Volume 20, Número 3, Set/Nov - 2016
PESQUISA
O conteúdo da saúde do trabalhador e as metodologias de ensino na
formação do enfermeiro*
Marcela Costa Fernandes
1
Norma Valéria Dantas de Oliveira Souza
1
Iraneide Ferreira Mafra
1
Camila Arantes Ferreira Brecht D' Oliveira
1
Ariane da Silva Pires
1
Carolina Cabral Pereira da Costa
2
1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro (RJ). Brasil
2 Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro e Centro Universitário Celso Lisboa.
Rio de Janeiro (RJ). Brasil
Recebido em 22/02/2016
Aprovado em 28/04/2016
Autor correspondente:
Ariane da Silva Pires
E-mail:
arianepires@oi.com.br
RESUMO
OBJETIVOS:
Identificar os conteúdos desenvolvidos no curso de graduação em enfermagem,
de uma universidade pública, referentes ao campo da Saúde do Trabalhador; e
descrever as metodologias de ensino utilizadas pelos docentes de enfermagem
para o desenvolvimento dos conteúdos referentes a esse campo.
MÉTODOS:
Estudo qualitativo, descritivo e exploratório, realizado com 12 docentes. Os
instrumentos de coleta foram a entrevista semiestruturada e o formulário
para coleta de dados documentais. Os dados, cuja coleta ocorreu entre maio e
julho de 2012, foram examinados por meio da análise temática.
RESULTADOS:
Evidenciou-se que o currículo do curso de enfermagem prevê, para a formação
do enfermeiro, os conteúdos essenciais ao campo da Saúde do Trabalhador.
CONCLUSÕES:
Sugere-se que o corpo docente integre os conteúdos da Saúde do Trabalhador
com as distintas áreas do conhecimento da enfermagem e enfatize a
articulação entre teoria e prática.
Palavras-chave: Saúde do Trabalhador; Bacharelado em Enfermagem; Currículo.
INTRODUÇÃO
Este estudo tem como objeto o conteúdo de ensino relacionado ao campo da Saúde do Trabalhador e sua abordagem no curso de graduação em enfermagem de uma universidade pública.
Inúmeras foram as motivações que originaram esta pesquisa, dentre as quais se destaca a experiência de cursar a graduação em enfermagem em uma instituição pública, onde o currículo era composto por subáreas de conhecimento, entendidas como um conjunto de disciplinas articuladas e integradas, em 11 dessas subáreas existiam em seus títulos e nas ementas os termos: "Trabalho" e/ou "Mundo do Trabalho". A menção a esses dois termos caracterizava a necessidade e a relevância em desenvolver conteúdos de ensino que fundamentassem as ações dos futuros enfermeiros em relação ao conhecimento sobre o cuidado direcionado a si e aos profissionais da equipe de enfermagem/saúde; e sobre o cuidado integral aos indivíduos/pacientes, considerando a inserção no trabalho.
Acrescenta-se, ainda, a participação no internato de enfermagem, que corresponde aos dois últimos períodos do curso - caracterizados por uma vivência prática e diária dos graduandos nos serviços de saúde e Enfermagem -, momento onde se intensificaram essas inquietações e motivações devido à imersão cotidiana no trabalho em saúde, pois, a partir de tal vivência, percebeu-se que o trabalho em enfermagem possui uma multiplicidade de riscos ocupacionais que precisam ser aprofundados na graduação, a fim de preservar e proteger a saúde dos trabalhadores.
Nesse contexto, foi elaborado como problema de pesquisa o seguinte questionamento: como se caracteriza a abordagem dos conteúdos de ensino sobre o campo de Saúde do Trabalhador no curso de graduação de enfermagem de uma universidade pública, na percepção dos docentes de enfermagem?
