Volume 21, Número 1, Jan/Mar - 2017
PESQUISA
Religiosidade e espiritualidade: mecanismos de influência positiva
sobre a vida e tratamento do alcoolista
Sonia Regina Zerbetto
1
Angélica Martins de Souza Gonçalves
1
Nátaly Santile
2
Sueli Aparecida Frari Galera
3
Ana Carolina Acorinte
1
Gisele Giovannetti
4
1 Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, SP, Brasil
2 Escola de Medicina de São José do Rio Preto. São José do Rio Preto, SP, Brasil
3 Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, SP, Brasil
4 Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas. São Carlos, SP, Brasil
Recebido em 27/06/2016
Aprovado em 05/10/2016
Autor correspondente:
Sonia Regina Zerbetto
E-mail:
szerbetto@hotmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Identificar mecanismos de influência positiva da religiosidade e
espiritualidade na vida e tratamento, na perspectiva de alcoolistas.
MÉTODOS:
Estudo qualitativo, exploratório realizado no Centro de Atenção
Psicossocial-Álcool e drogas do interior paulista. Realizada entrevista
semiestruturada com oito dependentes de álcool. Os dados foram analisados
por meio da técnica de análise de conteúdo.
RESULTADOS:
Na percepção dos entrevistados, a religiosidade e espiritualidade influenciam
positivamente o conforto de pessoas em abstinência; a ter força interior
para cuidar da saúde; promove mudança de hábito, rotina e comportamento;
serve como apoio complementar ao tratamento e fortalece exercícios diários
de oração.
CONCLUSÃO:
Os alcoolistas reconhecem a influência positiva da religiosidade e
espiritualidade, ajudando-os no processo de enfrentamento dos desafios
diários da vida e do tratamento. Profissionais de saúde precisam estar aptos
a utilizar tais temas no cotidiano do cuidado como recursos
motivacionais.
Palavras-chave: Etanol; Alcoolismo; Religião; Espiritualidade
INTRODUÇÃO
A história recente da área da saúde mostra uma crescente valorização da religiosidade e da espiritualidade como recursos terapêuticos e objetos de pesquisa.1-3 Houve um aumento significativo na frequência dos termos, associados a diversos estudos nas áreas de ciências sociais e médicas. Em consonância a isso, um expressivo número de estudos que relacionam espiritualidade com assuntos correlatos ao consumo de substâncias também têm sido produzidos, explorando suas diversas facetas.1,4,5
Religiosidade trata-se da crença e prática ritualística de uma religião, seja na participação em um ambiente de cunho religioso ou no ato de rezar ou orar. A espiritualidade consiste em uma relação pessoal com o objeto transcendente (Deus ou Poder Superior), o metafísico, em que a pessoa busca significados e propósitos fundamentais da vida e que pode ou não envolver a religião.6,7 A religião é o sistema organizado de crenças, práticas e rituais relacionados com o sagrado, mas também pode envolver regras sobre condutas orientadoras da vida num grupo social. Ela pode ser praticada em uma comunidade ou individualmente.4,6
A religiosidade pode oferecer diretrizes para o comportamento do homem, visando reduzir tendências autodestrutivas, evitar adoção de comportamentos nocivos6,8 e promover estratégias de enfrentamento diante das adversidades da vida.6 Tanto a religiosidade como espiritualidade são consideradas componentes da vida do homem, pois influenciam as interações sociais, culturais e a dimensão psicológica, as quais são demonstradas pelos valores, crenças, comportamentos e emoções.3,6 A religiosidade e espiritualidade podem afetar a saúde, reduzindo comportamentos considerados não salutares, tais como o consumo de substâncias psicoativas.4,9
Na dimensão da problemática das drogas, tanto o exercício da religiosidade como da espiritualidade, tem sido considerado fator protetor para o consumo de álcool e outras drogas em âmbito preventivo e de tratamento.4,10 Está associado a melhores habilidades de vida e ao bem-estar físico e mental do ser humano.10
Especificamente em relação à problemática da bebida alcoólica, na dimensão preventiva, estudos demonstram que participação e filiação religiosa têm sido associadas com menores taxas de uso abusivo ou nocivoa e uso na vida de álcool.11,12 No âmbito terapêutico, a religião13 e/ou espiritualidade parecem estar relacionadas à manutenção da abstinência dos dependentes.14
Diante do exposto, percebe-se que a religião e espiritualidade podem assumir papéis fundamentais no processo de recuperação do dependente de álcool por relações que tem sido amplamente difundidas no meio científico,4,5 entretanto, a compreensão de como se dão esses mecanismos de influência positiva da espiritualidade/religiosidade sobre os processos de recuperação para dependência de substâncias psicoativas, nesse caso o álcool, ainda não estão muito claros. É necessário um maior aporte de estudos qualitativos que possam descrever "como isso ocorre?" e aprofundar os achados e discussões sobre o tema.
