Volume 20, Número 4, Out/Dez - 2016
PESQUISA
Intencionalidade da ação de Cuidar mulheres em situação
de violência: contribuições para a Enfermagem e Saúde
Laura Ferreira Cortes
1
Stela Maris de Mello Padoin
1
1 Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil
Recebido em 27/03/2015
Aprovado em 21/07/2016
Autor correspondente:
Laura Ferreira Cortes
Email:
lferreiracortes@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Apreender as motivações da ação da enfermeira ao cuidar de mulheres em
situação de violência.
MÉTODOS:
Pesquisa qualitativa, fundamentada na Fenomenologia Sociológica de Alfred
Schutz. Realizaram-se dez entrevistas com enfermeiras que haviam cuidado
dessas mulheres em um Hospital e, Pronto Atendimento da Rede Pública do Rio
Grande do Sul, Brasil, no período de janeiro a abril de 2013.
RESULTADOS:
A intencionalidade da ação desvelou a busca inicial da recuperação da saúde
física das mulheres, permeada pela expectativa de compreender a situação;
proporcionar bem-estar emocional, apoio e a continuidade do cuidado, para
que as mulheres possam construir uma vida sem violência.
CONCLUSÃO:
O típico da ação revela a premência de se ampliar o foco do cuidado para o
sujeito em sua situação biográfica singular. Vislumbram-se ações que visem
desconstruir as atitudes naturais em relação à violência vivida.
Palavras-chave: Saúde da Mulher; Violência contra a Mulher; Serviços de saúde; Enfermagem; Prática Profissional
INTRODUÇÃO
A violência contra as mulheres (VCM) configura-se uma das principais formas de violação aos direitos humanos, atingindo as mulheres em seu direito à vida, saúde e integridade física. Neste estudo, apropria-se do conceito de VCM como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhes cause morte, lesão, sofrimento psíquico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial tanto no âmbito público como no privado1.
Em 2014, no Sistema de Informação de Agravos e Notificação (SINAN), foram registrados, no Brasil, 223.796 atendimentos de saúde relativos à violência. Desses 147.691 eram mulheres, ou seja, duas em cada três casos. O local de residência da mulher foi o cenário das situações, tendo como seus agressores, o cônjuge ou namorado (atuais ou pregressos)2.
No setor saúde, o tema foi incluído, oficialmente, como demanda para assistência em 1990, devido ao impacto que tem na vida das pessoas, das famílias e da sociedade, o que implica em necessidade de atenção e cuidado dos serviços de saúde3. Destaca-se que as consequências para a saúde física e mental das mulheres são resultantes de lesões oculares, distúrbios gastrointestinais, transtornos de ansiedade e depressão que podem levar ao abuso de álcool e outras drogas4. Devido a essas repercussões as mulheres procuram os serviços de saúde, o que indica importante papel dos profissionais no acolhimento e na escuta, sendo estratégicos para o enfrentamento da violência5. Nesse sentido, a Área da Saúde é campo pioneiro para a identificação das situações e de produção crítico-reflexiva sobre o fenômeno6, fazendo parte da rota percorrida por muitas mulheres7.
Grande parte dos casos não é identificada pelos profissionais, contribuindo para a invisibilidade do fenômeno. Um dos motivos é a falta de capacitação para detectar situações de violência nas queixas apresentadas pelas mulheres e a compreensão dos profissionais, alicerçada em concepções de gênero e no entendimento de que é uma questão do âmbito privado. Geralmente, os profissionais ocupam-se somente dos sintomas físicos, desconsiderando os aspectos psicossociais, com forte tendência à medicalização5,8,9, julgamento e culpabilização das mulheres10. Isso demonstra que o setor saúde ainda não incorporou, em seus modelos assistenciais, problemas da vida das pessoas e que não sejam doenças típicas. A linguagem dos sintomas e os diagnósticos são insuficientes no universo multifatorial da violência9. Em geral, o cuidado a elas ocorre de maneira fragmentada e pontual, restrita ao tratamento das lesões físicas, demonstrando um despreparo para desenvolver um atendimento em rede, resolutivo e com vistas à integralidade6,9,11. No entanto, destaca-se que, muitas vezes, são esses profissionais que realizam os primeiros atendimentos e necessitam estar apropriados das necessidades das mulheres.
