Volume 21, Número 1, Jan/Mar - 2017
PESQUISA
Isolamento de mulheres em situação de violência pelo parceiro íntimo:
uma condição em redes sociaisa
Leônidas de Albuquerque
1
Maria Aparecida Vasconcelos Moura
1
Ana Beatriz Azevedo Queiroz
1
Francièle Maraboti Costa Leite
2
Giuliana Fernandes e Silva
1
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil
2 Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, ES, Brasil
Recebido em 27/06/2016
Aprovado em 01/10/2016
Autor correspondente:
Leônidas de Albuquerque Netto
E-mail: leonidasalbuquerque@bol.com.br
RESUMO
INTRODUÇÃO:
O isolamento é uma forma de violência em que o parceiro íntimo busca
enfraquecer a rede de apoio da mulher, afastando-a do convívio social,
proibindo-a de relacionar-se com familiares e amigos.
OBJETIVO:
Analisar o isolamento social de mulheres em situação de violência pelo
parceiro íntimo.
MÉTODOS:
Pesquisa qualitativa, analítica, realizada no Centro Especializado de
Atendimento à Mulher do Rio de Janeiro - Brasil, com 20 mulheres.
Utilizou-se entrevista individual e análise de conteúdo.
RESULTADOS:
Nos discursos, o isolamento social ocorreu pela restrição da liberdade pelo
parceiro, provocando atitudes repressivas ao negar às mulheres o convívio
social.
CONCLUSÃO:
Diante do isolamento, as mulheres mostraram dificuldades em expressar suas
necessidades, procuraram as Unidades de Saúde apresentando sintomas
consequentes da violência vivenciada. Raramente revelavam o problema,
cabendo aos profissionais a prática e habilidade para escuta atentiva e
olhar holístico identificando a situação, possibilitando a ajuda necessária
e apoio às suas redes sociais.
Palavras-chave: Violência contra a Mulher; Maus-Tratos Conjugais; Pesquisa Qualitativa; Enfermagem
INTRODUÇÃO
A violência contra a mulher é considerada um problema de saúde pública e violação dos direitos humanos, permeada de maneira física, psicológica, sexual, moral e patrimonial.1 As mulheres fazem parte de um dos grupos que sofrem com a discriminação por ser considerado minoritário e frágil, sendo esta uma forma de violência emergente do preconceito de uma sociedade que violenta a mulher.2 A Organização Mundial da Saúde (OMS) revelou ainda que entre 15% e 71% das mais de 1,2 bilhões de mulheres ao redor do mundo já foram vítimas de abusos físicos, sexuais ou ambos, pelo parceiro íntimo em algum momento da sua vida.1
De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), a população feminina é de 100,5 milhões. Calcula-se que 34,17 milhões de brasileiras encontram-se em situação de violência. Uma pesquisa realizada com 2.379 mulheres de 18 a 60 anos, em São Paulo, apontou a prevalência de 55,7% de mulheres agredidas em relacionamentos amorosos.3 O Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro divulgou, em 2013, um levantamento dos Registros de Ocorrência das Delegacias de Polícia, em que se constatou que 4.993 mulheres foram vítimas de estupro e 387 vítimas de tentativa de estupro.4
A violência à mulher tem sido praticada indiscriminadamente, principalmente no ambiente familiar, cuja invisibilidade é propiciada pela ocorrência no próprio espaço privado. As relações violentas, muitas vezes, pelas mãos do próprio parceiro íntimo, estruturam-se frente ao convívio de vínculos da mulher em sua rede social, prejudicando seus relacionamentos com pessoas com as quais mantém laços afetivos, como parentes, amigos e vizinhos, além das instituições formais em segurança, saúde, serviço social ou educação, que podem prestar apoio.
Para esta pesquisa, adotou-se o referencial teórico de Lia Sanicola,5 o que permitiu o entendimento da dinâmica relacional em que está inserida a mulher que vivencia a violência. Entre elas, suas relações compostas por pessoas no seu convívio social, bem como a observação dos centros e instituições disponíveis diante das necessidades advindas dos episódios de violência praticada pelo parceiro íntimo.
