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ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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CAPES

Volume 21, Número 1, Jan/Mar - 2017



DOI: 10.5935/1414-8145.20170011

PESQUISA

Sentimentos compartilhados por acompanhantes de pacientes oncológicos hospedados em casas de apoio: um estudo fenomenológico

Julia Wakiuchi 1
Gabriella Michel dos Santos Benedetti 1
Jéssica Manari Casado 1
Sonia Silva Marcon 1
Catarina Aparecida Sales 1


1 Universidade Estadual de Maringá. Maringá, PR, Brasil

Recebido em 11/08/2016
Aprovado em 02/12/2016

Autor correspondente:
Gabriella Michel dos Santos Benedetti
E-mail: enfermeiragabi@hotmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Compreender os sentimentos do acompanhante do doente com câncer, hospedado em casa de apoio.
MÉTODOS: Pesquisa fenomenológica fundada no pensamento de Martin Heidegger. Foram entrevistados dez acompanhantes, entre maio e julho de 2015, hospedados em uma casa de apoio no sul do país.
RESULTADOS: Da análise, emergiram-se três temáticas ontológicas: desvelando o sentimento de preocupação para com o outro; preocupando-se ante o distanciamento de seu mundo vida e sentindo-se acolhidos como em sua própria casa.
CONCLUSÃO: Depreende-se que estar-com-o-outro abrigado em uma casa de apoio produz sentimentos ambíguos entre preocupar-se com o porvir do doente e inquietar-se por se distanciar de seu cotidiano e planos de vida em prol do outro.
IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA: Ainda que a hospedagem represente um fator protetor, os sentimentos experienciados pelos acompanhantes podem gerar importantes demandas emocionais a serem consideradas no planejamento dos cuidados de enfermagem em toda a rede de atenção.


Palavras-chave: Neoplasia; Cuidadores; Apoio social; Pesquisa qualitativa; Enfermagem

INTRODUÇÃO

Historicamente, o ser humano sempre temeu doenças que poderiam avivar-lhe lembranças da morte como o câncer, que há tempos está presente no seio da humanidade. Atualmente, o diagnóstico de uma neoplasia maligna desencadeia não somente medo e insegurança ante sua severidade, como também dificuldades impostas pelo sistema de saúde, no que tange ao acesso e à disponibilidade de serviços de diagnóstico, acompanhamento e tratamento, bem como a qualidade e a resolutividade da assistência prestada.1

As políticas públicas sugerem a organização de uma rede de atenção à pessoa com câncer de modo que torne possível a integralidade e continuidade do cuidado por meio da articulação dos diferentes pontos de atenção, ancorados pelos sistemas de apoio, logísticos, regulação e governança da rede de atenção à saúde. Cabe a cada esfera do governo articular-se para implementar essa assistência no âmbito básico, domiciliar, especializado e/ou de urgência e emergência.2

Ressalta-se que o tratamento antineoplásico possui como característica a alta complexidade, amparada por recursos tecnológicos, científicos e humanos especializados para sua realização.3,4 Tal realidade limita a oferta desses serviços a hospitais ou clínicas que dispõem da infraestrutura necessária para tais procedimentos, ficando, em sua maioria, restritos às cidades de maior porte populacional.5,6

Hoje, no Brasil, há 284 habilitações para assistência especializada ao câncer, distribuídas em todo o território nacional, sendo que o encaminhamento para uma unidade assistencial fica a cargo das secretarias estaduais e municipais de saúde, a partir da Rede de Atenção Básica.7 Em um país de grandes dimensões, como o Brasil, tal configuração se constitui em uma barreira social, econômica e psicológica, visto que o deslocamento constante para os centros terapêuticos repercute substancialmente no viver do paciente e da família,8 o que pode suscitar a necessidade de hospedagem em casas de apoio,5,6 e dão suporte a pessoas em tratamento fora do município de origem, fornecendo gratuitamente hospedagem, alimentação e sempre que possível translado para as instituições de referência.9

Junto a esse paciente está seu cuidador, comumente um familiar, que lhe confere suporte ante os desgastes causados pela doença e, intensificados pela terapia antineoplásica.1 Vale lembrar que, frente à veemência do câncer em um lar, todo o núcleo familiar se reorganiza em prol do tratamento da enfermidade e do bem-estar do ente adoecido, em especial o cuidador, que dedica seu empenho e afeto, além de renunciar sua vida pessoal, para executar o cuidado ao estar junto ao paciente e conferir-lhe apoio.10