Assim, foram propostos os seguintes objetivos: identificar os conteúdos desenvolvidos no curso de graduação em enfermagem de uma universidade pública, referentes ao campo da Saúde do Trabalhador e descrever as metodologias de ensino utilizadas pelos docentes de enfermagem para o desenvolvimento dos conteúdos referentes ao campo da Saúde do Trabalhador.
O estado da arte acerca da produção científica, envolvendo o presente objeto ocorreu por meio de uma pesquisa bibliográfica no site da Biblioteca Virtual de Saúde, especificamente na LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências de Saúde), MedLine (Sistema On-line de Busca e Análise de Literatura Médica de literatura Médica), IBECS (Índice Bibliográfico Espanhol de Ciências da Saúde), Biblioteca Cochrane, SciELO (Scientific Electronic Library Online) e nos organismos internacionais PAHO (Pan American Health Organization) e WHOLIS (World Health Organization Library Information System). A busca, feita para pesquisas em português, inglês e espanhol, resultou na captação de 34 artigos científicos.
Assim, verificou-se que o quantitativo de produções ainda é incipiente. Nesse sentido, o objeto proposto pode trazer contribuições para o ensino de enfermagem e para o campo da Saúde do Trabalhador, e fortalecer as pesquisas na área do Trabalho e da Formação.
REVISÃO DE LITERATURA
O trabalho pode ser entendido como produtor de valores de uso, expressão de uma relação metabólica entre o ser social e a natureza, podendo ser visto como fonte de realização, pois favorece a socialização e a busca pela autorrealização, além de garantir a subsistência. Entretanto, o trabalho não representa sempre a satisfação pessoal e a valorização do ser humano, embora se destaque como forma de satisfazer as necessidades materiais básicas1. Sendo assim, é necessário compreender os aspectos que permeiam o mundo do trabalho, o ambiente em que ele acontece, a configuração da organização e do processo laboral.
A relação do homem com o trabalho é a origem da carga psíquica do trabalho. Uma organização laboral autoritária conduz a um aumento da carga psíquica, pois esse tipo de organização, em que não há diálogo, tolhe a capacidade criativa do trabalhador, gerando sensação de desprazer, tensão e sofrimento2.
A satisfação no trabalho depende do que a organização oferece ao trabalhador, acrescido do que cada pessoa deseja para si, na organização e no atendimento de suas necessidades, seguindo um parâmetro considerado exequível nos aspectos econômicos, sociais, físicos e mentais3.
O modelo de produção capitalista busca maior lucro, produtividade e competitividade, o que faz com que as cargas para o trabalhador tenham uma maior dimensão. O impacto das cargas de trabalho e o desgaste causado pelas mesmas gera alteração no processo saúde-doença. Dessa forma, o processo de produção, de maneira global, é o que possibilita compreender como as cargas de trabalho e o desgaste atuam sobre a vida dos trabalhadores3.
A organização do trabalho e as condições de trabalho da enfermagem podem se configurar de modo a afetar negativamente a saúde de quem nela trabalha4. Na enfermagem, a forma como o trabalho se processa não favorece a reflexão do trabalhador sobre suas atividades laborais, seus sentimentos, suas relações no trabalho, gerando assim, um desgaste nesse trabalhador, e também o imobilizando nas tentativas de modificação de tal realidade4.
O volume de trabalho é elevadíssimo, aumentando o ritmo laboral e exaurindo a energia psicossomática do trabalhador, ao ponto de fazê-lo executar as atividades sem refletir sobre a forma como as desenvolve e como as percebe, bem como tais atividades afetam sua vida e sua saúde. Ademais, verifica-se que os currículos na área de saúde estimulam pouca ou nada a prática de reflexão crítica sobre as problemáticas que envolvem o viver em sociedade e a centralidade do trabalho na vida das pessoas. Assim, constata-se, igualmente, a dificuldade para refletir e transformar a realidade hostil do mundo do trabalho4.