As redes sociais podem ser consideradas como uma trama de relações que conferem a cada sujeito identidade e sentimento de pertença. A estrutura da rede é formada pelo conjunto de laços perceptíveis que se estabelecem entre pessoas e redes. Esses laços, quando acionados, geram conexões que dão forma às redes. A estrutura atribui flexibilidade, transparência, resistência, sinergia das forças e duplicidade à realidade da rede social.5
O conhecimento da rede social, em que a pessoa e a família estão inseridas, permite a compreensão da dinâmica relacional, constituindo-se em subsídios para a reflexão e estabelecimento de ações de intervenção junto à clientela atendida. As pessoas que solicitam qualquer tipo de ajuda não vivenciam seus problemas isoladamente, mas sempre no interior de uma rede social. Esta é compreendida como um conjunto de relações interpessoais que determinam as características da pessoa, tais como os hábitos, costumes, crenças e valores, onde a pessoa pode receber dessa rede ajuda emocional, material, de serviços e informações.5
A existência de diversos vínculos com familiares, vizinhos e instituições, como igreja e associações comunitárias, são fundamentais no auxílio a situações de adoecimento e dificuldades. As redes sociais podem ser responsáveis pelo apoio, visibilidade de problemas e satisfação de necessidades em saúde, que escapam da capacidade de atendimento do Estado.6
O cuidado em saúde às mulheres em situações de violência deve ser pensado não como um saber técnico, mas como conhecimento que permita a compreensão do fenômeno, relacionado aos diferentes universos de significação.7 A ação profissional junto a essas mulheres, em especial do enfermeiro como processo interativo, precisa ser compartilhada com significado para quem o realiza (enfermeiro), e para aquela que o recebe (mulher). A interação transcende a adscrição a um serviço, significa estabelecer uma relação de familiaridade que almeja a resolutividade das demandas; que permita estratégias de encorajamento das mulheres e promova o acesso à justiça e resgate como sujeito de direitos.8
Os profissionais que atuam na atenção a essa população necessitam ampliar seu olhar sobre o problema, voltando-se para além do tratamento dos traumas físicos e da denúncia dos agressores. É imperativa a elaboração e implantação de ações de enfrentamento articuladas, possibilitando a promoção da emancipação econômica, emocional e social das mulheres.9
Nesse ponto, é necessária a intervenção nas consultas de saúde, e que esse momento seja percebido como revelador da problemática da violência vivenciada pela mulher para que esses profissionais possam intervir e disponham-se a auxiliá-las. O enfermeiro poderá servir como um elemento conector entre a mulher e os elementos de sua rede social, a qual ela poderá recorrer. Essa rede estrutura-se a nível pessoal, entre família, amigos, vizinhos, colegas de trabalho e de tempo livre, entre outros; ou no aspecto institucional, seja por meio de centros ou instituições formais e informais de atenção às mulheres nessa situação.5
O movimento que vai da dimensão individual para a partilha é um processo que parte do encontro e do reconhecimento recíproco entre indivíduos, levando-os a adquirir um sentimento de pertencer à rede e, ao mesmo tempo, gera a disponibilidade a compartilhar uma necessidade, encarregando-se das dificuldades criadas por essa necessidade. O efeito último é a consolidação das relações e o reforço da identidade individual e comunitária.5
As intervenções articuladas entre elementos da rede em prol da saúde da mulher em situação de violência não serão possíveis se estas estiverem em situação de isolamento. Essas condições são sustentadas pela vigilância constante do parceiro íntimo. O fato dessa mulher estar atrelada e dependente desse homem agrava ainda mais a repressão. Quando o parceiro a proíbe de trabalhar, estudar, sair de casa, falar com amigos ou parentes, esse homem impede o movimento positivo em direção à partilha. Nesse momento, cabe o auxílio de um operador de rede, como especifica Sanicola,5 a pessoa que ajuda as mulheres a reconhecer os elementos de sua rede social, e depois auxilie na comunicação e acesso às instituições.
Pensar e agir em rede produz questionamentos direcionados às estruturas hierarquizadas, ajudando a gerar deslocamentos de poder. Muitos agentes sociais envolvidos no atendimento às mulheres, embora se mostrem sensíveis à questão, não formulam um pensamento em rede. Em geral, a organização dos serviços pauta-se por uma concepção de cuidados fragmentados frente às mulheres. Dependendo do direcionamento em que se focaliza o problema, quer policial, jurídica, psicossocial ou saúde, há um serviço que se propõe a lidar com a questão, mas a ação, muitas vezes, não prevê o estabelecimento de parcerias efetivas.10
O conhecimento e análise a respeito dos fatores relacionados ao isolamento das mulheres em situação de violência proporcionam a compreensão da dinâmica relacional, constituindo-se em subsídios para o estabelecimento de possibilidades de resgate dessa população feminina, da sua retirada do isolamento depressivo em que se encontram ou da saída das condições de restrição de liberdade. Estabeleceu-se, neste estudo, como objetivo analisar o isolamento social de mulheres em situação de violência pelo parceiro íntimo.
