ISSN (on-line): 2177-9465
ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
COPE
ABEC
BVS
CNPQ
FAPERJ
SCIELO
REDALYC
MCTI
Ministério da Educação
CAPES

Volume 11, Número 1, Jan/Mar - 2007

PESQUISA

 

A família da Criança Dependente de Tecnologia: aspectos fundamentais para a prática de enfermagem no ambiente hospitalar

 

The family of the technology-dependent child: fundamental aspects for hospital nursing practices

 

La familia del niño dependiente de tecnología: aspectos fundamentales para la práctica de enfermería en el ambiente hospitalario

 

 

Noélia Silva Ladislau LeiteI; Sueli Rezende CunhaII

IInstituto Fernandes Figueira/Fiocruz- Rio de Janeiro. e-mail: noelialeite@fiocruz.br
IIInstituto Fernandes Figueira/Fiocruz- Rio de Janeiro. e-mail: suelirez@iff.fiocruz.br

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir as mudanças significativas que ocorrem no interior da organização das famílias em função do cuidado da criança dependente de tecnologia (CDT). Realizamos um estudo com abordagem qualitativa, utilizando, como instrumento para coleta de dados, a entrevista semi-estruturada. Os sujeitos da pesquisa foram quatro famílias de CDTs. Delineamos quatro dimensões da mudança familiar: emocional, social, financeira e impacto nas atividades rotineiras. Verificamos que acontecem mudanças no interior das famílias que cuidam de uma CDT. Estas mudanças se apresentam de forma multidimensional. A complexidade do estado de saúde-doença associado à dependência tecnológica é um desafio para as organizações dos serviços e para a abordagem dos profissionais da área hospitalar. Torna-se necessário repensar o modo de atender centrado na doença e incluir a família no processo terapêutico. O estudo aponta a relevância de desenvolvermos modelos de cuidado centrado nas famílias aplicáveis ao cotidiano hospitalar.

Palavras-chave: Crianças Portadoras de deficiências. Enfermagem. Família.


ABSTRACT

The objective of this article is to discuss the significant changes that occurring inside of the organization of the families related to the care of a technology-dependent child (TDC). We carried out a qualitative study, using half-structured interviews for data collection. Research subjects were four TDC's families. Four dimensions for family changes were outlined: emotional, social, financial and impact on daily activities. We observed that changes really occur within TDC's families. And these changes are multidimensional. The complexification of the health-illness state and technology dependence remains a challenge for service organization and for approaching hospital staff, thus it becomes necessary to rethink disease-centered care and include the family in the therapeutical process. In this sense, this study points to the relevance of developing family-centered care model suitable for the hospital's quotidian.

Keywords: Disabled Children. Nursing. Family.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es discutir los cambios significativos que ocurren en el interior de la organización de las familias en función del cuidado del niño dependiente de tecnología (CDT). Realizamos un estudio con abordaje cualitativo, utilizando como instrumento para recolección de datos la entrevista semiestructurada. Los individuos de la investigación fueron 04 familias de CDT. Delineamos cuatro dimensiones del cambio familiar: emocional, social, financiero e impacto en las actividades rutinarias. Verificamos que ocurrieron cambios en el interior de las familias que cuidan de un CDT. Estos cambios se presentan de forma multidimensional. La complejidad del estado de salud-enfermedad, asociada a la dependencia tecnológica, resulta un desafío para las organizaciones de los servicios y para el abordaje de los profesionales del área hospitalaria, volviéndose necesario repensar el modo de atender centrado en la patología/enfermedad e incluir a la familia en el proceso terapéutico. El estudio apunta hacia la relevancia de desarrollar modelos de cuidado centrado en las familias aplicables al cotidiano hospitalario.

Palabras clave: Niños con Discapacidad. Enfermería. Familia.


 

 

INTRODUÇÃO

A sobrevivência de um elevado número de crianças foi possibilitada pelos avanços na tecnologia aplicada à saúde humana. Uma conseqüência destes avanços é a existência de um grupo de crianças com necessidades médicas e de enfermagem contínuas, as Crianças Dependentes de Tecnologia (CDTs)1 . As causas da dependência tecnológica variam. Podem resultar de malformação congênita, doença crônica ou genética ou podem estar associadas a prematuridade, acidente, infecção ou doença.

