Volume 21, Número 1, Jan/Mar - 2017
PESQUISA
Representações sociais de profissionais de saúde sobre doenças
negligenciadas
Charles Souza Santos
1
Antonio Marcos Tosoli Gomes
2
Flávia Silva Souza
3
Sergio Correa Marques
2
Marcio Pereira Lobo
1
Denize Cristina de Oliveira
2
1 Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Campus Jequié, BA, Brasil
2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil
3 Faculdades Unidas de Pesquisa, Ciência e Saúde. Jequié, BA, Brasil
Recebido em 11/08/2016
Aprovado em 18/12/2016
Autor correspondente:
Charles Souza Santos
E-mail:
charlesss@uesb.edu.br
RESUMO
OBJETIVO:
Analisar os conteúdos e a estrutura das representações sociais construídas
pelos profissionais de saúde acerca das doenças negligenciadas.
MÉTODOS:
Pesquisa qualitativa, sustentada pela Teoria das Representações Sociais,
abordagem estrutural, com 51 profissionais de saúde que atuam em serviços de
assistência às doenças negligenciadas em um município do estado da Bahia.
Dados coletados através de evocações livres ao termo indutor doença
negligenciada, durante o primeiro semestre de 2016 e analisados
pelo software EVOC.
RESULTADOS:
A estrutura representacional foi formada por quatro dimensões (social,
individual, socioindividual e imagética) que explicaram a interface entre o
possível núcleo central com os termos
descaso/falta-conhecimento e os elementos periféricos
com os termos pobreza/falta-investimentos.
CONCLUSÃO:
A estrutura representacional dos profissionais de saúde traduziu o conceito e
a imagem das doenças negligenciadas possibilitando mudanças nas práticas
individuais e coletivas eficazes no combate dessas enfermidades.
Palavras-chave: Doenças negligenciadas; Saúde; Pesquisa qualitativa
INTRODUÇÃO
As doenças negligenciadas são caracterizadas por um grupo de enfermidades infecciosas que atingem principalmente a população de baixa renda nos países em desenvolvimento, com poucos investimentos em pesquisa e tecnologia para avançar no controle, na prevenção e tratamento medicamentoso. São assim denominadas, também, pelo fato de não despertarem o interesse econômico e financeiro das grandes indústrias farmacêuticas, proporcionando a continuidade do ciclo da pobreza e diminuição da qualidade de vida das pessoas. As doenças negligenciadas são o conjunto de doenças causadas por agentes infectoparasitários que produzem importante dano físico, cognitivo e socioeconômico em crianças e adolescentes, principalmente em comunidades de baixa renda.1 São também compreendidas como doenças infecciosas de grande importância na saúde pública e que deixaram de receber atenção adequada por parte da ciência como um todo.2
Os primórdios do termo doenças negligenciadas remontam à década de 1970, com a criação do programa da Fundação Rockefeller The Great Neglected Diseases. Em 2001, a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) propôs dividir as doenças em Globais, Negligenciadas e Mais Negligenciadas. No mesmo ano, o Relatório da Comissão sobre Macroeconomia e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS) apresentou uma classificação similar à da MSF, dividindo as doenças em Tipos I, II e III. Desde então, o termo doença negligenciada tem sido utilizado para se referir a um conjunto de agravos infecciosos e parasitários endêmicos em populações de baixa renda, localizadas sobretudo na África, Ásia e Américas.3 Essa classificação representa uma evolução em relação à denominação doenças tropicais, uma vez que contempla os contextos de desenvolvimento político, econômico e social, ultrapassando a perspectiva colonialista associada a um determinismo geográfico.4
As doenças negligenciadas têm como características comuns a endemicidade elevada nas áreas rurais e nas urbanas menos favorecidas de países em desenvolvimento, além da escassez de pesquisas para o desenvolvimento de novos fármacos. Essas doenças podem prejudicar o crescimento infantil e o desenvolvimento intelectual, bem como a produtividade do trabalho. Dessa forma, as doenças negligenciadas são as que "não apresentam atrativos econômicos para o desenvolvimento de fármacos, quer seja por sua baixa prevalência, ou por atingir população em região de baixo nível de desenvolvimento".5