MÉTODOS
Pesquisa qualitativa e analítica, ancorada no referencial teórico de Rede Social de Sanicola,5 desenvolvida no Centro Especializado de Atendimento à Mulher Vítima de Violência Doméstica (CEAM) no Município do Rio de Janeiro. Entre as áreas de atuação dessa instituição, inclui-se a qualificação profissional, no intuito de promover a reinserção social dessas mulheres, a prevenção da violência, defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, organização para inclusão em projetos comunitários e de apoio aos programas de saúde. A opção por esse centro como cenário ocorreu por sua missão institucional em promover a saúde da mulher, associada ao apoio da rede social, possibilitando uma atenção especializada.
As participantes foram mulheres que vivenciaram violência física, psicológica, sexual, moral ou patrimonial. Como critério de inclusão, deveriam ter mais de 18 anos de idade, ter vivenciado quaisquer formas de violência, exclusiva ou com sobreposições, infligidas pelo ex ou atual parceiro íntimo, independente da união formal ou coabitação. Os critérios de exclusão referem-se àquelas mulheres portadoras de distúrbios psiquiátricos que inviabilizassem as respostas no momento das entrevistas ou a interação com o pesquisador; além das mulheres que vivenciaram violência em uma relação homoafetiva.
As mulheres foram abordadas posteriormente às consultas com a psicóloga do CEAM e informadas sobre o objetivo da pesquisa, além do sigilo de suas informações. Para aquelas que aceitaram participar, foi realizada entrevista, em que as informações foram captadas em abordagem individual. O período de coleta de dados ocorreu entre setembro a dezembro de 2014. Para as entrevistas, foi utilizado instrumento semiestruturado, com duração média de 50 minutos. Entre as 60 mulheres acompanhadas no CEAM no período do estudo, foram entrevistadas 20, atendendo ao critério de saturação teórica dos dados.
Primeiramente, foi investigado o perfil sociodemográfico das mulheres. No intuito de compreender o significado que a mulher atribui à sua rede de relações interpessoais, foram formuladas questões orientadoras para identificar a rede social das participantes da pesquisa. Foi solicitado às mulheres que falassem a respeito das pessoas e instituições presentes em sua vida ao longo do período em que vivenciou a violência. Nas entrevistas, foram realizadas perguntas para elucidar informações a respeito do seu relacionamento com a rede social.
Os depoimentos foram gravados por uma mídia digital com o consentimento das participantes e as entrevistas transcritas na íntegra. Em um momento posterior, foi disponibilizada especial atenção às expressões mais significativas presentes nas falas, com o propósito de captar o sentido geral dessas expressões de isolamento social das mulheres em situação de violência. Dessa forma, foi possível perceber as características do isolamento vivenciado pela mulher e imposto pelos parceiros íntimos.
Posteriormente, com as entrevistas transcritas, foi realizada uma leitura exaustiva dos depoimentos por meio de uma análise mais aprimorada. As informações foram interpretadas por meio do método de análise de conteúdo, utilizando-se os conceitos de Laurence Bardin, ao buscar o encontro das ideias dos depoimentos para a formação dos núcleos de análise.11
Os critérios de organização da análise de conteúdo seguiram os momentos de pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados com inferência e interpretação.11 A categoria de análise emergente foi denominada O isolamento social determinante na violência à mulher: uma situação em rede. Esta foi composta por um grupo de Unidades de Registro (URs) extraídos das 20 entrevistas analisadas, caracterizando o isolamento provocado pela violência em que as participantes se encontravam no momento da entrevista.
A apresentação dos resultados ocorreu em forma dos depoimentos mais significativos para a categoria de análise, seguidos das descrições discursivas associadas ao referencial teórico de rede social. As mulheres foram identificadas por códigos alfanuméricos com a inicial E, em número crescente (E1, E2, E3), de acordo com a ordem das entrevistas.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery e Instituto de Atenção à Saúde São Francisco de Assis da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o Parecer nº 774.804/2014, assegurado o cumprimento das normas para pesquisa com seres humanos, de acordo com a Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde e Ministério da Saúde.12 Para participar da pesquisa, foi essencial a aceitação das participantes assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADOS
Em relação ao perfil sociodemográfico, nove (45%) mulheres tinham entre 45 a 55 anos de idade, 12 (60%) declararam-se brancas e 14 (70%) tinham um nível de escolaridade de médio a alto. Entre as 11 mulheres que trabalhavam, recebiam de um a quatro salários-mínimos e residiam em bairros próximos ao CEAM, no Rio de Janeiro. Quanto ao relacionamento com o parceiro íntimo, 16 delas já haviam se separado, embora alguns deles ainda utilizassem de ameaças e intimidações para coagi-las.