Assim, a presente pesquisa tem como objetivo identificar mecanismos de influência positiva da religiosidade e espiritualidade na vida e tratamento, na perspectiva de dependentes de álcoolb.
MÉTODOS
Estudo qualitativo, exploratório, realizado em um Centro de Atenção Psicossocial-Álcool e Drogas (CAPS AD) de uma cidade do interior paulista, no período de agosto a setembro de 2013. Os participantes foram oito usuários com diagnóstico de dependência de álcool. Foram critérios de inclusão: homens ou mulheres maiores de 18 anos, com diagnóstico de Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool-síndrome de dependência, de acordo com os critérios da Classificação Internacional de Doenças (F10.2/CID-10), em fase de tratamento e selecionados por indicação dos profissionais de saúde do CAPS AD; estarem aptos para compreender e responder as perguntas; sem consumo de álcool (abstêmios) no período da coleta de dados, podendo ter apresentado episódios de lapsos (pequenos deslizes no uso de álcool) ou recaídas (retorno ao antigo padrão de consumo de álcool e padrão de vida) ao longo do tempo de tratamento.
Considerando que este estudo busca captar a percepção dos dependentes de álcool sobre uma temática, os participantes deveriam estar somente sem uso de álcool no período da coleta de dados. Este estudo não buscou aprender relações entre as suas percepções sobre a temática e o estado de remissão inicial ou remissão sustentada por álcool pelo dependente participante deste estudoc. Assim, justifica-se a inserção de participantes com um dia de abstinência de consumo de álcool. Além disso, referir ter afiliação religiosa. O critério de exclusão consistiu em estarem intoxicados (com alteração da percepção, vigília, atenção, pensamento, julgamento, comportamento psicomotor e interpessoal) ou em sinais de síndrome de abstinência (hiperatividade autonômica, insônia, náuseas ou vômitos, tremor aumentado nas mãos, alterações senso percepção, agitação psicomotora, ansiedade), conforme Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM 5. A amostra foi definida por meio do método de saturação teórica,15 em que há interrupção da coleta de dados quando a questão do estudo foi respondida e o objetivo do mesmo alcançado. A confluência dos significados atribuídos ao modo de influência positiva da religiosidade e espiritualidade se deu na oitava entrevistada, sendo que para confirmar a saturação foi realizada mais uma entrevista, totalizando-se em nove entrevistas. A técnica de saturação dos dados foi realizada, seguindo os passos sistematizados citados na literatura, em que aponta que a confirmação do ponto de saturação pode ser confirmado com uma ou duas entrevistas.16
A coleta dos dados consistiu na realização de entrevista semiestruturada em sala do serviço de saúde mental. A primeira parte do instrumento foi constituída por dados de identificação pessoal e da terapêutica dos participantes e, a segunda continha a seguinte pergunta norteadora: De que maneira a religiosidade e espiritualidade podem influenciar de modo positivo a sua vida e o seu tratamento?