Neste estudo, considera-se a atuação da enfermagem alicerçada no cuidar, como uma ação vivida individualmente e contextualizada no mundo da vida social, sendo significado e ressignificado a partir do tipo de relação estabelecida com o outro12. O mundo da vida, também denominado de mundo social, mundo cotidiano ou mundo de senso comum contempla as experiências cotidianas, direções e ações por meio das quais os indivíduos lidam com seus interesses, concebendo e realizando planos13. O cuidado profissional agrega ao cuidado factual à dimensão técnico-científica, o diferenciando do que é praticado pelo senso comum12. Essa compreensão respalda a necessidade de investigar problemáticas que busquem apreender as ações dos profissionais, em especial das/os enfermeiras/os ao cuidar dessas mulheres. Nesse sentido, este artigo é recorte de dissertação* que teve como questão orientadora: "Qual a intencionalidade da ação profissional da enfermeira ao cuidar de mulheres em situação de violência?". Assim, o estudo objetivou apreender as motivações da ação da enfermeira ao cuidar de mulheres em situação de violência.
REFERENCIAL TEÓRICO
Considerando-se o cuidar em enfermagem como uma ação, e que quando se desenvolve o cuidado, se tem em vista alguma coisa, opta-se, neste estudo, pelo uso do referencial teórico-metodológico da Fenomenologia Sociológica de Alfred Schutz, cujo campo de pensamento é pautado pela sociologia da ação, propondo um método de captação da realidade social e do conjunto de ações sociais, a partir das quais é possível compreendê-la13. Dessa forma, para realizar um cuidado de enfermagem que vise à integralidade, faz-se necessário apreender as motivações para desenvolvê-lo. A fim de que essas possam subsidiar o desenvolvimento de habilidades para a atenção interdisciplinar e intersetorial que visem ao enfrentamento da violência e o entendimento dessa como uma demanda das mulheres e uma questão de saúde pública.
Alfred Schutz nasceu em Viena, em 1899, e morreu em Nova York, em 1959. Estudou Direito e Ciências Sociais, formando suas bases de pensamentos a partir das obras de Edmund Husserl e Max Weber. Ao investigar os impulsos subjetivos que envolvem a ação humana, Schutz desenvolve a teoria da motivação, na qual a ação no mundo da vida é visto como um processo fundamentado em funções de motivação, tais como as razões e objetivos, orientados por antecipações na forma de planejamento e projeções. Desse modo, a ação humana é planejada a partir de um projeto que se objetiva realizar, cada indivíduo age, visando a alguma coisa. Compreende-se seu significado, por meio dos motivos da ação: os motivos porque e os motivos para. Os primeiros irão determinar o projeto conforme a disponibilidade de conhecimentos do agente da ação, contextualizando-a. Referem-se ao passado, pois podem ser observados a partir da ação já realizada. Os motivos para, a intencionalidade, podem ser apreendidos durante a ação em curso e referem-se ao projeto a ser realizado, o que se pretende ao realizar determinada ação, à finalidade13.
Nesta pesquisa, busca-se apreender o que as enfermeiras têm em vista ao cuidar as mulheres em situação de violência, ou seja, os motivos para da ação profissional. Salienta-se que essas profissionais, como representantes de um grupo social, encontram-se inseridas em um sistema de saberes herdados dos padrões culturais prontos, suas reservas de experiência. Dessa forma, agem conforme práticas e hábitos que constituem a herança social13 da profissão. Considera-se que o conhecimento acumulado pelas profissionais no curso de suas vidas tem como referência ações de cuidado clínico e ainda permeadas pelo modelo biomédico. Para tanto, uma das implicações deste estudo é refletir a partir desse modo de agir, a fim de traçar possibilidades de ampliação desse cuidado a essas pessoas.
Opta-se por esse referencial, pois este possibilita apreender o típico da ação, a representação da ação do grupo, aquilo que é comum para essas profissionais, que representa a essência12,13. Entende-se que para a enfermeira desenvolver ações de cuidado é necessário partir do contexto de necessidades dessas mulheres, considerando-as como um todo, contemplando sua singularidade e desconstruindo atitudes naturais em relação à violência vivida14. Assim, precisa entender, claramente, sua motivação pessoal e profissional para cuidar dessas mulheres. Nesse sentido, a abordagem da Fenomenologia Sociológica possibilita, nas diferentes situações de cuidado, agrupar características que permitem às pessoas reconhecê-las como tal, pelo fato de as terem vivenciado preliminarmente12.
MÉTODOS
Trata-se de uma pesquisa qualitativa de natureza fenomenológica14 que possibilitou a apreensão da intencionalidade da ação subjetiva da profissional enfermeira ao cuidar de mulheres em situação de violência, uma vez que permitiu pensar, fundamentar e desenvolver a ação de investigar e cuidar em Enfermagem, embasando-se nas relações sociais estabelecidas no mundo da vida. Esse referencial valoriza a dimensão intersubjetiva do cuidado, traduzindo como a mais originária das relações existentes entre os seres humanos12.
