Volume 10, Número 4, Out/Dez - 2006
PESQUISA
A doença mental vivida por um paciente psiquiátrico: suas percepções1
The mental illness experienced by a psichiatric patient: their perceptions
La enfermedad mental vivida por un paciente psiquiatrico: sus percepciones
Antonia Regina Ferreira FuregatoI; Edilaine Cristina da SilvaII
IProfª. Titular do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas EERP/USP. e-mail: furegato@eerp.usp.br
IIEspecialista em Laboratório e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem Psiquiátrica EERP/USP.
RESUMO
Realizou-se uma série de interações de ajuda com um portador de doença mental e seus familiares, devidamente esclarecidos. As 15 entrevistas gravadas que objetivaram conhecer suas percepções sobre o adoecer foram trabalhadas pelos enfermeiros do NUPRI (Núcleo de Pesquisas das Relações Interpessoais). Dos dados processados no Programa ALCESTE derivou um arquivo com 139.843 palavras correlacionando as atitudes dos sujeitos aos seus medos. Como resultado, o ALCESTE selecionou 5 classes: o acidente na infância; as conseqüências; as relações adolescentes; o adoecimento com internação; as atividades atuais. Observa-se o impacto da cultura e das regras do grupo na dinâmica identitária do sujeito que construiu sua realidade a partir de acontecimentos determinantes de sua história de vida. A doença reúne os conflitos que são legitimados pela atitude da família e do sistema de saúde, mediações entre a alteridade e o significado dado à doença.
Palavras-chave: Psiquiatria. Enfermagem. Representações. Percepção.
ABSTRACT
We carried out a series of interactions with a mental patient and his relatives, who received the necessary information. Nurses from NUPRI (Núcleo de Pesquisas das Relações Interpessoais) worked with 15 recorded interviews that aimed get to know perceptions about the disease. Data were processed using ALCESTE software. We obtained a file with 139,843 characters, correlating subjects' attitudes with their fear. ALCESTE selected 5 classes: the accident in childhood; the consequences; adolescent relations; disease and hospitalization; current activities. We observed the impact of culture and group rules on the subject's identity dynamics, who constructed his reality on the basis of happenings that determined his life history. The disease joins the conflicts that are legitimized by the family's and the health system's attitudes, mediations between altered and the meaning given to the disease.
Keywords:Psychiatry. Nursing. Representations. Perceptions.
RESUMEN
Se efectuó una serie de interacciones de ayuda con un portador de enfermedad mental y sus familiares, debidamente informados. Las 15 entrevistas grabadas que objetivaban conocer sus percepciones sobre la enfermedad fueron trabajadas por las enfermeras del NUPRI (Núcleo de Pesquisas das Relações Interpessoais). De los datos procesados en el ALCESTE se obtuvo un archivo con 139.843 caracteres, correlacionando las actitudes de los sujetos con sus miedos. El ALCESTE seleccionó 5 clases: el accidente en la infancia; las consecuencias; las relaciones adolescentes; el adolecer con hospitalización; las actividades actuales. Se observa el impacto de la cultura y de las reglas del grupo en la dinámica de identitad del sujeto que construyó su realidad a partir de acontecimientos que determinaron su historia de vida. La enfermedad reúne los conflictos que son legitimados por la actitud de la familia y del sistema de salud, mediaciones entre la alteridad y el significado conferido a la enfermedad.
Palabras clave:Psiquiatría. Enfermería. Representaciones. Percepción.
INTRODUÇÃO
Uma das maneiras de ajudar o paciente em suas necessidades ocorre quando o enfermeiro se coloca à frente de um processo interativo. Este processo tem início no encontro entre o que pede e o que oferece ajuda; seu curso varia segundo o modelo adotado pelo terapeuta; o encerramento ocorre quando foi atingido o objetivo proposto(1).