Os encontros foram previamente agendados e as entrevistas gravadas e transcritas. As falas dos participantes foram identificadas com a letra "E", seguidas por número arábico, de acordo com a sequência de ordem (1 a 8). Utilizou-se a técnica de análise de conteúdo, categoria temática, conforme descrita por Minayo, contemplando-se as fases: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados obtidos e interpretação.17
A pré-análise resumiu-se na escolha, organização e leitura das entrevistas transcritas. Sequencialmente, na fase de exploração do material, foi feita leitura mais aprofundada, linha por linha, buscando frases que abordavam sobre: concepção de religiosidade e espiritualidade, tipos de práticas religiosas desenvolvidas, compreensão do significado da religião e espiritualidade na vida e no tratamento, influência positiva da religiosidade e espiritualidade no tratamento e na vida, salientando pontos de reflexão que referiram aos elementos obtidos por meio da decomposição do conjunto das mensagens, com o objetivo de selecionar as unidades de significado, por meio de recortes do texto das entrevistas por temas.17
Nessa fase, buscou-se compilar os temas por critério semântico e os relatos identificados em cada entrevista, elaborando-se um quadro síntese para cada entrevista. Procedeu-se agregação dos relatos ilustrativos das unidades de significado, codificação alfanumérica e nominação dos dados, com o objetivo de reuni-las para o surgimento das primeiras categorias empíricas (categorização), ou seja, categorização a posteriori, por critério semântico, cuja presença recorrente de aparição ou relevância implícita podiam significar algo para o objetivo analítico escolhido.17
A análise dos dados das entrevistas se processou de modo cíclico e circular, portanto, foi um ir e vir, tentando refinar as categorias. Para constatar a saturação teórica para as categorias empíricas, foi elaborada ampla tabela, em que além da quantificação total das recorrências de temas para cada relato, buscou-se também a somatória de novos temas para cada entrevista. A escassez de novos temas correspondeu à saturação teórica, considerando os atributos de análise e interpretação dos pesquisadores, conforme literatura.15 Após reavaliação dos referidos temas, foi elaborada nova síntese, consistindo nas cinco categorias temáticas descritas neste estudo.
A etapa de tratamento dos resultados obtidos, em que envolveu a fase de descrição de cada categoria, com a produção de um texto síntese, em que se expressem os significados apreendidos nas mensagens analisadas. Após, se processa a interpretação em que consistiu na compilação das informações obtidas, desvendando o conteúdo subjacente ao que foi manifesto, inferindo e interpretando17 de acordo com conceitos de religiosidade e espiritualidade, bem como literatura sobre a temática.
O estudo respeitou os aspectos éticos, sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos, conforme parecer n. 72040/2012 de 18/08/2012, CAAE: 03196112.9.0000.5504. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os participantes da pesquisa foram caracterizados, conforme tabela abaixo (Tabela 1).
Entrevista | Idade | Sexo | Religião | Profissão | Tempo de tratamento | Tempo de abstinência |
---|---|---|---|---|---|---|
1 | 40 anos | M | Evangélico | Almoxarifado | 7 meses | 3 meses |
2 | 45 anos | M | Evangélico | Desempregado | 2 meses | 2 meses |
3 | 52 anos | M | Evangélico | Aposentado | 6 meses | 2 meses |
4 | 38 anos | M | Católico | Desempregado | 3 meses | 15 dias |
5 | 46 anos | M | Católico | Centro de usinagem | 4 meses | 3 meses |
6 | 42 anos | M | Católico | Agente operacional judiciário | 1 ano e 6 meses | 1 ano e 5 meses |
7 | 39 anos | M | Católico | Desempregado | 2 meses | 1 dia |
8 | 39 anos | M | Católico | Pedreiro | 4 meses | 1 dia |
Houve predomínio de uma população de homens adultos cristãos, católicos, com curto tempo de tratamento no CAPS AD e pouco tempo em abstinência. Porém, um dependente de álcool manteve-se abstêmio desde o início do tratamento no serviço. Três participantes mencionaram estar desempregados (33%). Salienta-se que com exceção do entrevistado de número dois, todos vivenciaram pelo menos uma experiência de recaída. Os entrevistados sete e oito tiveram um lapso recente.
Apesar de cinco participantes se autodenominarem como católicos não praticantes (entrevistados números 4 a 8), quando questionados sobre suas práticas e frequência religiosas apontaram ter prática ritualística de uma religião, ou seja, frequentarem instituição religiosa uma vez por semana, hábito de leitura bíblica e orar todos os dias. Uma das justificativas pode se relacionar às suas concepções de religiosidade e práticas religiosas não confessionais, que determinam as ações desses dependentes de álcool. De fato, a literatura salienta a existência de um ethos (corresponde aos costumes de um povo e seus comportamentos18 religioso privado e não confessional amplo, estruturante, que se difunde na sociedade, rege os comportamentos e não corresponde, necessariamente, ao compartilhamento e obediência ao conteúdo doutrinário da religião.18 Outro estudo aborda a religiosidade não organizacional, mas privativa, que relaciona-se à realização de rituais religiosos (oração, meditação, leitura bíblica) ou relevância destes na vida da pessoa, que podem surgir inclusive em situações de adversidade na vida.9 Da análise das entrevistas surgiram cinco categorias temáticas: 1) A religião conforta as pessoas em abstinência; 2) Ter força interior para cuidar da saúde; 3) A religião promove mudança de hábito, rotina e comportamento; 4) A religião é o apoio complementar ao tratamento; 5) A oração nossa de cada dia: um recurso terapêutico.
