Volume 10, Número 4, Out/Dez - 2006
PESQUISA
Pintando novos caminhos: a visita domiciliar em saúde mental como dispositivo de cuidado em enfermagem
Painting new paths: the home visit in mental health as a device of nursing care
Pintando nuevos caminos: la visita domiciliaria en salud mental como dispositivo de intervención de enfermería
Rosane Mara Pontes de OliveiraI; Cristina Maria Douat LoyolaII
IDoutora e Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem Anna Nery e Diretora Adjunta da Divisão de Desenvolvimento Acadêmico Científica do Hospital Escola São Francisco de Assis / UFRJ.
IIDoutora pelo Instituto de Medicina Social. Professora Titular do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem Anna Nery e Diretora do Hospital Escola São Francisco de Assis / UFRJ. Pesquisadora do CNPq.
RESUMO
Estudo sobre a análise do cotidiano domiciliar do paciente psiquiátrico egresso da internação hospitalar, por meio da visita domiciliar, dando ênfase à compreensão da prática de Enfermagem Psiquiátrica em domicílio. Abordamos as dificuldades, as relações e as possibilidades de cuidado. O estudo é qualitativo com enfoque na etnometodologia. A produção de dados foi por meio de observação participante e entrevistas abertas. Foi adotado o conceito de cotidiano de Michel de Certeau como referencial teórico. Os temas oriundos das discussões formaram eixo para o processo reflexivo, tendo como base o entendimento acerca de família, trabalho, lazer e mito/espiritualidade. Os dados refletem como o cuidado oferecido pela enfermeira na internação hospitalar tem poucas perspectivas de construção. A visita domiciliar mostrou a importância da participação da família e do sujeito em um processo contínuo de cuidado, permitindo à enfermeira construir um cuidado criativo, solidário e sensível, que possibilite aos sujeitos novos contratos com a vida.
Palavras-chave: Enfermagem Psiquiátrica. Família. Saúde Mental. Visita a Pacientes.
ABSTRACT
Study about the analysis of the daily of the psychiatric patient at home after the hospital internment, by the home visit, giving emphasis to the understanding of the Psychiatric Nursing practical at the patient home. Was discussed the difficulties, the relationships and the possibilities of care. The study is qualitative with ethnomethodology approach. The production of data was by the participant observation and open interviews. The daily of Michel de Certeau was adopted as theoretician referential. The subjects that were deriving of the quarrels had formed an axle for the reflective process, having as base the agreement about family, work, leisure and myth/spirituality. The data reflects how the care offered by the nurse in the hospital internment has few perspectives of construction. The home visit showed the importance of the participation of the family and the citizen in a continuous process of care, allowing to the nurse to construct a creative, solidary and sensible care, that makes possible to the citizens new contracts with the life.
Keywords: Psychiatric Nursing. Family. Mental Health. Patient Visit.
RESUMEN
Estudio sobre el análisis del cotidiano domiciliario del paciente psiquiátrico después de la internación del hospital, por medio de la visita casera, dando énfasis a la comprensión de la práctica de Enfermería Psiquiátrica en el domicilio. Abordamos las dificultades, las relaciones y las posibilidades de cuidado. El estudio es cualitativo con enfoque en la etnometodología. La producción de datos fue por medio de la observación participante y entrevistas abiertas. Fue adoptado el cotidiano de Michel de Certeau como referencial teórico. Los temas derivados de las discusiones habían formado un eje para el proceso reflexivo, teniendo como base el entendimiento sobre familia, trabajo, ocio y mito/espiritualidad. Los datos reflejan como el cuidado es ofrecido por la enfermera en la internación del hospital tiene pocas perspectivas de construcción. La visita domiciliaria demostró la importancia de la participación de la familia y del sujeto en un proceso continuo de cuidado, permitiendo a la enfermera construir un cuidado creativo, solidario y sensible, que posibilita a los sujetos nuevos contratos con la vida.
Palabras clave: Enfermería Psiquiátrica. Familia. Salud Mental. Visita a los Pacientes.
INTRODUÇÃO
Durante o período em que acompanhamos alunos nos estágios supervisionados em Enfermagem percebemos que as enfermeiras acompanham as entradas (internações) e saídas (altas) dos doentes com uma certa estranheza, uma certa incredulidade, alguma desconfiança de que há problemas neste "ir" e "vir".
