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CAPES

Volume 10, Número 4, Out/Dez - 2006

PESQUISA

 

Hospital de custódia: os direitos preconizados pela reforma psiquiátrica e a realidade dos internos

 

Hospital of custody: the rights recommended by the psychiatric reform and the patients' reality

 

Hospital de custodia: los derechos preconizados por la reforma psiquiátrica y la realidad de los internos

 

 

Maria Sirene CordioliI; Miriam Süsskind BorensteinII; Anesilda Alves de Almeida RibeiroIII

IAssistente Social do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP). Conselheira do Conselho Regional de Assistentes Sociais da 12ª. Região/SC.

IIProfessora Adjunta do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutora em Filosofia da Enfermagem (UFSC). Coordenadora do Grupo de Estudos de História do Conhecimento da Enfermagem (GEHCE). Pesquisadora do CNPq.
IIIMestre em Enfermagem pela UFSC. Membro do GEHCE e da Diretoria da Associação Brasileira de Enfermagem Regional Itajubá (MG) Gestão 2004/2007.

 

 


RESUMO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa cujo objetivo foi identificar a percepção que internos de um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) de Florianópolis, tem sobre a instituição. Os dados foram coletados em 2004, através de entrevistas semi-estruturadas e observação participante. Estes foram analisados estabelecendo-se um paralelo entre os estudos de Goffman sobre instituição total e as normas preconizadas pela Reforma Psiquiátrica Brasileira. A maioria dos entrevistados referiu ser o HCTP um misto de hospital e presídio, de caráter predominantemente custodial. O tratamento e as condições de funcionamento da instituição também foram questionados pelos internos. A conclusão é de que as condições institucionais apresentam-se distantes das consideradas ideais pela Reforma Psiquiátrica, necessitando adequar-se ao preconizado pelo novo paradigma de atendimento ao portador de transtorno mental.

Palavras-chave: Hospital. Pacientes. Saúde Mental.


ABSTRACT

This is a qualitative research whose objective was to identify the patients' of a Hospital of Custody and Psychiatric Treatment (HCPT) located in Florianópolis, view on the institution. The data were collected in 2004, through semi-structured interviews and participant observation. They were analyzed by establishing a parallel between the studies of Goffman on total institution and the norms recommended by the Brazilian Psychiatric Reform. Most of the interviewees referred to be HCPT as a cross between hospital and prison, predominantly of a custodial character. The treatments and the operational conditions of the institution were also questioned by the patients. The conclusion is that the institutional conditions reveal to be way different to the ones considered ideal by the Psychiatric Reform, a situation which demands the adaption of such conditions to the recommendations of the new paradigm on patient care to the mentally-ill.

Keywords: Hospital. Patients. Mental Health.


RESUMEN

En el presente artículo se desarrolla una investigación cualitativa cuyo objetivo principal fue el de identificar la percepción que los internos del Hospital de Custodia y Tratamiento Psiquiátrico (HCTP) de Florianópolis, tienen con relación a la institución. Los datos fueron recolectados en 2004, a través de entrevistas parcialmente estructuradas y de la observación participante. Estos datos fueron analizados estableciendo un paralelo entre los estudios de Goffman sobre institución total y las normas preconizadas por la Reforma Psiquiátrica Brasileña. Para la mayor parte de los entrevistados, el HCTP es una mezcla de hospital y prisión, predominantemente de custodia. El tratamiento y las condiciones de funcionamiento de la institución también fueron cuestionados por los internos. La conclusión a la que se llegó es de que las condiciones institucionales encontradas en el hospital, se encuentran distantes de las consideradas ideales por la reforma psiquiátrica, siendo necesario su adecuación a lo preconizado por el nuevo paradigma de atención al portador de trastorno mental.

Palabras clave: Hospital. Pacientes. Salud Mental.