Ajudar alguém em suas necessidades consiste no conjunto de habilidades técnicas utilizadas pelo profissional para que o outro consiga: 1 - ter consciência do que está acontecendo; 2 - considerar a realidade que o cerca; 3 - encontrar saídas para o problema que se apresenta; 4 - avaliar os prós e os contras de suas atitudes. O profissional precisa ter o conhecimento, a técnica e a tranqüilidade para permitir que o outro encontre seu caminho neste processo (1-3).
A comunicação inclui todo intercâmbio de mensagens e transmissões de significações entre pessoas ou grupos, tendo como elemento de primeira magnitude a linguagem(4).
O Modelo de Análise do Processo Interativo (MAPI) entre o enfermeiro e o paciente é um procedimento acadêmico/científico proposto por enfermeiras psiquiátricas(5-6), onde se assiste aquele que precisa de ajuda, utilizando-se as técnicas de Relacionamento Terapêutico. Para trabalhar estes dados em pesquisas, utiliza-se a Análise do Conteúdo(7).
Através do MAPI, é possível analisar interações entre o enfermeiro e o paciente ou seus familiares. A partir dos conteúdos expressos procuram-se os dados sobre suas necessidades e aí se estabelecem os diagnósticos de enfermagem. Esse processo direciona o enfermeiro em suas ações interativas, através de uma análise sistematizada da relação enfermeiro-paciente.
Nesse modelo, a postura técnica da enfermeira é não-diretiva, compreensiva e reflexiva. As informações captadas nas interações vão para o domínio cognitivo do enfermeiro, que as utilizará no momento adequado, visando ajudar o outro no processo terapêutico.
As imagens mentais (retidas nos sentidos e na memória) são especiais de cada individuo e, se admitimos que suas representações são expressões sensoriais sobre seu mundo (vivido e imaginado), o conteúdo expresso permite análises do seu cotidiano em um determinado contexto social.
Uma idéia não é simplesmente ligada à representação de um objeto, mas está ligada à maneira como o sujeito a apreende, em função de sua identidade e em função também de sua intenção(8). Portanto, as comunicações da pessoa na relação de ajuda contêm idéias que exprimem atitudes frente a sua subjetividade.
OBJETIVOS
1 - Aplicar o Modelo de Análise do Processo Interativo MAPI junto aos portadores de doença mental e seus familiares visando a ajuda terapêutica;
2 - Analisar o conteúdo das interações buscando conhecer as percepções dos sujeitos sobre a vivência com o adoecimento.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo de caso com abordagem clínica e análise qualitativa dos dados.
Realizou-se um atendimento de enfermagem com um usuário do NAPS - Núcleo de Apoio Psicossocial de Ribeirão Preto e seus familiares. Os momentos interativos em forma de entrevistas não-diretivas foram registrados.
O projeto, aprovado em Comitê de Ética, previa que as interações fossem agendadas, proporcionando aos sujeitos total liberdade de participar ou não, com os devidos esclarecimentos sobre o projeto da pesquisa e seus resultados. O paciente foi selecionado pela enfermeira do serviço, considerando o fato de ser portador de transtorno mental e em condições de comunicação.
Após cada interação, a gravação era transcrita e colocada à disposição do usuário e/ou seus familiares para aprovarem. O material transcrito foi trabalhado pelas enfermeiras do NUPRI (Núcleo de Estudos e Pesquisa das Relações Interpessoais) com a finalidade de 1) analisar criticamente cada passo da proposta e do conjunto das mesmas, e 2) aprendizado dos participantes desse Projeto. Das interações identificavam-se as necessidades do sujeito, as ações de enfermagem implementadas e seus benefícios terapêuticos.
A análise da percepção dos sujeitos sobre o adoecer focalizou as comunicações do paciente A e seus familiares, P, C, M e I. Utilizou-se o Programa ALCESTE, um software científico que visa descobrir a informação essencial contida num texto, através de análise estatística textual. O programa quantifica as informações do texto, classificando-as e correlacionando-as (9-10).