Os cenários foram serviços de saúde vinculados à rede pública e de referência para o atendimento dessas mulheres, no interior do estado do Rio Grande do Sul, a citar: Centro Obstétrico e Pronto Socorro de um Hospital de grande porte e o Pronto Atendimento Municipal. As participantes foram dez profissionais enfermeiras trabalhadoras desses serviços e a escolha dessas justifica-se, principalmente, pela necessidade de fortalecimento do saber nuclear dessa profissão para atuar nos casos de violência contra as mulheres. Foi estabelecido o seguinte critério de inclusão: ser enfermeira/o trabalhador/a desses locais e ter atendido pelo menos alguma vez uma mulher em situação de violência. O critério de exclusão foi estar em férias ou em afastamento do trabalho no período da produção das informações. A seleção das profissionais foi aleatória e o número de participantes não foi pré-determinado, visto que nos estudos fenomenológicos o número de entrevistas a serem realizadas é determinado pela suficiência de significados convergentes aos objetivos da pesquisa15, a qual foi possível na décima entrevista.
A entrada nos cenários de pesquisa para a produção das informações ocorreu após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE: 12224212.2.0000.5346). As considerações éticas foram cumpridas, conforme o disposto na Resolução Nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Mediante autorização dos serviços envolvidos e após a aproximação e ambientação nos cenários, em momento oportuno as profissionais foram convidadas pela pesquisadora a participar do estudo. Para captação das participantes, foi realizado contato prévio, a fim de que fossem agendadas data e hora para a realização das entrevistas. A elas foi apresentado e explicado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o qual foi assinado voluntariamente em duas vias após a compreensão e concordância da exposição das questões éticas. O anonimato das participantes foi garantido por meio da utilização da letra "E", inicial de enfermeira, seguida de um numeral (E1, E2, E3, E4...).
A produção das informações foi realizada durante os turnos da manhã e tarde, no período de janeiro a abril de 2013. Foi utilizada a entrevista fenomenológica que é considerada um encontro social, no qual são fundamentais a empatia e a intersubjetividade. Assim, exige do/a pesquisador/a descentrar-se de si, para direcionar-se à compreensão do sujeito e sua perspectiva sociofenomenológica. Não há prescrição de passos a seguir, pois se trata de um encontro de subjetividades16. As entrevistas foram realizadas em sala reservada disponibilizada por cada serviço, gravadas em gravador digital e o tempo de duração foi determinado por cada participante.
O roteiro da entrevista era composto de questões sobre as características dessas profissionais e se haviam atendido alguma vez mulheres em situação de violência, também eram questionadas sobre as ações de cuidado e era realizada a questão fenomenológica orientadora: o que você tem em vista quando cuida de mulheres em situação de violência?
A análise das informações seguiu os seguintes passos (Figura 1): o primeiro, a transcrição atentiva das entrevistas; após, foram realizadas leituras e releituras das mesmas, visando identificar as ações desenvolvidas pelas profissionais e captar os motivos para da ação das enfermeiras. Para captação dos motivos para, foi realizado um recorte das respostas alinhado à questão central do estudo. Identificadas as ideias comuns refletidas nesses recortes, cada entrevista foi lida e relida na íntegra para confirmar se essas ideias expressavam-se ao longo das falas. A leitura cuidadosa e análise crítica do conteúdo possibilitaram a identificação e a descrição dos processos sociais que foram categorizados para compreensão do fenômeno investigado. As categorias são denominadas concretas por constituírem sínteses objetivas dos diferentes significados da ação emergidas das experiências dos sujeitos12. Ao final, na análise de dados foram identificadas a relação das categorias entre si, obtendo-se, assim, ao típico da ação profissional. Os resultados foram interpretados, conforme os fundamentos da Fenomenologia Sociológica de Alfred Schutz e diálogo entre as evidências científicas relacionadas com temática estudada12.
RESULTADOS
A análise das informações permitiu organizar os resultados das experiências vividas pelas profissionais em duas categorias concretas, relativas à intencionalidade da ação das enfermeiras:
Esperam, inicialmente, a recuperação da saúde física, o bem-estar das mulheres e minimizar os agravos da violência
As enfermeiras, ao realizarem a ação de cuidar de mulheres em situação de violência na sua prática assistencial, têm em vista realizarem o cuidado inicial das lesões, do trauma; esperam o bem-estar clínico das mulheres, ou seja, a sua recuperação física. Demonstram sua intencionalidade no atendimento de saúde condicionado às questões biológicas dos ferimentos, do risco à vida. A assistência realizada é técnica, por vezes, protocolada no serviço, considerada normal, muitas vezes, restrita às questões biológicas. Num segundo momento, conversam e escutam as mulheres esperando seu bem-estar emocional.