 

 

INTRODUÇÃO

No contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira, a partir de 1990, verificam-se mudanças significativas no campo da política de saúde mental no Brasil, consolidando a perspectiva de desinstitucionalização, criação e a regulamentação de instrumentos legais relativos à implementação da rede de serviços substitutivos.

Dessa forma, um conjunto de portarias e leis, editadas pelo Ministério da Saúde, definem novas exigências em relação à assistência psiquiátrica prestada aos portadores de transtornos mentais1, incluindo a adequação das condições físicas das instituições de atendimento e tendo como referência as regras da vigilância sanitária, a existência de projeto terapêutico, além de uma equipe multidisciplinar e demais mecanismos que garantam melhorias na qualidade assistencial.

Finalmente, em 06 de abril de 2001, foi aprovada a Lei Nº 10.216/2001 (1), que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Essa Lei define novas exigências em relação à assistência psiquiátrica prestada aos portadores de transtornos mentais, incluindo a adequação das condições físicas das instituições que prestam atendimento.

Não obstante, os avanços alcançados na legislação e assistência aos portadores de transtornos mentais, a temática da medida de segurança tem sido pouco aprofundada na Reforma Psiquiátrica Brasileira, sendo que os hospitais de custódia, em todo o País, com exceção de uma ou outra unidade, não estão integrados à rede do SUS. Permanece o desafio do fortalecimento da rede de atenção extra-hospitalar e da capacitação dos profissionais da saúde e da Justiça para o redirecionamento da assistência ao "louco infrator".

Cabe ressaltar que, diferentemente de outras enfermidades, o transtorno mental se particulariza pelo fato de seu portador muitas vezes não se reconhecer como enfermo e por seu prognóstico figurar como uma incógnita, sem uma temporalidade previsível. Dessa forma, o provimento de cuidado, assim como o tratamento ganha contornos impositivos para o doente, que raras vezes colabora, conscientemente, no seu processo de recuperação.

No contexto do Estado de Santa Catarina, o processo de regionalização e a hierarquização dos serviços de saúde mental têm-se caracterizado por uma construção lenta e complexa. A falta de uma rede básica de assistência eficiente tem gerado situações críticas e, com o aumento da demanda, os hospitais psiquiátricos encontram-se superlotados. A repercussão dessa situação se faz sentir, também, no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), instituição onde se desenvolveu esta pesquisa.

O HCTP é um órgão de defesa social e de clínica psiquiátrica, de atuação estadual. Atende a pessoas portadoras de distúrbios mentais que cometeram algum delito e, por isso, estão sob custódia, sendo essa a única instituição do gênero no Estado. De acordo com o Regimento Interno, seu objetivo é oferecer tratamento psiquiátrico ao paciente internado, preservar os direitos humanos e a dignidade do mesmo, bem como garantir qualidade de vida e bom atendimento durante a hospitalização. Visa tratar e recuperar seus internos, buscando reintegrá-los ao meio social e custodiar esses indivíduos que, por determinação judicial, têm uma medida de segurança a cumprir.

No entanto, pouco se sabe acerca de como vivem esses indivíduos nessa instituição, de como é o tratamento que recebem e quais as perspectivas que possuem acerca de seu futuro. Por esse motivo, resolvemos realizar este estudo que tem por objetivo conhecer a percepção que os internos do HCTP têm sobre a instituição e seu funcionamento, tendo por base as diretrizes da Reforma Psiquiátrica e os estudos de Goffman (2) sobre instituição total. Segundo o autor (2) uma instituição total pode ser definida como um local de moradia e trabalho, na qual um grande número de indivíduos com situação semelhante, são separados da sociedade mais ampla, por um período de tempo considerável, levando uma vida fechada e formalmente administrada. Nesse tipo de instituição, todos os aspectos da vida humana são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade. As atividades se processam em grande grupo, com tempo e atividades bem definidas.São consideradas instituições dessa natureza os asilos, os orfanatos, os hospitais psiquiátricos, as prisões, os mosteiros, as casas de custódia, entre outros.