A atuação da enfermeira foi avaliada através do conteúdo expresso durante cada interação, conforme se observa nas análises do conteúdo das entrevistas.
RESULTADOS
A - Atendimento da enfermeira ao paciente psicótico e seus familiares
Realizamos uma série de encontros (10) com o paciente A em forma de entrevistas não-diretivas, semanalmente, com duração de 50 a 60 minutos. As interações ocorriam em horário e local previamente acertados com o paciente, o mesmo ocorrendo quando seus familiares participaram do trabalho (5).
A interação não-diretiva coloca o sujeito no centro de sua atenção. Dessa forma, o enfermeiro pode, acompanhando o relato do paciente, obter os dados de sua história, identificar suas necessidades, atuar terapeuticamente em sua comunicação imediata. Também apóia o paciente nas suas decisões saudáveis para os problemas apresentados e propõe alternativas, quando isto se faz necessário(1,11).
Assim, após cada encontro, buscávamos identificar as necessidades apresentadas pelo paciente, as ações que foram empreendidas pela enfermeira neste encontro, as ações futuras e comentários avaliativos deste conjunto.
Observou-se que, ao longo do processo terapêutico, as necessidades foram se apresentando gradativamente. Para atendê-las, a enfermeira foi buscando alternativas ou apoiando aquelas soluções propostas pelo paciente. Na seqüência, apresentamos um resumo das necessidades identificadas e as ações de enfermagem implementadas.
a) Necessidades Identificadas: Atenção; Falar sobre suas experiências na doença; Abordar suas dificuldades de sair; Abordar suas dificuldades de se relacionar com as pessoas; Falar sobre suas relações familiares; Analisar o tratamento e os progressos que vem obtendo; Diversão; Trabalho; Elevar sua auto-estima; Explorar a repressão da família (especialmente do pai); Abordar seus medos; Conhecer seu esquema medicamentoso atual, suas reações, seu conhecimento sobre o assunto; Ampliar seu repertório de atividades e sua comunicação; Ampliar suas relações sociais; Reforçar suas conquistas.
b) Ações de enfermagem: Escutar atentamente; Investigar com o paciente as informações que possui e sua própria percepção da doença, dos tratamentos que já fez, das suas relações familiares e sociais, das suas perspectivas de vida; Investigar o que acha que os outros (pai, mãe, médico, amigos) pensam sobre sua situação; Conhecer seus sentimentos a respeito de ser portador de uma doença mental e sobre seu futuro; Identificar interesses, dons, p referências e rejeições; Conhecer suas vivências sadias e aquelas ligadas ao adoecimento; Explorar com ele várias possibilidades de exercer atividades de seu interesse; Estimular suas capacidades e sua responsabilidade pessoal na busca de maior independência; Apoiar suas tentativas de vencer as dificuldades; Estimular sua comunicação, ampliando seu discurso tão cristalizado pelos anos de adoecimento e falta de convívio social; Ajudá-lo a escolher saídas sadias para suas dificuldades; Ajudá-lo a se preparar para futuras e eventuais crises; Conhecer o que os familiares pensam e sentem a respeito do paciente, sua doença e suas expectativas; Explorar com o paciente os recursos existentes na sua comunidade.
Foram realizadas algumas interações com os familiares do paciente A., seguindo os mesmos procedimentos éticos já mencionados. Nesses contatos que se deram com o pai, a mãe, o irmão e a cunhada a história relatada sobre a doença, os recursos utilizados para vencer as dificuldades, a conduta de cada um com o paciente foram muito coerentes com o que o paciente relatou. Apresentavam-se um pouco ansiosos a apreensivos, porém alegres e receptivos.
O pai mostrou-se uma pessoa muito séria, bastante radical e irredutível em suas posições. A família depende do seu aval para tudo. Disse que já solicitou acompanhamento da família no serviço de saúde e lhe foi negado. Reclama da sobrecarga, porém não abre mão de seu controle e autoridade.
