Volume 21, Número 1, Jan/Mar - 2017
PESQUISA
Violência intrafamiliar: vivências e percepções de
adolescentes
Júlia Renata Fernandes de Magalhães
1
Nadirlene Pereira Gomes
1
Rosana Santos Mota
1
Luana Moura Campos
1
Climene Laura de Camargo
1
Selma Regina de Andrade
2
1 Universidade Federal da Bahia. Salvador, BA, Brasil
2 Universidade Federal de Santa Catarina. Salvador, BA, Brasil
Recebido em 19/04/2016
Aprovado em 21/09/2016
Autor correspondente:
Júlia Renata Fernandes de Magalhães
E-mail: julinha_cte@hotmail.com
RESUMO
OBJETIVOS:
Desvelar a violência intrafamiliar vivenciada por adolescentes e identificar
se estas(es) se reconhecem em tal situação.
MÉTODOS:
Pesquisa qualitativa fundamentada na História Oral. Foram entrevistadas(os)
oito adolescentes estudantes de uma escola pública de Salvador, Bahia,
Brasil. Os dados foram sistematizados, conforme a Análise Temática e
analisados com base nas temáticas: violência doméstica e adolescência.
RESULTADOS:
A história oral das(os) adolescentes desvela uma infância e adolescência
marcada pela presença da violência conjugal entre os pais e vivência de
agressões físicas, humilhações, abandonos e negligências. Embora tal
contexto e suas repercussões para a saúde, as(os) adolescentes não se
reconhecem enquanto vítimas.
CONCLUSÃO:
São necessárias ações de educação em saúde, no ambiente escolar e nos
serviços de saúde, principalmente, no âmbito primário, no sentido de
sensibilizar os profissionais para o reconhecimento e
prevenção/enfrentamento da violência. Urge uma gestão que priorize esses
elementos, enquanto política de governo.
Palavras-chave: Violência Doméstica; Adolescente; Enfermagem; Educação
INTRODUÇÃO
Entende-se por violência intrafamiliar a ação ou omissão por parte de algum integrante da família, ainda que sem laços sanguíneos, que cause danos ao outro indivíduo.1 Esse é considerado um fenômeno histórico, presente no cotidiano de crianças e adolescentes de todos os segmentos sociais.2
Choca-nos o fato de que os principais agressores são, justamente, pessoas que deveriam zelar por sua proteção e deixá-los a salvo de ações desumanas e violentas. De acordo com estudo desenvolvido em um município do Rio de Janeiro-Brasil, a partir de 210 prontuários de crianças e adolescentes registrados e atendidos como vítimas de maus-tratos, no período de 2008 a 2012, no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), 40,5% das agressões foram cometidas pela mãe, 24,7% pelo pai, 16,7% pelo padrasto, 1,4% pela madrasta e 16,7% por outros parentes, como tios, avós, primos e irmãos.3 Esse agravo repercute sobre a saúde física e mental desse grupo, implicando no desenvolvimento de cada indivíduo, com repercussões na qualidade de vida das famílias e na produtividade econômica do país, revelando-se, pois, enquanto um importante problema de saúde pública.4
Reconhecendo a magnitude do fenômeno, a socie dade tem se mobilizado nas últimas décadas na busca de assumir sua parcela de responsabilidade. Em 1990, foi promulgada a lei 8.069, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Seu objetivo foi colocar os direitos da criança e do jovem em uma perspectiva condizente com sua condi ção de pessoa em desenvolvimento, de modo que sua vulnerabilidade mereceu proteção integral, abrangendo os aspectos físicos, psíquicos e morais.5
No âmbito da saúde, em 1989, dá-se a criação do Programa de Saúde do Adolescente (PROSAD) com o propósito de promover a saúde integral das(os) adolescentes. Dentre as suas áreas prioritárias, destaca-se, justamente, a prevenção de violência e maus-tratos.6 Recentemente, outro avanço em relação à regulamentação dos direitos das(os) adolescentes foi sancionado por meio da Lei Nº 13.010/2014, popularmente conhecida como "Lei da Palmada". Esta preconiza o direito da criança e da(o) adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante pautado na humilhação, ameaça grave ou ridicularização.7
Percebe-se conquistas brasileiras ao longo dos anos em relação à criação de políticas públicas de proteção aos adolescentes contra os maus-tratos. Entretanto, na prática, o impacto da violência intrafamiliar sob esse público ainda tem sido pouco estudado. Busca científica de artigos brasileiros publicados entre os anos 2011 e 2015, realizada na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), a qual utilizou os descritores "violência doméstica" e "adolescente", apontou apenas 32 artigos científicos, sinalizando necessidade de se ampliar a produção do saber sobre a temática.