Destacamos alguns tipos de dependência tecnológica: traqueostomia, gastrostomia, urostomia, colostomia e ileostomia. A palavra ostomia é um designativo genérico de uma condição orgânica resultante de intervenção cirúrgica com o objetivo de restabelecer a comunicação entre uma víscera/órgão e o meio externo, compensando seu funcionamento afetado por alguma doença. Esta designação é especificada com um prefixo da topografia correspondente, por exemplo: traqueostomia, gastrostomia, ileostomia, colostomia, nefrostomia, ureterostomia, vesicostomia e cistostomia2.

O cuidado à criança dependente de tecnologia exige da família a adoção de inúmeras medidas de readaptação às atividades do dia-a-dia. É possível citar como exemplo, o aprendizado das ações de cuidado do estoma e da pele periestomal, manuseio de sondas e equipamentos médicos como aspiradores, nebulizadores etc. Percebe-se o quanto fica difícil para estas famílias a alta hospitalar e a volta ao lar e ao convívio social, associadas às complicações com o estoma que resultam em novas internações ou retornos freqüentes ao serviço em busca de solução.

A Enfermagem tem o compromisso de incluir as famílias nos cuidados de saúde, considerando "a evidência teórica, prática e investigacional do significado que a família dá para o bem-estar e a saúde de seus membros, bem como a influência sobre a doença"3. Neste sentido, entendemos que a Enfermagem desempenha um importante papel no cuidado das CDTs e de suas famílias, tornando-se então necessário compreender a família como sujeito principal da nossa ação de cuidar, em especial, da saúde da criança.

O cuidado às CDTs deve envolver uma abordagem que reconheça a família em uma relação de parceria com os profissionais4. Na atualidade, notamos esforços de manter o enfoque familiar na assistência de enfermagem em razão da importância da família para a sobrevivência e, principalmente, para o cuidado de pacientes crônicos 5,6. Mediante isto, buscamos discutir quais as mudanças significativas que ocorrem no interior da organização das famílias em função do cuidado às crianças dependentes de tecnologia.

 

METODOLOGIA

Local do estudo:

Departamento de Cirurgia Pediátrica do Instituto Fernandes Figueira, pertencente à Fundação Oswaldo Cruz, instituição materno-infantil que ocupa importante papel no cenário das instituições públicas do Rio de Janeiro.

Sujeitos:

Os sujeitos deste estudo foram quatro famílias de CDTs que estavam ou estiveram em acompanhamento no Programa de Assistência Integral à Criança Ostomizada, ou que tinham sido submetidas à cirurgia na instituição antes da organização do programa.

Coleta de dados:

Utilizamos, como instrumento para coleta de dados, as entrevistas semi-estruturadas7. O roteiro da entrevista foi orientado pela questão norteadora que dá sustentação ao objetivo do estudo: que mudanças aconteceram no interior da família para cuidar da criança dependente de tecnologia? As entrevistas foram agendadas com as famílias e gravadas em meio magnético.

Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética da instituição. Após a sua aprovação, iniciamos a coleta de dados.

Organização dos dados para análise:

A classificação dos dados foi realizada a partir do conceito de multidimensionalidade fornecido pelo referencial teórico do pensamento complexo. A compreensão de multidimensionalidade está pautada no entendimento de que os seres humanos são unidades complexas, comportando, ao mesmo tempo, o aspecto biológico, psíquico, social, afetivo e racional8. O caráter multidimensional do conhecimento deve ser reconhecido juntamente com a compreensão de que não se pode isolar uma parte do todo, já que as dimensões estão em constante interação com todas as outras dimensões. Como exemplo, a dimensão econômica está em permanente interação com todas as outras dimensões humanas. Isto porque a economia carrega em si, de forma holográfica, as necessidades, desejos e paixões humanas que estão além dos simples interesses econômicos8. O pensamento complexo aspira ao conhecimento multidimensional9.

Durante e após a transcrição, foi possível a construção de quatro categorias: dimensão emocional, dimensão social, dimensão financeira e impacto nas atividades rotineiras. A partir destas categorias foram realizadas as primeiras classificações dos dados. Definimos trabalhar com estas quatro categorias resultantes das mudanças observadas pelas famílias para cuidar da CDT com o objetivo de dar visibilidade a estas dimensões, apontando caminhos para a compreensão das necessidades de intervenção junto às famílias.