A primeira coisa é verificar os sinais, daí começa a conversar com a pessoa, pergunto quais os principais sintomas [...]. O principal aqui é o bem-estar físico, mental, clínico e psicológico também, porque é muito bom tu conversar com as pessoas. (E1)
O cuidado inicial, a gente pensa é na parte física do sujeito, da mulher [...]. O início, como é característica da emergência, é tentar salvar a vida dela, o resto a gente vai trabalhando depois. (E7)
O cuidado é feito normal, é um cuidado que independe [...] quem tá cuidando dessa paciente pode nem saber que ela apanhou. Tem uma lesão [...] Atendemos o clínico e o restante não. [...] O que ela tá sentindo no momento, o que ela tem de clínica, dor ou lesão aberta que tenha que fazer curativos, cuidados de enfermagem. (E8)
As profissionais preocupam-se em reduzir as possíveis consequências e prevenir agravos decorrentes da violência sofrida, para que as mulheres se sintam mais seguras. Esperam, por meio de ações como a escuta e as orientações, poder contribuir para amenizar e tranquilizar a mulher frente à situação de violência. A escuta realizada pelo profissional revela-se como um momento de desabafo, em que a mulher pode aliviar-se. Por vezes, também esperam ajudar a mulher a entender que ela não é culpada pela violência que sofreu; proteger, apoiar, chamar alguém, um familiar para ajudar.
[...] [minimizar] o estresse, encaminhar os exames, orientar a pessoa. [...] até para ajudar a tranquilizar mais um pouco. (E1)
A gente espera que ela não tenha agravos além do que ela já sofreu [...] que apareça aí uma gestação indesejada, DST, AIDS, ou mais alguma consequência [...]. Esse é o objetivo, mas não é um objetivo meu. Isso é um protocolo que a gente segue. [...] Eu cumpro o que tá determinado. Eu sou duma geração que a gente faz o que tem que ser feito [...] Eu espero que ela se sinta um pouco mais segura, [...] que ela se sinta bem, mais tranquila em relação a tudo. (E3)
Eu fui [...] para ver se eu podia dar alguma ajuda, algum apoio naquele momento, tá chamando alguém, tá pedindo um familiar, porque eu tava achando ela muito sozinha [...] mas ela não me deu abertura nenhuma. (E5)
Têm expectativa de entender a situação, que as mulheres despertem sobre a violência e procurem ajuda para não voltarem com o mesmo problema
As profissionais manifestam a necessidade de conhecer a história e entender a situação de violência vivida, exatamente como essa aconteceu; saber da mulher a origem da lesão, da agressão, quem era o agressor. A intencionalidade é para fazer a quimioprofilaxia do HIV, as sorologias, o uso do anticoncepcional; para orientar, saber se ela tem consciência da agressão; para ajudar o restante da equipe a entender a situação e não julgar a mulher. Algumas apontam que é por curiosidade, por instinto, por ficar chocada com a situação.
A gente sempre faz um preconceito. [...] Mas por que ela apanhou? [...] Eu queria saber exatamente o que é que tinha acontecido. (E2)
Aqui a gente tenta buscar, como ocorreu, essas coisas, até porque a gente tem que ver se não vai precisar fazer quimioprofilaxia do HIV, do anticoncepcional, todas as sorologias, toda a coisa técnica da coisa, que tem que ser feito [...] uma coisa importante também da escuta é que ajuda a equipe que tá ao redor a não julgar. (E4)
A gente tenta conversar para saber a origem da lesão, da agressão, que a grande maioria delas nega que foi o companheiro que agrediu, ou o filho [...], porque muitas delas falam que elas caíram [...] para entender o que aconteceu, quem foi que agrediu, se ela tem consciência daquilo, porque muitas acham natural, normal (E7.)
Conversam com as mulheres e acompanhantes com a finalidade de que elas possam despertar, se dar conta de seus direitos, de se valorizarem como ser humano, que elas têm alternativas; que podem ficar livres do parceiro que agride e podem ter um trabalho. Esperam o fortalecimento da mulher para que elas não continuem naquela situação, para que busquem ajuda, e não retornem com o mesmo problema. Apontam a possibilidade da busca de ajuda em serviços de apoio, como a delegacia da mulher e outros serviços e profissionais. Para elas a violência é recorrente e nem sempre a mulher consegue sair da situação, reconhecem que os familiares precisam ajudar as mulheres e conversam sobre isso.