Dessa forma, é muito importante que os futuros enfermeiros discutam sobre as características da organização e do processo de trabalho e sobre a sua correlação com a saúde e doença. Desse modo, criam-se condições psicocognitivas para que possam reconhecer sua atividade laboral como um possível agente causal nos agravos à saúde, atentando, principalmente, para os riscos ocupacionais aos quais possam estar susceptíveis, e também para o cuidado integral às pessoas5.
Para que o trabalho de enfermagem se torne mais bem estruturado e mais saudável, são necessárias algumas mudanças, como por exemplo: condições laborais compatíveis com o trabalho a ser realizado; infraestrutura adequada de recursos materiais e humanos; implementação de modelos de gestão mais democráticos; e inserção de conteúdos de Saúde do Trabalhador na formação dos trabalhadores de saude5,6.
De acordo com o Artigo 3º das Diretrizes Curriculares Nacionais, o curso de graduação em enfermagem, de uma forma geral, deve apresentar como perfil a formação generalista, humanista, crítica e reflexiva7. Assim sendo, pode-se desenvolver um olhar ampliado acerca da formação do enfermeiro sobre o trabalhador, sobre o ambiente de trabalho e sobre a relação que esses elementos mantêm com o processo saúde-doença6.
Nesse sentido, nos currículos da graduação em enfermagem, devem ser contemplados conteúdos referentes ao mundo do trabalho e à Saúde do Trabalhador, que devem subsidiar o desenvolvimento de cuidados que visem à promoção e a proteção à saúde. Por intermédio dessa formação, pretende-se que os enfermeiros conheçam os riscos ocupacionais a que estão expostos e, assim, adotem condutas que visem o autocuidado e a neutralização e/ou minimização dos efeitos dos riscos ocupacionais no processo saúde-doença, acarretando em uma melhor assistência de saúde à população5.
Os cursos de graduação devem desenvolver, junto aos discentes, a inter-relação entre, de um lado, saúde e trabalho e, de outro, as implicações positivas e negativas dessa relação para o processo saúde-doença dos trabalhadores. Com isso, os futuros enfermeiros terão maiores condições tanto de direcionarem suas práticas de cuidado para si e para sua equipe, quanto de promoverem ações de cuidado aos usuários, com o conhecimento e reconhecimento da influência das atividades laborais no processo saúde-doença8.
Nesse contexto em que se problematiza a abordagem de conteúdos referentes ao campo de Saúde do Trabalhador na graduação de enfermagem, há necessidade de sensibilizar as instituições de ensino superior e os docentes de enfermagem para um maior investimento na abordagem desse tema junto ao corpo discente, devido à importância do mesmo para a formação do enfermeiro9.
A Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador estabelece a restauração da formação em Saúde do Trabalhador e em Segurança do Trabalho, e a estratégia para realizar tal projeto seria o estabelecimento de referências curriculares para a formação desses profissionais. Além disso, preconiza a inclusão de disciplinas de Saúde e Segurança no Trabalho no currículo de ensino superior, aqui, com destaque, o de enfermagem10.
MÉTODOS
Esta pesquisa é de natureza qualitativa, descritiva e exploratória e o cenário foi um curso de Enfermagem de uma Universidade Pública situada no Município do Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Essa Faculdade, que existe há 68 anos, desenvolve o curso de graduação e, também, de pós-graduação lato sensu, nos moldes de residência e especialização, como também possui cursos de stricto sensu para formação de mestre e doutores em enfermagem.
Em 1996, a referida Faculdade implantou um novo Projeto Político Pedagógico, que adotou o paradigma da Teoria Crítica da Educação, fundamentada na Metodologia Pedagógica da Problematização11.
O curso de enfermagem, na instituição em estudo, é desenvolvido em nove períodos, perfazendo uma carga horária de 5.850 horas. O regime do curso é de seriado flexível e seu currículo pleno é estruturado segundo um código de integração, construído coletivamente pelos docentes em efetivo exercício pedagógico no curso12.