A mãe apresentou-se como uma pessoa frágil, de pouca fala e pouca ação, muito dependente do marido. Afetivamente é procurada pelo paciente o qual procura apoiá-la quando a autoridade do pai a impede de alguma atitude independente.
O irmão mostrou-se pouco. Diz-se interessado em ajudar, porém está muito envolvido com seu trabalho e sua própria vida.
A cunhada dispõe-se a falar sobre o paciente e a família. É um elemento de ligação em quem o paciente deposita confiança.
Durante as entrevistas com os familiares, identificamos necessidades de esclarecimento sobre a doença, sobre os sintomas e os tratamentos que o paciente está fazendo; de orientação sobre o manejo dos sintomas, sobre atitudes que podem ajudar o paciente quando apresenta sintomatologia. Identificamos que todos têm a idéia fixada no acidente de queda do muro sobre o paciente quando este era criança e sobre o episódio da crise (quando o paciente ameaçou matar-se e matar qualquer pessoa que atravessasse seu caminho). Este período levou o paciente à internação. Evidenciaram grande apreensão em relação ao comportamento do paciente bem como atitudes de super proteção (presentes desde o acidente da infância do paciente), não estimulando a independência e a busca de novas saídas para o paciente.
As ações de enfermagem junto aos familiares foram: Escutar; Esclarecer sobre a doença, os sintomas, a conduta do paciente e os tratamentos que vem realizando; Estímulo à ampliação de atividades e relações sociais do paciente; Apoio às iniciativas que demonstravam aspectos positivos para a recuperação do paciente; Orientação sobre as dificuldades do paciente em mudanças radicais e reforço ao trabalho lento de estímulo e ajuda; Reconhecimento do esforço de cada um e das dificuldades de conviver com pessoa portadora de doença mental crônica.
B - Análise do conteúdo das comunicações de um paciente psicótico e seus familiares, durante o cuidado de enfermagem
Para análise do conteúdo, através do software ALCESTE, as transcrições foram preparadas, obedecendo aos seguintes detalhes: tudo foi colocado num arquivo único em letras minúsculas, courier-10, com quebra de linha. Respeitando a pontuação, foram eliminados os maiúsculos, siglas e outros sinais com hífen, aspas, cifrão e apóstrofo. Cada entrevista foi considerada uma UCI (Unidade de Contexto Inicial) separadas por uma linha de comando que contém as variáveis que diferenciam uma de outra. Após a entrada convencional do Programa ALCESTE- versão 4.5 (****), definimos as variáveis: número de cada interação (INT), o indivíduo entrevistado (IND) e o entrevistador (ALU). O conjunto das unidades de contexto iniciais constitui o "corpus", ou seja, o objeto de estudo(8).
O arquivo foi nomeado como Atitudes tendo como elemento de correlação a palavra Medos, também, colocada na introdução do conteúdo para a análise, tal como o recorte abaixo:
**** *Int_1 *Ind_ *Alu_1
MEDOS
ATITUDES
meu problema começou dentro da firma onde eu trabalhava; comecei a sentir mal dentro da firma, muito pressionado. as pessoas mexiam comigo. eu vivia nervoso na época da firma.
O arquivo com 139.843 caracteres reformatado e dividido em segmentos pelo próprio programa (Unidades de Contexto Elementar - UCE de 3 a 5 linhas) compunha-se de trechos que representam quadros perceptivo-cognitivos com certa estabilidade temporal, associados ao contexto apresentado. São campos lexicais ou contextos semânticos. Para os estudiosos deste software, estas UCEs (Unidades de Contexto Elementar) são imagens ou campos sobre algum objeto específico(8-10).