Doze mulheres participantes tinham entre um a três filhos com o parceiro íntimo agressor. Aqueles filhos mais novos, geralmente da primeira infância até a adolescência, foram os que mais vivenciaram os episódios agressivos junto às mães, enquanto os filhos mais jovens ou adultos ajudaram mais na perspectiva emocional, com o incentivo a essas mulheres para a busca por instituições de assistência ou segurança na rede social.
Entre os 20 corpos de análise (entrevistas), houve 304 (100%) Unidades de Registro. Destas, 42 (13,8%) foram referentes à situação de isolamento, provocada pela violência à mulher, em que as participantes da pesquisa encontravam-se no momento da entrevista.
No discurso das mulheres, o isolamento social ocorre de diferentes formas, seja pela imposição de restrição da liberdade pelo próprio parceiro íntimo, ou pelo desenvolvimento de um quadro depressivo por conta das atitudes de repressão daquele homem. Essa depressão é representada e expressada por essas mulheres quando, diante de todas as manifestações de violência, privam-se do convívio com familiares, parentes e amigos. O isolamento tem como principal motivo a vergonha e o medo de novas atitudes violentas por parte do parceiro.
Toda a violência foi me deixando triste e angustiada. Eu não conseguia mais sorrir, minha autoestima estava lá embaixo, fui me isolando dentro de mim mesma (E1, 27 anos, solteira).
Eu não tenho amigos, não tenho ninguém. Quando ele [parceiro íntimo] me agrediu, não contei nada pra ninguém. Ele não gostava que eu fosse ver minha família. Ele achava que eu era uma propriedade dele (E2, 49 anos, viúva).
A gente tem vergonha de dizer que foi agredida. Estava em depressão porque não queria ver ninguém. É como se estivesse num lugar cheio de gente, mas me sinto só. Não queria que ninguém soubesse [da violência] (E4, 42 anos, divorciada).
Viver isso tudo [violência] atrapalha demais, porque você fica com aquela coisa na cabeça te perturbando, e aí você acaba se escondendo. Eu me isolo. Quando começou a violência eu não procurei ajuda, foram anos de agressão, até eu procurar alguém pra me ajudar (E8, 53 anos, casada).
Quando essas mulheres em situação de isolamento ocasionada pela violência do parceiro se afastam de parentes, amigos ou vizinhos, e têm associadas também à dependência financeira do parceiro e a baixa situação socioeconômica, elas terão ainda mais dificuldade em acessar quaisquer instituições de assistência em saúde, policial ou jurídica.
Eu não ia nem na casa dos meus pais, quem dirá ir na delegacia da mulher pra denunciar ele [parceiro íntimo], nem tinha dinheiro pra passagem. Não sabia que existia o CEAM. Só tomei uma atitude muito tempo depois (E9, 30 anos, solteira).
Tive que colocar ele [parceiro íntimo] na justiça pra pagar a pensão alimentícia da minha filha, mas, às vezes, ele não paga, aí não posso contar com o dinheiro dele (E6, 25 anos, casada).
Minha preocupação era minhas filhas. Só quem trabalhava era meu marido, se eu saísse de casa com minhas filhas, a gente ia viver de quê? Eu não tinha nada. Depois que comecei a trabalhar é que eu saí de casa (E15,43 anos, divorciada).
Quando ele [parceiro íntimo] me deu um soco na cara, eu vim no CEAM, porque é perto de casa, senão eu não ia vir, não tenho dinheiro (E19, 29 anos, solteira).
Durante as entrevistas, quando as mulheres eram questionadas a respeito dos elementos da rede social, entre parentes e amigos presentes em sua vida, 12, em um primeiro momento, relatavam que simplesmente não os tinham. Mas, quando o pesquisador estabelecia um diálogo, sempre elas se lembravam de pelo menos um parente ou amigo que as ajudaram de alguma forma, diante da problemática da violência. Portanto, essas mulheres, pelo próprio isolamento social, têm dificuldades de solicitar apoio, acessando poucas pessoas que estão ao seu redor, em sua rede social, para pedir ajuda.
A minha família nunca viu a violência que sofri, e eu não contava. Só o meu filho quem sabe, porque ele viu o pai me bater, e posso contar com meu filho, só com ele. Antes eu tinha muitos amigos, mas hoje, se afastaram porque ninguém suporta o meu ex [parceiro íntimo] (E3, 49 anos, viúva).