Os participantes do estudo foram docentes efetivos que ministravam aulas na Área Assistencial e Fundamental do currículo do curso de graduação da Faculdade, especificamente em 11 subáreas, cujas denominações aludem ao desenvolvimento de conteúdos sobre Saúde do Trabalhador, a saber, nas Subáreas: Assistencial I - Saúde, Trabalho e Meio Ambiente 1, 2, 3, 4 e Estágio supervisionado; Assistencial III - Saúde do Adolescente, do Adulto, do Idoso e o Mundo do Trabalho 1, 2, 3, 4, Estágio Supervisionado 5 e Estágio Supervisionado 6; e na Área Fundamental, nas subáreas: III-C - Política de Saúde 1 e 2.
Os critérios de inclusão dos participantes foram: ser efetivo; atuar nas Subáreas mencionadas; desenvolver a docência na Subárea há pelo menos dois anos e disponibilizar tempo para fornecer as informações. Isso porque se considera que os professores efetivos e com atuação mínima de dois anos têm maiores possibilidades de responder com propriedade aos questionamentos realizados, quando comparados aos docentes contratados ou efetivos com tempo inferior a dois anos de atuação na Subárea.
Os critérios de exclusão foram os seguintes: docentes contratados; docentes efetivos com tempo inferior a dois anos de atuação na Subárea; existência de qualquer vínculo com a pesquisa realizada. A partir da aplicação desses critérios, foram selecionados 12 docentes.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da referida instituição, recebendo o protocolo de nº 06/2012 e foram garantidos os preceitos éticos. Assim, os docentes que aceitaram participar foram informados da garantia do anonimato e solicitados a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A fase de coleta de dados aconteceu entre maio e julho de 2012.
Os dados foram coletados por meio de dois instrumentos: a entrevista semiestruturada, objetivando identificar os conteúdos de ensino relacionados ao campo de Saúde do Trabalhador; e análise de documentos curriculares da Faculdade de Enfermagem, especificamente, os planejamentos de ensino, as ementas e o fluxograma do currículo da graduação, por meio de um formulário.
As entrevistas foram interpretadas à luz da técnica de análise temática de conteúdo13. Além disso, foram examinadas as ementas das 11 subáreas que desenvolvem conteúdo sobre Saúde do Trabalhador, no sentido de complementar os dados e aprofundar a discussão.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A subárea desenvolvida no primeiro período acadêmico, cuja denominação contempla os termos: Saúde, Trabalho e Meio Ambiente, apresenta como objetivo geral a compreensão do processo gerador saúde-doença, relacionando-o às condições de vida da população e ao seu desenvolvimento social, político, econômico, histórico e cultural.
O conteúdo programático descrito na ementa dessa subárea prevê articulação entre processo saúde-doença e trabalho. A ementa propõe ainda a construção de informação epidemiológica na compreensão da relação saúde e trabalho. A fala do docente que ministra aula, nessa subárea, ratifica os dados constantes na ementa e elucida os conteúdos que são abordados:
Na área assistência, é trabalhada a saúde de grupos humanos, o meio ambiente e o mundo do trabalho. Sempre relacionando à saúde com o trabalho [...]. O primeiro período busca com que os alunos compreendam a relação entre saúde, meio ambiente e trabalho, trazendo o conceito de saúde. E aí o conteúdo de Saúde do Trabalhador é dado desta forma: entender o processo de trabalho e a inserção do indivíduo no processo de trabalho tem uma ligação direta com a sua saúde. São discutidos os riscos ambientais, os riscos físicos, químicos, biológicos, os riscos que o ambiente de trabalho pode trazer. (D12)
No segundo período acadêmico do curso de graduação, duas subáreas desenvolvem conteúdos relacionados ao campo de Saúde do Trabalhador: subárea I - Saúde, Trabalho e Meio Ambiente 2 - e a subárea III-C - Política de Saúde 1.