Trata-se de um estudo relevante em conseqüência desse novo paradigma que passou a ser preconizado no país, no tratamento dos doentes psiquiátricos. É importante conhecer a realidade desses internos a fim de propor algumas mudanças no sentido de alcançar um modo de viver mais humano.

 

METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo descritivo-exploratório, realizada no Curso de Especialização em Atenção Psicossocial, promovido pelo Ministério da Saúde em Florianópolis/SC, no ano de 2004. Como já dito anteriormente, o estudo foi realizado no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) de Florianópolis/SC.

A coleta de dados foi realizada através de entrevistas semi-estruturadas com os internos da instituição. Na escolha dos participantes, estabeleceu-se os seguintes critérios: estarem compensados psiquiatricamente, possuírem disponibilidade de tempo e aceitarem participar da pesquisa. Foram selecionados cinco internos, sendo dois com mais de cinco anos de internação; dois internos que residem de um a três anos na instituição e um recém admitido. Esta seleção teve por objetivo verificar as percepções dos internos de diferentes tempos de internação, procurando dar uma visão mais abrangente à pesquisa.

Além das entrevistas, utilizou-se a técnica de observação participante, na qual uma das pesquisadoras acompanhou, por um período de uma semana, a execução das atividades diárias dos internos na Instituição. A utilização dessa técnica teve como finalidade confirmar alguns dados obtidos nas entrevistas.

Na coleta de dados, foram respeitados os aspectos éticos, segundo a Resolução 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde (3), que aprovou as diretrizes e normas para pesquisa envolvendo seres humanos. Os internos selecionados foram informados e esclarecidos sobre a pesquisa e lhes foi assegurado o anonimato, tendo seus nomes substituídos por iniciais que nada tem a ver com seus nomes reais.

Após concordarem em participar do estudo, os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Ressalta-se que o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética do referido hospital e a direção da instituição contribuiu expressivamente para a realização do estudo.

Os dados foram analisados, segundo o método de análise de conteúdo de Bardin (4) estabelecendo um paralelo com os estudos de Goffman (2) sobre instituições totais, e o Modo Psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar de Abílio da Costa Rosa (5) e de outros autores. A partir da análise dos dados, foram estabelecidas as seguintes categorias: O perfil dos internos; A percepção dos internos quanto à internação no HCTP, A percepção dos internos quanto às condições do hospital e tratamento recebido no HCTP; A percepção dos internos na relação com o mundo externo (famílias, licenças e altas); O programa de reintegração social para os internos do HCTP; e As sugestões dos internos para melhorar o Hospital.

 

APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS

Perfil dos internos

O âmbito de atuação do HCTP é estadual, atende pessoas que possuem distúrbio mental e que cometeram algum delito, e, por isso, estão sob custódia. Essa é a única instituição do gênero no Estado de Santa Catarina. O Hospital conta, atualmente, com 93 leitos, tendo 110 internos.

Conforme pesquisa realizada por Marca (6), a clientela internada do HCTP, em sua maioria, tem nível sociocultural baixo; 67% dos internos têm o ensino fundamental incompleto e 12%, são analfabetos. Quanto ao motivo da hospitalização, 64% dos internos, ou seja, a maioria - cumprem medida de segurança, que vai de um a três anos; 20% aguardam laudo de sanidade mental e/ou sentença; 16% são provenientes de outros estabelecimentos penais e encontram-se internados para tratamento. Ainda segundo dados dessa pesquisa, 35% dos internos já cumpriram a medida de segurança determinada, mas permanecem na instituição por falta de apoio sociofamiliar e/ou pela situação de doença.

A faixa etária dos internos varia de 18 a 60 anos de idade, mas está concentrada entre 28 e 32 anos, idade ativa e produtiva para o mercado de trabalho e constituição de família; 83% são de etnia branca. Quase metade dos pacientes internados, ou seja, 44% são reincidentes, o que demonstra a ineficiência do tratamento na reinserção social dos indivíduos (6). Embora esse estudo tenha sido realizado em 2001, os dados atuais referentes aos internos se mantêm bastante semelhantes.