A religião conforta as pessoas em abstinência
Para alguns alcoolistas em tratamento e abstinência deste estudo, participar de um culto religioso, independentemente do tipo de religião, promove tranquilidade e conforto. Ouvir a mensagem cristã transmitida pelo pastor ou outro líder religioso, ocasiona alívio emocional. A mensagem tem um efeito tão reconfortante, que para um participante possibilita dialogar com sua alma e para outro, apesar do conflito mental, causa tranquilidade.
Religião é uma coisa boa, a gente vai lá [igreja] ouve as palavras de Deus e sai de lá bem mais aliviado, porque, às vezes, a gente está com a cabeça ocupada e ouvir o pastor falar, a gente fica bem mais tranquilo (E2).
Porque na hora que você ouve uma palavra, um salmo da Bíblia, você presta atenção no que o orador está falando para você. O que a palavra fala com a sua alma, isso que é o mais importante, isso que te conforta, não importa em qual igreja você vai (E5).
Os dados sugerem que a religião promove conforto pessoal e estados espirituais positivos, por intermédio da leitura das escrituras bíblicas transmitidas aos dependentes de álcool pelos líderes religiosos, que contém mensagens de incentivo, consistindo em um mecanismo de influência positiva na vida. Muitas vezes, essas mensagens possibilitam ao dependente de álcool refletir sobre a sua vida, suas atitudes para com as pessoas ao seu redor e até encontrar soluções para enfrentamento do problema vivenciado por ele, o que origina conforto e alívio emocional.
De fato, estudo com fiéis brasileiros em processo de recuperação por uso de drogas e afiliados às igrejas pentecostais aponta que durante a leitura bíblica, as "palavras divinas" têm repercutido na vida cotidiana deles. Tal fato possibilita instrumentalizá-los no processo de mudança de comportamento na vida e no tratamento. O livro sagrado cristão foi considerado acessório de suporte emocional, constituído de mensagens consoladoras, que promovem conforto e incentivam novas condutas no cotidiano da vida.19
A realização de práticas religiosas, tais como, frequentar um ambiente religioso e participar do seu culto também consistem em modos de influência positiva na vida e tratamento do dependente de álcool. Os estudos salientam que frequentar a igreja promove conforto, alívio e bem-estar.8,20-22
Ter força interior para cuidar da saúde
Os participantes deste estudo acreditam que ter força interior e/ou força de vontade os ajuda a superar o problema com o uso de álcool, buscar a recuperação e permanecer no tratamento. Um dos participantes aponta, ainda, que a força interior é conseguida a partir da espiritualidade. Porém, o outro também reconhece que o sucesso do tratamento e da recuperação depende da força de vontade deles próprios e de ajuda externa.
É para ter, porque a gente tem que pedir também, tem que ter força de vontade e ajuda, também (E4).
Espiritualidade é algo que vem de dentro para fora, uma força interior (E5).
Os dados apontam que os significados e sentidos de força interior e força de vontade se mesclam, quando envolvem a questão da responsabilidade pelo próprio cuidado, e, consequentemente, pela mudança. A força interior relacionada à espiritualidade aponta para uma fortaleza de vida, que possibilita pulsão do ser humano a buscar sentido e significado do seu viver, traduzida em energia que produz forças positivas. De fato, a espiritualidade e religiosidade influenciam de maneira positiva a saúde9,23 e saúde mental das pessoas,24 mobilizando suas energias e iniciativas positivas, que as fortalecem e as instrumentalizam para enfrentamento eficiente diante de seus problemas.9
A força de vontade pode ser compreendida quando a pessoa refere estar preparada ou motivada internamente para a mudança, para engajar e aderir ao tratamento, permanecendo em abstinência. Essa condição requer e exige desse consumidor de bebidas alcoólicas atitude de autocontrole e automonitoramento constante. Tal interpretação corrobora a literatura quando os consumidores de álcool internalizam valores religiosos25 responsáveis por regras de conduta moral26 e comportamentos salutares, como por exemplo, o não consumo de álcool e outras drogas.9 Estudos salientam que a internalização de crenças e valores religiosos podem contribuir para o automonitoramento e autocontrole5,27 de comportamentos autodestrutivos, bem como desencadear processos motivacionais28 para evitar ou reduzir o consumo de bebidas alcoólicas.