Abri mão de amigos que eu tinha quando fui morar com ele e me afastei da minha família também na época. Eu me descontrolei um ano atrás quando ele me bateu e tudo piorou ainda mais. Hoje moro sozinha, mas vou pra casa das minhas irmãs e fico com elas no fim de semana, me faz bem (E5, 49 anos, solteira).
Na minha vida somos só eu e minha filha, ela é que me dá coragem, e não temos mais ninguém que possa ajudar a gente. Demorei muito a conseguir falar sobre esse assunto da violência, porque a gente não gosta nem de pensar nisso. Quanto mais você fala, mais fere, então a gente esconde (E16, 47 anos, divorciada).
Ele [ex-parceiro íntimo] era tão agressivo que eu não tinha amigas. Se eu estivesse conversando com alguém, quando ele chegava já fazia ignorância, e minhas amigas saíam correndo. Ele botava medo, aí todo mundo se afastava de mim. Hoje eu tenho uma só amiga que considero muito porque ela me incentivou a ir na delegacia denunciar e me deu apoio emocional (E18, 45 anos, divorciada).
Quaisquer comportamentos do homem sobre a mulher com o propósito de controlar suas ações são as primeiras atitudes que culminam para que a mulher permaneça em sua individualidade, isolando-se e não compartilhando seus problemas e demandas com as pessoas de seu convívio familiar ou não, que poderiam vir a ajudá-las, eventualmente.
Eu não percebia que estava vivendo uma violência, porque não falava que ele [ex-parceiro íntimo] me agredia. Minhas amigas do trabalho me chamavam pra sair, mas eu não ia porque tinha medo dele ficar zangado e me agredir de novo. (E10, 47 anos, divorciada).
Ele [marido] nunca gostou de sairmos em família. Quando saíamos eu e ele para encontrar com amigos, ele sempre me deixava de lado, me ignorava na frente dos outros, como se eu fosse um nada (E12, 59 anos, casada).
Ele [parceiro íntimo] me proibia de estudar e trabalhar, me restringia. Não podia sair de casa, não tinha amigos (E17, 42 anos, divorciada).
Entre as 20 mulheres entrevistadas, seis (30%) procuraram instituições de saúde, como Unidades de Pronto Atendimento, de Atenção Básica e Hospitais de Emergência. Nesses locais, revelavam suas queixas, mas não expressavam a origem dos sinais e sintomas consequentes da violência vivenciada pelo parceiro íntimo.
Eu sempre ia na UPA [Unidade de Pronto Atendimento] com muita enxaqueca, aí eles me passavam remédio. Acontecia sempre depois que ele [parceiro íntimo] me agredia, mas eu não contava sobre a violência (E13, 54 anos, divorciada).
Tenho medo de contar porque não sei como eles [profissionais de saúde] vão me tratar. Muita gente tem preconceito, acha que a gente provoca os homens pra bater na gente (E15, 42 anos, divorciada).
Perto da casa onde eu morava com ele [parceiro íntimo] tinha um hospital particular. Eu paguei pra ir lá e tratar da sífilis que eu peguei dele, mas nunca falei da violência, não me sentia segura pra isso (E16, 47 anos, divorciada).
DISCUSSÃO
O sentimento de culpa, de vergonha, de isolamento e, principalmente, do estigma, são os grandes obstáculos, especialmente, à denúncia da violência dos parceiros íntimos contra as mulheres. Essa experiência estigmatizada resulta da vergonha de serem reconhecidas pela sociedade como mulheres espancadas e maltratadas pelos parceiros e, portanto, encontram-se em situação de inferioridade e desvantagem social.13 A falta de reconhecimento da violência como pro blema de saúde e a sua desvalorização são influenciadas pelo receio das mulheres de revelarem a situação que viviam ou sen tiam, e pelo medo de serem mal entendidas ou humilhadas pelos ou tros, o que as conduz a um progressivo isolamento e imobilização.14
Na relação intersubjetiva da mulher com o parceiro, há carência de intercâmbios de pontos de vista. As mulheres possuem o direito de trabalhar, de alimentar-se, de dormir e descansar, e de se relacionar com seus familiares, amigos e vizinhos, além do direito de viver e gozar de sua própria liberdade, de que foram privadas pelas ameaças do agressor. Expressam a necessidade do respeito do parceiro e desejam resgatar seus planos de trabalho, estudos e o relacionamento com sua família, deixando de ser submissas.15
As mulheres têm medo de denunciar a violência porque se preocupam com sua subsistência e de seus filhos, pois além da dependência do parceiro, também não possuem subsídios para buscar ajuda na sua rede social primária ou secundária. Nas redes primárias, os vínculos estabelecidos são caracterizados pelas relações de parentesco, família, amizade e vizinhança, e estão fundados sobre a reciprocidade e a confiança. As redes secundárias são instituições formais ou informais, de terceiro setor, de mercado ou mistas, onde há relações de reciprocidade, direito ou dinheiro.5 Muitas mulheres permanecem isoladas e desamparadas, sendo necessário um episódio agudo de violência física para que possam recorrer às instituições especializadas ou, até mesmo, abrigarem-se na casa de algum parente ou amigo.