O objetivo geral da primeira é fazer com que o estudante compreenda o processo gerador de saúde e doença, com ênfase nas ações que atuam no rompimento da cadeia epidemiológica das doenças transmissíveis correlacionando os conteúdos programáticos à saúde do trabalhador. A fala, a seguir, corrobora a abordagem e correlação com a temática.
Em relação ao segundo período, a gente discute, inclusive, conteúdos de vacinação, caderneta vacinal do adulto, ampliando a visão do aluno de que o adulto também é trabalhador. Então, se insere este olhar, do adulto enquanto trabalhador e as doenças que podem ser preveníveis pela vacinação. (D5)
No âmbito dos conhecimentos relacionados à vacinação do trabalhador, recomenda-se que estudantes de graduação de enfermagem e que enfermeiros sejam capacitados e incentivados a conhecerem seu nível imunitário relativo às infecções que fazem parte do seu cotidiano. Além disso, reforça-se que o trabalhador de enfermagem deve proteger-se contra as inúmeras doenças, pois está mais exposto do que a população em geral, apresentando, assim, risco aumentado de adquirir infecções imunologicamente preveníveis, como caxumba, gripe, rubéola, sarampo, tuberculose, hepatites5.
A subárea III-C - Política de Saúde 1 - objetiva que o estudante desenvolva análise crítica sobre assistência à saúde e sobre organização dos serviços baseados nos pressupostos do Sistema Único de Saúde (SUS). Não há, na ementa dessa Subárea, descrição específica sobre o campo da Saúde do Trabalhador; porém, de acordo com seus objetivos gerais, os mesmos sugerem uma abordagem de Políticas de Saúde do Trabalhador.
Apesar dos conteúdos das ementas da Subárea se mostrarem incipientes, o relato do docente, que ministra aulas nessa subárea, confirma o desenvolvimento de conteúdos sobre as Políticas de Saúde do Trabalhador. A partir da fala do docente, pode-se evidenciar essa situação:
A gente trabalha a Política Nacional de Saúde do Trabalhador, a Rede Nacional de Saúde do Trabalhador, a RENAST, com os alunos da disciplina de Política de Saúde, no terceiro período. Trabalho como é que se organizam, quais são os focos principais da política de Saúde do Trabalhador. Isto não está explícito na ementa, no entanto é uma meta da comissão de currículo rever e atualizar as ementas com base nas novas configurações de saúde (D9).
A organização da atenção à saúde da população reflete o acúmulo técnico-científico e a correlação das forças sociais que se expressam em uma dada política de saúde. No campo da Saúde do Trabalhador, torna-se relevante o conhecimento do enfermeiro acerca tanto do "modelo" da atenção à saúde dos trabalhadores no SUS, adotado na construção da Rede de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST) nos serviços de saúde, quanto da Política Nacional de Saúde do Trabalhador (PNST)14.
O terceiro período, na subárea I - Saúde, Trabalho e Meio Ambiente 3 -, com base no discurso do docente, que ministra as aulas, são abordados aspectos de biossegurança, com destaque para os riscos ocupacionais e medidas de prevenção e controle, a fim de que os discentes, quando profissionais, possam optar por condutas/comportamentos que afastem a possibilidade de adoecimento por conta do trabalho.
Então, nós trabalhamos o que ele precisa fazer como profissional para se proteger de toda e qualquer doença no primeiro momento, como: os riscos ocupacionais e os equipamentos de proteção individual, como também condutas seguras frente ao cuidado com o paciente [...] Constroem-se conhecimentos acerca do que é necessário para que esse profissional se proteja e evite o adoecimento (D4).
No processo laborativo dos enfermeiros, para a realização de variadas atividades no atendimento aos clientes, muitas vezes, são necessários deslocamentos entre os setores para a busca de materiais e medicamentos, e até para a mudança do cliente de um leito para outro, ou da cadeira para o leito e vice-versa. Tais atividades oferecem riscos à saúde do trabalhador e podem ser consideradas como riscos ergonômicos, principalmente em termos do desenvolvimento de doenças osteomusculares15.