Essas internações e altas sucessivas dos pacientes apresentam-se como um certo desafio para a assistência de enfermagem em geral e para a assistência de enfermagem psiquiátrica em particular, porque sabemos que na maior parte das vezes as instituições psiquiátricas se caracterizam pelo abandono, por tratamentos oscilando entre melhora, piora e estabilidade1.
À luz da experiência de cuidar de pacientes com transtornos mentais graves, começamos a perceber que essa situação tinha impacto negativo na qualidade do cuidado, uma vez que a enfermeira faz um investimento emocional importante na relação com o doente para que ele tenha alta hospitalar o mais rápido possível. Quando este paciente volta a ser internado, provoca um certo distanciamento defensivo da enfermeira, que se vê diante de uma situação ambígua e de impasse: esperar o acontecimento de algo que ela espera que não aconteça. Mais do que um jogo de palavras, esse é um ponto instigante para análise e discussão. É uma situação paradigmática em que ficamos felizes em rever a pessoa e tristes pela sua presença.
Diante do contexto, propomos, como objeto desta investigação, uma visita domiciliar realizada pela enfermeira psiquiatra, como um meio de conhecer a organização das atividades de vida cotidiana dos clientes e seus familiares em seus domicílios.
O objeto de investigação desperta o interesse pela discussão de uma situação que há muito tempo vem sendo de interesse de alguns; diríamos que poderia ser chamado de "contramão" do cuidado, onde o diagnóstico é obtido na maioria das vezes apenas através de achados clínicos e pela história clínica do paciente. Dependendo da situação podemos encontrar sujeitos com mais de um diagnóstico. A partir daí traça-se um "tratamento". Na verdade o que pudemos observar na internação psiquiátrica é que o "tratamento" oferecido serve apenas para os sinais e sintomas; esse tipo de tratamento exclui o sujeito e não cuida das suas questões. Na verdade, a internação psiquiátrica deveria resolver a crise como uma intervenção e propor novas formas de cuidado como intervenção, que nesse caso seria acolhimento.
O que podemos constatar é que o "tratamento" oferecido aos pacientes tem sido pautado, na maioria
das vezes, na farmacologia, na internação psiquiátrica e nas questões individuais dos sujeitos (sinais e sintomas). Quando a intervenção proposta se baseia nessa tríade, exclui as variáveis do coletivo (cultura, escolaridade, bairro, amigos, situação financeira, social, entre outras) e nos impede de descobrir outras tramas. E na medida em que não propomos intervenções pautadas no coletivo, excluímos o lazer, o trabalho e a família, pressupostos básicos da reabilitação psicossocial. Então nessa proposta de fazer uma intervenção que considerasse o coletivo do sujeito e privilegiasse a sua fala e a sua trama, surgiu a família como uma questão central do trabalho.
As questões que nortearam o estudo:
- Quais são os cuidados de enfermagem que se pode prestar em uma visita domiciliar?
- Quais são as dificuldades mais freqüentes do doente psiquiátrico no manejo da vida diária?
Objetivos do estudo:
- Testar a visita domiciliar como dispositivo de cuidado em enfermagem psiquiátrica;
- Verificar as conseqüências da visita domiciliar como estratégia para diminuir as reinternações dos pacientes psiquiátricos.
REFERENCIAL TEÓRICO METODOLÓGICO
Bases conceituais
Cotidiano
Neste estudo, foi adotado como referencial teórico o conceito de cotidiano de Michel de Certeau2. O cotidiano pode ser entendido como as práticas comandadas por uma economia de lugar próprio e um princípio coletivo de gestão, no qual se podem reconhecer as habilidades que os sujeitos têm desenvolvido (e se têm) para conviver socialmente.
Visita domiciliar em Enfermagem Psiquiátrica
Em meados do século XIX, um cavaleiro inglês teve a experiência de cuidar de sua esposa doente por um período em sua residência e, durante esse período, relatou por escrito o trabalho que desenvolveu. Essas anotações inspiraram Florence Nightingale a escrever as recomendações para o cuidado de enfermagem domiciliar6. Nos Estados Unidos tal atividade iniciou-se por volta de 1800, logo após a Guerra Civil, culminando anos depois com o estabelecimento da primeira Associação de Enfermeiras visitadoras (Visiting Nurses Association- VNA).