A percepção dos internos quanto à internação no HCTP

Quando questionados sobre a internação, os pacientes falam de sua chegada ao Hospital, especialmente aqueles que se encontram há mais tempo internados. Porém, alguns não conseguem lembrar muito bem de como ocorreu sua internação:

Eu recordo bem pouco, estava muito perturbado, com sensação de perseguição e assustado. O diretor falou comigo, então passei pelos peritos e foi decidido que eu era irresponsável pelo cometido; então fui para o cubículo (VGS).

No caso dos pacientes do HCTP, esses podem ser encaminhados para internação por ordem judicial, na maioria dos casos, ou para exame de sanidade mental; em outros casos, diretamente para o cumprimento da medida de segurança, sendo que nem sempre são informados de que ficarão no Hospital e qual o tempo de permanência. Isso pode ser observado na fala a seguir:

Quando eu cheguei aqui, passei por uma médica; eu pensei que era só uma consulta, mas ela me surpreendeu dizendo que tinha de ficar. Foi um choque, porque já estava bom, estava trabalhando (JSL).

A percepção dos internos quanto à condições do hospital e tratamento recebido no HCTP

Quando os internos foram questionados a respeito da qualidade de vida e das condições oferecidas pelo Hospital, eles manifestaram:

Alimentação e higiene são muito precárias; o vestuário e calçado, numa certa época, foram melhores, mais bem cuidados (VG).

A alimentação tá ruim, em termos de quantidade. A higiene tá péssima, tá faltando material (JEM).

Calçado eu não tenho, só tenho um chinelo que o responsável pela rouparia me deu, mas agora, no inverno, eu vou precisar de uma blusa (JSL).

Uma vez internado, o paciente é despojado de todos seus objetos pessoais e a instituição passa a providenciar pelo menos algumas substituições, porém de forma padronizada. É o caso do uniforme, claramente marcado como pertencente à instituição. Um outro aspecto a ressaltar é que cada fase da atividade diária do paciente é realizada na companhia imediata de outro grande grupo, ocorrendo a perda da privacidade, tudo passa a ser coletivo, impessoal, massificado (2).

Em um estudo realizado no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico na Bahia (7), onde se buscou realizar um censo clínico e psicossocial dos pacientes internados, verificou-se situação ainda pior das relatadas pelos internos do HCTP, parecendo que as realidades dos hospitais de custódia no país são muito semelhantes.

No que se refere ao tratamento prestado pelos profissionais no HCTP, os pacientes referiram ter boa relação com os mesmos, no entanto, fizeram ressalvas quanto à periodicidade dos atendimentos médicos e muitas críticas quanto à atuação dos agentes prisionais. Estes últimos, por vezes, substituem os auxiliares de enfermagem, e nem sempre estão preparados para desempenhar essas funções, que são específicas da profissão de enfermagem. A contratação de pessoal de enfermagem nem sempre é vista como uma necessidade, exatamente porque a instituição tem dupla função de tratar e de aprisionar, confundindo algumas vezes as autoridades que têm poder de decisão no recrutamento e contratação de pessoal.

Essa dupla vertente dos hospitais de custódia é identificada por alguns autores como sendo responsável pelo caráter ambíguo da instituição e dos profissionais de saúde nela inseridos. Parece contribuir para as limitações técnicas do Hospital. Outra questão, identificada como "problemática" dos hospitais de custódia como instituição que visa tratar os doentes e não punir, refere-se aos longos períodos de internação dos pacientes. Nessa direção, estudos anteriormente realizados no HCTP indicam dificuldades decorrentes das questões acima citadas: "o Hospital tem sido tratado pela Secretaria de Justiça e Cidadania2 como uma unidade prisional" (6).

Quanto ao uso de medicação, os pacientes referiram:

A medicação me deixa bem, mas o motivo ainda não conversei com o médico. Talvez eu tenha conversado, não lembro (EO).