O cuidado ao paciente oncológico pode ainda avivar no cuidador insegurança em suas ações de cuidado, além de emergirem os sentimentos de solidão, medo e tristeza, associados ao cansaço físico e ao sofrimento pela distância dos demais familiares, o que pode desencadear o estresse por sua função e, consequentemente, o descuido consigo.11

Considerando as dificuldades enfrentadas por esses cuidadores, o presente estudo se pautou no questionamento: quais os sentimentos vivenciados pelos familiares acompanhantes do doente com câncer que realizam tratamento fora de suas cidades e necessitam se hospedar em casas de apoio? Vale ressaltar que, ao dar voz a esses acompanhantes, oportuniza-se originalmente, a comunicação dos reais sentimentos e necessidades desses seres, que abdicam de parte de suas vidas e de seu cotidiano em prol do cuidado do outro.

Tal condição existencial sugere atentar para o ambiente de cuidado que se instaura nas casas de apoio, onde paciente e acompanhante se veem distantes de seus lares e inseridos em um novo contexto, onde o cuidador passa a ter papel fundamental na dinâmica assistencial e cooperação para com a equipe de saúde. Logo, podem surgir novas necessidades de atenção e cuidado, tanto para o paciente como para seu cuidador, tratando-se, portanto, de um ambiente oportuno para a implementação dos cuidados de enfermagem voltados ao cuidador.11

Nesse sentido, define-se como objetivo deste estudo compreender os sentimentos do acompanhante do doente com câncer, hospedado em casa de apoio.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo fenomenológico. Este tipo de estudo busca compreender as demandas dos indivíduos ao analisar a consciência que estes têm acerca de suas vivências e os significados que atribuem às mesmas, permitindo rearranjos dessa assistência. Logo, possibilita refletir sobre os variados contextos de cuidado, o que contribui para a qualificação da prática de enfermagem.12 Nesse pensar, a Fenomenologia Existencial, de Martin Heidegger, se mostra fundamental, uma vez que nos conduz à imersão na cotidianidade do ser e à análise de suas linguagens e de suas vivências, possibilitando a compreensão do fenômeno que desejamos desvelar.13

Sendo assim, em um sentido ontológico-existencial, a região de inquérito ou região ôntico-ontológica não se constitui de um local físico, mas dos sentimentos dos familiares que acompanham pessoas com câncer para tratamento fora do município de origem.

O presente estudo foi desenvolvido em uma instituição filantrópica, situada no noroeste do Paraná. Trata-se de uma organização social, sem fins lucrativos que atende a pacientes com câncer, de qualquer faixa etária, comprovadamente sem condições financeiras, residentes na cidade-sede e municípios vizinhos, e disponibiliza assistência social e de saúde. Nesse sentido, além de hospedagem e alimentação, sempre que possível, também disponibiliza transporte até as clínicas e hospitais onde são realizados os tratamentos.

Os acompanhantes foram contatados pessoalmente, nas dependências da referida instituição, momento em que o objetivo do estudo lhes foi apresentado e realizado o convite para participar do projeto de pesquisa. Para tanto, elencaram-se os maiores de 18 anos, residentes em outros municípios e, que pela inviabilidade financeira, de tempo e distância, necessitavam permanecer, junto ao paciente oncológico, em casa de apoio próxima ao serviço especializado de referência para que o familiar doente pudesse realizar seu tratamento.

Foram excluídos aqueles que se hospedavam apenas para a realização de exames. Todos os familiares hospedados na casa de apoio, no período de coleta de dados, que obedeciam aos critérios de inclusão, foram abordados pela pesquisadora e convidados a participar da pesquisa, não havendo recusas, totalizando dez participantes.

O período de coleta dos dados foi interrompido à medida que os conteúdos dos discursos apresentaram-se repetitivos, não surgindo novos achados. Nesse aspecto, considerou-se que o teor dos relatos revelou a suficiência de significados em relação ao objetivo proposto no estudo,14 ou seja, os familiares foram capazes de descortinar seus sentimentos em relação à permanência na casa de apoio junto a um familiar com câncer durante as entrevistas. Importante ressaltar que na pesquisa fenomenológica a generalização dos dados não se faz importante para os resultados, sendo primordial que os sujeitos tenham exposto suas experiências de maneira acurada.15

Na abordagem fenomenológica, o pesquisador tem uma interrogação e vai percorrê-la, buscando a sua compreensão. Para isso, tal inquietação precisa se apresentar ao pesquisador enquanto fenômeno, ou seja, enquanto algo que exige desvelamento, "iluminação". Logo, utilizou-se como questão norteadora: como está sendo para você acompanhar seu familiar com câncer, hospedado em uma casa de apoio?