Acredita-se que tais conhecimentos são essenciais para subsidiar o processo de prevenção e enfrentamento do fenômeno. Nesse contexto, vale salientar que, os profissionais da educação e da saúde são fundamentais para a identificação do agravo em adolescentes, sobretudo pela maior oportunidade de acesso a estes devido à obrigatoriedade do ensino e por conta das demandas de cuidados à saúde. As enfermeiras que atuam na Estratégia Saúde da Família (ESF), por exemplo, podem acompanhar de perto as famílias em seu contexto territorial, conhecendo as suas histórias e percebendo seus aspectos relacionais. Desse modo, o vínculo com a comunidade e a família viabiliza a identificação da violência intrafamiliar, como também o desenvolvimento de respostas capazes de prevenir novos casos.8
Reconhecendo a diversidade de interesse que comungam entre as áreas da saúde e da educação, foi instituído em 2007, o Programa Saúde na Escola (PSE). Este visa contribuir para o enfrentamento das vulnerabilidades, dentre as quais: a violência intrafamiliar.6 Partindo do pressuposto de que um ambiente doméstico permeado pela violência compromete a saúde e o desenvolvimento humano, acreditamos que o desvelamento das histórias de adolescentes com vivência de violência intrafamiliar poderá oferecer elementos que auxiliem para maior visibilidade do fenômeno. Esse reconhecimento representa a etapa elementar para o direcionamento de ações que assegurem o direito desses a uma vida sem violência, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).5
Nesse sentido, acredita-se que a História Oral, por se ocupar em conhecer e aprofundar aspectos sobre determinada realidade, a exemplo dos laços do cotidiano,9 possibilitará apreender as interações intrafamiliares das(os) adolescentes, bem como as situações de violência vivenciadas pelas(os) mesmas(os). Assim sendo, procuramos responder aos seguintes questionamentos: Qual o contexto familiar de adolescentes em situação de violência doméstica? Elas(es) se reconhecem vítimas? No sentido de responder a tais indagações, adotamos o seguinte objeto de estudo: vivência e percepção da violência intrafamiliar por adolescentes. A pesquisa objetivou desvelar a violência intrafamiliar vivenciada por adolescentes e identificar se estas(es) se reconhecem em tal situação.
MÉTODOS
Trata-se de uma pesquisa descritivo-exploratória, com abordagem qualitativa, fundamentada na História Oral. Utilizou-se como referencial metodológico a modalidade História Oral Temática, pois permite compreender a violência intrafamiliar sob o ponto de vista dos sujeitos que a vivenciam, atentando-se para as visões subjetivas e para as diferentes maneiras de ver e sentir.10
Esta pesquisa encontra-se vinculada ao Projeto Matriz "Universidade e escola pública: buscando estratégias para enfrentar os fatores que interferem no processo ensino/aprendizagem", sob financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do estado da Bahia (FAPESB), Edital nº 028-2012 - Inovação em Práticas Educacionais nas Escolas Públicas da Bahia. Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da UFBA (CEPEE/UFBA), parecer nº 384208.