Estas doenças estão distribuídas em todo o mundo, mas são prevalentes principalmente nas regiões tropicais. Conforme a OMS, mais de um bilhão de pessoas estão infectadas com uma ou mais doenças negligenciadas, o que representa um sexto da população mundial. Diante deste contexto, a OMS indicou novos caminhos e passou a colocar, como pauta de discussão em suas assembleias, o significado da perpetuação das doenças negligenciadas para o desenvolvimento socioeconômico mundial. Para tanto, organizou-se a Cimeira do Milênio, reunindo 147 chefes de Estado com o intuito de discutir as reais necessidades de pessoas de todo o mundo, tendo convergido para os Objetivos do Novo Milênio (ODM) que propuseram, entre outras ações, o desenvolvimento e a erradicação da pobreza. Em 2003, a OMS começou a mudar o paradigma do controle e da eliminação de um grupo de doenças tropicais negligenciadas (DTN). O processo envolveu uma mudança estratégica importante: da abordagem tradicional centrada nas doenças para uma estratégia de resposta às necessidades de saúde de comunidades marginalizadas.6
O Brasil buscou, durante os últimos anos, definir um plano de ação no controle às doenças negligenciadas por meio de investimento em pesquisa e financiamento em novas tecnologias, iniciando, em 2006, o Programa de Pesquisa e Desenvolvimento em Doenças Negligenciadas.7 No âmbito do programa, por meio de dados epidemiológicos, demográficos e o impacto da doença, foram definidas, entre as doenças consideradas negligenciadas, sete prioridades de atuação: dengue, doença de Chagas, leishmaniose, hanseníase, malária, esquistossomose e tuberculose. Estudos apontaram uma elevada ocorrência das doenças negligenciadas no Brasil, revelando uma situação epidemiológica preocupante que precisa ser combatida pelas práticas profissionais e ações de desenvolvimento econômico social ao evitar a perpetuação da pobreza.8
Este estudo tem por objetivo analisar os conteúdos e a estrutura das representações sociais construídas pelos profissionais de saúde acerca das doenças negligenciadas, tendo como sustentação teórica a Teoria das Representações Sociais (TRS). As representações sociais podem ser consideradas como ciências coletivas sui generis, destinadas à interpretação e elaboração do real,9 ou, ainda, como uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, tendo uma orientação prática e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social.10
Além das questões conceituais e epidemiológicas das doenças negligenciadas, destaca-se que estas entidades mórbidas possuem construções representacionais que medeiam a interação dos profissionais de saúde com o mundo, suas práticas de cuidado e sua relação com os pacientes. Desta maneira, torna-se indissociável a análise das questões objetivas e simbólicas deste objeto, não só no que tange aos elementos que compõem essa representação, mas também o modo como eles se organizam e se relacionam internamente na construção da representação do objeto.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo qualitativo, sustentado pela TRS em sua abordagem estrutural, definida como Teoria do Núcleo Central, onde toda a representação está organizada em torno de núcleo que determina, ao mesmo tempo, sua significação e sua organização interna. O núcleo central é um subconjunto da representação, composto de um ou alguns elementos cuja ausência desestruturaria a representação ou lhe daria um significado diferente.11
Os dados foram coletados através da aplicação da técnica de evocação livre com 51 profissionais de saúde, sendo 30 enfermeiros, nove médicos, seis farmacêuticos bioquímicos, três psicólogos e três farmacêuticos, que atuam na rede de serviços de saúde no município de Jequié-BA, no período de janeiro a maio de 2016. Apenas um pesquisador realizou a coleta, que consistiu em solicitar aos participantes que evocassem imediatamente cinco palavras ou expressões ao termo indutor doenças negligenciadas. As palavras ou termos foram registrados em formulário próprio na ordem em que foram mencionadas. Os participantes foram recrutados nas unidades primárias e secundárias de saúde, sendo consultados se desejavam participar. A aplicação da técnica demandou aproximadamente 15 minutos para a sua realização.
A técnica de evocações livres é considerada como uma técnica maior para coletar os elementos constitutivos do conteúdo de uma representação. Ela consiste em pedir aos sujeitos que, a partir de um termo indutor (normalmente, o próprio rótulo verbal que designa o objeto da representação) apresentado pelo pesquisador, digam as palavras ou expressões que lhes tenham vindo imediatamente à lembrança.12 Os vocábulos provenientes da técnica de evocações foram organizados em documento Word, que constituiu o corpus de análise.