O ALCESTE faz uma pesquisa do vocabulário e reúne as palavras, conforme suas raízes (formas reduzidas), tal como choro - chorando, chorar, chorei, chorou, chorava, chora. A seguir, estes trechos (UCE) são classificados, de acordo com sua freqüência e apresentados de forma hierárquica, descendente em classes. Faz os cálculos, define as classes e a análise fatorial de correspondência (AFC), representando as relações entre as classes, num plano fatorial. Seleciona as unidades de contexto elementares mais características de cada classe, numera e constrói um relatório contendo o número de UCEs selecionadas para cada contexto assim como a porcentagem de citações e o respectivo cálculo do ÷ 2 para cada palavra significativa do contexto.
Nosso estudo mantinha os mesmos atores sociais, variando os relatos em 3 momentos ou épocas que o ALCESTE selecionou em 5 classes: 1) o acidente na infância; 2) as conseqüências; 3) as relações adolescentes; 4) o adoecimento com internação e 5) as atividades atuais.
Tomando cada classe como uma unidade de contexto ou categoria, obtém-se ao nível cognitivo uma representação singular do objeto segundo sua freqüência de menção no texto. A palavra ou conjunto de palavras, de mesma raiz, enunciada pelo indivíduo, traz consigo a noção de idéia que reflete o sentido dado a um determinado objeto por um indivíduo, numa situação específica e num momento dado(8).
Cada Classe destacada pelo ALCESTE contém uma lista das palavras mais significantes. O coeficiente de associação de uma forma a uma classe é um quiquadrado a 1 grau de liberdade, calculado sobre a tabela de contingência, cruzando a presença ou ausência da palavra na UCE e a pertinência desta UCE em relação à classe considerada. Desta análise textual obteve-se 5 categorias:
1 O acidente na infância. Os principais personagens mencionados são o sujeito, o pai, a mãe e o médico, acompanhados dos verbos de ação como cair, machucar, tratar, observar, cuidar e errar. Objetos e lugares mais freqüentemente citados são álcool, comida e Hospital das Clínicas evocando sentimentos de ansiedade, culpa, dependência, sofrimento, segurança. Chama a atenção a presença de adjetivos como certinho e responsabilidade.
2 As conseqüências. Os principais personagens são o irmão, amigos e criança, acompanhados dos verbos de ação brincar, estudar, jogar, cair, participar, perturbar, apanhar e afastar. Objetos e lugares mais citados são barriga, brinquedo, criança, escola, hospital e gibi evocando sentimentos de vergonha, timidez e solidão. Chamam a atenção as sensações de ser diferente e de desvalorização.
3 As relações adolescentes. Destacam-se colegas, gente, moça, profissionais e pessoas como personagens, acompanhados dos seguintes verbos de ação agredir, acostumar, acreditar, caminhar, continuar, desistir, conversar, enfrentar, lutar e controlar. Há muitas palavras evocando sentimentos ambivalentes de medo e de liberdade, nervoso, preocupação, tranqüilidade, sexualidade, esperança, mas com destaque para sozinho, suicídio, feliz e forte. Foi o período em que o paciente trabalhou num almoxarifado e teve namoradas, mas é também o período em que a doença apresentou os sinais evidentes.
4 O adoecimento com internação. Ressaltam-se nos personagens a família, o pai e Jesus bem como situações do hospital psiquiátrico, cabeça, inferno, noite, vozes, religião, porta, remédio e tratamento. Os verbos que indicam ação mais freqüentes foram ajudar, apoiar, conversar, escutar, ouvir, imaginando, poder, acontecendo, acompanhados dos sentimentos de desespero, perigo, choro, crise, desabafo, perdido e loucura.
5 Atitudes atuais. Destacou-se médico e sobrinho como personagens e os verbos indicando ações de defesa, falta, espera, enfrentar, acompanhados de palavras que evocam sentimentos de agressão, nervosismo, solidão, normalidade e enfrentamento. São destaques o Naps, o medicamento, sexta-feira e domingo, a igreja, a missa, a praça e o quarteirão.