Tomo remédio só à noite; eu acho que tenho depressão (JSL).

Tomo Haldol® e Neozine®; eu sofro de paranóia (JEM).3

Observa-se que um grande número de internos utiliza psicofármacos. Atualmente, o modelo psicossocial de assistência leva em consideração os fatores políticos e biopsicossociais culturais como determinantes dos transtornos mentais. Seus meios básicos de tratamento são as psicoterapias, as laboterapias, as socioterapias e um conjunto amplo de dispositivos de reintegração sociocultural. A literatura nos mostra que, além da medicação, muitas vezes indispensável, é necessário que se dê maior valor à linguagem expressa pelo doente mental, pois através dela revelar-se-ão os conceitos que ele tem de si mesmo e do mundo ao seu redor. O mundo das palavras cria e dá significado ao mundo das coisas, proporcionando um novo viver para esse doente e seus familiares (5).

Além das consultas médicas e do tratamento medicamentoso, o HCTP tem oferecido algum tipo de lazer aos internos, conforme pode ser visto através de suas falas:

Muitas vezes alguém vai lá, pega o baralho, daí pronto, não dá mais pra ninguém jogar; aí fica esperando, fazendo fila para jogar baralho. A mesa de ping-pong também não tem mais, acabou. Acho que deveria ter mais coisas (JSL).

Na minha opinião, deveria ter mais atividades, como reunião de grupo. Me sinto muito bem quando faço alguma coisa de lazer, gosto de me manter ocupado (EO).

Me sinto legal, porque passa o tempo rapidinho (JEM).

Fazer algo que se gosta e do qual se obtém prazer é altamente saudável, e esse parece ser um dos últimos elos a se romper no doente mental em relação ao mundo como um todo. Entretanto, nessas instituições, o comum é o predomino do ócio, a falta de atividades sistemáticas, de pessoal qualificado para desenvolver as atividades e recursos relacionados. Em geral, os doentes passam o dia todo deitados no chão e pouco comunicam entre si(7).

A percepção dos internos na relação com o mundo externo (famílias, licenças e altas)

A persistência de um quadro clínico psiquiátrico descompensado e a ineficácia da intervenção tendem a cronificar o portador de transtorno mental. O distanciamento prolongado, a falta de convívio direto entre o doente e sua família leva-o a perder seu espaço no âmbito familiar (8). Na maioria dos casos, é a família o elo mais forte entre o paciente e o seu meio social, na qual este poderá buscar o apoio para seu retorno para casa. Por isso, as visitas, os contatos com familiares são muito valorizados, conforme pode ser evidenciado nas falas dos entrevistados:

A minha família sempre me ajudou, mas agora eles estão querendo me ajudar ainda mais, porque sabem que eu vou precisar deles realmente quando eu sair daqui. A hora que eu for embora, para casa, eu vou precisar deles, assim, de uma maneira bem forte (EO).

Para os internos do HCTP, a possibilidade de alta causa grande ansiedade. Em primeiro lugar, sua liberação deve ser dada pelo juiz e geralmente o paciente não tem conhecimento do tempo que isso poderá levar. Em segundo lugar, acontece o enfrentamento da nova situação. Os vários anos de internação, o distanciamento com a família vão exigir uma nova aprendizagem de convivência fora do hospital.

O que tem contribuído para a reinserção social de um grupo de pacientes é a vinculação dos mesmos ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), possibilitando sua integração à rede de apoio em saúde mental, imprescindível por ocasião da alta. Através das falas dos pacientes, pode-se constatar como é vivenciada por eles a perspectiva de retorno para casa, seus medos e onde devem procurar ajuda:

Pretendo sair do Hospital. Eu tenho uma vontade muito grande, mas ao mesmo tempo tenho receio, tenho medo. Hoje se for para eu dar um passo pra frente, dar um passo em falso, eu prefiro estar como eu estou. Eu tenho apoio lá fora, no CAPS, relacionamentos com pessoas importantes no meio da sociedade, participo do Conselho Municipal da Saúde, das Conferências. Não tem possibilidades de eu voltar para minha casa, para a cidade de origem, porque não existe um clima agradável, depois do que aconteceu comigo fica difícil (VGS).