No Brasil, as primeiras atividades das visitadoras são descritas em 1919, com a criação, no Brasil, do Serviço de Visitadoras no Rio de Janeiro7.
Segundo Carvalho8, o curso de visitadoras de higiene, um curso rápido e intensivo, foi criado em 1923 como uma estratégia para atender as necessidades mais prementes da cidade do Rio de Janeiro, como uma solução de emergência, para proporcionar tempo para os estudos e para que os últimos preparativos fossem finalizados para a abertura da Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). Esse curso de visitadoras teve duas turmas, cujo preparo foi de seis a dez meses, respectivamente.
Com a vinda de Ethel Parsons em 1922 (enviada pela Fundação Rockefeller), iniciou-se a Missão de Cooperação Técnica para o desenvolvimento da Enfermagem no Brasil, chefiada pela mesma, a fim de treinar enfermeiras de Saúde Pública e organizar um serviço de visita domiciliar9. Vale lembrar que o plano de estudos que Ethel Parsons traçou para as alunas não incluía o cuidado psiquiátrico.
Para a Enfermagem em saúde pública, a visita domiciliar inclui quatro etapas: planejamento, execução, registro de dados e avaliação. Essas etapas devem ser seguidas para o bom desenvolvimento da VD.
Para a Enfermagem Psiquiátrica esses conceitos não se aplicam. A visita domiciliar na Enfermagem Psiquiátrica se caracteriza por não ser apriorística. Não há um procedimento prévio, o que se espera é o inesperado. Trata-se de uma intervenção para fora do hospital9. Nessa visita trabalhamos com duas possibilidades: a) a simultaneidade, na qual tudo pode acontecer; poderá haver encontros e desencontros; a enfermeira corre um certo "risco" de encontrar situações que são difíceis de serem resolvidas e que demandarão uma certa habilidade para que possam ser, ao menos, contornadas; b) o trabalho a posteriori, no qual a enfermeira encontra situações que merecem uma intervenção mas, que naquele momento, é impossível. Então, a solução poderá vir depois de uma forma criativa. Não existe um manual de visitação, intervenção e cuidado. O que se espera é que a enfermeira que vai realizar a VD tenha capacidade para acolher as pessoas e superar as diferenças, que, muitas vezes, levam ao distanciamento.
O Método
Para incorporar no trabalho a questão do significado e da intencionalidade foi adotado o método qualitativo3. A natureza do estudo é do tipo estudo de caso, porque pacientes e familiares foram considerados um único, podendo ter semelhanças com outros casos. Apesar da semelhança, foram considerados como singulares.
O enfoque etnometodológico foi adotado neste estudo por atender ao objeto de estudo-visita domiciliar
realizada pela enfermeira psiquiatra, como um meio de conhecer a organização das atividades de vida cotidiana dos clientes e seus familiares em seus domicílios. Assim, segundo Coulon4:29:
A etnometodologia é a pesquisa empírica dos métodos que os indivíduos utilizam para dar sentido e ao mesmo tempo realizar as suas ações de todos os dias: comunicar-se, tomar decisões, raciocinar.
Ainda para esse autor, a etnometodologia analisa as crenças e os comportamentos de senso comum, como os constituintes necessários de todo comportamento socialmente organizado4:30. Os fatos sociais devem ser considerados realizações práticas. O fato social não é um objeto estável, mas o produto da contínua atividade dos homens, que aplicam seus conhecimentos, processos, regras de comportamento, em suma, uma metodologia leiga5. A etnometodologia está pautada em cinco conceitos: prática e realização, indicialidade, reflexividade, descritibilidade e noção de membro5.
Os atores do estudo foram quatro pacientes com diagnóstico de esquizofrenia segundo o código internacional de doenças (CID-10), que tiveram duas ou mais internações psiquiátricas em um período de 12 meses, e dez familiares. A produção de dados deu-se em três momentos desenvolvidos por uma das autoras: 1) na enfermaria do IPUB; 2) no grupo de supervisão clínica que acontece no IPUB, no qual foram discutidos os casos dos pacientes com a equipe; 3) na residência do paciente.