O ALCESTE fez uma distribuição das idéias contidas nas falas que analisou. No Quadro I Projeção da análise num plano correlacional, o programa coloca no quadrante esquerdo inferior o adoecimento, a crise, a internação e as sensações decorrentes deste episódio marcante. No quadrante direito inferior encontram-se a família, a bebida, a comida, o fumo, a mãe e o pai. Interessante o destaque para o médico e a mãe próximos de cuidados e o pai muito isolado embora, no discurso, seja a pessoa em torno da qual giram todas as ações da família.
No quadrante superior direito estão as conseqüências do acidente na infância e o período de adolescência que inclui a cirurgia, o trabalho, a escola, colegas, amizades apesar da timidez sempre presente.
A situação atual está mais distribuída no quadrante esquerdo superior. Apesar dos problemas relativos ao medo de sair e de ser agredido, aparecem as atividades que vem empreendendo para libertar-se aos poucos, tais como a freqüência ao Naps, o medicamento, a missa, a praça, as caminhadas e a possibilidade de melhorar.
Lançando novo olhar para a projeção da análise no plano correlacional, verifica-se que o problema e o medicamento estão próximos e mais centralizados (plano central). Ampliando igualmente a visão dos níveis inferiores, aproximam-se tratamento, família, hospital, choro, noite e remédio e nos níveis superiores aproximam-se os léxicos igreja, domingo, feliz, pouquinho, missa e caminhar (2º plano).
DISCUSSÃO
A qualidade da interação, o aprofundamento e a extensão da abordagem obtida são algumas indicações de que o processo caminhou na direção da ajuda ao paciente e aos seus familiares.
O processo terapêutico teve um Início onde a proposta de ajuda foi aceita pelo paciente (A) e Desenvolvida pela enfermeira (J) com o paciente (A), Complementada com a participação dos familiares (P, M, I e C) e das enfermeiras (E e A) sendo Supervisionada pela pesquisadora/docente (R).
O desenrolar deste processo foi acompanhado de discussões e avaliações que focalizaram a atuação da enfermeira, suas comunicações, seu entendimento do conteúdo verbalizado assim como sua conduta e respostas às necessidades apresentadas pelo paciente.
Pelo conteúdo registrado neste estudo, os procedimentos de enfermagem seriam a base para as ações apresentadas no caso em foco. O Modelo de Procedimento de Enfermagem de Saúde Mental reúne as principais ações de enfermagem que orientam o profissional numa interação de ajuda, ou seja, permitir que a pessoa fale, sem julgamentos ou críticas, ajudando-a a tomar consciência das suas preocupações e recursos, ajudar a pessoa a estabelecer prioridades, apoiar as atitudes positivas, reforçando sua participação ativa neste possesso.
Durante cada interação entre duas pessoas, ocorrem avaliações. A pessoa que precisa de ajuda (paciente) avalia a pessoa do profissional (enfermeira) através de suas atitudes no que diz respeito aos benefícios que este está lhe trazendo. O profissional avalia seu próprio comportamento e também o do outro, analisando todo o procedimento terapêutico oferecido através dessa interação, com base nas necessidades apresentadas, nas possibilidades e propostas de resolução.
O relacionamento é terapêutico na medida em que o profissional ajuda a pessoa a estabelecer acordo entre suas experiências pessoais e a representação adequada delas. Esta concepção tem por base os estudos de congruência e de relações de pessoa a pessoa(3,12,13,14).
A função do terapeuta não é pensar pelo paciente, mas com ele(15). No processo terapêutico, as atitudes negativas em relação à própria pessoa diminuem e as atitudes positivas aumentam(3-12). A fala nº 348 ilustra um desses momentos da interação.
348 |
27 |
eu acho que eles estao certos. eu vejo por mim mesmo - que é verdade,que o medo e o nervosismo estão cada vez mais passando. eu estou saindo,estou tendo coragem para sair, isso contribui para a minha melhora. na verdade, pensando bem, até - que eu estou contribuindo mesmo, um pouquinho |
O processo terapêutico deve oferecer oportunidades de aprendizado e busca de novas saídas. A fala nº 635 mostra este aspecto associado ao ganho de confiança, após um passo conquistado na direção da independência.