Verificamos, efetivamente, que acontecem mudanças no interior das famílias que cuidam de uma CDT e que estas mudanças se apresentam de forma multidimensional.

A teoria dos sistemas tem sido utilizada para ajudar na compreensão das famílias pelos profissionais de saúde. Um conceito que consideramos fundamental para esta compreensão reconhece que a mudança em um membro afeta toda a família3. Este conceito nos ajuda a compreender as dimensões do impacto da doença na família, suas alterações na organização e funcionamento familiar.

Neste sentido, o artigo se aproxima do universo complexo da família que, a princípio, era imperceptível para o profissional de saúde. Torna-se possível, através do diálogo e das interações, identificar o que acontece no interior das famílias e como as mudanças afetam seu funcionamento.

 

RESULTADOS

O primeiro contato das famílias com a situação de dependência tecnológica

A primeira grande mudança é caracterizada pelo caos que se instala na família no momento em que se depara com a situação do seu filho quando este passa a depender de tecnologia. Este momento pode ser comparado à desordem que acontece numa suposta ordem estabelecida. Isto pode ser evidenciado no depoimento da família sobre o sentimento ao ter o primeiro contato com o problema de sua criança, relatado a seguir:

Até mesmo, não sei se você se lembra, no período que ele estava aqui internado como que eu me deparei com a situação do B.E. Eu já sabia que não era uma coisa fácil de tratar, mas quando eu cheguei e vi o B.E. daquele jeito, você não sabe o que é. O meu chão abriu! Eu queria me enterrar ali dentro e não sair nunca mais, só quando ele tivesse sem aqueles aparelhos todos. Família B.E.

As famílias entrevistadas demonstraram, através dos seus depoimentos, a importância do primeiro contato que tiveram com a situação das suas crianças, evidenciando ser aquele um momento de grande impacto, devendo, portanto, ser tratado por nós da equipe de saúde com igual importância e respeito. Esta é, então, uma questão que merece reflexão acerca da nossa prática profissional, que, ao privilegiar o cuidado em sua perspectiva biológica (patologia e doença), unidireciona nosso olhar, secundarizando o cuidado humano, que se reveste de amor, compaixão e solidariedade.

Torna-se necessário repensar o modelo de assistência hospitalar vigente, que orienta as práticas profissionais, estruturado em torno de uma lógica cuja ênfase está na utilização crescente do aparato tecnológico e na sustentação de uma visão predominantemente biologicista e mecanicista dos responsáveis pela atenção à saúde 10.

A dimensão emocional da mudança:

O aspecto emocional da mudança nas famílias tem sido documentado em alguns estudos. Relata-se uma grande variedade de emoções experimentadas por estas famílias como: ansiedade, irritação, culpa e frustração1. Destacamos que as responsabilidades e desafios para cuidar da CDT acarretam sobrecarga física e emocional para a mãe 11. Em nosso estudo, as famílias referiram experimentar uma série de alterações emocionais, dentre as quais destacamos: estresse, medo, culpa, problemas conjugais e não-aceitação. Olhando pela perspectiva sistêmica, o fenômeno do estresse ocorre quando uma ou diversas variáveis de um organismo são forçadas até seu limite extremo, induzindo a um aumento da rigidez em todo o sistema. O desequilíbrio contínuo causado pelo estresse prolongado e inquebrantável pode gerar sintomas físicos e psicológicos, como tensão muscular, indigestão, ansiedade e insônia, que poderão resultar em doença12. Isto foi revelado através dos seguintes depoimentos:

Eu estava estressada, estressada, sabe?Não estava agüentando mais nada...

Mas ele (o pai) não aceita a doença dela. Família C.

Então eu fico muito, muito assim, o meu nervosismo, eu era uma pessoa calma, mudou porque eu estou muito nervosa, estressada, e é isso [...] Então mudou isso, o nervosismo, eu não estou me controlando, de jeito nenhum eu estou me controlando.

... Além de ver esse problema da B.J. eu fico me perguntando por que ela nasceu assim e não tem uma explicação. Os médicos dizem que não tem explicação.

Mudou muito na relação com o meu marido. Eu brigo muito com ele, eu me estresso porque eu não tenho paciência [...] então aí a gente se estressa muito, a gente fala coisas que não devia falar um pro outro, entende? Já me separei dele uma vez... Família B.J.

... Tinha medo de cuidar, a princípio tinha medo de cuidar, medo de colocar a mão... Família D.