O que mais quero é sair do Hospital. Eu vejo que tenho condições de sair, trabalhar. Até porque foram me buscar lá fora; já estava organizada minha vida (JSL).

Seguramente os CAPS (9,10), é que têm atualmente dado sustentação aos pacientes egressos dos hospitais psiquiátricos e aqueles que vivem em instituições como o HCTP, entre outros. O processo de reabilitação já vem causando efeito na vida desses indivíduos. Esses CAPS viabilizam autonomia dos que participam dele, possibilitam a ampliação nas relações, na vida afetiva, social e econômica. Nesse serviço, os doentes costumam realizar consultas médicas e participar de grupos terapêuticos, realizando inclusive atividades laborativas.

O programa de reintegração social para os internos do HCTP

O processo de reinserção social do portador de transtorno mental com um longo período de internação é complexo. O manicômio tem as características de uma instituição total que, segundo Goffman(2), se caracteriza por ter controle das atividades e da vida do indivíduo por meio do domínio sobre a sua individualidade e seu tempo.

Os objetivos da desinstitucionalização são: eliminar os meios de contenção, restabelecer a relação do indivíduo com o próprio corpo, reconstruir o direito e a capacidade de uso dos objetos pessoais, abrir as portas, produzir relações, espaços e objetos de interlocução, liberar sentimentos, restituir os direitos civis, eliminando a coação, as tutelas judiciais e o estatuto da periculosidade; e reativar uma base de rendimentos para poder ter acesso aos intercâmbios sociais (11).

O Ministério da Saúde está lançando o Programa de Volta para Casa, atendendo o dispositivo da Lei Nº 10.216/2001 (1), no seu artigo 5º, que determina que os pacientes há longo tempo hospitalizados, para os quais se caracterize situação de grave dependência institucional, sejam objetos de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida (1). O objetivo é a inclusão social de pacientes e a mudança do modelo assistencial em saúde mental, com ampliação do atendimento extra-hospitalar e comunitário. Esse Programa vem incentivar a organização de uma rede ampla e diversificada de recursos assistenciais e de cuidado, principalmente assegurar um meio eficaz de suporte social e econômico aos pacientes e familiares.

A integração do Hospital com a rede de apoio se dá através dos CAPS ou programas de saúde mental dos municípios, para onde são encaminhados os pacientes com alta. Com o apoio da Coordenação de Saúde Mental do Estado, já estão sendo feitos encaminhamentos necessários para a inclusão de pacientes no referido Programa.

As sugestões dos internos para melhorar o Hospital

Ao se pensar o Hospital como instrumento terapêutico, tem-se a idéia de participação, de liberdade. O processo saúde/doença mental deve ser entendido a partir de uma perspectiva contextualizada, em que a qualidade e modo de vida são determinantes para a compreensão do sujeito, sendo de importância fundamental vincular o conceito de saúde ao exercício de cidadania.

Iniciativas da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde, junto à área da Justiça, tem procurado construir uma política para os hospitais de custódia que atenda as determinações da Lei N° 10.216/2001(1), incluindo definitivamente a questão do doente mental infrator no campo da reforma psiquiátrica.

Acredita-se que esse processo poderá levar a uma adequação do HCTP às exigências preconizadas pela reforma psiquiátrica (espaço físico adequado, projeto terapêutico, equipe multiprofissional, oficinas de trabalho, licenças para saídas, educação e formação profissional), atendendo as expectativas dos internos.

No caso específico do HCTP; é importante conhecer as sugestões que os internos apresentam para melhorar a qualidade da assistência prestada:

Que as pessoas que trabalham no Hospital se conscientizassem. Hoje, com a Reforma Psiquiátrica lá fora, as pessoas estão olhando por outro lado. Mudar o espaço físico; deveria ter salas para oficinas, terapia; mudar o pátio que é um porão (VGS).