O estudo foi realizado em uma escola pública de ensino fundamental localizada em um bairro periférico da cidade de Salvador, Bahia, Brasil. Participaram dele estudantes matriculados no turno vespertino e que atendiam aos seguintes critérios de inclusão: ser adolescente, considerando a faixa etária dos 10 aos 19 anos de idade, conforme preconiza o Ministério da Saúde; e vivenciar ou ter vivenciado situação de violência intrafamiliar.
A identificação de adolescentes com história de violência intrafamiliar foi viabilizada pela pesquisa de doutorado, também inserida no projeto guarda-chuva. Esta pesquisa* contou com um formulário padronizado, composto por seis blocos de questões, um deles contemplando expressões de violência intrafamiliar, tais como: alguém da sua família já te humilhou? Bateu? Tocou em suas partes íntimas? Das(os) 145 adolescentes identificadas(os) com vivência de violência intrafamiliar, oito participaram do estudo, sendo cinco meninas e três meninos. Considerando que a seleção dos entrevistados em pesquisas narrativas, como de história oral, segue critérios qualitativos, a quantidade de sujeitos relaciona-se a capacidade de articulação dos depoimentos em si, de modo que uma única entrevista pode desvelar-se de extrema significância.10 O total de entrevistadas(os) se configurou a partir do critério de saturação dos dados.
Todas(os), incluindo seus responsáveis, foram informadas(os) acerca dos objetivos do estudo, sua justificativa, relevância, bem como da garantia à privacidade e confidencialidade das informações, sendo identificadas(os) por nomes fictícios de pedras preciosas. Ao aceitarem participar da pesquisa, as(os) estudantes assinaram o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido, e os seus responsáveis o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A aproximação com as(os) adolescentes, para coleta de dados, aconteceu com o apoio da Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade - ACCS intitulada "Abordagem interdisciplinar e transdisciplinar dos problemas de saúde relacionados à violência", a qual faz parte da estrutura curricular dos cursos de graduação da Universidade Federal da Bahia. Tal componente favoreceu o contato com as(os) estudantes visto que durante o ano de 2014 foram desenvolvidas oficinas educativas e reflexivas acerca de temas relacionados à adolescência (sexualidade, drogas e bullying).
A coleta de dados foi realizada através do resgate da História Oral das(os) adolescentes, com foco na vivência de violência intrafamiliar. Utilizou-se como instrumento a entrevista semiestruturada contemplando a vivência de violência intrafamiliar, bem como sua percepção por parte das(os) adolescentes. Após a finalização das entrevistas, a pesquisadora permaneceu por um tempo no local à disposição para discussão de algum assunto de interesse da(o) adolescente, ou simplesmente como demonstração de atenção e afetividade.
As entrevistas foram realizadas individualmente, com tempo médio de duração 1 hora, no mês de março/2015, na sala de informática da escola, sendo esse espaço indicado pelo diretor da escola pública por proporcionar maior privacidade para as(os) participantes. Dessa forma, atendemos ao que se preconiza para a escolha do local das entrevistas, assegurando promover condições adequadas para a pureza de som, além de evitar interrupções e situações que comprometam a concentração.11
Os áudios das entrevistas foram transcritos na íntegra, com o apoio do programa Microsoft Word, preservando a fala original das(os) participantes. Em seguida, seguiram-se as etapas: textualização, fase em que as narrativas são colocadas na primeira pessoa do singular, bem como os elementos desnecessários são excluídos e as ideias centrais de cada narrativa são identificadas; e a transcriação, processo em que as narrativas são colocadas em uma sequência lógica, sendo realizada a síntese da história oral de cada adolescente em 3ª pessoa.11
Os dados foram sistematizados com base na Análise de Conteúdo Temática, entendida como um conjunto de procedimentos sistemáticos de descrição do conteúdo das mensagens, com o objetivo de permitir a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção dessas mensagens, compreendendo as seguintes etapas: pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados e interpretação.12 Desse processamento, emergiram as seguintes categorias: Contexto familiar; Percepção da vivência de violência doméstica; e Significado de violência.