O tratamento dos dados se deu pelo software Ensemble de Programmes Permettant l'analyse dês Evocations (EVOC), versão 2005, que analisa estatisticamente os dados textuais de uma rede associativa, na qual é permitido combinar a frequência de aparição de palavras evocadas com a atribuição de sua ordem de importância.13 A análise foi realizada pela técnica do quadro de quatro casas com o intuito de identificar o possível núcleo central das representações sociais. A combinação desses dois critérios, frequência de evocação e ordem média de evocação de cada palavra, possibilita o levantamento daquelas que mais provavelmente pertencem ao núcleo central da representação, por seu caráter prototípico, ou, por sua saliência. Na técnica, a partir da interseção da frequência média de evocação do inteiro conjunto de palavras com a média de suas respectivas ordens médias de evocação, são definidos quatro quadrantes que conferem diferentes graus de centralidade às palavras que os compõem.14
O quadrante superior esquerdo, composto pelos termos mais frequentemente evocados e de menor ordem média indica o provável núcleo central, enquanto que o quadrante inferior direito, composto pelos termos menos evocados e de maior ordem média indica a segunda periferia.15 O quadrante esquerdo inferior possui conteúdos com baixa frequência e também uma baixa média da ordem de aparecimento, sendo denominado de zona de contraste, onde, com frequência, pode ser detectado um subgrupo representacional. O quadrante superior direito relaciona-se à primeira periferia, onde estão os elementos que frequentemente reforçam os elementos centrais.
A pesquisa obedeceu aos critérios éticos preconizados pela Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade do Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) em 22 de dezembro de 2015, com número de protocolo 1.333.774/2015. Também foi obtida a autorização da Secretaria Municipal de Saúde de Jequié, além da autorização dos participantes, expresso na assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
As variáveis sociodemográficas, ao caracterizar os profissionais de saúde, conforme Tabela 1, demonstram a heterogeneidade do grupo no que diz respeito à formação profissional, fator este que proporciona práticas de cuidado com visões multifacetadas essenciais para o controle das doenças negligenciadas. Os tempos de formação profissional e de atuação nas instituições de saúde permitem ao grupo de profissionais uma construção mais significativa das representações sociais, associados à variável da faixa etária que, juntos, colaboram no processo de formação da dimensão imagética e simbólica das doenças no campo da saúde. A religião, por sua vez, colabora para o posicionamento social dos profissionais diante das doenças e sua significação na realização das práticas do cuidado. Desta maneira, estas variáveis favorecem a construção dos conteúdos e estrutura das representações sociais acerca das doenças negligenciadas.
Variável | Feminino | Masculino | Total | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Profissão | N | % | N | % | N | % |
Enfermeiro | 30 | 100,0 | - | 0,0 | 30 | 58,8 |
Médico | 03 | 33,3 | 06 | 66,7 | 09 | 17,6 |
Farmacêutico bioquímico | 03 | 50,0 | 03 | 50,0 | 06 | 33,3 |
Psicólogo | 03 | 100,0 | - | - | 03 | 20,0 |
Farmacêutico | - | - | 03 | 100,0 | 03 | 16,7 |
Faixa etária | ||||||
≤ 38 anos | 15 | 83,3 | 03 | 16,7 | 18 | 35,3 |
39 a 50 anos | 12 | 80,0 | 03 | 20,0 | 15 | 29,4 |
≥ 53 anos | 12 | 66,7 | 06 | 33,3 | 18 | 35,3 |
Tempo de atuação | ||||||
< 03 anos | 15 | 83,3 | 03 | 16,7 | 18 | 35,3 |
04 a 08 anos | 12 | 66,7 | 06 | 33,3 | 18 | 35,3 |
> 10 anos | 12 | 80,0 | 03 | 20,0 | 15 | 29,4 |
Tempo de formação | ||||||
< 13 anos | 09 | 60,0 | 06 | 40,0 | 15 | 29,4 |
14 a 22 anos | 18 | 100,0 | - | - | 18 | 35,3 |
> 25 anos | 12 | 66,7 | 06 | 33,3 | 18 | 35,3 |
Religião | ||||||
Católicos | 18 | 66,7 | 09 | 33,3 | 27 | 52,9 |
Espíritas | 12 | 80,0 | 03 | 20,0 | 15 | 29,4 |
Evangélicos | 09 | 100,0 | - | - | 09 | 17,6 |
Total | 39 | 76,5 | 12 | 23,5 | 51 | 100 |
Com relação à estrutura da evocação, destaca-se que o conjunto dos sujeitos evocaram 180 palavras diferentes, gerando um quadro de quatro casas com uma frequência mínima de 05, frequência média de 12 e a ordens médias de evocação 2,5. Expõe-se, a seguir, a Tabela 2 conforme o resultado elaborado pelo software EVOC 2005.