As entrevistas ocorreram no período de maio a julho de 2015, nas dependências da casa de apoio, em locais reservados como quarto ou sala de atendimento, em dias e horários conforme preferência dos acompanhantes. As mesmas tiveram duração média de 30 minutos, e foram registradas com o auxílio de um gravador digital e transcritas em seguida.

Na analítica heideggeriana em seu sendo-no-mundo, o ser humano desvela-se por meio de suas características ônticas-ontológicas, sendo que ôntico refere-se ao fato, isto é, à concretude do fenômeno a ser pesquisado. Por outro lado, ontológico remete à compreensão do sentido e significado do fenômeno pelo ser vivente.13

Nesse aspecto, a análise da linguagem dos depoentes aconteceu em dois momentos metódicos distintos. No primeiro, por meio da compreensão vaga e mediana, foram realizadas leituras dos relatos, a fim compreender as vivências dos familiares ao acompanhar um ente querido em tratamento oncológico. Em um segundo momento, buscou-se abarcar a essência contida nos depoimentos por meio de novas leituras, procurando, pelas estruturas significantes, que revelassem a subjetividade e a intersubjetividade do estar-com. Assim, as estruturas essenciais constituíram as Unidades de Significação (US), que compuseram as temáticas ontológicas.14

Por se tratar de uma pesquisa que envolve seres humanos, foram obedecidos todos os preceitos éticos e legais, regulamentados pela resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, aprovada pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos - Copep, da Universidade Estadual de Maringá, sob o parecer nº 1.028.728/2015 - CAAE 43114815.6.0000.0104. A solicitação de participação no estudo foi acompanhada de duas vias do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, onde constam informações sobre as finalidades da pesquisa, o tipo de participação desejada e o tempo provável de duração da entrevista. E, para garantir o anonimato dos participantes, os mesmos foram identificados por códigos (C1, C2, ... e C10) de cuidador, seguidos do grau de parentesco com o paciente.

RESULTADOS

Dos participantes do estudo, nove eram mulheres. O grau de parentesco foi em sua maioria de primeiro grau, sendo cinco filhas, três esposas, uma mãe e um genro. O tempo de acompanhamento variou entre 20 dias a quatro meses de permanência na instituição.

Os discursos revelaram as vivências dos familiares ao acompanharem os pacientes com câncer, hospedados em uma casa de apoio, o que deu origem a três temáticas ontológicas que serão apresentadas a seguir.

Desvelando o sentimento de preocupação para com o outro

De modo geral, os acompanhantes de familiares com câncer que permanecem na casa de apoio foram capazes de se expressar sobre os sentimentos que surgem ao acompanhar o ente adoecido e permanecer longe do lar, demonstrando o compromisso de estar junto a seu ente querido, como se verificou nos depoimentos abaixo.

[...] como eu estou com ele aqui e, as pessoas com os mesmos problemas estão aqui, a gente passa pelas mesmas dificuldades, um aprende com o outro... É uma coisa que tem que ser feita, [...] Isso é só mãe que sabe, e já falo, pode parar de manha, vamos fazer assim e assim [...] (C1 mãe).

[...] mas preciso, é necessário, então a gente tem que compreender, por que é que nem ele falou pra mim: que se eu não estivesse aqui ele já teria até morrido, porque ele já teve assim de não me conhecer, entendeu?!... não tem como eu sair daqui, largar ele do jeito que esta sozinho, não tem como, por que como eu vou sair daqui e ir para lá cuidar das coisas? Não tem como [...] (C4 esposa).

[...] não posso deixar de fazer, eu tenho que vir, eu sei que tenho que vir... eu tenho que passar. Você tem que tentar e tentar tudo que você puder [...] (C2 filha).

Preocupando-se ante o distanciamento de sua mundaneidade de mundo

Ao vivenciar um momento de intensas transformações, é possível observar que os participantes, além do cuidado que prestam a seus familiares com câncer, têm a preocupação com quem fica e com tudo que fica na cidade de origem, uma vez que constituem família e trabalho.

[...] Então fica difícil eu como vó, aqui eu fico preocupada com ele lá, não consigo me desligar deles lá [CHORO], se minha filha fosse mais controlada até daria, mas não dá (C5 filha).