Há excesso de pacientes. A assembléia dos pacientes deve ter mais força. O atendimento jurídico deveria ser mais rápido. Deveria ter um campo de futebol, atividades em oficinas, como já teve, mas com uma sala específica (JEM).

Melhorar a alimentação, mais respeito dos agentes prisionais, atendimento mais freqüente pela assistente social, psicóloga (RRR).

Mais atividades e os agentes prisionais serem trocados por enfermeiros qualificados. Que as reuniões dos grupos fossem semanais (JSL).

Ressalta-se que as oficinas de trabalho podem viabilizar ao interno a qualificação necessária para a ocupação de cargos quando retornar ao convívio social. Além disso, é fundamental para que o interno sinta-se útil e importante como ser humano. Mas para que volte ao convívio social mudado e exerça uma atividade produtiva é preciso que a sociedade compreenda que empregar um portador de transtorno mental é um ato de cidadania e não de caridade (12).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através deste trabalho, procurou-se conhecer a evolução da produção no campo teórico e legislativo acerca da reforma psiquiátrica, bem como as normas preconizadas pelo Ministério da Saúde para o funcionamento das unidades hospitalares em psiquiatria, estabelecendo um paralelo com a realidade vivenciada no HCTP. Através das entrevistas realizadas com os pacientes, conheceu-se melhor essa realidade. Pela palavra, descobre-se que assim como temos nossas concepções sobre doença mental e de como se pode tratá-la, os doentes mentais também as têm, ao seu modo. O estabelecimento do diálogo é condição fundamental para que o "louco" se torne cidadão. Por isso, nada mais importante do que ouvir a fala de quem está diretamente implicado com a Instituição. De um lado, o interno; de outro, o profissional que desenvolve seu trabalho no hospital e que, de alguma forma, interage com o portador de transtorno mental.

Ao concluir o trabalho, pode-se considerar: o HCTP é uma instituição predominantemente custodial, na qual o tratamento e suas condições de funcionamento são questionados pelos pacientes.

A área, do ponto de vista terapêutico, não pode ser considerada condizente com os objetivos propostos na Lei N° 10.216/2001 (1) que define os direitos da pessoa portadora de transtorno mental, bem como não atende as normas preconizadas pelas Portarias ministeriais n° 224/92 e n° 251/02 (13). O espaço físico é pequeno para atender a demanda de pacientes e periciados. A estrutura, que data dos anos 1970, é antiga e precária para a realidade atual.

Com o aumento da população catarinense, automaticamente a demanda de pacientes quase triplicou no HCTP. Em 1971, a média era de 45 pacientes internados, hoje gira em torno de 114. Considerando que só existem 93 vagas, muitas vezes, pacientes são acomodados no chão paciente/chão, fato totalmente incompatível com uma instituição hospitalar. O Hospital não conta com salas apropriadas para as atividades de oficinas terapêuticas, conforme é previsto na legislação. Embora se procure envolver os pacientes em atividades laborativas limpeza das enfermarias, pátios, rouparia e refeitório são insuficientes, contribuindo para a total ociosidade da maioria dos internos e diminuindo as chances de reinserção social.

Quanto aos recursos humanos, ao invés de ter um aumento expressivo, houve redução no quadro de profissionais. O Hospital carece de terapeuta ocupacional e nutricionista, profissionais que deveriam integrar a equipe. Embora com uma série de limitações, os profissionais têm procurado atuar com outros recursos além da medicação: reuniões com pacientes, trabalho, atividades extra-hospitalar. No entanto, não são suficientes para satisfazer as necessidades dos internos.