Toda violência, em especial, a psicológica, compromete a saúde mental da mulher, de forma a acarretar distúrbios na sua habilidade de se comunicar e reconhecer seus recursos para o cumprimento de tarefas em sua vida. De acordo com a Lei Maria da Penha, Lei 11.340/2006, a violência psicológica é qualquer conduta que lhe cause danos emocional e diminuição da autoestima, que lhe prejudique o pleno desenvolvimento ou que visa controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, humilhação, isolamento, insulto, chantagem e exploração.16 O isolamento social é uma das principais formas de manifestação da violência psicológica, onde o companheiro busca, por meio de ações que enfraquecem sua rede de apoio, afastar a mulher de seu convívio social, proibindo-a de manter relacionamento com seus familiares e amigos, trabalhar ou estudar.17
O fato das mulheres se isolarem ou permanecerem dependentes dos parceiros agressores depende muito dos fatores do meio social e, principalmente, das pessoas com quem se relaciona, em nível de rede social. Esses elementos da sua rede podem ser indiferentes, apáticos ou insensíveis diante da vulnerabilidade da mulher, ou podem fortalecer os seus laços, promovendo a ajuda em suas demandas sociais e, especificamente, emocionais, materiais, em serviços ou informações.
No caso de algumas mulheres, nesta pesquisa, os parceiros não permitiam ou dificultavam o seu contato com parentes e amigos, limitando o espaço da mulher ao ambiente do lar, submetendo-as às atividades de rotina, manutenção da casa e cuidados com os filhos sob a sua total responsabilidade. Essa imposição é contrária à tendência das relações contemporâneas de atividades das mulheres, que vêm conquistando cada vez mais espaço no mercado de trabalho. A partir de então, as tarefas domésticas e os cuidados com os filhos precisam ser compartilhados entre homens e mulheres de maneira mais igualitária.
Nesse contexto, a obrigação dos cuidados com a família e afazeres domésticos produz gradativo isolamento das mulheres, ainda que ocupar o lugar da domesticidade na dinâmica conjugal confirme suas concepções sobre amor e relação com o parceiro íntimo, o que não ocorre no cotidiano desses casais. As mulheres não percebem que a exigência dos parceiros, da sua dedicação exclusiva ao lar, pode representar ato de violência e opressão.18
Para algumas mulheres, mesmo após o término do relacionamento violento, continuam a receber ameaças ou até mesmo agressões físicas dos ex-parceiros íntimos, o que propicia ao recolhimento à situação de isolamento. Esse comportamento também pode contribuir para o medo das frequentes intimidações e a vergonha, no caso daquelas que ainda permanecem no relacionamento com o parceiro. Isso estimula as mulheres para que não falem ou expressem situações sobre a violência vivida.
Existem diferentes tipos de violências organizadas em torno de questões de poder e relações de controle, como o terroris mo íntimo, que envolve um controle coerci vo que integra a intimidação, o abuso emocional, abuso econômico, isolamento, minimização, negação, culpa, uso das crianças e a afirmação do privilégio mas culino. Todas essas formas de opressão são modos de aterrorizar a mulher em situação de violência.14
Mesmo diante do isolamento proporcionado pela violência no âmbito doméstico, muitas mulheres querem demonstrar para um determinado grupo de pessoas que as visitam frequentemente, e das quais não conseguem evitar o contato, uma falsa aparência de harmonia no lar. Isso ocorre quando os parentes visitam o casal e seus filhos, ocasiões em que, mesmo diante da percepção ou suspeita de qualquer forma de violência, a mulher nega eventos agressivos em sua família, o que não é verdade. Dessa forma, há agravamento do isolamento social diante da problemática vivenciada, o que prejudica a busca por apoio, seja material ou emocional, dentre os membros da sua rede social primária que poderiam prestar-lhe ajuda.