[...] aí tem minha mãe também que está em cima de uma cama por causa de um problema de coluna, que ela caiu e se machucou então ela não está podendo fazer nada, aí tem que revezar. [...] é complicado para uma senhora de idade ficar sozinha, machucada e com problema na coluna... Eu fico aqui, mas eu fico preocupada com ela [a mãe] lá (C3 filha).

[...] se eu não tivesse trabalho, marido, filho e casa eu ficaria aqui o mês inteiro sem problemas, mas assim é difícil. O que mais me toca é ter que deixar minha filha e o meu trabalho que tem muita coisa que depende de mim... é difícil e minha filha que é muito apegada e na hora de estudar, quando é época de prova ela quer que eu estude junto com ela (C2 filha).

[...] fico com preocupação de ter que deixar minha casa. Trabalho vendendo produto foi o que mais me deixou assim, preocupada, eu tinha entrega para fazer, eu tinha dinheiro para receber, tinha pagamento para fazer para firma [...] (C6 esposa).

Os depoimentos indicam também que esse sentimento de preocupação com tudo e todos que ficam é algo que traz sofrimento emocional e que pode afetar toda a dimensão psicossocial desse cuidador.

É está sendo pouco difícil... Olha, vou falar para você, não é fácil ficar longe de sua casa, mas Deus vai dar conforto para nós (C4 esposa).

Muito difícil, quando chego lá na minha cidade, eu falo para os meus filhos, eu moro em Maringá, eu venho aqui apenas passar o final de semana, sair desse barulhão de cidade grande, é isso, às vezes na minha cabeça eu já moro aqui, [...] com meus netos eu faço de tudo para dar carinho no sábado e domingo, mas o tempo, você sabe como é, é rapidinho, são dois dias, a gente limpa casa, faz janta, não dá tempo. Vou falar uma coisa para você, psicologicamente é muito difícil [...] (C5 filha).

Olha muito difícil viu [...] O mais difícil está sendo ficar longe da casa, é difícil porque eu moro no sitio, eu tinha minha casinha, minhas criações e a gente tem que abandonar tudo né?! Não é fácil, eu tenho cinco filhos, mas são todos casados e moram todos longe, então só eu e ele lá em casa no sitio, então está sendo difícil porque tem que conviver com a casa longe [...] (C7 esposa).

A distância de casa abala os cuidadores não apenas pelo apego emocional com os familiares que permanecem longe ou pelo conforto próprio de seus lares de que precisaram abdicar, mas também pela nova realidade que se impõe em suas vidas, a adaptação à nova cidade e o abandono de seus pertences, de seus costumes e de sua vida cotidiana.

[...] aí estou fazendo assim, intercalando os dias, quando eu estou lá estou resolvendo e quando estou aqui, o que posso fazer por aqui, eu resolvo também, mas é difícil, é complicado! Mas a gente vai levando, mesmo que tem que deixar as coisas que a gente faz e a gente gosta e viver outra situação, então se torna difícil até você acostumar com essa rotina! Mas a gente vai tentando conciliar uma coisa com a outra (C8 filha).

[...] eu só me sinto triste por não poder estar indo na igreja que é uma coisa que eu gosto muito (C9 filha).

Sabe, antes eu estava em casa todo dia toma uma cervejinha com um aperitivo e aqui agora eu não estou tomando porque a gente sente também [...] (C10 genro).

Sentindo-se acolhidos como em sua própria casa

Nesta temática os familiares expressam a satisfação de sentirem-se acolhidos. Em todos os depoimentos observou-se que os mesmos mencionaram que o cuidado recebido está auxiliando-os no enfrentamento do processo de adoecimento e tratamento de seu familiar.

[...] depois que consegui essa casa de apoio aqui foi bem melhor, vou falar a verdade para você, aqui a gente se sente em casa sabe... eu gosto, a gente conversa, eu ajudo as meninas, ele fica lá no quarto, ele fica a vontade, graças a Deus a gente é bem tratado. Aqui eu sinto em casa, se eu pudesse ficar aqui até o final de semana eu achava bom (C4 esposa).

[...] Ah eu me sinto tão bem aqui, me dou bem com todos, me sinto útil aqui, ao ajudar, a lavar, secar, guardar, porque quem está de cama é minha mãe e não eu, certo, então como a gente é bem tratado, é o modo de retribuir as coisas, é tudo de graça, o transporte tudo, então é uma maneira de retribuir é assim, ajudando com os afazeres, como eu estivesse na minha própria casa (C5 filha).