A religião promove mudança de hábito, rotina e comportamento
A dedicação dos pacientes deste estudo às atividades religiosas exclusivas, os impede de consumir álcool e/ou frequentar bares. Apesar dos dependentes de álcool deste estudo identificarem a religião como influência positiva na saúde, e também na prevenção e recuperação para o problema de consumo de álcool, o catolicismo foi reconhecido como uma religião permissível ao consumo de bebidas alcoólicas. Apesar da religião evangélica não apontar o caráter proibitivo do consumo de álcool, ela orienta sobre os seus malefícios, o que a torna um fator de proteção.
No catolicismo, você pode ingerir bebida, a religião permite, já agora que eu estou indo na evangélica, eles determinam como está na Bíblia, que a bebida alcoólica não vai fazer bem (E1).
Agora, quando você tem uma religião, você se dedica a ela, não tem tempo para ficar no bar (E2).
Alguns estudos reconhecem que a religião tem papel de mediadora no propósito dos fiéis em adotarem hábitos e estilos de vida saudáveis, como também na produção de valores que eles devem seguir.9,19,29 A religião se constitui em um recurso eficaz no processo de evitar comportamento não normativo socialmente e promover comportamento socialmente normativo. Tal fato justifica-se pela capacidade da pessoa se autocontrolar e autorregular no âmbito emocional, cognitivo (por meio das crenças) e comportamental para obter sucesso em muitos domínios da vida.5
A comunidade religiosa pode ser considerada como ambiente de adequação do comportamento da pessoa, através de seus ensinamentos bíblicos,29 corroborando os dados deste estudo, em que as escrituras sagradas foram consideradas como fonte de ensinamento.
A religião envolve doutrina, ou seja, conjunto de princípios ou algumas regras que devem ser respeitadas. O empenho e respeito a tais princípios, como por exemplo, reduzir ou parar de consumir álcool diariamente, podem proporcionar à pessoa oportunidades para mudança de comportamento. De acordo com a literatura, o indivíduo ao buscar uma crença religiosa e envolver-se com "padrões de religiosidade, adere a um conjunto de valores, símbolos, comportamentos e práticas sociais que promove a aceitação ou recusa ao uso de álcool e drogas",30:95 demonstrados nos relatos a seguir.
Está me ajudando em tudo, até no meu comportamento, no meu jeito de falar, de agir, não cuidava de mim. Aí, eu queria beber, ir pra festa, coisa sem limite, aí eu fui à igreja que lá não fala de bebida, não toca nessa palavra (E1).
Ah! influencia, participar com Deus, perceber que não pode mais fazer parte do mundo das bebidas (E3).
Coisa que eu não pegava uma Bíblia para ler, hoje a gente senta no café da manhã, a gente ora para almoçar, porque fazia muitos anos que eu não sabia o que era isso (E7).
Para os participantes deste estudo, frequentar a igreja traz benefícios para sua vida, ao contrário do álcool. Esse ritual religioso proporcionou a estas pessoas mudarem seus hábitos e rotina diários, comportamento e práticas sociais, principalmente, nas relações interpessoais, nas atitudes e na autonomia de seu cuidado. Possibilitou perceber e evitar situações de alto risco, bem como estabelecer limites e tomar decisões eficientes para minimizar o seu comportamento aditivo. Para alguns dos participantes desta pesquisa, alguns valores foram incorporados no cotidiano de suas vidas, tais como, orar e agradecer o alimento, ler a Bíblia, os quais promoveram um momento de compartilhamento entre os membros familiares. Nesse sentido, de acordo com a literatura, entende-se que a inserção em alguma religião pode ajudar as pessoas a perceberem os problemas que o álcool traz para a vida, e com isso criar forças para almejar mudanças.10
Um tratamento de sucesso consiste na mudança de hábitos, da rotina diária e, consequentemente, do comportamento do dependente. O dependente de álcool tenta substituir os períodos de maior consumo dessa bebida por outras atividades, inclusive relacionadas à prática religiosa, as quais objetivam ajudá-lo a desviar o foco do ato de beber e da bebida alcoólica. A tentativa de realizar mudanças no cotidiano significa dar um novo sentido à vida, ter uma vida produtiva, sentir-se útil, capaz de perceber que é possível desenvolver outras atividades, que não seja o beber. A religião possibilita reflexões sobre o próprio autocuidado, autonomia e identificação de limites de conduzir a vida, principalmente no modo de beber.
