Volume 2, Número 1, Jan/Ago - 1998
A afirmação continuada de uma instituição na sociedade constitui sua dimensão histórica, que se refere tanto aos afazeres cotidianos das pessoas em seu interior como aos processos de mudança mais amplos. Deste modo, a apreciação do lugar da Escola Anna Nery na enfermagem se faz pelo entendimento de suas condições de surgimento e das circunstâncias em que se vêm operando as reformas e rupturas nesta escola, dedicada ao progresso de uma carreira ainda pouco reconhecida, e situada em um país que tenta explicar-se.
A trajetória da EEAN se inscreve no que Eric Hobsbawm denominou "a era dos extremos", iniciada com o colapso da civilização ocidental do século 19, assinalado pela 1ª Guerra Mundial. A Revolução Russa e o movimento operário internacional bem como a emergência dos Estados Unidos como potência mundial são ecos dessa guerra.. No Brasil, a influência do pensamento nacionalista, que informava a opinião das classes instruídas nos centros urbanos, e a dramática epidemia da gripe espanhola criaram circunstâncias favoráveis a uma reforma sanitária.
Tal reforma ensejou a implantação, na capital do Brasil, no interior do aparelho de estado, por iniciativa de Carlos Chagas e sob os auspícios da Fundação Rockfeller, de uma versão anglo-americana de enfermagem moderna. Além dos seus objetivos mais imediatos, quais sejam, a organização de um serviço de enfermeiras de saúde pública e a criação de uma escola de enfermeiras junto ao hospital São Francisco de Assis, a Missão para o Desenvolvimento da Enfermagem no Brasil se constituía em recurso estratégico para a difusão de valores consentâneos com a política externa dos EUA. Ademais, as enfermeiras americanas veiculavam um projeto profissional de "laicização com status", que afetava a posição de grupos já solidamente instalados no campo da educação e da saúde, como a igreja católica, o exército e a corporação médica.
As atividades da Missão sempre estiveram sob o controle das dirigentes americanas: a chefe, ligada à Fundação Rockfeller e à Diretoria Nacional de Saúde Pública; e também a diretora da escola, a cada época. Apesar dos seus esforços, devido a alegados interesses sanitários, a EAN não logrou ser incorporada à Universidade do Brasil (UB), no momento da criação desta. Ainda que no ano seguinte se tenha tornado "escola-padrão", para fins de equiparação de outras escolas, só em 1937 conseguiu penetrar na UB, abrindo um espaço para a enfermagem na universidade. Com a 2ª Guerra Mundial, a escola passou para as mãos das enfermeiras "ananéri", mas a influência das ex-integrantes da Missão continuou a se fazer no Brasil, por intermédio do "Instituto de Assuntos Inter-Americanos" (lAIA), no interesse do esforço de guerra dos países aliados contra o nazifacismo.
Com a liderança nativa no poder, inaugurou-se um longo período de estreita associação com a Igreja Católica, o que refletia a forte aliança existente entre a Igreja e o governo Vargas. No período de redemocratização, a EAN ganhou autonomia na UB, mas deixou de ser o padrão oficial de escola de enfermagem. No contexto da guerra fria, a América do Sul passou para a área de influência direta dos Estados Unidos, com sérias conseqüências políticas, econômicas, sociais e culturais. O controle da sociedade imposto pela ditadura militar, no Brasil, incluiu uma reforma universitária de cunho funcionalista, segundo certas características das universidades americanas, e que teve enorme impacto sobre o ensino de enfermagem.
Na EEAN, a perda de controle sobre a composição do corpo discente e o estatuto do aluno, a situação de alheamento a que se viu reduzida a escola quanto ao ciclo básico, a massificação do ensino e as novas exigências acadêmicas colocadas para as professoras configuraram-se como uma ruptura na história da instituição. Mas a EEAN se mobilizou para garantir sua posição na UFRJ e sua liderança nacional: estruturou e implantou um currículo pleno de graduação e logo passou a oferecer o curso- de mestrado, titulando suas professoras e recebendo candidatos de todo o país. Diante da insatisfação de docentes e alunos com o ensino de graduação, e na perspectiva de uma reforma sanitária voltada para os direitos de cidadania, ao final da década de 70, em plena fase pós-milagre econômico brasileiro, a EEAN implantou um currículo inovador, segundo uma estrutura de integração disciplinar e tendo como centro de interesse o trabalho de enfermagem. O processo, concluído no início da década de 80, determinou inclusive a construção de formas de convivência mais acadêmicas e gerou profundas reflexões para a futura discussão de um novo currículo mínimo de enfermagem.
Na virada da década de 80, entrava em colapso o instável equilíbrio que, durante mais de quatro décadas, caracterizara o panorama internacional. E, no interior do nosso microcosmo institucional, colocava-se a necessidade inadiável da formação de pesquisadores e, ao mesmo tempo, de revitalizar o curso de mestrado. Os anos 90, com sua carga de incerteza econômica, política, social e moral, nos trazem a tarefa irrecusável de uma melhor inserção da enfermagem na comunidade científica e uma articulação mais eficaz no plano internacional, em busca da confirmação da enfermagem como área de conhecimento específica. E é neste sentido que vem lutando a EEAN, ao lado das outras escolas de enfermagem brasileiras, ou seja, em prol da qualificação de professores e pesquisadores, do adensamento de sua produção científica e da busca de padrões de excelência para a prática.
E nós, membros do corpo social da Escola de Enfermagem Anna Nery, devemos estar conscientes do significado de nossos esforços coletivos para sua permanência e para a construção de sua trajetória na sociedade pois, de todos os modos, a história continua.