Freq. Med. | Termo evocado | Freq. | O.M.E. < 2,5 | Termo evocado | Freq. | O.M.E. > 2,5 |
---|---|---|---|---|---|---|
≥ 12 | Descaso | 15 | 1,66 | Pobreza | 30 | 3,33 |
Falta-conhecimento | 15 | 2,00 | Calazar | 15 | 2,66 | |
Hanseníase | 15 | 3,10 | ||||
Tuberculose | 15 | 2,66 | ||||
< 12 | Irresponsabilidade | 10 | 2,00 | Leishmaniose | 10 | 4,00 |
Falta-incentivos | 05 | 2,00 | Malária | 05 | 5,00 | |
Falta-recursos | 05 | 1,00 | Miséria | 05 | 5,00 | |
Hepatite | 05 | 1,00 | Objeto | 05 | 4,00 | |
Ineficiência | 05 | 1,00 | Profissionais | 05 | 3,10 | |
Insatisfação | 05 | 2,00 | Pública | 05 | 4,00 | |
Interesses-econômicos | 05 | 1,00 | Sofrimento | 05 | 5,00 | |
Recursos | 05 | 1,00 | Sujeira | 05 | 3,10 | |
Rejeitada | 05 | 2,00 | SUS | 05 | 5,00 | |
Seriedade | 05 | 2,00 | Transmissor | 05 | 4,00 |
A estrutura representacional apresenta-se organizada em um contínuo que vai da dimensão individual à político-social, perpassando a socioindividual e a imagética (Figura 1). A individual é organizada pela expressão falta-conhecimento e se desdobra na zona de contraste no léxico insatisfação e na segunda periferia, nas palavras objeto, profissionais, sofrimento e sujeira. A denominada socioindividual é aquela que pode ser englobada nos dois polos, não possuindo uma especificidade e uma localização determinada, como pobreza, miséria, irresponsabilidade e transmissor. A dimensão político-social organiza-se ao redor do léxico descaso, que se desdobra, na zona de contraste, em elementos como falta-incentivos, falta-recursos, ineficiência, interesses-econômicos, recursos e seriedades. A dimensão da imagem, por sua vez, centra-se na citação das próprias doenças negligenciadas, notadamente calazar, hanseníase, tuberculose, leishmaniose e malária.
A dimensão individual: a abordagem do conhecimento pessoal ou de sua ausência
A dimensão individual assume uma função explicativa e descritiva da representação, na medida em que dar sentido ao termo falta-conhecimento perpassa pela construção cognitiva da percepção humana. Neste sentido, os profissionais de saúde explicam a perpetuação da doença pela ausência de conhecimento das pessoas e isso precisa ser compreendido de maneira singular, pois, de qual conhecimento os participantes estão falando? Possivelmente, trata-se de um conhecimento consensual proveniente das percepções dos indivíduos a respeito das definições da doença, como ela pode ser transmitida e principalmente como pode ser evitada. A percepção da doença é definida como a forma que os indivíduos compreendem diversos aspectos relacionados à saúde e a doença, levando em consideração suas experiências individuais e coletivas. Além disso, a percepção da doença inclui a informação que o indivíduo possui a respeito de sua patologia, bem como seus sintomas, potenciais causas, provável duração, evolução no tempo e potenciais consequências. Quando o indivíduo vivencia algum sintoma, inicia-se um processo de cognição no qual a pessoa passa a comparar este sintoma com o modelo que possui sobre a doença.16
Desta maneira, a dimensão individual abrange a abordagem sobre o conhecimento pessoal ou sua ausência sobre a ideia de saúde e doença, e, neste caso em especial, sobre as doenças negligenciadas. A partir da apreensão das percepções individuais sobre o conceito de doenças, os profissionais de saúde tendem a compreender pelo prisma do universo consensual e consequentemente terá maiores condições de estabelecer em suas práticas a interação junto ao individuo no enfrentamento a estas enfermidades. O significado do termo falta-conhecimento reproduz um tipo de pensamento dos profissionais sobre o comportamento do indivíduo diante da doença, estabelecendo uma posição do profissional de explicação das condutas que são promotoras da continuidade destas enfermidades. O processo de determinação das doenças negligenciadas é complexo e envolve fatores que operam em vários níveis, desde os mais distais (p. ex.: políticas sociais e econômicas, contexto socioambiental e condições de vida) até os mais proximais (p. ex.: fatores genéticos e constitucionais).17