A religião é o apoio complementar ao tratamento
Os participantes deste estudo compreendem que o modo da religião influenciar positivamente no tratamento é quando ela assume significado e papel de apoio complementar. A religião possibilita, na percepção dos usuários de drogas, um aporte de conhecimento que os ajuda a compreender o transtorno mental, seus danos e assumir que são dependentes. Eles reconheceram que a igreja constitui em um recurso a mais para o seu tratamento, além do Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (CAPS AD). Salientaram que os membros da igreja e o seu líder religioso constituem em um apoio, oferecendo-lhes atenção e ajuda.
No meu tratamento, está influenciando num particular comigo, está influenciando no meu saber que eu sou doente do álcool e não posso beber (E1).
Ah! ajuda bastante no tratamento, você sai daqui [CAPS AD], você vai procurar uma religião, e aí lá tem umas palavras bonitas que ajudam a gente. Não é que ali [igreja] você está livre de bar, é que ali você está falando de Deus, falam umas palavras bonitas. [...] Ah! Porque lá na igreja nós temos muita ajuda, os irmãos ajudam, dá atenção pra gente, e não são aqueles amigos de bar, o pastor apoia muito a gente (E2).
Está ajudando a buscar a igreja para não voltar na bebida (E3).
O mecanismo da religião consiste em promover acolhimento, criação de vínculos e apoio social. O ato de frequentar algum culto religioso e/ou igreja constitui um recurso suplementar que, conjuntamente, valida o sucesso do tratamento realizado no CAPS AD, e se torna outro momento e espaço de escuta. Os dados corroboram a literatura, quando salienta que a religião pode proporcionar a reestruturação do apoio social ao dependente de álcool e a igreja constituir-se em ambiente promissor para nova rede de amizades.8-10,26 Nesse espaço, os líderes religiosos proporcionam escuta individualizada e valorizam as potencialidades dos dependentes de drogas, sem julgá-los. Tais atitudes são compreendidas pelos fiéis como apoio incondicional a eles, colaborando para a formação de uma 'nova família'.10,31
Os relatos permitem inferir que a utilização da religião como tratamento complementar pode proporcionar ao dependente de álcool maior aceitação e entendimento do ser doente. Evidências científicas apontam que o paciente quando busca um apoio religioso, um dos objetivos é obter melhor entendimento e saberes sobre a sua doença, que nem sempre as ciências médicas foram capazes de esclarecer.9
A oração nossa de cada dia: um recurso terapêutico
A oração, enquanto uma prática religiosa, foi reconhecida pelos participantes deste estudo como recurso importante ao longo de todo o período do tratamento, como ajuda no desejo de se libertarem da dependência. Para eles, a oração também promove o fortalecimento espiritual e a crença na esperança de que Deus possa orientá-los na melhor forma de conduzir a própria vida, e indicando-lhes melhores alternativas de superação dos problemas enfrentados por eles.
Na percepção dos participantes deste estudo, a oração e a prece são recursos que têm significados de benção, portanto, no entendimento de desejar o bem para a pessoa, de obter uma graça. No entanto, para se obter o bem ou a graça, os participantes referiram necessidade de agradecer por meio do ato de ajoelhar-se e participar dos cultos religiosos.
A oração foi também reconhecida como importante, quando vinculada à disposição de mudança interior, ou seja, a oração ajuda na recuperação. Porém, existe a necessidade de o dependente estar disposto e motivado a mudar de vida, ajudar-se para alcançar o sucesso da recuperação, uma vez que não adianta orar todos os dias e não estar preparado para se libertar da bebida.
Mas eu rezo toda noite em casa, peço ajuda para Deus, se não fosse Ele eu não estava aqui (E8).
Eu pedi ajuda para que abrisse meus olhos, eu pedi em orações para Deus e para todos os santos para me ajudarem, porque eu queria sair dessa fase, depois que eu comecei o tratamento minha fé aumentou mais (E6).
Eu nunca busquei ajuda na igreja, mas eu acredito, por exemplo, na oração(E4).
Única coisa que me fortalece é você colocar os joelhos no chão e orar e pedir a Deus que te ilumine o caminho, te mostre a luz no fundo do túnel, que você pode fazer a coisa certa(E5).
Ah, eu pedi oração pra mim, pra eu sair dessa vida de beber, mas me falaram...[...] eu vou te abençoar, mas você também tem que fazer sua parte, participar da igreja para afastar essas coisas erradas e substituir isso daí por coisa boa, o bem sempre ajuda a gente, as coisas do bem (E3).