Os familiares também possuem a percepção de que a casa de apoio é uma luz a iluminar sua estadia, ressaltando as minúcias que fazem deste lugar sua segunda morada.

[...] eu sempre falo que é um lugar muito abençoado por Deus para mim, porque o pessoal recebe a gente bem. Muitas coisas são melhor que até na minha casa, porque é um lugar muito prestativo com a gente, um pessoal muito bom. Isso foi um motivo que não me deixou muito preocupada, graças a Deus eu estou me sentindo muito bem (C6 esposa).

[...] mas ainda bem que também tem esse lugar aqui [a casa de apoio] que é maravilhoso, trata a gente muito bem. Eu nunca pensei que existia um lugar como esse para acolher as pessoas doentes, eu rezo para Deus todas as noites para que abençoe esse lugar, para que nunca falte nada, para que dê força a essas meninas para tocar essa casa, porque ai de nós se não tivesse esta casa (C7 esposa).

DISCUSSÃO

Ao imergir no âmbito emocional do ser que acompanha o paciente oncológico hospedado em casa de apoio, evidenciaram-se facetas que revelaram singularidades desses familiares que cuidam, ocupando-se do porvir daquele que padece de câncer bem como de tudo e todos que deixaram distante, como demais familiares, seus lares e seu cotidiano. Sem hesitar, a família elege o doente como o foco principal do seu cuidado, quando reúne todas as suas possibilidades a favor do outro. Na meditação heideggeriana, a abertura e o fechamento do ser-aí estão fundados no fenômeno de o mesmo possuir a capacidade de estar-no-mundo-com-os outros. Essa abertura é denominada solicitude ou cuidado que surge quando alguém sai de si e vai ao encontro do outro com desvelo e preocupação.13

O processo de tratamento do câncer, vivenciado por um ente querido, intensifica no seio familiar sentimentos de incerteza, medo e preocupação com seu futuro, o que lhe desperta a consciência acerca da necessidade de reorganização de seu cotidiano, já que, dentre as demandas do doente, estão a atenção integral e os cuidados complexos.16

Contudo, o papel do cuidador nem sempre emerge do real desejo em assumir essa responsabilidade: valores, crenças, etnias e sistemas familiares se relacionam com essa escolha, mas, de forma geral, o cuidador é um membro da família nuclear ou estendida que toma para si o dever moral do cuidado.17 Neste estudo, depreendeu-se que a preocupação com o ente querido emana não apenas dos laços familiares que os aproximava, mas, sobretudo, do compromisso que os cuidadores impuseram a si próprios, imprimindo-lhes a obrigação de cuidar e estar-com-o-outro durante a trajetória da doença.

O cuidado enquanto missão fez emergir o desejo de proteger e cuidar do ente querido, à medida que conceberam esse ato como algo a que estavam pré-destinados, não lhes passando pela mente recuar ante a incumbência que lhes foi imposta pela vida. Suas linguagens evidenciaram que, ao preocupar-se com o porvir do familiar doente, cada cuidador se assumiu como corresponsável por resguardar a saúde e vida daquele, assumindo esse papel com tenacidade e esperança. Estudo recente clarifica que o acompanhante do paciente oncológico, hospedado em casa de apoio participa ativamente na implementação dos cuidados, pelos quais modifica sua vida, abdicando de sua rotina diária.11

Os acompanhantes inquiridos manifestaram estar dispostos a encarar um novo e desconhecido mundo que se apresentou amedrontador, revestindo-se de amor e compaixão, e, assim, alimentados por um fio de esperança, persistiram em seu objetivo primeiro, procurando dar o melhor de si em prol do ente adoecido. A analítica heideggeriana sugere descrever a experiência do homem à medida que este se apropria da consciência do seu ser-lançado-no-mundo, e enxerga que as vicissitudes que vieram em sua direção, independentemente de seu desejo, não podem ser contidas. No entanto, ressalta que a esperança é um existenciário que devolve ao ser humano a sensação de bonum futurum, já que carreia consigo a força fundamental que resgatará o ser-no-mundo da angústia e o fará vislumbrar as inúmeras possibilidades em seu existir-no-mundo.13

Ao se voltar ao outro com preocupação, os acompanhantes revelaram seu poder ser mais próprio, mostrando-se dispostos a cuidar com desvelo e confiantes de que estar junto ao ente adoecido configurava-se em um ato significativo que contribuiria para o transcender das facticidades vivenciadas com o despontar do câncer no seio familiar. A literatura revela que o cuidado domiciliar a um paciente com câncer, apesar de permeado de desgastes físicos e emocionais, carrega consigo consequências positivas para aquele que assume o cuidado, principalmente no sentido de conferir domínio e sentido às suas vidas, reconhecimento por outros e redefinição de prioridades após a morte do familiar.18