Em 2001, os dados foram coletados através de observação participante que foi registrada no denominado "diário do cotidiano"; e através de entrevistas abertas conduzidas a partir de dados encontrados nos diários. Foram quatro pacientes, 30 horas e meia de observação participante e nove entrevistas, perfazendo um total de 19 visitas distribuídas para os quatro pacientes. Nos diários e nas entrevistas houve participação de dez familiares que nesse estudo foram denominados co-participantes da pesquisa.
O estudo foi submetido e aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS
Categoria I
Retrato da família:
captando movimentos cotidianos de viver
Na família pude perceber nos sujeitos três tipos de união: a união afetiva, biológica e sócio-política. A união afetiva caracteriza-se por extrapolar os laços biológicos e legais de união. Esse tipo de relação não é apenas funcional, mas tem significado. É uma relação nascida da experiência comum de necessidades mínimas supridas. O propósito dessa relação é desenvolver laços que criarão o terreno fértil para que casa membro da família amadureça de forma independente. Desenvolvem relações de afinidade, e a convivência passa a ser mais prazerosa. Nesse tipo de união, surgem dois tipos de amor: no amor empático, quando qualquer membro da família tem problemas, toda família interessa-se em ajudar aquela pessoa.
O que marca essa relação é que as pessoas estão unidas por opção. Permanecem juntas porque dessa forma são felizes. As pessoas desenvolvem relações de afinidade, e a convivência passa a ser mais prazerosa. O relato da filha sobre o sentimento da sua mãe por outra pessoa destaca:
A minha vida aqui é melhor do que a vida de lá [da casa de origem familiar]. Eu prefiro a família postiça à de verdade (E do caso D em 19/01/2001- T.).
Ela é minha mãe de verdade. Mas se relaciona melhor com D. do que comigo. Isso nada tem a ver com parentesco. A D. parece mais com ela do que eu (E. em 9/01/2001 - Filha de Dona N.).
Há também um tipo de amor incondicional, e o tipo de amor no qual se dá mais do que se recebe. Esse tipo de relacionamento caracteriza-se pelo amor incondicional ao outro, por sua unicidade enquanto ser e pessoa e não por qualquer coisa que esse outro faça. Embora essa relação seja considerada um tipo de relação afetuosa, ela não eleva a auto-estima dos membros da família. Segundo o relato:
Ele me diz que ela é muito geniosa, me arranha, me bate. Mas, apesar de tudo que ela faz, é a única filha que eu tenho. Eu briguei com meu irmão, e a minha mulher morreu. A minha única família é ela. Por isso, eu tenho que aturar as vontades dela ( D.C de C em 19/10/2001- Pai de C.).
O convívio familiar determinado por laços biológicos refere-se à saúde ou ausência de doença dos integrantes desta unidade. Diante de um problema de saúde ou de hábitos de vida que alterem ou ameacem a manutenção da saúde, as relações ficam ameaçadas. Esse tipo de convívio se caracteriza por sua eficácia na ausência de doença e sua ineficácia na presença da doença, diante da qual os membros do grupo familiar não conseguem resolver a situação e entram em crise. Com relação a esse tipo de união, temos o seguinte relato:
Eu joguei pedra na cruz para ter recebido aquilo como mãe (D.C de B em 25/5/2001 - irmão de B.).
O terceiro laço de união da família é o laço sócio-político que tem a ver com o ambiente, comunicação e dinâmica nas relações cotidianas. A permanência do sujeito egresso da internação psiquiátrica em casa está diretamente relacionada com o tipo de acolhimento que ele recebe da família. O que se questiona agora é se esse ambiente familiar pode ajudar o sujeito. Se o ambiente for acolhedor, se ele possibilitar que as pessoas expressem seus sentimentos dando oportunidade para elas vivenciarem outra experiência, ele terá um efeito positivo. Caso contrário, o ambiente vai reforçar o comportamento doente. O que se pode perceber é que o ambiente pode fortalecer uma atitude.