Vale ressaltar que no processo de organização dos dados, estes foram codificados e categorizados com auxílio do NVIVO® 10, que fundamenta-se no princípio da codificação e armazenamento de textos em categorias específicas, possibilitando modificar, acrescentar, ligar e cruzar dados.13 Esse software favorece a importação de textos, arquivamento de dados, codificação e gerenciamento de categorias. A interpretação dos dados respaldou-se nas temáticas: violência doméstica e adolescência.
RESULTADOS
Dentre as(os) adolescentes pesquisadas(os), cinco são meninas e três são meninos, com idade entre 12 e 18 anos. Todas(os) afirmaram ser solteiras(os), a maioria se autodeclarou como negra(o) (seis pretas, uma parda e uma branca) e informou não possuir religião (apenas dois afirmaram seguir a religião evangélica). Em relação às pessoas com quem residem, quatro referiram morar com os pais biológicos e irmãos e quatro com outros integrantes da esfera familiar como avós e tias(os).
No que tange à História Oral das(os) participantes, as falas nos remete para uma infância e adolescência marcada por privações econômica e de afeto, rejeição, culpabilização, ofensas, humilhações, agressões físicas, além de presenciarem cotidianamente a relação de violência entre seus pais. Essa realidade compromete sua integridade física; desencadeia adoecimento mental, expresso pelo sentimento de tristeza, pelo isolamento social, pela autolesão e pelo pensamento suicida; interfere no desempenho escolar e vulnerabiliza as(os) adolescentes para o uso de bebida alcoólica.
Embora tal contexto, as(os) adolescentes entrevistadas(os) não se percebem em vivência de violência doméstica, o que pode estar associado ao significado que atribuem ao fenômeno. Das(os) oito adolescentes, todas(os) a vincularam à violência física; a maioria restringindo-a à agressão física severa, mencionando termos como: espancar, queimar, esfaquear e matar. Segue a síntese da história oral das(os) adolescentes (Quadro 1).
Síntese da História Oral das(os) adolescentes |
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Cristal (menina, 15 anos) Contexto Familiar: Refere violência conjugal entre os pais. A relação com o pai é permeada pela falta de afeto, ofensas, humilhações e agressão física. Mostra-se deprimida, motivo que a leva a se autolesionar. Refere ainda não conseguir prestar atenção na aula.Percepção da vivência de violência doméstica: [...] o que eu vivo não é bem violência.Significado de violência: Bater, espancar. |
Berilo (menino, 13 anos) Contexto familiar: O companheiro da mãe os agride e o expulsou de casa. Desde então, a mãe faz pouco contato. Queixa-se da falta de comida e vestuário e de agressão física e psicológica pela avó e tia, com quem mora. Revela que na escola só pensa nos problemas de casa, declarando segundo ano de repetência.Percepção da vivência de violência: Isso que eu passo não é violência. Você acha que é?Significado de violência: É uma pessoa matar a outra, dar soco, chute, queimar, afogar, degolar, dar tiro, estuprar. |
Ágata (menina, 18 anos). Contexto familiar: Refere violência conjugal entre os pais e vivência de violência física e psicológica perpetrada pelos pais e irmã. Refere tristeza, que chora sozinha no quarto, que consome álcool para esquecer os problemas de casa e que já pensou em suicídio.Percepção da vivência de violência: O que eu vivo não é violência.Significado de violência: É o marido matar a mulher porque não aceita a separação. |
Rubi (menina, 12 anos). Contexto familiar: Infância marcada pela violência conjugal entre os pais. Seu pai a culpava pelos problemas do cotidiano doméstico.Percepção da vivência de violência: Acho que eu nunca passei por violência.Significado de violência: Acho que briga de bater. |
Ônix (menino, 13 anos). Contexto familiar: Presenciou o pai agredindo fisicamente a mãe. Refere também ter sofrido violência, inclusive física, e que esta comprometeu seu rendimento escolar.Percepção da vivência de violência: Eu nunca sofri violência.Significado de violência: Acho que é espancamento. |