Quando a gente tá disponível, eu pergunto se ela vai denunciar [...] [a finalidade] é saber se ela, que nem eu digo "caiu a ficha", saber se ela tem intenção de cair fora dessa, de resolver o problema dela. [...] para chamar a atenção de que ela pode e que deve procurar um serviço de apoio. (E2)
[...] que ela se esperte um pouco, que elas olhem que existem outras coisas na vida. Que tu pode ter uma vida independente [...]. Eu procuro mostrar para ela que ela é uma pessoa, que tem direito de ser feliz [...]. A gente quer que elas despertem para isso, mas nem sempre. (E3)
A gente conversou bastante com ela, no sentido de ela procurar ajuda com algum familiar, com alguém. (E6)
Então, eu tento despertar isso, para que elas tenham visão assim dos seus direitos [...] converso com elas, da importância dela se valorizar como ser humano, como mulher, de não deixar acontecer isso de continuar depois de novo com aquela pessoa, recebendo agressões. [E7]
As enfermeiras apontam a necessidade de realizarem encaminhamentos a outros profissionais como: psicólogo, assistente social e agente de saúde. Também a outros serviços como Centro de Referência Especializada em Assistência Social (CREAS), Casa de Passagem e Centro Obstétrico, para os casos de violência sexual. Algumas procuram o não envolvimento com a situação, por considerar que esse seria um trabalho para um profissional especialista, médico, psicólogo ou assistente social. A intencionalidade dessas ações é que as mulheres busquem atendimento, que os serviços proporcionem suporte, acolham essas mulheres e nos casos de violência sexual façam a coleta do sêmen.
Ela veio já com a notificação policial, daí ela veio para exame, por agressão sexual [...] E daí o quê que a gente faz? A gente encaminha pro psicólogo. (E1)
[sobre o encaminhamento] A primeira coisa do serviço, que faça o acolhimento em relação ao que eles têm que atender. [...] Eu pretendo com os encaminhamentos é dar suporte para ela nas outras instâncias. (E4)
[sobre a conversa com os familiares] Que os familiares possam ajudar também, que possam ver [...]. (E7)
A parte psicológica, eu não cheguei a me envolver. Esse tratamento eu acho que não era comigo. Tipo assim, o que aconteceu, orientar sobre a denúncia [...] deixar mais pro lado de quem realmente tem que fazer o trabalho, a assistente social ou psicólogo, quem é especialista nisso, um médico. (E9)
[...] O fortalecimento dessa paciente [...] que abrisse os olhos dessa mulher. (E10)
DISCUSSÃO
As profissionais, ao desenvolverem os cuidados, agem conscientemente, uma vez que antes de agirem tem uma representação na mente daquilo que irão fazer, em um projeto preconcebido14, com o cuidado físico esperam a recuperação da saúde. A intencionalidade insere-se no contexto do mundo da vida cotidiana dessas profissionais, cenário onde o ser humano vive, um mundo organizado e determinado socioculturalmente. Toda interpretação sobre esse mundo é baseada num estoque de experiências prévias, nossas próprias experiências e aquelas transmitidas sob a forma de um conhecimento à disposição, operam como um sistema de referência13. Para essas profissionais as atitudes estão pautadas em uma concepção de saúde-doença que visa, especialmente, à recuperação da saúde física das pessoas e, nas relações objetivadas.
A referência das ações de cuidar desse mundo está embasada em ações como gerenciar exames, realizar curativos, administrar medicações, realizar mudança de decúbito, cuidados com sondas, com a dor, tentar salvar a vida da pessoa, ou seja, cuidados com o corpo das mulheres e também orientar aos familiares. Declaram "atender o clínico e o restante não", por entenderem que a saúde mental possa ser de responsabilidade de outro profissional. Apresentam uma conduta prevista, padronizada no seu curso de ação, dentro do seu típico papel social13 de ser enfermeira, portanto, agem nesse mundo de cuidados clínicos, ancoradas em sua atitude natural13. Nesse tipo de atitude, nos opomos à reflexão, uma vez que estamos totalmente orientados para a finalidade, objeto da ação e não estamos conscientes de nós mesmos17.
As enfermeiras encontram-se inseridas num mundo que já existia antes delas, realizam o cuidado a partir do que é prescrito, do que está posto na instituição. Consideram o cuidado normal, estabelecido culturalmente. Quando existem protocolos cumprem o que está definido, fazem o que tem que fazer. As coisas que não são questionadas são consideradas como "dadas e dadas aparecem a mim tal como eu ou outros em que confio as experienciaram e interpretaram"13:124. São as coisas tidas como evidentes. No entanto, o que hoje é considerado evidente pode vir a ser questionado amanhã, se formos induzidos a mudar o foco de nosso interesse13.
Assim, o cuidado às mulheres em situação de violência é, muitas vezes, permeado pela valorização do saber técnico. Esse achado converge com outros estudos da Área da Saúde nos quais os profissionais limitam-se a tratar as lesões físicas7,9. O que justificam por não se sentirem capazes de prestar um cuidado integral às mulheres em situação de violência11. Destaca-se a necessidade de compreender a violência para além do aspecto biológico, das lesões. Para tanto, os profissionais devem atuar como agentes de promoção da saúde, constituintes de uma rede de serviços que buscam enfrentar as sequelas e erradicar a cultura de violência14.