Apesar de o docente desenvolver esse conteúdo inerente aos riscos ocupacionais, sobre Equipamentos de Proteção Individual e sobre o adoecimento do trabalhador, a partir das características do seu processo de trabalho, não se identificam tais conteúdos nas ementas, embora eles se mostrem coerentes ao cenário em que os estudantes desenvolvem as aulas práticas.
O conteúdo da subárea III-C - Política de Saúde 2 -, ainda no terceiro período, sugere uma abordagem ampla no âmbito das políticas de saúde, nela compreendida a Política de Saúde do Trabalhador; contudo, do mesmo modo, não apresenta a descrição sistematizada desse conteúdo na ementa. A fala, a seguir, confirma a abordagem de Políticas de Saúde do Trabalhador, na referida subárea:
Eu dou aula no terceiro período em políticas e abordo a política de Saúde do Trabalhador (D2).
Em prosseguimento à análise, a subárea III - Saúde do Adolescente, do Adulto, do Idoso e o Mundo do Trabalho 1 -, inserida no quarto período acadêmico, apresenta em seu conteúdo programático os determinantes do meio ambiente de trabalho que interferem na saúde do trabalhador. A fala, a seguir, confirma a descrição desse conteúdo na ementa:
No quarto período, tem um conteúdo específico de Saúde do Trabalhador, com foco nas doenças mais prevalentes nos grupos humanos: no adolescente, adulto e idoso. Além da correlação com a Saúde do Trabalhador. (D12).
A Saúde do Trabalhador, uma área em crescente desenvolvimento, necessita do incremento de uma visão contextualizada que forneça essencialmente ferramentas para a modificação da relação entre o trabalho e o processo saúde-doença. Essas ferramentas, assim, apoiam esse tipo de abordagem no curso de graduação de enfermeiros, no qual não se identificou o desenvolvimento aprofundado de conteúdos específicos à área, mas sim a construção de conteúdos transversais e interdisciplinares que deem sustentação para ações de enfermagem com segurança, em qualquer campo de atuação desses profissionais16.
A ementa da subárea III - Saúde do Adolescente, do Adulto, do Idoso e o Mundo do Trabalho 2 -, ministrada no quinto período do curso, também não esclarece quais conteúdos inerentes ao mundo do trabalho devem ser abordados.
É ainda mais evidente a ausência de descrição de conteúdos sobre o mundo do trabalho na ementa da subárea III - Saúde do Adolescente, do Adulto, do Idoso e o Mundo do Trabalho 3 -, desenvolvida no sexto período. Não há conteúdo programático previsto na ementa que delimite a contextualização do mundo do trabalho com a saúde do adolescente, do adulto e do idoso; por outro lado, há a confirmação por parte do docente sobre a contradição entre o que consta na ementa e o discurso do professor:
Como eu trabalho na área crítica, viso muito a questão de riscos inerentes ao ambiente hospitalar, os perfurocortantes, as precauções padrão, pois muitas vezes o aluno se depara com pacientes, principalmente no cenário de emergência, que não se sabe se tem uma tuberculose, não sabe se tem uma meningite. Então, é mais com o foco para isso. (D3)
Pouco diferente das ementas das subáreas que aludem à abordagem do campo da Saúde do Trabalhador em sua denominação, porém sem ainda expor os conteúdos a serem desenvolvidos sobre a temática, a subárea I - Saúde, Trabalho e Meio Ambiente 4, estágio supervisionado -, inserida no oitavo período do curso de graduação, sinaliza de forma incipiente a promoção de conhecimento e prevenção dos riscos ocupacionais e das doenças próprias do trabalhador, como conteúdo relacionado à temática. A fala, a seguir, exemplifica esse conteúdo:
No oitavo período, eu tenho que dar conteúdos associados ao mundo do trabalho, resgatando conhecimentos já apreendidos na graduação, do primeiro ao sétimo período, resgatando o nexo causal de algumas patologias associadas ao mundo do trabalho: conteúdos de vacinação do trabalhador, a questão dos programas, hipertensão, diabetes. Doenças que podem estar associadas com o trabalho, trazendo também as políticas e normas regulamentadoras, estabelecendo quais são os riscos relacionados ao trabalho (D5).