Aí a gente conversa, eles oram para gente, para gente ficar firme, religião, assim é coisa do bem, a gente sempre tem que procurar ajuda (E2).
Percebe-se pelos relatos, que a oração representa o momento que possibilita aos dependentes de álcool um diálogo solitário e íntimo com um Ser Superior, que o aproxima de suas angústias, desejos, dúvidas, culpas e reconhece as suas carências mais urgentes, bem como a necessidade de solicitar ajuda. O diálogo com um Ser Superior proporciona reflexões da própria vida e a vontade de expor o que deseja para si próprio.
Os dados corroboram a literatura, quando destaca que a oração é, predominante em todas as religiões, muito utilizada pelos dependentes de substâncias psicoativas que possuem alguma crença, principalmente nos momentos da fissura, quando o paciente sente o desejo incontrolável de consumir drogas.10
Dessa maneira, a prática de orar é muito incentivada pelas religiões, pois ajuda na prevenção de recaídas ou lapsos, tornando-a uma atividade de vida diária. A oração, enquanto ritual "sagrado e terapêutico", pode ser realizada em qualquer momento do dia, solicitando proteção durante o dia e agradecendo a Deus por tê-la recebido.10
A prece ou oração é compreendida pelas religiões cristãs como uma forma de entrar em contato direto com Deus, uma oportunidade de diálogo entre pai e filho.10 A sensação de sentir a presença de um Ser Superior pode ser considerada pelos usuários de drogas um fator para iniciar e manter o processo de recuperação terapêutica. Recorrer ao Ser Supremo no momento da fissura pode influenciar o dependente químico na sensação de tranquilidade e força para lutar contra o consumo.32,33
Rezar pode ser compreendido como ato, estratégia ou atividade de uma pessoa que crê em um Ser Superior, solicitando-lhe melhoria do seu estado de saúde. Inclusive, pessoas que são consideradas agnósticas, oram e estabelecem uma relação de fé, quando vivenciam momentos de doença.32,33
CONCLUSÕES
A forma como a religião demonstrou influenciar positivamente a vida e o tratamento dos dependentes de álcool esteve relacionada com o conforto obtido por meio de palavras, da oração e da facilitação do entendimento das consequências do consumo do álcool. Os usuários de álcool deste estudo encaram a religiosidade como um recurso complementar ao tratamento e acreditam que ela promove mudanças de hábito, rotina e comportamento na vida dos mesmos e apoio social. Percebem que a religião os ajuda a enfrentar os desafios diários por intermédio de seus ritos, práticas e dogmas, transformando-se em mecanismos de enfrentamento para tal problemática.
Em relação à espiritualidade, os entrevistados entendem que sua influência positiva reside na potencialização da força interior para o cuidado com a saúde e também para o fortalecimento espiritual através da oração. Esses aspectos surgiram como formas de intensificar a capacidade de resiliência, autoeficácia e esperança no enfrentamento da dependência de álcool.
Este estudo contribui no processo reflexivo de que os profissionais de saúde precisam estar aptos a utilizar a espiritualidade/religiosidade no cotidiano do cuidado como recursos motivacionais.
O limite deste estudo relaciona-se à população exclusiva de homens dependentes de álcool e ao número pequeno na amostragem, o que se sugere buscar tais mecanismos de influência positiva da religião e espiritualidade na vida e no tratamento, também com mulheres e consumidores de outras substâncias psicoativas.
REFERÊNCIAS
a Segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID-10) os transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso nocivo de álcool para a saúde (F10.1) consiste no modo de consumo prejudicial à saúde, com danos físicos, psíquicos e sociais.
b Segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID-10) os transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool - síndrome de dependência (F10.2) caracteriza-se por sintomas comportamentais, cognitivos e fisiológicos decorrentes do consumo repetitivo de álcool.
c Remissão inicial; a pessoa deixa de apresentar critérios para transtorno por uso de álcool por um período mínimo de 3 meses, mas inferior a 12 meses, com exceção do critério de fissura ou forte desejo ou necessidade de usar álcool. Remissão sustentada: a pessoa deixa de apresentar critérios para transtornos por uso de álcool por um período de igual ou superior a 12 meses, com exceção do critério de fissura ou forte desejo ou necessidade de usar álcool, conforme Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM -5.