O contexto da violência vivida pelas mulheres quase não é abordado, a não ser que elas declarem a situação, o que, muitas vezes, não ocorre. Resultado que está em conformidade com outros estudos, já que a VCM apresenta-se como uma situação velada e invisibilizada nos serviços de saúde7-9.
Nesse momento, quase não existe relação de familiaridade das mulheres com as enfermeiras, sob a forma de nós. Experienciamos o mundo da vida segundo graus de familiaridade e de anonimato. A relação de familiaridade é vivida sob a forma de relação-do-Nós, na qual um está consciente em relação ao outro e participam um da vida do outro, permitindo a apreensão do outro como único em sua individualidade13. No entanto, quando nos afastamos da unicidade e individualidade dos nossos semelhantes, poucos aspectos são considerados relevantes para o problema que se deseja tratar ou resolver, configurando-se como uma relação anônima.
As profissionais também projetam em suas ações a possibilidade de minimizar os danos da violência, confortar, ajudar as mulheres; prevenir o aparecimento de gestação indesejada e DSTs. Por vezes, essa ação é protocolar conforme o que está determinado na instituição, assim, referem cumprir o que está posto como rotina. Inseridas no seu grupo social, desenvolvem o papel social de ser enfermeira, com base no que é padronizado para a profissão. Seguem o sistema de conhecimento adquirido, onde os membros do grupo social aceitam o esquema dos padrões culturais prontos transmitidos por seus antecessores. Chama-se a essa atitude, pensar como de costume. Agem, conforme os costumes do grupo, naturalizados, constituem a herança social, dispensam explicações ou questionamentos13.
A ação de cuidar desvelou-se tipificada, pautada no conhecimento acumulado pelas profissionais no curso de suas vidas, embasada nas suas experiências construídas historicamente e na sua formação profissional. Essa tipificação13 integra um modo típico do papel social de ser enfermeira que ainda é construído e transmitido socialmente como um cuidado biológico, alicerçado no modelo biomédico vigente, pautado na cura da doença e da assistência às situações de adoecimento. O mundo é experimentado e interpretado em função de tipos que podem ser objetos culturais, a exemplo uma seringa ou um estetoscópio, ou ainda papéis e relações sociais típicas. As tipificações emergem na experiência cotidiana do mundo como algo evidente13:133.
Conversam e escutam as mulheres, por vezes, se colocam na situação de indignação (uma vez que essa é uma ordem diferente da sua realidade). Diante do choque, alteram sua tensão de consciência, mudando o foco buscam proporcionar o alívio. Nesse momento, demonstram romper com sua atitude natural, no mundo da vida cotidiana para a partir das experiências dessas mulheres ressignificarem esse atendimento13. Expressam a necessidade de aproximar-se da mulher, se essa se mostrar aberta para falar sobre a violência. Querem oferecer proteção e revelam ajudar com a finalidade da mulher entender que ela não é culpada pela violência. Têm como expectativa o bem-estar emocional e psicológico. Quando essa interação acontece há uma situação face a face, que é uma experiência direta entre pessoas, um encontro social comunicativo em que se compartilha tempo e espaço13,17. Esse tipo de relação configura-se como uma possibilidade de cuidado de enfermagem para essas mulheres, visto que sua vivência passa a ser visualizada pela profissional em suas dimensões subjetivas. Assim, o cuidado é ampliado para além do bem-estar físico.
As profissionais, por vezes, tentam compreender a situação de violência a partir das suas próprias experiências em serem mulheres, ancoradas nos papéis sociais tradicionais do que é ser mulher e ser homem. Tentam se colocar no lugar das mulheres e acreditam que suas pré-concepções não influenciem no trabalho desenvolvido. Toda a compreensão sempre se volta para aquilo que tem significado e somente algo compreendido é que é dotado de significado13. Demonstram querer entender o contexto para poder direcionar as ações de cuidado individual e também para compartilhar com a equipe plantonista o entendimento de que a violência contra as mulheres tem origem na cultura machista, onde o homem se impõe; e, assim, reduzir a possibilidade de julgamento pela equipe.
Com o objetivo de fortalecer as mulheres a fim de que a violência não se repita mais, que consigam sair do ambiente violento e que se evitem os possíveis agravos, como a morte das mulheres, as enfermeiras conversam a respeito das possibilidades que elas têm como o trabalho, a busca por instâncias judiciais, a delegacia da mulher, o apoio da família e sobre o direito de não sofrer a violência, de serem felizes. Nesse momento, compreendem o contexto do mundo da vida dessas mulheres, as compreendem como seres humanos dotados de direitos, em especial a viver uma vida sem violência. Orientam suas ações a partir do entendimento que para as mulheres saírem da situação precisam tomar consciência do problema. Essa relação de sintonia entre as profissionais e as mulheres é chamada de situação-face-a-face e é orientada-pelo-Tu, uma vez que estão conscientes do outro ser humano, as mulheres, como pessoas que têm vida e consciência13. No entanto, nesses momentos as enfermeiras, pautadas nas experiências do seu mundo da vida, revelam não compreender os motivos das mulheres permanecerem na situação e voltarem ao serviço de saúde com o mesmo problema.