A correlação da falta de conhecimento (termo da centralidade da representação) com o termo profissional (elemento da 2ª periferia) indica que os profissionais de saúde exercem uma influência relevante na construção do conhecimento sobre a prevenção, controle e tratamento das doenças negligenciadas. Neste sentido, entende-se que os profissionais de saúde, por meio dos serviços em que atuam, são instrumentos colaborativos na formação das estratégias que podem combater as enfermidades. Uma dessas estratégias, a educação em saúde, possibilita uma interação entre profissional e indivíduo no sentido de favorecer a ampliação dos conhecimentos sobre as doenças e, por conseguinte, a participação pessoal no processo de construção de novos saberes sobre saúde. A educação em saúde surge como estratégia para promover saúde e prevenção primária e secundária e deve ser uma prática social centrada na problematização do cotidiano, na valorização da experiência dos indivíduos e grupos, tendo como referência a realidade na qual eles estão inseridos. É a soma de todas as experiências que modificam ou exercem influência nas atitudes ou condutas de um indivíduo em relação à saúde e aos processos que necessitam ser modificados.18
Quando os indivíduos conhecem e possuem informações sobre as doenças, possivelmente terão maiores possibilidades de evitar a instalação desses agravos, desde que essas informações sejam incorporadas às práticas cotidianas para alcançar a desiderabilidade social no combate às doenças negligenciadas. A dimensão individual, portanto, compõe a estrutura interna das representações dos profissionais sobre as doenças negligenciadas, demonstrando a influência dos indivíduos e sua corresponsabilidade na participação de ações de prevenção, promoção e tratamento dessas enfermidades.
Neste ponto, entendemos que o possível núcleo central, aqui organizado pelas dimensões sociopolítico e individual, define uma reconstrução simbólica, social e cognitiva acerca das doenças negligenciadas, significando que, para os sujeitos, a sua existência e continuidade se dá pelas condições tanto da sociedade quanto do individuo. Nesses processos representacionais aparecem, portanto, elementos centrais, constitutivos do pensamento social, que lhe permitem colocar em ordem e compreender a realidade vivida pelos indivíduos ou grupos.19
A dimensão socioindividual
Os aspectos sociais e individuais causadores das doenças negligenciadas foram explicitados pelos profissionais de saúde durante este estudo, quando evocaram os termos pobreza, miséria, transmissor e irresponsabilidade. São palavras que trazem o significado de interligação entre as condições socioeconômicas e as atitudes individuais, demonstrando, principalmente, a vulnerabilidade social das populações atingidas por estas enfermidades. As doenças tropicais consideradas negligenciadas constituem um conjunto de enfermidades prevalentes nos países em desenvolvimento, que afetam indistintamente toda a população, mas que tem tido maior impacto em grupos populacionais em situação de vulnerabilidade social, representando um sério obstáculo ao desenvolvimento socioeconômico e à melhoria da qualidade de vida.20
Os termos que compreendem esta dimensão, pobreza, miséria, transmissor, estão intimamente relacionados ao determinismo social, individual e ambiental, pois são colocados como principais causadores das doenças negligenciadas. A pobreza e a miséria abrangem grande parte da população mundial e apesar das ações estratégicas de algumas instituições, ainda não foram totalmente superadas. Os 50 países com menor produto interno bruto (PIB) do mundo são todos tropicais, assim como os países com renda per capita inferior a US$ 2,5 mil por ano. Com uma ou outra exceção, como o Afeganistão, são tropicais, também, os países em que pelo menos 50% da população está abaixo da linha da miséria, e os países em que de 60% a 80% de seus habitantes vivem com menos de US$1 por dia.21 A pobreza, classicamente delimitada em termos de renda, é hoje vista de forma muito mais ampla. Relaciona-se à privação dos itens mais necessários à existência digna, tais como liberdade, bem-estar, saúde, educação, direitos, emprego, meios para participar do mercado de consumo, e tantos outros quanto se possa pensar. Pobreza é um fenômeno complexo, podendo ser definido, de forma genérica, como a situação na qual as necessidades não são atendidas de forma adequada.22