Entre aquelas mulheres que ainda convivem no mesmo domicílio com os parceiros violentos, frequentemente, evitam contatos considerados indesejados por esse homem. Não estabelecem qualquer relacionamento com outras pessoas, principalmente com o sexo masculino, pelo temor de que deem origem a novos episódios de ciúmes exacerbados do parceiro íntimo, levando à violência. Essas mulheres refugiam-se num silêncio e isolamento que se estende até as instituições que lhes poderiam oferecer algum suporte.18
As situações de ciúmes exacerbados são aquelas que propiciam quaisquer formas de violência do homem contra a mulher. Em conformidade com uma diferença de papéis sociais e de gênero entre os sexos masculino e feminino, muitas vezes, impostas pela própria sociedade, os homens sentem-se proprietários do corpo e da vida de suas parceiras íntimas. Quando elas estão em situações de vulnerabilidade social e econômica, juntamente com os filhos, ficam subjugadas às dominações de seus parceiros agressores.
Nesse contexto, o ciúme é frequentemente inserido em um contexto terapêutico, observando-se o grave sofrimento envolvido na relação da mulher com o seu parceiro íntimo. Consideram-se, ainda, as consequências negativas produzidas por respostas emocionais ciumentas para as mulheres que vivem em constante fuga ou esquiva dos aversivos presentes nessa relação. Para as mulheres que vivenciam a violência, o comportamento emocional ciumento apresentado por seus parceiros pode ser considerado como patológico.19
As mulheres em situação de violência encontram-se em um estado crítico, instável, de insegurança, em que, se elas conseguirem partilhar a sua problemática a outras pessoas, haverá a possibilidade de que os elementos da sua rede social as ajudem de alguma forma. Estes só poderão apoiá-la a partir do momento que conhecem essa mulher, seus conflitos e as demandas trazidas no contexto da violência, a fim de que possam fortalecer os vínculos.
Em sua teoria, Sanicola5 afirma que os sujeitos, como as mulheres, nesta pesquisa, quando inseridas nas redes sociais e diante de dificuldades imprevisíveis ou eventos críticos, como a violência, podem orientar-se para a partilha de suas necessidades. Assim, existe a possibilidade de transformar um momento de dificuldade em uma oportunidade de consolidação dos laços já existentes ou de criação de novos vínculos, seja com a rede social primária ou secundária. Nesse caso, as redes sociais possibilitam desenvolver iniciativas para enfrentar as necessidades,5 orientando a mulher em situação de violência para o resgate de sua autonomia e conquista de sua independência.
Na investigação dos fatores que condicionam aspectos relacionais, a abordagem teórica de rede social estabelece recursos para o entendimento dos relacionamentos das mulheres em situação de violência. A ação de mapeamento dessa rede e definição dos vínculos estabelecidos é uma forma de aperfeiçoamento na atenção a esta população, seja por parte dos profissionais de saúde, serviço social, justiça ou segurança, todos envolvidos na prestação de atendimento e cuidado às mulheres fragilizadas pelo isolamento no contexto da violência.
Em situações adversas, em redes sociais, como na violência, pode haver isolamento, fragmentação ou conflitos, pois as mulheres se orientam para a individualização e dependência em relação à necessidade que aparece.5 Para muitas delas, os vínculos frágeis e descontínuos, expressos, principalmente, com os seus parentes, bem como a pouca densidade dessas redes, na medida em que os elementos não estabelecem vínculos entre si, propicia a individualização. Essa mulher não tem a quem recorrer na rede social, levando suas necessidades para hospitais, igrejas, centros e delegacias, compondo sua rede social dentre as instituições formais, de onde espera obter ajuda e orientação profissional.
Na maioria das vezes, a mulher em situação de violência procura um hospital ou unidade básica de saúde para consultas médicas. Estas ocorrem, geralmente, de forma recorrente, com queixas ginecológicas, cefaleia ou, até mesmo, para buscar auxílio na resolução de algum problema de saúde de um familiar. A partir dessas estratégias, terminam por revelar seu problema no que diz respeito à violência vivenciada no ambiente doméstico.20
Essa situação esteve presente entre algumas mulheres, que, pelo seu estado de individualização e isolamento, não conseguiam expressar sua problemática e necessidades. Procuraram unidades de atendimento em saúde, sempre com queixas, sinais e sintomas consequentes da violência que estavam vivenciando. Muitas vezes, essas mulheres não revelam a origem do problema, e cabe aos profissionais de saúde, principalmente médicos e enfermeiros, em suas consultas, ter escuta atentiva e olhar holístico para captar estas situações e oferecer ajuda diante das necessidades e dar o encaminhamento que cada caso exige.
Todas as participantes expressaram situações de isolamento, e algumas, dependência financeira do parceiro íntimo. Mesmo entre as 11 mulheres que trabalham, recebem baixa remuneração, o que faz com que estas apenas complementem o sustento do lar economicamente, somando aos rendimentos do parceiro, que, geralmente, são maiores. Dessa forma, ainda dependem financeiramente deles, principalmente para o provimento dos filhos. Essa situação leva à perpetuação da violência e dificulta o rompimento do ciclo de agressões na esfera familiar, agravando-se pela dependência financeira.