Topázio (menino, 14 anos). Contexto familiar: Descreve relacionamento conturbado entre os pais, caracterizado pela agressão física mútua. Relata sentir-se desprezado pelo pai, visto que ao contrário dos irmãos mais novos, não possui mochila, nem sapato para ir à escola.Percepção da vivência de violência: Eu acho que não é violência [...].Significado de violência: Violência é quando acontece de uma pessoa bater na outra. |
Jade (menina, 13 anos). Contexto familiar: Lembra das brigas entre os pais, embora estes tenham se separado quando ainda criança. Sofre pela ausência do pai, que não a procura há seis anos.Percepção da vivência de violência: Eu nunca passei por isso (violência) [...].Significado de violência: Para mim violência é você ser agredido todos os dias por uma pessoa. É quando você vive com uma pessoa e ela chega bêbado em casa e te bate. |
Pérola (menina, 14 anos). Contexto familiar: Seu avô a colocou no orfanato, mas sua tia resolveu criá-la. Demonstra carinho pelo pai, embora refira sentir medo devido sua agressividade. Não expressa afetividade à mãe. Relata que sofre ao lembrar da sua história.Percepção da vivência de violência: Eu nunca passei por uma situação de violência.Significado de violência: São maus-tratos: batendo no outro. |
DISCUSSÃO
A história oral das(os) adolescentes elucida um contexto familiar permeado pela violência, expressa por meio de agressões físicas, humilhações, abandonos e negligências afetivas e financeiras. Estudo qualitativo, realizado com o objetivo de compreender a vivência de violência na ótica de adolescentes, também faz alusão às agressões físicas, psicológicas, sexuais, ao comprometimento das referências paternas e as negligências e privação.14 Pesquisa brasileira com 288 adolescentes também apontou diversas formas de violência intrafamiliar, com maior prevalência da violência psicológica e física.15 Outro estudo, com 252 crianças e adolescentes, que apontou mães e pais as(os) como principais agressoras(es), corrobora maior frequência da violência psicológica, embora apresente como segunda expressão a negligência, seguida da agressão física e sexual.16
No âmbito internacional, o cenário de violência é de igual modo preocupante. Estudo quantitativo realizado em 10 províncias do Canadá, com adultos questionados sobre o abuso quando criança revelou a prevalência de 32% para esse agravo.17 Em Cuba, pesquisa revelou percentuais ainda mais expressivos: 82,8% de crianças e adolescentes em situação de violência intrafamiliar.18 Tais achados sinalizam que esse tipo de violência intrafamiliar não se restringe a realidade brasileira e se expressa não apenas pela vivência, como também pelo testemunho do fenômeno.
Estudo realizado, com 280 escolares e as suas respectivas mães/responsáveis, defende que crianças/adolescentes com história de violência doméstica estão mais vulneráveis para testemunhar episódios de violência entre os pais,19 realidade constatada tanto em nosso estudo como também no cenário internacional. Pesquisa desenvolvida no sudeste asiático também assinala o alto índice de violência intrafamiliar nesse público, ainda alerta que vivenciar e/ou testemunhar a violência aumenta as chances dessas pessoas apresentarem sintomas depressivos16 e/ou de reproduzirem o comportamento agressivo na vida adulta. Quanto a isso, estudo corrobora que 50% das(os) agressoras(es) experienciaram violência intrafamiliar na infância.20
Concordando acerca das repercussões da violência intrafamiliar, estudo sobre os efeitos da violência familiar constatou que adolescentes que presenciaram e/ou vivenciaram a violência exibiram os mais altos níveis de problemas de comportamento.21 Pesquisas publicadas nos Estados Unidos da América e no Canadá sinalizam que qualquer tipo de abuso infantil se constitui importante fator de risco para ansiedade, depressão, inclusive ideação suicida e tentativas de suicídio.22,17 Soma-se a tendência em apresentar baixo rendimento escolar e dificuldade de aprendizagem, sendo frequentes relatos de adolescentes desinteressados e dispersos e/ou desatentos nas aulas.16 O impacto da vivência de violência intrafamiliar para a saúde mental e desempenho escolar das(os) adolescentes também ecoaram em nosso estudo.