O termo pobreza possui um significado singular na representação das doenças negligenciadas, pois determina e desencadeia todo o processo de vulnerabilidade social do indivíduo, causada pela ausência de estratégias econômicas dos países para diminuir as desigualdades sociais. As doenças negligenciadas existem porque a pobreza existe, por isso as ações governamentais que diminuem as desigualdades sociais precisam ser fortalecidas, principalmente no Brasil, onde ainda se convive em um cenário de extrema pobreza e, não por acaso, assume a maior carga de doenças tropicais negligenciadas da América Latina e Caribe. Isto significa que grande parte do contingente de 40 milhões da população mais pobre do Brasil está infectada por uma ou mais doenças tropicais negligenciadas.23
O termo transmissor, por seu turno, nos remete à ideia de um agente biológico, ou um vetor ambiental causador das doenças transmissíveis, refletindo, segundo o pensamento dos profissionais, que as doenças negligenciadas precisam, além das condições sociais, da relação homem-ambiente para sua perpetuação e continuidade. Esta representação apresenta a realidade sobre as doenças negligenciadas, pois reflete justamente um dos principais fatores condicionantes para a sua endemicidade. Nesta realidade, temos as doenças infectoparasitárias, como a doença de Chagas, que têm grande importância por seu expressivo impacto social, já que estão diretamente associadas à pobreza e à má qualidade de vida, enquadrando patologias relacionadas às condições de habitação, alimentação e higiene precárias, e ao desconhecimento de fatores de risco.24 Há relatos de que fatores socioculturais, em grande parte, podem controlar e prevenir as doenças parasitárias, sendo fundamental a implementação de intervenções combinadas à conscientização social.24
Portanto, esta dimensão apresenta, além da causalidade das doenças negligenciadas, a necessidade de mudança de práticas tanto em nível individual quanto social. No nível individual, entendemos que as pessoas que são vulneráveis a estas enfermidades precisam conhecer, por meio de seu universo consensual, as principais características das doenças com intuito de trazer para o seu cotidiano as ações de prevenção, como o cuidado com o corpo, os hábitos alimentares, as práticas de combate aos vetores que são medidas dependentes da apreensão cultural e pessoal destes conhecimentos.
No nível social, por sua vez, existe a necessidade de uma atuação política que evidencie, além de planos estratégicos, a vontade em conhecer a realidade da população e tomar medidas eficazes no combate às doenças negligenciadas. O investimento no setor saúde, em especial na atenção primária, seria uma das ações prioritárias dos três entes federados (União, Estado e Município) que poderiam diminuir a carga de doenças que existem no Brasil. O aumento do financiamento do setor saúde e sua aplicabilidade na qualificação dos serviços de saúde da atenção primária, certamente, fortaleceria o combate às doenças, com a participação dos profissionais de saúde no sentido de promover saúde integral, desenvolvendo ações intersetoriais focadas nas causas das enfermidades.
A dimensão político-social: a abordagem do descaso
Neste aspecto político e social, evidenciado na possível centralidade desta representação por parte dos profissionais de saúde, ressalta-se a necessidade de valorizar a magnitude e o efeito produzido por tais enfermidades ao interligar o descaso aos demais elementos constitutivos da representação. Os profissionais de saúde elencaram a falta de recursos e incentivos, refletindo no incipiente financiamento por parte dos entes federados no combate às doenças negligenciadas. Na situação de descaso, isto perpassa pela ausência de verbas específicas para concretizar as metas e as ações estratégicas que possam eliminar tal problema.