Quando interagem com perguntas sobre a realização da denúncia e a busca por ajuda, pautam-se em seu estoque de conhecimentos, alicerçado em objetos culturais que podem remeter a modos convencionais de fazer as coisas13. Acreditam que o melhor para a mulher, naquele momento, é realizar a denúncia ou buscar ajuda com um familiar. Assim, pautam suas orientações fazendo inferências com base nas suas experiências prévias13 sobre as relações familiares das mulheres, bem como o comportamento que elas deveriam ter frente à situação. No entanto, acabam não contextualizando o mundo da vida de cada mulher. Nesse momento, não há reciprocidade de perspectivas13, já que esta contemplaria a apreensão de objetos e seus aspectos conhecidos e evidentes para ambos, profissionais e mulheres em situação de violência.
Destaca-se que nem sempre a denúncia é desejada pelas mulheres. Precisa ser considerado o fato de que para algumas, a participação do parceiro no sustento da família e na criação dos filhos, bem como o medo de iniciar uma nova vida, dentre outros fatores, podem fazer com que pensem na possibilidade de sair da situação de violência sem, absolutamente, romper com o parceiro. Assim, a superação da situação de violência não necessariamente acontece pela separação do casal. É importante que as mulheres recebam apoio por meio dos quais possam compreender os mecanismos envolvidos na violência, a fim de construírem estratégias para enfrentá-la no cotidiano e adquirirem maior controle sobre sua vida18. Essas antecipações se estruturam no estoque de conhecimentos que essas mulheres têm à disposição. Assim, projetam suas ações com base nos seus atos previamente realizados que são tipicamente similares, tipicalidade, ao que está sendo projetado. Ao projetar é necessário visualizar o estado de coisas a ser realizado pela ação futura antes que se possa traçar o passo a passo dessa ação13.
As profissionais demonstram perceber que nem sempre as intervenções trazem resultados positivos e também a necessidade de encaminhá-la a outros locais. No entanto, para as mulheres dirigir-se a vários locais, é terem que contar e recontar suas histórias, sofrer procedimentos desnecessários ou duplicadamente. Esse é um ponto crítico do percurso percorrido pelas mulheres na sua tentativa de livrar-se da violência, situação bastante debatida e criticada pelos movimentos de mulheres11.
A necessidade de encaminhar para o outro profissional e possíveis serviços que atendam essas mulheres, reflete que esperam o apoio, o suporte, a continuidade do cuidado, a fim de que as mulheres possam construir uma perspectiva de vida sem violência. Em conformidade com outro estudo, entende-se a psicologização da violência e a desvalorização do caráter social do processo saúde e doença. Dessa forma, a finalidade do atendimento em saúde continua sendo a cura da doença e quando não existem lesões físicas relaciona-se o problema ao sofrimento mental, fugindo das atribuições profissionais7.
Igualmente, reconhecem a necessidade do cuidado multiprofissional e articulado com outros serviços e têm expectativas que exista uma rede. Quanto aos serviços já existentes referem dificuldade no acompanhamento e implementação da comunicação entre os serviços. No entanto, há necessidade de maior mobilização para que exista esse encaminhamento, ou transferência de cuidados. Essa ação está projetada em pensamento, permanecendo como um devaneio13, ou seja, isso vai de encontro à Política Nacional de Enfrentamento1 e às demais políticas públicas dirigidas à saúde das mulheres e superação das desigualdades de gênero, uma vez que rompe com a possibilidade de articulação em rede.
Esse resultado converge com estudo realizado sobre as rotas críticas das mulheres na busca por ajuda, neste, mulheres, profissionais e coordenadores de serviços apontam a rede como fragmentada e distante da realidade vivida por elas. Estas apontaram como limitadores a dificuldade de compreender as orientações e processos, a fragmentação e a ausência de um centro em que recebessem atenção integral. No entanto, alguns profissionais relatam a vontade de transformar as formas de intervenção, com vistas a criar mecanismos de aproximação de atores e organização de fluxos11. A aproximação de atores remete a uma relação social em que os significados determinarão a direção das ações, no estudo em tela, a formação de rede de atenção.