Em seu existir-no-mundo o ser humano vive em constante estado de preocupação, ocupando-se não apenas consigo mesmo, mas também com outros entes e acontecimentos ao seu redor.13 Nesse pensar, os familiares exprimiram que, além da preocupação com sua condição atual, sentiram-se apreensivos com o que ficou para trás, como os demais familiares, a casa e o cotidiano que vivenciavam antes do adoecimento e tratamento de seu ente querido. Por vezes, tiveram suas mentes tomadas por lembranças que os fizeram reviver a felicidade de estar em seus lares e no seio de sua família, contudo se voltaram ao presente percebendo-se mergulhados num mar de angústias e transformações inesperadas.

Por meio de suas linguagens apreendeu-se que se distanciar de pessoas significativas inquietava seus pensamentos, uma vez que os cuidadores vivenciavam uma relação de interdependência com outros membros da família, o que lhes avivou a sensação de desamparo por ter deixado para trás uma parte do próprio eu. Essa preocupação com os outros seres-aí suscitou ainda a agonia de não poder atender as suas demandas, o que deixou evidente o sofrimento emocional vivenciado por esses cuidadores. Nesse sentido, o afastamento da família, amigos e planos futuros fragilizou o ser que acompanha o familiar doente, fazendo com que brotassem sentimentos de preocupação, tristeza e angústia diante de tudo aquilo que ele deixara para trás.

O cuidador familiar se insere como um cuidador informal, e se envolve em todas as fases do tratamento antineoplásico como suporte incondicional ao paciente e, referência deste junto à equipe de saúde, ao mesmo tempo em que acumula as responsabilidades com o restante da família, com o trabalho e demais compromissos de sua vida privada.19

Ausentar-se do trabalho foi mencionado pelos acompanhantes com profundo pesar, pois o labor representava não apenas a fonte de sua renda, mas, sobretudo, o seu papel na sociedade, ocupando grande parte de suas incumbências diárias. Assim, perceberam-se impedidos de zelar por suas obrigações, o que também pode ter intensificado a sobrecarga emocional ante as cobranças que impuseram a si próprios. Logo, o cuidar de um familiar com câncer repercute substancialmente na vida do cuidador, interrompe planos e sonhos, além de afetar sua autoestima e lhes causar sobrecargas.20

Estar com o familiar que padece e distante dos demais entes queridos e de seus afazeres faz com que o acompanhante vivencie um paradoxo existencial, despertando no ser-aí, entre outros sentimentos, o de solidão.9 Os participantes deste estudo sentiram sua própria realidade distanciada, a qual contemplava com um olhar angustiado e com o espírito inquieto, o que fez aflorar em seu íntimo a sensação de impotência ante a facticidade que lhe veio ao encontro.

"Abandonar tudo" e "ter que conviver com a casa longe", para a acompanhante C7 esposa, consistiu em não mais estar com tudo aquilo que pertencia a sua mundaneidade de mundo. Não obstante, a cuidadora C5 filha revelou que já não se sentia no seu lar, quando nele estava, fundando um novo contexto de vida e um novo mundo para si, que agora se situava na casa de apoio. Assim, revelaram o quão impactante estava sendo compartilhar com o ente querido o seu processo de adoecimento, que lhes impunha a necessidade de ausentar-se de seus lares e de suas realidades.

Nesse pensar, convém refletir acerca do ser-com ou sendo-com que é um constitutivo ontológico do ser-no-mundo, do existir humano. E, em razão disso, o mundo é sempre algo que o ser-no-mundo partilha com os outros, isto é, o mundo do ser-aí é um mundo com.13 Logo, considerou-se estar implícita em suas linguagens a renúncia do próprio cotidiano, de seus antigos hábitos e costumes, privando-se de suas necessidades existenciais em prol do reestabelecer da saúde de seu ente adoecido, pois compreenderam que atender às exigências impostas pela doença se tornou emergencial em relação aos demais âmbitos de sua vida. Os familiares criaram novas táticas não apenas para preservar a estrutura familiar dentro da rede, mas também para fortalecer todo o seu seio familiar.