Ainda relacionando o descaso (centralidade) aos elementos de contraste (hierarquia), observa-se que os termos interesses-econômicos e ineficiência sustentam a ideia e justificam o pensamento dos profissionais de saúde a respeito das doenças negligenciadas. Tais termos indicam a proximidade ao significado de condutas das autoridades sociais (governos e serviços de saúde), que terminam por resultar na inoperância ou ineficiência das possíveis ações de enfrentamento às doenças negligenciadas. Estas condutas por parte das autoridades políticas e técnicas resultam na perpetuação do ciclo da pobreza e, por conseguinte, das doenças consideradas negligenciadas e que poderiam ser enfrentadas de maneira diferente.
Analisando esta dimensão, pode-se dizer que o termo descaso implica no pensamento dos profissionais de saúde em correlacionar a continuidade das doenças negligenciadas ao desinteresse da sociedade (indivíduos, governo e instituições) por motivos justificados pelos elementos da zona de contraste: falta de recursos, interesses econômicos e incentivos, no combate ao problema de saúde que afeta mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo. No que diz respeito a estes termos, eles refletem a relação da lógica de mercado, pois, como as doenças atingem principalmente os países subdesenvolvidos e as populações extremamente pobres, não existe um retorno financeiro e lucrativo para as grandes indústrias farmacêuticas. No período entre 1975 e 2004, apenas 1% dos 1.535 novos fármacos registrados foram destinados às doenças tropicais. Esses dados sugerem que o investimento em pesquisa e desenvolvimento de fármacos para doenças negligenciadas é inadequado, sendo evidenciado pelo fato de o investimento em malária ser pelo menos 80 vezes menor que o para HIV/Aids.25
As doenças negligenciadas são consideradas infecções que poderiam ser evitadas, caso houvesse um maior interesse da sociedade para enfrentá-las adequadamente. Os profissionais de saúde, participantes deste estudo, enfatizaram essa assertiva na medida em que apontaram o descaso como sinônimo para a doença negligenciada. O que se percebe, na realidade, é que poucos setores da sociedade se dão conta da magnitude destas enfermidades e não proporcionam medidas eficazes no combate a tais agravos. Nos países em desenvolvimento, as doenças negligenciadas, têm enorme impacto sobre indivíduos, famílias e comunidades em termos de ônus da doença, qualidade de vida, perda da produtividade e agravamento da pobreza, além do alto custo de tratamentos de longo prazo. Constituem-se, assim, um grave obstáculo ao desenvolvimento socioeconômico e à qualidade de vida em todos os níveis.6
Apesar das mudanças no perfil epidemiológico, em que se observa que as doenças infectocontagiosas diminuíram consideravelmente se compararmos com o século passado, a incidência dessas enfermidades ainda permanece alta, principalmente por conta do descaso das autoridades públicas e do poderio econômico internacional. A partir da segunda metade do século XIX, especialmente entre países desenvolvidos, passou a ocorrer uma substituição gradual e progressiva das doenças infecciosas e parasitárias por doenças crônico-degenerativas como causas de morbidade e mortalidade. Não obstante, em várias populações, em especial em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, uma transição linear desses processos não foi observada, verificando-se, na realidade, uma sobreposição desses perfis (transição incompleta).26
Neste panorama, o descaso pode ser relacionado às características da população que é atingida por estas doenças, em sua maioria abaixo de nível de miséria e pobreza no mundo. Atentando para esse fato, agências como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o Banco Mundial e a própria OMS lançaram, há pouco mais de 30 anos, o Special Program for Research and Training in Tropical Diseases (TDR), cujo foco seria as doenças infecciosas que acometem desproporcionalmente as populações pobres e marginalizadas do mundo.21 Somente no ano 2000, a Organização das Nações Unidas (ONU) tentou expandir essa preocupação por meio da publicação da declaração dos objetivos de desenvolvimento para o novo milênio, colocando o combate à pobreza extrema como uma de suas prioridades mundiais, considerando que esforços não serão poupados para libertar os nossos semelhantes, homens, mulheres e crianças, das condições abjetas e desumanas da pobreza extrema, a qual estão submetidos atualmente mais de 100 milhões de seres humanos.27