635 |
14 |
no fundo, eu sei que eu já melhorei bastante, a gente reconhece que houve uma melhora muito grande e esses maus pensamentos vão passando, vão diminuindo. eu estou acreditando mais na melhora. eu me sinto assim. as vezes eu fico imaginando, pensando em poder ir a lugares diferentes e testar a minha cabeça, mas ainda tenho medo, eu não vou mais longe do que eu já fui até agora. |
B - O conteúdo do processo interativo entre a enfermeira e o paciente.O Programa selecionou 5 classes que continham, em percentagens, a importância dada pelo paciente e seus familiares aos diferentes fatos de sua vida: 4 focalizam a história dos relatos do que se passou e apenas 1 se fixa no momento atual.
Talvez seja mais fácil abordar fatos passados, consumados, elaborados e reelaborados por todos, sem correr o risco de interpretações atuais com as quais não se sabe lidar.
Encontramos o que se poderia chamar de "comunicações rígidas", com muita fixidez(3,12). Tanto o paciente como seus familiares adotaram posturas que não permitem facilmente a penetração de novas possibilidades para melhora ou para mudanças de atitudes. Todos convivem com a doença à qual já se adaptaram.
A freqüência das palavras deste conteúdo remete a um processo de adaptação à doença. Todas as atitudes deste grupo giram em torno desta adaptação à doença.
Observando as falas dos sujeitos, percebe-se que a família e suas interações são acompanhadas de muitas ações negativas. Entretanto, as atividades externas como escola, emprego, rua, Naps, missa são acompanhadas de ações mais positivas como se observa no Quadro I e na fala 451.
451 |
14 |
no caso do A era um todo que foi virando uma bola de neve. a maneira como foi conduzida a vida, não poder fazer as coisas porque era errado e ele foi criado com muito tabu. |
Nas 5 classes destacam-se sentimentos de culpa, dependência, vergonha, timidez, solidão e medo que se evidenciam pela sua freqüência, tendo sido altas as correlações de freqüência nas classes selecionadas (÷2 > 3 e freqüência > que 50). A família está aproximada com álcool, fumo, médico, comida, tombo, embora a mãe esteja associada a cuidados.
O adoecimento está associado a inferno, loucura, vozes, noite, choro. As relações exteriores que sempre foram controladas pela família adquirem aspecto positivo e estão associadas a colegas, amigos, escola e trabalho. As UCEs nº 5, 14 e 119 contêm trechos dessas passagens:
5 |
44 |
comecei a ouvir vozes, fiquei desesperado.essas vozes diziam que a minha familia estava em perigo, que eles iam matar meu pai, iam fazer - mal para meu sobrinho, para meu irmão |
14 |
42 |
eu fiquei um dia e uma noite sentado naquela cadeira, so pensando coisas ruins, coisas que vinham da minha cabeca. estava acordado, estava com a mente desligada. só pensava nas tragedias. e como - se eu tivesse apagado. e como-se eu estivesse sozinho, naquela sala. eu não sei explicar direito |
119 |
14 |
eu acho que sair e uma motivação para melhorar o meu estado. eu saindo, apesar-de estar com medo ainda, alivia um pouco, me alivia a tensão. sinto muita vontade de sair, apesar-de-que me sinto um pouco nervoso. fico imaginando que as pessoas podem me agredir a qualquer momento e ser xingado, agressão verbal. |
O trecho extraído da análise de freqüência correlacionando o conteúdo das falas aos medos evidencia um momento da crise sofrida pelo paciente e o momento de sua internação no hospital psiquiátrico. A sintomatologia delirante está ligada diretamente ao tratamento medicamentoso e ao choro; as incertezas estão ligadas à solidão da internação.