Categoria II
Um negativo da família:
captando dificuldades econômicas de trabalho e de lazer
O nosso reconhecimento como cidadão perpassa três instâncias: como você se chama? Onde você mora? E o que você faz? A postura adotada para relacionar-se com o indivíduo dependerá da resposta. Sem sombra de dúvida, o que o indivíduo faz lhe confere status social. Ser médico, advogado, engenheiro não é a mesma coisa que ser trocador de ônibus11.
É preciso atentar para o fato de que o verbo empregado é o "ser"; o indivíduo é alguém que faz alguma coisa. Daí a escorregarmos para um "eu não sou nada", em relação aquele indivíduo que diz não fazer nada, é um pulo11.
O trabalho reflete determinações originadas no contexto sócio-político e cultural, porque as pessoas, além de vivenciarem a experiência do trabalho, são portadoras de histórias singulares, nas quais a vida familiar e as trajetórias, que sedimentaram identidades e personalidades, irão desempenhar papel relevante nos relacionamentos. Todavia, evidentemente, o trabalho não pode ser isolado, como instância determinante na vida das pessoas.
Atualmente, as questões relativas ao trabalho têm sido objeto de interesse dos cientistas sociais, entendendo que esse espaço social estabelece possibilidade de trocas interpessoais significativas na vida das pessoas.
Os sujeitos do estudo entendem o trabalho de duas formas: na primeira, o trabalho está diretamente relacionado com a questão do dinheiro. Essa forma aponta para a influência do trabalho no bem-estar da família, a partir do momento em que ele pode proporcionar conforto e, conseqüentemente, melhorar a qualidade de vida do grupo familiar; na segunda, o trabalho significa estar em movimento, fazendo alguma coisa, ocupado, ou qualquer outro significado que se oponha ao ócio.
Com relação a trabalho significar dinheiro, todos os sujeitos se posicionaram afirmando que as poucas possibilidades de o paciente egresso da internação contribuir financeiramente para o bem-estar da família constituem-se em problema, segundo os relatos:
Na minha família, somente uma pessoa trabalha. Então, falta dinheiro pra tudo, às vezes até para comer. Se a `A' tivesse aposentadoria, se ficasse encostada, ela ganharia um dinheiro para ajudar em casa (D.C de A em 26/7/2001 - irmã de A.).
Os familiares não conseguem entender o valor subjetivo do trabalho, percebem o trabalho como a única forma de melhorar a qualidade de vida a partir do momento em que conseguirem, por meio dele, resolver problemas de moradia, saúde, alimentação e educação.
Com relação a trabalho significar ação ou atividade, foram feitos os seguintes relatos:
Eu deixo ela fazer essas atividades em casa porque eu acho que ela precisa de ocupação (E. de A em 04/08/2001 - irmã de A.).
Eu levanto 6:30, faço café, tem vezes que eu arrumo cozinha, faço comida. Boto os meus filhos para o colégio (E de A em 04/08/2001.).
O ser humano, por transformar pensamento em ação, exterioriza-se no mundo, mostrando-se `sujeito' por excelência. E ser sujeito passou a ser atributo daquele que pensa, age e conhece ou que `se põe' na ação, porque decide, determina. A ação determinada pelo homem passou a determiná-lo como sujeito.
Categoria III
A representação da doença na família: o espírito e a religião vinculados no cotidiano domiciliar
Para um melhor entendimento de cuidado extra-hospitalar, é importante ressaltar os valores e crenças do grupo familiar e do sujeito acerca da doença.
O sistema de crenças, os valores individuais, religião, mito e espiritualidade podem ter vários efeitos sobre o processo de cuidado. Segundo os depoimentos:
... Eu não sei se é espiritual... Mas, como o meu pai tinha problemas de cabeça, o irmão da gente tem, a A e o outro irmão também, pode ser de família né? (E. De A - em 11/10/2001 - irmão de A.).
Dona `N' me olha e diz que sabe que o problema que a `D' tem também é espiritual (D.C em 12/01/2001. Mãe de D.).
As pessoas tentam encontrar um sentido na vida, especialmente diante de uma situação de sofrimento.
Nessa busca, o sistema de crença e valores individuais exercem uma influência significativa, determinam se esta ou aquela explicação acerca da doença e do tratamento terão sentido para o paciente e para aquele que cuida dele.
Todo conhecimento pressupõe um tipo de conhecimento prévio, adquirido por intermédio de visões individualizadas do mundo.