Estas instituições, junto aos países do mundo inteiro, tiveram a oportunidade de estabelecer metas e ações estratégicas de combate à principal causa da continuidade destas enfermidades, a saber, a perpetuação da pobreza extrema. Ao contrário do que poderia acontecer e, também, apesar das metas estabelecidas durante as reuniões da ONU por meio dos objetivos para o novo milênio, o que se percebe é a continuidade da pobreza extrema. Mesmo com a redução substantiva da parcela da população mundial considerada extremamente pobre - de 47% para 22% -, mais de 1,2 bilhão de pessoas ainda se encontram nessa condição. De cada oito indivíduos, pelo menos um não tem acesso regular à quantidade suficiente de alimentos para suprir suas necessidades energéticas. Além disso, mais de 100 milhões de crianças com menos de cinco anos estão desnutridas.28
A dimensão imagética
Na estrutura das representações sociais deste estudo, a dimensão imagética revela as principais doenças consideradas negligenciadas pelos profissionais de saúde, sendo evocadas as seguintes: Calazar, Hanseníase, Tuberculose, Leishmaniose e Malária. Dentre as doenças negligenciadas de maior interesse no cenário brasileiro, a OMS atualmente prioriza a esquistossomose, a dengue, a doença de Chagas, as leishmanioses, a hanseníase, a filariose linfática, a oncocercose, as helmintíases transmitidas pelo solo (p.ex.: ascaríase e ancilostomíase), o tracoma e a raiva.29 No Brasil, em 2008, o Ministério da Saúde e o Ministério da Ciência e Tecnologia promoveram a segunda Oficina de Prioridades de Pesquisa em Doenças Negligenciadas, elencando dengue, doença de Chagas, leishmanioses, hanseníase, malária, esquistossomose e tuberculose como as sete prioridades de atuação do programa em doenças negligenciadas.7
Sendo assim, a dimensão imagética, produzida pelos profissionais de saúde coadunam com as doenças negligenciadas definidas pela OMS e também pelo MS, implicando na suposição de que a região do município estudado possui uma ocorrência destas enfermidades, as quais precisam ser estudadas e pesquisadas no intuito de compreender sua epidemiologia e, por conseguinte, desenvolver possíveis ações de prevenção e controle desses agravos.
CONCLUSÃO
O objetivo traçado para este estudo, analisar os conteúdos e a estrutura das representações sociais construídas pelos profissionais de saúde acerca das doenças negligenciadas, foi alcançado na medida em que foram expostos os elementos que constituem uma representação social e sua organização interna, ou seja, a distribuição e a relação existente entre os conteúdos centrais e periféricos. O pensamento social dos participantes implicou na interface entre as doenças negligenciadas e as condições sociais, individuais e políticas, coadunando com a ideia das instituições envolvidas no combate as essas enfermidades. Neste sentido, as representações sociais foram estruturadas em um núcleo central, que elegeu o descaso e falta de conhecimento como elementos que têm maior significado no contexto da representação das doenças negligenciadas, sendo sustentados pelos elementos periféricos que, por seu turno, fortaleceram as ideias de centralidade ao elencar os demais fatores associados a esses agravos.
Os fatores colaborativos para a elevada endemicidade das doenças negligenciadas foram evidenciados na estrutura representacional tanto na centralidade quanto nos elementos constitutivos como, por exemplo, a perpetuação da pobreza e da miséria nos países em desenvolvimento, inclusive no Brasil. Por conta disto, as dimensões apresentadas neste estudo, para explicar a organização interna das representações sociais dos profissionais de saúde, traduziram o conceito, a imagem das doenças negligenciadas no intuito de possibilitar mudanças nas práticas individuais e coletivas.
Como limites do estudo, considera-se que a quantidade reduzida de participantes pode não refletir toda a dimensão das práticas profissionais realizadas no âmbito do município. O percurso metodológico não permitiu inferências mais precisas, na medida em que não foi possível empregar técnicas complementares que buscassem identificar o contexto semântico dos termos evocados.
No que tange às implicações para a prática em saúde, avalia-se que os profissionais de saúde, com suas ideias, convicções e pensamento analisados, por meio da abordagem estrutural das representações sociais, sinalizaram questões voltadas para a prática do cuidado com vistas a dirimir as causas das doenças negligenciadas que atingem a sua região, estando elas dirigidas ao combate à pobreza, ao descaso e à falta de investimentos em pesquisa e conhecimento dessas enfermidades.
REFERÊNCIAS