A subárea III - Saúde do Adolescente, do Adulto, do Idoso e o Mundo do Trabalho 4, estágio supervisionado -, também inserida na grade do oitavo período do curso, prevê como objetivo o desenvolvimento de ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, contextualizando com o mundo do trabalho. No entanto, assim como nas outras subáreas, não foi encontrada na ementa a especificação de quais conteúdos relacionados ao campo da saúde do trabalhador devem ser abordados. Apesar disso, a fala, a seguir, evidencia essa abordagem:
No internato, na epidemiologia, a gente trabalha um pouquinho também a avaliação da saúde do trabalhador e avaliação do ambiente de trabalho da enfermagem, para traçar o perfil do profissional. Quem é aquele profissional que eles estão pesquisando? Quais são os problemas de saúde que eles têm? Apresenta relação com a atividade de trabalho que desenvolvem? (D12).
Há muito já se conhece a relação entre as exposições ocupacionais e o aparecimento de doenças. Os acidentes de trabalho e as doenças ocupacionais podem ser mais ou menos frequentes de acordo com a utilização ou não das medidas de proteção e segurança, além do tipo de trabalho exercido pelos trabalhadores17.
Assim, é relevante e necessário investir no processo educativo nesse âmbito do conhecimento na formação profissional do enfermeiro, com orientações e incentivo tanto ao uso de medidas de proteção, quanto a respeito da prevenção e controle, dentro do ambiente de trabalho. Essa prática pode ser feita por meio de treinamentos, cursos e palestras, visando reduzir a exposição aos riscos e prevenir o surgimento das doenças decorrentes do trabalho17,18.
No último período do curso, na subárea III - Saúde do Adolescente, do Adulto, do Idoso e o Mundo do trabalho 5, Estágio Supervisionado -, prevê-se na ementa, como conteúdo relacionado à temática, o reforço aos conceitos de biossegurança relacionados com a especificidade do campo cirúrgico. Nesse sentido, os discursos docentes apontam a importância da abordagem de conteúdos a respeito dos equipamentos de proteção do trabalhador, com devidos esclarecimentos quanto ao uso apropriado, prezando sempre pela segurança do estudante/enfermeiro e do paciente.
Normalmente, quando eu estou com o aluno, principalmente no internato, eu costumo chamar a atenção para o uso do equipamento de proteção individual (D6).
O Centro Cirúrgico é um ambiente rico em riscos químicos, físicos, biológicos e emocionais. Então eu caracterizo bem isso com eles para evitar doenças mentais e físicas (D8).
É evidente que a denominação das 11 subáreas alude ao desenvolvimento da temática, e os relatos dos docentes confirmam o seu desenvolvimento; contudo, a maioria das ementas não deixa claro quais conteúdos estão previstos sobre o campo da saúde do trabalhador no currículo. Dessa forma, os conteúdos relacionados a esse campo são descritos ou apresentados de forma incipiente, o que impossibilita que se tenha o conhecimento sobre quais conteúdos relacionados à temática estão previstos para serem desenvolvidos nas subáreas. Isso evidencia um distanciamento entre o prescrito e a realidade do objeto de estudo, o que cria dificuldades tanto para os estudantes quanto para os docentes no processo ensino-aprendizagem.