É interessante pensar no quanto o cuidado domiciliar pode ser inútil se não forem considerados os valores do outro. É preciso reconhecer as verdades do meio coletivo onde o paciente vive e suas próprias verdades para que ele possa aceitar as verdades científicas, as verdades do que é possível fazer.
A palavra mito é hoje empregada tanto no sentido de ficção ou ilusão como no sentido familiar, sobretudo. O mito fornece modelos para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo, significação e valor à existência.
Há sempre uma história de comportamento "diferente" por parte do sujeito adoecido, mas que nunca foi valorizada pela família. Eles demarcam alguns episódios sociais que aconteceram antes do adoecimento psíquico, deixando tudo por conta do acaso. Portanto, a doença surge do nada; ela ataca subitamente desestabilizando o lar e as relações sociais, e os familiares não encontram uma explicação para o fato. O medo do desconhecido permeia as relações sociais. Assim, o recorte a seguir ilustra esta posição:
Eu tenho medo dela. Cada dia ela tá de um jeito. Eu não sei o que acontece com ela (E.de A em 29/09/2001 irmã de A.).
Sistemas de crenças podem se tornar fatores de risco para o paciente psiquiátrico, se não estiverem aliados a uma informação correta acerca da doença e não estiverem associados ao cuidado tradicional, criativo e alternativo. O que se sabe é que não há dados que comprovem que só a crença seja capaz de melhorar a qualidade de vida das pessoas e da família do paciente.
As respostas de enfrentamento usadas pelo paciente e os modos de expressão de sofrimento também variam de acordo com a cultura. As respostas ao enfrentamento da vida e o significado dado a elas são diretamente influenciados por valores e crenças.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estamos vivendo um momento de conflito de investimentos no qual há grandes cacifes para os avanços tecnológicos e pequenas apostas para a complexidade do ser humano cujas pistas são visíveis. Por exemplo, nas dificuldades do homem em ter acesso ao ensino, à moradia e à saúde. Na psiquiatria e, em particular, na Enfermagem Psiquiátrica, não foi diferente. Geralmente, investimos parcela considerável de nosso tempo aceitando e reforçando o discurso médico pautado no racionalismo científico e empregamos muito pouca energia em construir outros cuidados que possam melhorar objetivamente a qualidade de vida dos sujeitos sob os nossos cuidados.
As rotinas da assistência psiquiátrica ainda se orientam pela internação hospitalar, pelo isolamento e pelos tratamentos que mais rapidamente diminuem demandas e calam sintomas, como, por exemplo, a eletroconvulsoterapia. Mesmo assim, e de forma bastante controversa, continuamos mantendo a discussão da Reforma Psiquiátrica como uma possibilidade de melhorar a qualidade de vida das pessoas que precisam de atendimento em saúde mental.
As enfermeiras psiquiatras tiveram que se preparar para cuidar dos pacientes em outros cenários extra-hospitalares, como os Centro de Atenção Psicossocial e HD, enfrentando novas dificuldades e desafios inusitados. Essas experiências têm permitido uma reflexão quase que dolorosa sobre a sua prática profissional. Porém, esses espaços de atenção, ainda que abertos, não foram suficientes para expressar a realidade desta clientela. Esses cenários possibilitaram manter o paciente afastado da internação psiquiátrica, mas não operaram uma aproximação eficaz com a família e com o mundo cotidiano e real do paciente, que mesmo nesses serviços, assim como na internação hospitalar, permanecem desconhecidos da equipe. Neste contexto, a visita domiciliar re-aparece como mais um cuidado para a enfermeira psiquiatra, na qual acolher e conhecer são os pressupostos de um bom começo.
Apesar de a visita domiciliar na área da saúde coletiva não ser uma estratégia propriamente nova de assistência, a visita domiciliar em Enfermagem Psiquiátrica é recente e não se pauta no modelo pré-elaborado da saúde pública. A visita domiciliar aqui apresentada e discutida propõe-se mesmo a romper com alguns pressupostos, sobretudo aqueles amarrados em instruções prévias, em modelos construídos, em verdades estabelecidas. Podemos dizer que trabalhamos com uma "metodologia do espanto", cuja operação é balizada pelo significado dado pelos sujeitos, na busca de acordos possíveis.
