
11. CD/EEAN mód. A cx.15 doc. 128 1931
12. CD/EEAN mód. A cx.15 doc. 130 1928 que viria a ser a primeira diretora brasileira da Escola de Enfermagem Anna Nery.

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