REFLEXÕES FINAIS
O relacionamento terapêutico foi a base da comunicação que permitiu conduzir todo o processo interativo, avaliado após cada interação, seguido de "feed back" para a continuidade do processo. As comunicações dos sujeitos foram expressas por palavras e por seu comportamento durante as interações de ajuda.
O conteúdo deste processo foi analisado com o suporte do software ALCESTE que nos permitiu conhecer as percepções de um paciente e seus familiares presos a uma doença, numa estrutura rigidamente estabelecida.
O enfermeiro utilizou seu conhecimento e suas habilidades conscientemente. Sua atitude ajudou a ampliar a consciência do paciente e da família sobre o problema incentivando-os a buscarem caminhos para diminuir o sofrimento na convivência com esta doença.
A análise do conteúdo expresso pelos sujeitos evidenciou que o processo de construção simbólica da doença encontra sentido num fato concreto (a queda do muro sobre o menino) que a vida dos membros desta família estão radicados numa fatalidade.
A dinâmica instalada entre o individuo e seu contexto e, portanto, a doença foi elaborada a partir de um contexto pessoal, numa perspectiva temporal.
Este estudo permitiu apreender as percepções dos sujeitos e perceber alguns mecanismos que mantêm a articulação entre o pessoal e o social. Permitiu ver o impacto da cultura e das regras do grupo de pertença na dinâmica identitária do sujeito construindo sua realidade a partir do exterior em função de um acontecimento que determinou sua história de vida.
A subjetividade dos sujeitos deste estudo (concreta e imaginária) manifesta-se em ações sociais com valores afetivos positivos e negativos. Todas as tentativas de mudança relatadas esbarram no comportamento estabelecido e cristalizado. O paciente e a família encontraram formas de adaptação.
O sujeito está na posição de vítima (do acidente, da própria constituição, da cobrança das pessoas, da doença) com um alter ego que ele classifica como apreensivo que ele teme, hostil, discriminatório e não o deixa melhorar nem piorar, nem tampouco buscar saída saudável para seus sentimentos de inferioridade.
As relações do espaço identitário do sujeito reforçam sua posição de vítima, medroso, inferiorizado com poucas possibilidades de recuperação. Os fantasmas de suas experiências estão ancorados no temor da incapacidade, da frustração social (na escola, no trabalho e nas relações com as pessoas).
A organização do contexto social incutiu no sujeito a imagem de vencido. Todas as suas atitudes bem como as dos seus familiares e dos profissionais do serviço de saúde concorrem para a cristalização desta posição. No imaginário de todo o grupo, o acidente impediu o desenvolvimento de seus papéis sociais normais e a doença mental agregou conflitos que são legitimizados pela atitude da família e dos profissionais da saúde.
Como evitar que as pessoas caiam na lógica assistencial focalizada na doença e no sistema manicomial? É preciso transformar a relação cidadão/sociedade para se atingir a relação saúde/doença. É preciso reconhecer que mais do que mudar ou criar serviços é preciso mudar a concepção de sua finalidade onde o foco está no homem diferente com suas necessidades e sua vida dentro de uma coletividade que se transforma. Se o valor principal é o homem, ele não pode ser um elemento negativo no sistema de saúde e a satisfação de suas necessidades constitui a própria razão de ser de nosso trabalho profissional.
O doente mental é um ser humano que sofre. O tratamento das psicoses e outras doenças mentais deve considerar que é preciso promover condutas que reintegrem o paciente em seu meio social(15). O terapeuta coloca seu ego a serviço da reintegração ajudando o paciente a sair do seu enclausuramento pessoal e social na busca do seu espaço de vida(16).
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Recebido em 22/05/2006
Reapresentado em 21/11/2006
Aprovado em 27/11/2006
1Projeto apoiado pelo CNPq 520277 NUPRI - Núcleo de Estudos das Relações Interpessoais.