Todavia, apesar das histórias de violência relatadas e suas graves repercussões, as(os) adolescentes não se reconhecem em tal situação. A naturalização da relação permeada pela violência faz com que as(os) adolescentes a percebam como algo comum e esperada, o que dificulta identificar-se como vítima. Estudo realizado com 656 adolescentes da rede pública de ensino do Município de São Paulo, com idade de 11 a 17 anos, também constatou que, apesar do alto índice de violência intrafamiliar entre os escolares (38,9%; n = 255), a grande maioria não se reconhecia como vítimas potenciais dessa violência. Pesquisa com 11 adolescentes acolhidas em um abrigo municipal do Rio de Janeiro revelou que mais da metade teve dificuldade em assumir história de violência e também relacionou tal dificuldade à banalização e à naturalização da relação vivenciada no espaço familiar. Nesse estudo, a violência foi significada como algo mais grave comparado a situação que vivencia cotidianamente.14
As(os) adolescentes de nosso estudo também significaram a violência por meio de expressões mais graves ou mais frequentes que as desveladas em sua história oral: quatro participantes vivenciaram violência física, embora tenham significado a violência através de expressões mais severas, como espancar e esfaquear; e quatro, que não declararam história de agressão física, expressaram significados atrelados a essa forma de expressão. A limitação da violência à agressão física guarda relação com o fato de esta manifestar-se por meio de marcas físicas, ganhando destaque por serem visíveis e, portanto, mais perceptíveis.
A dificuldade de reconhecer-se em situação de violência intrafamiliar pode ser explicada ainda pela percepção do ato violento enquanto medida educativa, conforme observa pesquisa que assinala para a ambiguidade entre o limite do que pode ser considerada uma medida corretiva aceitável e o que se configura violência.14
Sinaliza-se, pois, a necessidade de desconstrução conceitual acerca da violência em prol do entendimento social de que esta se fundamenta por meio da violação de direitos básicos, como o de uma vida livre de violência, conforme preconiza o ECA.5 Esse dispositivo legal rege ainda pela obrigação dos profissionais encarregados do cuidado e assistência às crianças e adolescentes, a exemplo daqueles que atuam na área da educação, saúde e assistência social, de estarem aptos a reconhecer e comunicar ao Conselho Tutelar casos suspeitos ou confirmados de maus-tratos praticados contra crianças e adolescentes, podendo responder judicialmente àqueles que injustificadamente se omitirem.5
Considerando a responsabilidade social para o público infanto-juvenil, é importante considerar ainda que as(os) adolescentes constituem um grupo que dificilmente comparece aos serviços de saúde, daí a necessidade de ir ao encontro dessa população em outros espaços, a exemplo da escola.23 No campo da saúde, a puericultura possibilita o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento da criança desde seu nascimento até os 10 anos de idade, período em que os profissionais de saúde, com destaque para as enfermeiras, podem e devem identificar maus tratos. Todavia, após os 6 anos de idade, percebe-se a ausência das crianças nos serviços de saúde, sendo o cenário escolar mais propício para o reconhecimento do agravo.