Estudo realizado na Dinamarca demonstrou que, apesar de os cuidadores familiares serem os que mais sofrem as consequências do acúmulo de funções, de dificuldades financeiras e de afastamento social são os que mais apresentam crescimento pessoal e os que menos sentem a necessidade de voltar a sua vida normal enquanto exercem a função de cuidar, adaptando-se a esta condição.3

Em sua existencialidade, o ser humano é um ser temporal e essa temporalidade é vivida por ele a cada momento de seu viver. A última ek-stase dessa temporalidade é o presente, todavia este não representa apenas o momento atual em sua cotidianidade, mas, como um existenciário, indica o movimento pelo qual o ser-aí, projetando-se para o seu poder-ser mais próprio e assumindo seu existir-no-mundo, descobre um mundo que é seu, isto é, sua própria condição e, a partir desse momento, ele se torna livre para descobrir formas para enfrentar a facticidade vivida neste ek-stante de sua vida.13

Apesar de estarem vivenciando um momento repleto de preocupações acerca do porvir de seu ente querido e de desconfortos relacionados às mudanças ocasionadas em suas vidas, apreendeu-se que os acompanhantes sentiram-se agraciados por terem sido acolhidos na casa de apoio quando atravessavam as tormentas impostas pelo processo de adoecimento.

Nesses momentos, a casa de apoio pode significar uma fonte de energia, uma vez que nela se encontram auxílio e proteção que vão ao encontro de suas demandas no decorrer dessa trajetória de tratamento do câncer.6

Percebe-se nas falas dos entrevistados que a casa de apoio se apresentou como seu segundo lar, à qual se referiram com muito carinho e gratidão pela solicitude com que foram abrigados. Esses sentimentos emergiram a partir do cuidado humanizado despendido pelos profissionais que lá atuavam, os quais se dispuseram a construir uma relação empática e de confiança com o doente e seus acompanhantes em um momento que se encontravam fragilizados e necessitando de cuidados que abarcassem suas dimensões existenciais.

O apoio pode ser compreendido a partir da oferta de ajuda oportuna, da presença, de força e orientação durante todo o processo de adoecimento e tratamento, no qual os profissionais que atuam nessas instituições ocupam lugar de destaque, exercendo com maestria seu papel de apoiadores.5 Tal configuração se confirma em outras realidades, como em um estudo realizado em Taiwan, que evidenciou menor sobrecarga do cuidador que recebe apoio social, enfatizando a importância do profissional de saúde no apoio ao cuidador do paciente com câncer.20

O homem, enquanto ser-no-mundo, desvenda-se como ser-com (Mit Sein), em que o outro (Mit Dasein) é da mesma maneira um ser-no-mundo, logo, um ser para o outro, numa con-vivência. Assim, é sendo-com-outro que o ser humano entrevê a possibilidade de estar-com-o-outro, não meramente como alvo de seu cuidado, mas, sobretudo, de uma maneira envolvente e significante, já que no adoecimento a copresença não se ocupa, contudo se preocupa com o outro.13

O trabalho humanizado configura-se, portanto, naquele que é realizado com amor, carinho, afeto, gentileza, fazendo com que o usuário se sinta bem e acolhido. Dessa forma, ocorrem as práticas implementadas pelas casas de apoio, as quais oferecem um tratamento diferenciado, que promove harmonia e boas relações.5,6,9

Os achados do presente estudo revelaram que "ser bem recebido" e "ser tratado bem" pelos profissionais da casa de apoio, levando os acompanhantes a se sentirem tão bem quanto em seu próprio lar, elevou o espírito daqueles que tanto sofrem e acalmou seus corações inquietos ante a facticidade que lhes veio ao encontro. Isso fez com que esses seres vislumbrassem a instituição como um local único, que merecia ser protegido e agraciado pelas bênçãos divinas para que se mantenha eterno e, assim, possa acolher quantas pessoas mais necessitarem.

A importância desse tipo de instituição reside na capacidade de promover qualidade de vida aos seus usuários à medida que abre suas portas no momento em que o doente e seu acompanhante mais necessitam e os auxilia no enfrentamento desse processo de adoecimento e tratamento.5 Ademais, "proporciona um acolhimento autêntico aos familiares que acompanham seu ente querido, compartilhando momentos de angústias, tristezas e alegrias, principalmente quando se encontram longe de seus lares".9:413

Na meditação heideggeriana, a disposição ou tonalidade afetiva representa um comportamento fundamental que o ser-no-mundo emprega para se revelar ao mundo. A disposição conduz o homem a abrir-se a si próprio e ao mundo, suscitando, no domínio do encontro, a vinda de outros entes em sua direção.13