Um estudo de revisão da literatura sobre a experiência das famílias no cuidado domiciliar das CDTs1 refere a presença de sintomas de doenças na família. Pudemos confirmar esta experiência no depoimento da família C, abaixo relatada, sobre o alcoolismo paterno que se inicia após a situação de doença da criança. Este estudo refere também a ocorrência de mudanças comportamentais dos irmãos das CDTs, que foi percebida pela família B.E. e destacada em seu depoimento.

Porque ele passou a beber de domingo a domingo, sem parar. Família C.

Eu acho que foi até aí que o L (irmão da CDT), de 5 anos, ficou assim muito à vontade, sabe, [...] sem limite [...] Aí aconteceu isso também, de eu achar o L, entre aspas, muito sem limites, né? [...] foi outro tipo de problema que vivenciamos também. Essa coisa, essa agitação do L. Família B.E.

A dimensão social da mudança:

A dimensão social é outro aspecto da mudança familiar que se apresenta de forma muito impactante. Verificamos a ocorrência deste aspecto em um estudo1 no qual considera-se que cuidar de uma CDT pode causar isolamento social para a família. As atividades sociais costumam ser drasticamente reduzidas em virtude das impossibilidades impostas pelo cuidado, levando a família a uma espécie de confinamento domiciliar. Este isolamento social ocorre devido à natureza do equipamento que a criança necessita, que pode ser pesado ou de difícil manejo, tornando um simples passeio uma expedição maior, ou devido ao sentimento de absoluta exaustão dos familiares1.

Devemos considerar, entretanto, que as famílias estudadas também se submetiam a este confinamento apesar de não haver entre suas crianças necessidade ou dependência de equipamentos pesados ou de difícil manejo.

Sem poder, né, ter nossa vida, os nossos hábitos que nós tínhamos de ir à igreja, de ir à casa de um amigo, de ir a um aniversário, nós não podíamos ir... Família D.

Você tem de abrir mão da tua vida, do teu trabalho, das pessoas com que você convive, das tuas saídas, da tua diversão[...]Então, houve uma época que X (pediatra que atendia a criança) falou assim: - Você evita, [...] sair ao máximo onde tem muita aglomeração. Aí eu arregalei um olho deste tamanho e fiquei com um medo danado, né? Você sabe que até hoje eu não saio para ir a parque, eu tenho medo, ela foi ao parque uma vez... Família C.

Observamos, no depoimento da família D., que eles consideravam o trabalho para sair de casa tão desgastante que optaram pelo isolamento.Torna-se necessário esclarecer que, neste momento relatado pela família D., a criança ainda não estava utilizando o dispositivo coletor bolsa de colostomia e, conseqüentemente, a família se sentia insegura para sair de casa. Isto reforça claramente a importância do dispositivo adequado e acessível às CDTs, assim como das informações sobre o uso adequado, suas possibilidades e limitações. Assim, quando assistidas corretamente, a criança colostomizada/ileostomizada e sua família não precisam estar limitadas ao confinamento domiciliar. Mais uma vez, revela-se o aspecto da inseparabilidade das dimensões afetadas pela doença na família. Pensando de forma sistêmica, é possível notar a alteração que a ausência do dispositivo, bem como da abordagem educacional adequada pode causar na família, gerando, como mostramos, um confinamento desnecessário, que também poderia ser correlacionado a alterações de ordem emocional dos membros da família.

A dimensão financeira da mudança:

O mais poderoso preditor de estresse para as famílias de CDTs são os problemas financeiros1. A ocorrência de estresse familiar relacionado ao cuidado da CDT no domicílio tem sido observada. Este estresse também é motivado pela sobrecarga financeira imposta à família, em que se nota um aumento de sintomas depressivos nas famílias com baixo nível socioeconômico que cuidam de CDTs13. Outro aspecto relevante foi a re-hospitalização da criança ou a descontinuação do tratamento em razão dos problemas financeiros14. Em nosso estudo, dois depoimentos refletiram este tipo de problema:

... A gente tem que abrir mão de tudo, do trabalho [...] pra poder cuidar da criança. Isso tudo, teu nível vai abaixando, (ri) até o ponto de você ficar totalmente dependente de todo mundo, entendeu? Família C.