Por consistir em um ambiente que favorece o contato diário e o estabelecimento de relações de proximidade, afeto e confiança entre estudantes e entre eles e os professores, muitos adolescentes sentem-se seguros para confiar seu segredo ao colega e/ou ao professor, oportunidade para se romper o ciclo da violência doméstica. Por acreditar que na escola os direitos humanos são preservados e ensinados, a(o) adolescente tende a se sentir protegida(o) para revelar sua história, o que exige preparo profissional para atuar diante a situação. No entanto, estudos apontam que as escolas apresentam dificuldades para abordar esse assunto. Os professores demonstram sentir-se despreparados e inseguros para lidar com as situações de violação dos direitos, que quando não são negadas ou ocultadas, acabam sendo equivocadamente tratadas. Tal contexto alimenta a ideia de que a escola está deixando de cumprir a sua função.24 Dentre os fatores que contribuem para essa realidade, podem-se citar a lacuna criada pelos currículos de graduação e o precário suporte legal para dar direcionamento às demandas.25
Diante esse contexto, o Programa Saúde na Escola é estratégico, visto que os profissionais de saúde assumem uma parceria com a escola objetivando atingir além dos adolescentes, a família, o espaço escolar, os professores e outros profissionais que atuam no ambiente escolar. A inserção dos profissionais de saúde no ambiente escolar foi descrita de forma positiva em uma pesquisa que defende a incorporação da equipe de saúde da família nas escolas. Neste estudo, foram identificados vários episódios de lesões por queimaduras e outras marcas sugestivas de violência. A avaliação constante das crianças/adolescentes durante a realização do exame físico favorece a suspeita do agravo, podendo ainda inibir a prática de violência intrafamiliar contra a mesma.26 Dessa forma, a integração saúde-escola contribui para o estabelecimento de diagnósticos e intervenções precoces diante os agravos apresentados pelos estudantes. Nesse sentido, os profissionais que lidam diretamente com o público infanto-juvenil, em especial, as enfermeiras e professoras, devem se articular para a elaboração e implementação de estratégias de educação e saúde voltadas para essa temática.27
CONCLUSÃO
A história oral, das(os) oito adolescentes em situação de violência intrafamiliar, revela que estas(es) convivem cotidianamente com a violência perpetrada por familiares e que tal vivência tem desencadeado repercussões negativas para a sua saúde física, mental e social. Chama atenção o fato de que apesar de descreverem um contexto familiar marcado por conflitos e agressividade, as(os) adolescentes não se reconhecem enquanto vítimas da violência. Infere-se que a não percepção da violência está diretamente relacionada ao significado que atribuem ao fenômeno, na sua maioria relacionando-o à agressão física severa.
Embora possa apresentar limitações, visto as peculiaridades regionais, o estudo contribui por elucidar a naturalização da violência intrafamiliar e os danos para saúde e o desenvolvimento humano, sinalizando a importância de estratégias que possibilitem o descortinamento das histórias de crianças e adolescentes, seja por elas(es) mesmas(os); seja pelos profissionais da educação e/ou da saúde, considerando a atuação junto ao público infanto-juvenil e/ou suas famílias. No caso das(os) adolescentes vítimas e de seus pais e/ou familiares, as estratégias devem voltar-se para que reconheçam que os atos agressivos vivenciados e praticados no contexto domiciliar constituem situações de violência, e por essa razão devem ser coibidas. Por meio do PSE, mais especificamente das atividades de educação em saúde, é possível ser direcionado um novo olhar à questão da violência, que contemple estudantes adolescentes, professores e familiares.
No campo profissional também é imprescindível que os profissionais estejam instrumentalizados para reconhecer o agravo e trabalhar com essa temática. Sendo assim, o fenômeno da violência precisa ser inserido como tema de discussão e aprofundamento nos currículos da graduação, em especial, nos cursos da área de saúde e da educação. Ressalta-se que a formação não se esgota na graduação, sendo essenciais espaços de educação continuada em serviço sobre esta temática, considerada de relevância social e para a saúde. Para isso, urge uma gestão que a contemple e priorize enquanto política de governo. Destaca-se a importância das enfermeiras, que além de atuarem na assistência direta aos adolescentes, ainda se ocupam do gerenciamento de equipes e programas em diferentes setores, a exemplo da ESF e o PSE, espaços primordiais para o processo de prevenção e enfrentamento da violência, sobretudo no âmbito familiar.
REFERÊNCIAS
* Pesquisa de doutorado com o objetivo de verificar a associação entre a violência intrafamiliar e os aspectos sociodemográficos, bullying, uso de álcool/drogas e/ou repercussões para a saúde e aprendizagem das(os) adolescentes.