Ao prestar atendimento às mulheres em situação de violência, o enfermeiro deverá buscar uma relação de empatia. A possibilidade de resolução da problemática da violência poderá ser concretizada, após um período de tempo, tendo em vista a cronicidade das agressões vividas no ambiente doméstico. Além disso, é possível promover a saída de uma posição de isolamento (indivíduo) da mulher, em que há o cerceamento da liberdade pelo parceiro, efetuando, assim, a sua partilha, quando poderá contar com apoio de sua rede social.
Como integrante da equipe multiprofissional, o enfermeiro poderá desenvolver o processo de cuidado, desde o diagnóstico de enfermagem advindo da situação de violência até o tratamento dos agravos à integridade física e psicológica em saúde. Posteriormente, faz-se importante o acompanhamento das demandas dessas mulheres, por meio de outros serviços associados à rede de atenção em segurança, justiça e serviço social, além da investigação às pessoas que podem prestar apoio nas redes sociais, entre parentes, amigos e vizinhos. Para essa abordagem, é essencial que se investigue as situações de isolamento a que as mulheres em situação de violência são submetidas, tanto no âmbito pessoal quanto profissional, o que prejudica a sua busca por apoio material, emocional, em serviços ou informações.
CONCLUSÃO
As mulheres em situação de violência pelo parceiro íntimo apresentaram um perfil sociodemográfico com características vulneráveis, evidenciado pela falta de recursos econômicos a sua subsistência, dependência financeira do parceiro íntimo, bem como pelo isolamento, fragilidade ou rompimento de vínculos com membros de sua rede social.
De acordo com o discurso das mulheres, alguns elementos da rede social revelaram-se como operadores de rede, auxiliando-as a sair do ciclo da violência. Entre a rede social primária, alguns parentes e amigos foram os que mais ajudaram as mulheres a sair do isolamento e dependência em direção à autonomia e partilha. Entre as instituições de saúde mais procuradas pelas mulheres, estão as Unidades de Pronto Atendimento, de Atenção Básica e Hospitais de Emergência, a fim de tratar as consequências agudas da violência pelo parceiro íntimo, embora não se sentissem seguras para revelar as causas sobre os sinais e sintomas consequentes do ato de violência de seus agressores.
O debate a respeito do isolamento em rede social das mulheres em situação de violência pode ser um primeiro passo para uma intervenção articulada e resolutiva de apoio material, emocional, em serviços ou informações. Ao reconhecer sua inserção em uma rede social dinâmica e mutável, com diferentes pessoas e instituições, essas mulheres têm a possibilidade de organizar suas atitudes na tomada de decisão, recorrendo àqueles elementos que têm melhores condições de auxiliá-las diante da sua problemática e fragilidade.
Alguns membros da rede social, seja por meio da troca de direitos, serviços, solidariedade ou dinheiro, apoiaram a busca da autoestima e encorajamento das mulheres. Essa ajuda deve ser resolutiva pela atenção que cada caso requer, na individualidade das suas necessidades. O rompimento do vínculo com o parceiro íntimo pode ser a medida mais efetiva para que as mulheres encerrem o ciclo da violência. Porém, a problemática se estende para aquelas que ainda se encontram dependentes financeiramente do parceiro.
A reversão desses quadros de individualidade e dependência só será possível com o comprometimento e inserção cada vez maior dos operadores de rede social. Na área da saúde, estes podem ser os enfermeiros que atuarão com a integração de recursos, atuando como ordenadores das hipóteses de solução da problemática da violência. Para isso, uma rede deverá ser articulada para resgatar esta mulher da vulnerabilidade. O enfermeiro poderá acompanhar essa mulher com sua rede social, ajudando-a na manutenção de vínculos que sejam favoráveis à conservação de sua autonomia, bem como à integridade física e psicológica.
A limitação da pesquisa ocorreu pela restrição a um único elemento da rede social de apoio, sendo necessário ampliar às outras instituições de atendimento às mulheres em situação de violência. A diversidade dos cenários de estudo é essencial para a ampliação das discussões do tema, no Brasil, e desenvolvimento das políticas públicas em saúde.
REFERÊNCIAS
a Extraído da tese de doutorado intitulada: "Redes Sociais de Mulheres em Situação de Violência: Contribuições do Mapeamento das Relações Sociais para a Atenção em Saúde" desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2016.