Verifica-se que a temática da medida de segurança foi pouco aprofundada na Reforma Psiquiátrica Brasileira e o HCTP, como os demais hospitais dessa natureza, ficaram à margem das mudanças preconizadas pelos novos paradigmas no atendimento ao portador de transtorno mental. Foi referendada no Relatório da III Conferência de Saúde Mental (14) a necessidade da reforma psiquiátrica ser norteadora das práticas psiquiátricas forenses. Também foi enfatizada a necessidade da questão do manicômio judiciário ser discutida junto às diferentes áreas envolvidas - legislativa, previdenciária, saúde mental, direitos humanos - com o objetivo de buscar formas de garantir o direito do portador de transtorno mental infrator à responsabilidade, à inserção social e a uma assistência dentro dos princípios do SUS e da reforma psiquiátrica.
Nos últimos dois anos, o Ministério da Justiça vem tomando iniciativas no sentido de construir, junto à área da saúde, uma política para os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico que atenda as determinações da Lei Nº 10.216/2001 (1). Trata-se, sem dúvida, de um importante passo para a consolidação da Reforma Psiquiátrica Brasileira.

 

REFERÊNCIAS

1. Lei nº 10.216 de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília (DF), 06 abr 2001; Seção 1: 2.

2. Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. 4ª ed. São Paulo(SP): Perspectiva; 1992.

3. Ministério da Saúde (BR). Resolução nº 196 de 10 de outubro de 1996. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília (DF): Conselho Nacional de Saúde; 1996.

4. Bardin L. Análise de conteúdo. 3a ed. Lisboa (PO): Ed 70; 2004.

5. Costa-Rosa A. O modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: Amarante P, organizador. Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro (RJ): FIOCRUZ; 2000.

6. Marca LA. Perfil dos internos do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Florianópolis/SC [monografia de conclusão de curso]. Florianópolis (SC): Faculdade de Serviço Social/UFSC; 2001.

7. Pitta AMF, Rabelo AR. Relatório do censo clínico e psicossocial do Hospital de Custódia e Tratamento do Estado da Bahia. Salvador (BA); 2004.

8. Rosa LCS. Transtorno mental e o cuidado na família. São Paulo (SP): Cortez; 2003.

9. Ribas DL, Borenstein MS. CAPS-Florianópolis: uma experiência de grupo com clientes psicóticos fora dos muros do manicômio, durante dez anos. Rev Bras Enferm 1999 abr/jun;52(2):179-88.

10. Marzano MLR, Souza CAC. O espaço social do CAPS como possibilitador de mudanças na vida do usuário. Texto&Contexto Enferm 2004 out/dez;13(4):577-84.

11. Dias MTG. Manicômios: sua crítica e possibilidade de superação. In: Puel E, Ramison MD, Brum MCFM, May MP, Dias M, Silva TJ, organizadores. Saúde mental: transpondo as fronteiras hospitalares. Porto Alegre (RS): Dacasa; 1997.

12. Oliveira LH, Miranda CMI. A instituição psiquiátrica e o doente mental. Esc Anna Nery Rev Enferm 2002 abr;4(1):95-103.

13. Ministério da Saúde (BR). Legislação em saúde mental 1990-2002. 3a ed. Brasília (DF); 2002.

14. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Assistência à Saúde. Relatório Final da 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental. Brasília (DF); 2001.

 

 

Recebido em 05/04/2006
Reapresentado em 15/08/2006
Aprovado em 19/10/2006

 

1Na literatura sobre saúde mental, dependendo do momento histórico, encontram-se termos, tais como louco, alienados, doentes mentais para designar a pessoa que sofre de algum transtorno mental. Atualmente, o termo aceitável é o de portador de sofrimento psíquico, por não terem sido esclarecidas ainda as possibilidades de ocorrência do fenômeno da doença mental e suas determinantes.

2Até o ano de 2003 o Hospital estava vinculado a Secretaria de Justiça e Cidadania, passando, posteriormente, a ser subordinado da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa do Cidadão.

3 Haldol® e Neozine® psicofármacos indicados para casos de transtornos psicóticos.

 

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