Na visita domiciliar, o ambiente tem expressão própria superando mesmo algum mutismo dos pacientes. É uma possibilidade ímpar de acolhimento e de troca. A casa e a família fornecem pistas e dados para que haja algum nexo entre a doença e o social. A VD é uma boa perspectiva para que a enfermeira possa prestar um cuidado humano, criativo, sensível e longe da internação hospitalar.
O número de pacientes visitados foi limitado, mas permitiu que todos recebessem um número razoável de visitas conforme a demanda de atendimento. Essas visitas mostraram-se suficientes para mantê-los acolhidos pelo serviço. A visita domiciliar é uma atividade complexa, que apresenta possibilidades e singularidades diretamente relacionadas à condição da pessoa da enfermeira e aos seus recursos individuais para lidar com situações de relações humanas de difícil manejo dispondo de recursos financeiros ainda limitados pela política institucional e governamental e pelo trabalho em equipe. Na VD busca-se reformular o papel da enfermeira de uma prática solitária, enquanto profissional, para um papel no qual ela possa ser criativa e solidária na relação com o paciente.
As análises indicaram que, para as famílias participantes deste estudo este é um conceito que pouco tem a ver com o que dizem os estudiosos do assunto sobre ele. O entendimento peculiarizado de família nasce no cotidiano desse espaço de trocas sociais possíveis.
Nos três tipos de laços familiares, biológico, afetivo e social, o que os une é a constatação de que diante da doença mental todos entram em colapso. A doença causa conflitos, subtrai a ordem do meio social e faz a convivência tornar-se difícil. Ainda assim, é o lugar possível de troca, onde a enfermeira consegue negociar com a família e com o doente mudanças possíveis e reais. A família tem as condições para ajudar a pessoa doente, mesmo que sob nossa avaliação seja "desorganizada" ou "desestruturada". O que ela apresenta é uma "organização possível" que pode melhorar com a ajuda da enfermeira.
A segunda categoria um negativo da família: captando dificuldades econômicas de trabalho e de lazer, parte da premissa de que o trabalho e o lazer, como atividades humanas, são uma dupla relação de trocas por natureza, cuja conseqüência não é uma relação bilateral. A terceira categoria foi a representação da doença na família: o espírito e a religião vinculados no cotidiano domiciliar. Esse trabalho foi um movimento de desconstrução e construção contínua, ficando marcada a necessidade da família e dos pacientes de ter uma explicação para os fatos que eles consideram inexplicáveis e, a partir daí, obter em um pouco mais de tranqüilidade
Este cenário domiciliar exige um profissional criativo, solidário e com capacidade de manter a afetividade mesmo em situações mais extremas, além da consciência de si mesmo como ser humano, que respeita as escolhas do paciente e dispõe habilidades técnicas sempre amparadas em conceitos éticos. Espera-se também que a visita domiciliar, como estratégia de cuidado, possa abrir mais um espaço de atuação para a enfermeira dentro do contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira. São nos intrincados caminhos e descaminhos da família que podemos obter algumas "senhas de cuidado", o que denominamos neste estudo de password.
O estudo apontou, com alguma dureza, a necessidade de revermos o conteúdo teórico de psiquiatria e de saúde mental desenvolvido ao longo do curso de graduação em Enfermagem. Esperamos que este artigo crie um espaço de reflexão para que possamos ensinar um conteúdo de graduação, no qual a loucura seja apresentada a partir de um olhar menos "ortopédico" e mais positivo. Espera-se que a enfermeira busque uma prática criativa e solidária, abrindo possibilidades para condutas terapêuticas experimentando, dialogando, ousando e produzindo permanentemente demanda de atenção, de cuidado, de transferência, de acolhimento, de aceitação. Demandar é permanecer vivo dentro da loucura. E porque conhece o sujeito, a enfermeira psiquiatra pode ser uma espécie de fiadora de outros contratos do paciente e das suas possibilidades de fazer sentido12. E então pintar outros caminhos...
REFERÊNCIAS
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3. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 4ª ed. São Paulo(SP): Hucitec; 1999.
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Recebido em 25/08/2006
Reapresentado em 28/09/2006
Aprovado em 25/10/2006