Eu tive que buscar recursos em outra cidade, eu tive que buscar recursos pela internet, sabe? Através de telefone, procurar o local onde esse material era mais barato, até mesmo porque a Secretaria de Saúde, ela me fornecia esse material, mas em quantidade mínima. Porque era um material importado, caro, de alto custo [...] Todas as pomadas que você imaginar eu tenho dentro desta caixa. Então, ali foi um gasto enorme... Família D.

Constatamos ainda, a partir dos depoimentos, uma mudança expressiva na vida profissional das mães. Estas referem que deixaram de trabalhar ou reduziram sua carga horária para cuidar da CDT. Este é um aspecto que pretendemos discutir pela necessidade sentida pelas famílias de estarem disponíveis para este cuidado. Observa-se que, no momento em que a família aumenta sua despesa com gastos extras, é exatamente o momento em que a receita familiar diminui com a saída da mãe do trabalho.

Apesar de existirem subsídios para as famílias de doentes crônicos, tais como passe livre municipal e benefício de prestação continuada (um salário mínimo mensal pago às pessoas portadoras de deficiência), estes não parecem ser suficientes, ou as famílias não preenchem os critérios exigidos.

Enfatizamos que uma possibilidade para atenuar esta situação, identificada mediante o diálogo com as mesmas, seria a mãe da CDT poder fazer jus a benefício previdenciário ou assistencial enquanto a situação de dependência tecnológica persiste, considerando que as ostomias em crianças são, em sua maioria, temporárias. A saída da mãe do trabalho torna-se um problema financeiro para as famílias, mas representa também um forte impacto emocional, pois diz respeito à necessidade que tem de estar produzindo, como reflexo de sua identidade na sociedade.

A princípio você tem que parar de trabalhar para cuidar da criança, principalmente de uma criança com este tipo de problema que é ileostomia. Família C.

... Eu tive que sair do trabalho, né? Eu trabalhava, então eu tive que sair do trabalho porque não é todo mundo que toma conta de uma criança assim e sabe cuidar direitinho. Família B.J.

Esta é uma questão na qual precisamos nos deter, considerando que a despesa extraordinária para cuidar da CDT deve ser discutida no âmbito dos programas de assistência primária à criança. Trata-se de uma agenda urgente visto que o cuidado destas crianças no domicílio diminui os gastos com despesas hospitalares para os cofres públicos, mas onera ou torna radicalmente insustentável o cuidado domiciliar com recursos exclusivos das famílias.

Dimensão do impacto nas atividades rotineiras

Nesta categoria, procuramos compreender o impacto que o cuidado domiciliar à CDT pode trazer nas atividades rotineiras familiares. Como atividades rotineiras, incluímos tarefas como limpar a casa, cuidar dos outros filhos, preparar alimentos, entre outras. As atividades rotineiras estão referidas como um aspecto instrumental do funcionamento da família, entendendo esta área como particularmente importante em famílias com problemas de saúde. Isto ocorre porque as atividades da vida diária são, em geral, mais numerosas e freqüentes, assumindo maior significado devido à presença da doença em um membro da família3. As famílias referem ter identificado estratégias para contornar a situação de cuidados especiais à criança e ao mesmo tempo manter um ambiente limpo, adequado para a permanência da criança.

Então, foi um cuidado a mais com a casa, que eu não tinha aquele tempo, de dar ao mesmo tempo carinho pra ele, olhar ele, e cuidar daquilo tudo. Então, quer dizer, foi muito difícil. Foi muito difícil conciliar as duas coisas, sabe? Então o que nós fizemos? Eu fiquei a parte da manhã, fazia esta parte, a higiene da casa, principalmente onde ele estava. Minha mãe ficava um pouco com ele, levava ele um pouco pra casa dela, eu organizava tudo lá em casa, fazia tudo assim correndo, a jato, pra poder pegar ele e levar ele pra casa. Aí organizamos dessa forma. Família B.E.

A princípio você tem que ter muito cuidado com o material que ele utiliza, seja mamadeiras, seja pratos, copos que ele utiliza, sempre muito bem lavados, né? [...] Sempre desinfetados. [...] Nunca dar comida a ele da rua. Sempre coisas feitas em casa, sabe? Sempre alimentos assim, frescos. Nunca dou uma coisa assim de um dia para o outro pra ele, sabe? Sempre com essa preocupação de uma infecção intestinal. Família D.