Vale lembrar que, no que tange a realidade prática das casas de apoio, sua configuração se pauta na necessidade de oferecer à população os subsídios necessários para realizar o tratamento antineoplásico. Seguindo este pensar, um planejamento adequado da atenção à saúde de um local deve levar em consideração "a regionalização do atendimento, as distâncias percorridas pela população na busca pela assistência, e os volumes envolvidos nestes deslocamentos", a fim de conhecer as relações entre o local de domicílio dos pacientes e sua busca pelo serviço de saúde.8

Em uma rede composta pela atenção básica e especializada, as casas de apoio surgem como mais um componente da rede, que objetiva integrar os diferentes níveis de atenção e, possibilitar o alcance ao tratamento de alta complexidade com qualidade e resolutividade agregado ao cuidado humanizado.

Compreendeu-se, assim, que o suporte dado pelas casas de apoio não abrangeu apenas as demandas físicas e sociais, quando atendeu às necessidades de abrigo, alimentação e cuidado e contribuiu para o acesso e continuidade do tratamento oncológico, mas, sobretudo, estendeu seu alcance a aspectos essencialmente subjetivos. O paciente e seu acompanhante foram acolhidos em suas demandas, com desvelo e comprometimento, o que fez com que se reportassem à casa de apoio não como algo que lhes remetia ao sofrimento vivenciado, mas como o abrigo e proteção que lhes vieram ao encontro no momento oportuno, como a representação de seu próprio lar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cotidiano do familiar que vivencia a trajetória do câncer por meio do adoecimento de um ente querido revelou que aquele experiencia uma gama de sentimentos ao estar-com-o-outro abrigado em uma casa de apoio. Na qualidade de cuidador, emerge de seu íntimo a preocupação com o presente e o futuro do doente, que lhe parece incerto, amedrontador e, por vezes, solitário.

Passa, então, a conviver com a angústia de permanecer, por longos períodos, distante de pessoas que lhe são significativas, de seu lar e cotidiano, ou seja, de tudo aquilo que fazia parte de seu mundo circundante. Com isso, os familiares veem-se obrigados a fazer ajustes em seu próprio viver, inquietando-se por abrir mão de sua rotina, de suas obrigações e até mesmo de seus planos de vida a fim de atender às demandas do doente.

À luz da hermenêutica heideggeriana, compreendeu-se que esse caminhar pelas trilhas tortuosas do câncer possibilita ao acompanhante vivenciar a abertura do próprio ser, ao tomar consciência de sua condição existencial à medida que reconhece a missão que lhe foi imposta pela vida, assumindo com desvelo seu papel ao estar-com o ente adoecido. Logo, apropria-se de sentimentos como de proteção para com o outro, de cuidado e de abdicação da própria vida, tomando para si sua peregrinação.

A reflexão acerca de sua mundaneidade revelou que esses familiares vivenciam sentimentos ambíguos ante as vicissitudes que lhes vêm ao encontro. No entanto, o sentimento de gratidão emerge em meio às tormentas ao passo que se percebem acolhidos pela casa de apoio. No domínio do encontro, o cuidado autêntico se manifesta por meio da prática de profissionais solícitos, que se colocam à disposição do outro, considerando suas necessidades existenciais. Dessa maneira, os acompanhantes têm a sensação de estarem protegidos como em seu próprio lar, encontrando o suporte que os auxiliará a transcender suas facticidades.

Clarifica-se que o presente estudo apresentou limitações, pois se deu em uma única instituição e região do país. Contudo pode revelar a realidade de muitos familiares que se dedicam a um ente que padece com o câncer, uma vez que nos possibilitou desvelar dimensões da cotidianidade daquele que acompanha seu familiar adoecido, hospedado em uma casa de apoio, com um olhar sensível para a subjetividade e singularidade desse ser.

Ainda que o apoio da casa represente um elemento protetor, os sentimentos experienciados pelos acompanhantes geram importantes demandas emocionais. Logo, as evidências apresentadas podem inspirar profissionais de saúde e, em especial, o enfermeiro a repensar sua prática, com vistas à qualificação da assistência no âmbito do cuidado humanizado, que deve ser ofertado em toda a rede de apoio bem como em todos os níveis de atenção à saúde. Não obstante, espera-se contribuir e incentivar novas pesquisas que oportunizem a compreensão dos sentimentos desses seres que abdicam de suas vidas em prol do outro.

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