Foi possível apreender que as enfermeiras quando conversam e orientam as mulheres projetam que estas possam migrar da atitude natural, não reflexiva, à atitude reflexiva, a fim de fortalecer as mulheres para que a violência não se repita mais. Embora, por vezes, imersas na sua situação biográfica e bagagem de conhecimentos, apresentem dificuldades em compreender que a violência contra as mulheres integra um ciclo complexo e multidimensional difícil de ser rompido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apreender o significado da ação profissional de enfermeiras, ao vivenciarem o cuidado de mulheres em situação de violência, possibilitou ampliar o olhar para a forma como o cuidado é desenvolvido em serviços de urgência e emergência bem como sobre a organização do processo de cuidar das usuárias. A intencionalidade inicial, a recuperação da saúde física e o bem-estar das mulheres, desvelou-se como modo típico de ser enfermeira em um serviço de urgência e emergência. Apontando para a necessidade de se ampliar o foco do cuidado para o sujeito em sua situação singular, para além do seu corpo. Reforçando a premência de se englobar às ações de cuidado outros determinantes que compõem o mundo da vida dessas mulheres, tais como, suas relações sociais, dimensão intersubjetiva, com o companheiro, com os filhos, familiares, vizinhos, mesmo na fragilidade dessas relações. Questões essas permeadas por papéis tradicionais de gênero, relativas ao trabalho e à renda, à moradia e articulação com outros serviços com os quais as mulheres podem contar na tentativa de minimizarem os danos da violência vivida ou romperem com a situação.
As enfermeiras demonstraram o quanto o processo de trabalho em um setor de pronto atendimento ou no centro obstétrico é focado nas manifestações da doença. Entende-se que estes são desafios a serem superados na própria organização do serviço com vistas a romper com a fragmentação do cuidado, superlotação, consequente sobrecarga dos profissionais é frágil, ou inexistente, articulação com os demais serviços da rede de atenção.
Para acolher essas pessoas, é imprescindível que as enfermeiras se coloquem numa postura de estar com, numa relação intersubjetiva com as mulheres, compartilhando o mesmo tempo e espaço, onde compreendem suas necessidades de cuidado e se comprometem com elas. Isso exige que as profissionais compartilhem responsabilidades com mulheres, familiares e com outros profissionais, a fim de refletirem juntos sobre as possibilidades de enfrentamento à violência nos diferentes "nós" da rede de atenção. Assim, numa relação de reciprocidade de perspectivas, para que o cuidado de enfermagem seja contextualizado no mundo da vida dessas mulheres, e tenha em vista suas necessidades assistenciais, há necessidade de horizontalizar esse cuidado, de modo a articular com outros profissionais e serviços. A fim de contemplar a translação do conhecimento com a prática clínica, é imprescindível que as enfermeiras lancem mão da comunicação e do seu papel social na equipe de saúde, o qual, muitas vezes, consiste em organizar processos de trabalho e acolher as demandas singulares de cuidado das mulheres. Recomenda-se o fomento de ações que visem desconstruir as atitudes naturais, não reflexivas dos profissionais em relação à situação das mulheres, bem como implementar uma cultura institucional a fim de visibilizar as situações de violência.
Por outro lado, quando as enfermeiras escutam, conversam e orientam, compartilham do mesmo tempo e espaço com as mulheres. Compreendem o contexto do mundo da vida dessas mulheres, as compreendem como seres humanos dotados de direitos, em especial, a viver uma vida sem violência. Orientam suas ações a partir do entendimento que para as mulheres saírem da situação precisam tomar consciência do problema.
Os motivos que levam as enfermeiras a agir/cuidar configuram-se como possibilidades de se reinventar o cotidiano de cuidado às mulheres em situação de violência. Esses apontamentos exigem das enfermeiras o reconhecimento da sua subjetividade no cuidado, que se empoderarem como mulheres a fim de se colocarem numa relação intersubjetiva com essas pessoas, em que o diálogo seja uma construção permanente. Conhecer o mundo da vida dessas profissionais e sua ação de cuidar, ainda ancorada no modelo biomédico, apontou a premência de que na formação na Área da Saúde se desenvolvam habilidades como a escuta, o acolhimento, a comunicação para lidar com a subjetividade do outro. Implicar-se com as situações de adoecimento que extrapolam as lesões.
Este estudo apresenta algumas limitações características de estudos qualitativos, como ser delimitado no cenário hospitalar e pronto atendimento. No entanto, sua contribuição está no aprofundamento do tema estudado e na compreensão do significado da ação dessas profissionais, o que justifica a importância da análise utilizada.
Agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES; bolsa de Mestrado).
REFERÊNCIAS
* Cortes LF. Intencionalidade da ação da enfermeira ao cuidar de mulheres em situação de violência [dissertação]. Santa Maria (RS): Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Maria; 2014.