Outro aspecto destacado pela família D. foi quanto à alteração que ocorreu nas atividades de sono/repouso da família. Esta situação foi colocada como um fator de estresse familiar causado, obviamente, pela exaustão do cuidado sem pausas. Mais uma vez destaco a importância do uso do dispositivo adequado, neste caso, bolsa coletora para a ileostomia. O cuidado sem pausas referido pela família estava relacionado às lesões periostomais causadas pela não-utilização do dispositivo que garantiria a integridade da pele e um sono tranqüilo e reparador para a criança e sua família. É preciso esclarecer que a família D., em alguns casos, nomeia o estoma da criança de colostomia e, em outros, de ileostomia. Na realidade, D. tinha uma ileostomia:

Nós não tínhamos nem como dormir, porque o início da colostomia, o retorno dele pra casa, o que é que aconteceu?O ácido que saía dali era muito forte, o líquido que saía entre as fezes era muito forte. [...] Ficou em carne viva, aquela vermelhidão toda [...] Porque toda hora que o D. soltasse o líquido, que o líquido vazasse pela colostomia, tinha que ser trocado. Família D.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através deste trabalho, foi possível uma análise profunda e multidimensional das famílias de crianças dependentes de tecnologia. Nessa análise, pudemos perceber que as mudanças na vida das famílias que cuidam de CDTs se apresentam em múltiplas dimensões. O primeiro impacto configura-se a partir do contato inicial com a situação de dependência tecnológica de seus filhos e se caracteriza como um importante momento nas suas vidas. Esta descoberta nos faz refletir sobre nosso papel de intervenção junto a estas famílias no início do processo. Ou seja, o nosso comprometimento profissional com as famílias deve se dar desde o momento em que estas têm este primeiro contato, e não no fim do processo, quando propomos a alta hospitalar. Precisamos estar atentos para este momento, oferecendo a esta família o suporte necessário para enfrentar a nova situação, vislumbrando a possibilidade de desordem que se apresenta por esta condição.

Ressaltamos aqui também a nossa preocupação com a responsabilidade que é colocada nas famílias para o cuidado domiciliar da CDT. É necessário que as instituições de saúde assumam seus papéis no acompanhamento e suporte a estas crianças e suas famílias.

Verificamos efetivamente que, na prática, ocorre uma desorganização da família em várias dimensões do seu viver para dar conta de cuidar da CDT. Nesta pesquisa foi possível destacar algumas destas dimensões: a emocional, a social, a financeira e o impacto nas atividades rotineiras.

O aspecto emocional da mudança foi revelado como um importante fator de desorganização familiar que evidencia uma demanda por suporte emocional. É necessário que este seja um aspecto relevante na atenção a estas famílias, porque a falta deste suporte poderá comprometer o cuidado dispensado por elas à CDT.

Outro aspecto que se apresentou de forma impactante foi o social. A situação de dependência tecnológica não precisa e nem deve ser acrescida deste confinamento domiciliar, como vimos nos depoimentos. Precisamos estar atentos para as causas deste confinamento como, por exemplo, a falta do dispositivo adequado.

Constatamos uma mudança expressiva na vida profissional das mães, as cuidadoras das CDTs. Em geral, estas têm que sair do trabalho ou reduzir sua carga horária para cuidar da criança. Destacamos este aspecto porque, além do problema financeiro para as famílias, a saída do mercado de trabalho causa forte impacto emocional para as mães.

Considerando que a situação de ostomização em pediatria tem a peculiaridade de ser temporária, consideramos recomendável propor alteração na legislação para que a mãe da CDT possa fazer jus a benefício previdenciário ou assistencial enquanto a situação de dependência tecnológica persistir. Esta medida certamente atenuaria uma situação de grande estresse familiar.

Achamos importante demonstrar o impacto nas atividades rotineiras, já que estão relacionadas ao funcionamento da família e constituem um aspecto de singular importância quando tratamos de famílias com problemas de saúde. Estas atividades assumem uma dimensão maior se considerarmos os cuidados especiais que precisam ser dispensados às CDTs.

A compreensão das mudanças que ocorrem no interior das famílias em função do cuidado às crianças dependentes de tecnologia nos permite identificar as múltiplas dimensões da vida familiar que são afetadas e perceber as ligações entre estas dimensões. A dimensão emocional, em alguns casos, está relacionada à dimensão financeira, que também produz uma situação de confinamento desta família (dimensão social). Desta forma, vemos a rede de implicações que se forma no cotidiano de cuidados às CDTs. Este entendimento possibilita pensar o caráter multidimensional do cuidado à CDT. Percebemos a inseparabilidade destas dimensões, as implicações das partes (dimensões) com o todo (o cuidar, o viver a situação de dependência tecnológica), do todo com as partes e das partes entre si. Disto resulta que a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade8.

A partir da complexidade e da visão multidimensional do problema estudado, é possível evidenciar a impossibilidade de tratar a doença sem compreender a família. Consideramos que a filosofia do cuidado centrado na família é um marco fundamental para os modelos de alta complexidade.

Para atender às reais necessidades das famílias, torna-se fundamental a reorientação do modelo assistencial vigente em nossas instituições hoje baseado no modelo biomédico, essencialmente biologicista e tecnicista, que não contempla as múltiplas dimensões da saúde. Assim, torna-se imprescindível que os profissionais do cuidado, em especial as enfermeiras, desenvolvam e apliquem modelos assistenciais que contemplem uma visão sistêmica e multidimensional do cuidar e, desta forma, possam atender as demandas urgentes e inadiáveis das famílias.

Este momento de busca da realidade nos leva ao pensamento de Edgar Morin: O conhecimento é uma aventura em espiral que tem um ponto de partida histórico, mas não tem um fim, que deve, sem cessar, fazer círculos concêntricos, ou melhor dizendo, a descoberta de um princípio simples não tem fim; ela reconduz ao mesmo princípio simples que ela esclareceu em parte15.

 

REFERÊNCIAS

1. Kirk S. Families'experiences of caring at home for a technology-dependent child: a review of the literature. Child: Care, Health and Development 1998;24(2):101-14.

2. Luz MHBA. A dimensão cotidiana da pessoa ostomizada: um estudo de Enfermagem no referencial teórico de Martin Heidegger. [tese de doutorado]. Rio de Janeiro (RJ): Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ; 2001.

3. Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para avaliação e intervenção na família. 3a ed. São Paulo (SP): Roca; 2002.

4. Bond N, Phillips P, Rollins AJ. Family-centered care at home for families with children who are technology dependent. Pediatr Nurs 1994 C;20(2):123-30

5. Silveira EAA, Carvalho AMP. Familiares de clientes acometidos pelo HIV/AIDS e o atendimento prestado em uma unidade ambulatorial. Rev Latino-am Enfermagem 2002 nov/dez;10(6)813-8.

6. Almeida MI, Molina RCM, Vieira TMM, Higarashi IH, Marion SS. O ser mãe de criança com doença crônica: realizando cuidados complexos. Esc Anna Nery Rev Enferm 2006 abril;10(1):36-46.

7. Ludke M, André M. Pesquisa em educação: Abordagens qualitativas. São Paulo(SP): EPU; 1986.

8. Morin E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 4ªed. São Paulo (SP): Cortez. Brasília, DF: UNESCO; 2001.

9. Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Tradução de Dulce Matos. 3a ed. Lisboa (PT): Instituto Piaget; 2001.

10. Silveira PAF. O acolher Chapecó. In: Franco BT, Peres MAA, Foschiera MMP, Panizzi M, organizadores. Acolher Chapecó: uma experiência de mudança do modelo assistencial, com base no processo de trabalho. São Paulo (SP): Hucitec; 2004.

11. Cunha SR. A enfermeira e a família dependente de tecnologia: a intermediação dos saberes. 1997.[dissertação de mestrado]. Rio de Janeiro (RJ): Escola de Enfermagem Anna Nery/ UFRJ; 1997.

12. Capra F. O ponto de mutação. 28a ed. São Paulo (SP): Cultrix; 2002.

13. Haffner JC, Schurman SJ. The technology-dependent child. Pediatr Clin North Am 2001 June;48(3):751-64.

14. Andrews MM, Nielson DW. Techology dependent children in the home. Pediatr Nurs 1988 Mar/Apr;14(2):111-51.

15. Morin E, Le Moigne JL. A inteligência da complexidade. Tradução Nurimar Maria Falci. 2a ed. São Paulo (SP): Peirópolis; 2000.

 

 

Recebido em 06/06/2006
Reapresentado em 08/11/2006
Aprovado em 15/12/2006

 

© Copyright 2024 - Escola Anna Nery Revista de Enfermagem - Todos os Direitos Reservados
GN1