Diante da relevância e complexidade do trabalho do enfermeiro e devido às características dos ambientes laborais em que se inserem esses profissionais, é imprescindível que os currículos de graduação contemplem sistematicamente conteúdos que levem à reflexão e à discussão sobre o mundo do trabalho e sua relação como a Saúde do Trabalhador. Do mesmo modo, é importante implementar metodologias de ensino que consolidem e ampliem tais conteúdos nos cursos de graduação, buscando, sobretudo, articular a teoria à prática. Ou seja, em todo cenário de estágio há questões relacionadas ao trabalho que precisam ser consideradas e desenvolvidas no processo ensino-aprendizagem.
Cabe destacar que o termo "metodologias de ensino" refere-se aos meios utilizados pelos docentes na articulação do processo de ensino, de acordo com cada atividade e os resultados esperados19.
Os dados coletados possibilitou identificar as metodologias de ensino implementadas pelos docentes para o desenvolvimento dos conteúdos de Saúde do Trabalhador. Segundo os participantes, as temáticas são abordadas de forma participativa, com contribuição conjunta entre docentes e discentes para a construção dos conhecimentos.
O processo educativo, tendo como base a problematização, busca a construção do conhecimento a partir da experiência vivida e significativa para o sujeito, apoiando-se no processo de aprendizagem por descoberta e contrapondo-se ao processo de ensino por recepção. Nessa perspectiva, considera-se que os problemas se apresentam, inicialmente, pela observação da realidade e se manifestam com contradições para os educadores e educandos; a partir de então, constroem-se e reconstroem-se o conhecimento. Dessa forma, é relevante que se estabeleça uma política forte do trabalho pedagógico centrada nessa filosofia, com intuito de favorecer o ensino crítico e reflexivo11.
A gente seleciona alguns textos para que os alunos leiam e discutam na sala de aula e façam exposições teóricas. O professor expõe os aspectos principais e debate com os alunos, sempre problematizando (D9).
Então, as estratégias são essas, é a dinâmica de sala de aula, uma aula mais dialogada possível e a prática (D13).
Os resultados apresentados indicam que, para desenvolver os conteúdos sobre Saúde do Trabalhador, os docentes se apropriam de distintas metodologias. É importante destacar que a maioria esteve intimamente relacionada ao perfil dos conteúdos a serem ministrados em aula, bem como às características pedagógicas do professor, ao período acadêmico e também ao estímulo à participação do grupo discente.
Então, o professor tem que ser aquele mestre. Mestre que eu digo "mágico". Para tentar "tirar o coelho da cartola". Explicar para o estudante como ele pode fazer aquilo sem ferir o princípio científico. [...] Porque dizer "não dá para fazer isso" e ir embora é fácil (D5).
Nessa perspectiva de análise, apreendeu-se que alguns aspectos importantes - tais como o tipo de aula (prática ou teórica), a temática em si, e, principalmente, os objetivos da disciplina - são determinantes para a escolha das estratégias a serem utilizadas pelos professores. Pois a maneira pela qual o professor planeja suas atividades de sala de aula é determinante tanto para que o grupo de estudantes reaja com maior ou menor interesse (refletindo diretamente na construção do conhecimento) quanto, ainda no processo de ensino-aprendizagem, para que os conhecimentos sejam articulados e que os métodos utilizados cumpram os objetivos a que se propõem19. A fala, a seguir, evidencia esta análise:
Eu procuro sempre destacar fatos. A estratégia é essa, com relação a sentir o que o trabalhador sente. [...] Outra estratégia que eu uso, depende do momento, do período, dos objetivos, eu uso muito música e filme também (D8).
Neste estudo, evidenciou-se que o currículo do curso de graduação de enfermagem investigado abrange conteúdos fundamentais relacionados ao campo da saúde do trabalhador para a formação do enfermeiro, quando se juntam as perspectivas docentes e ementas curriculares. Entretanto, as ementas não demarcam com clareza esses conteúdos. Por conta disso, considera-se que há distanciamento entre, de um lado, o que os docentes dizem que abordam no que se refere aos conteúdos do campo da Saúde do Trabalhador e, de outro, o que está descrito nas ementas.
É certo que as ementas foram construídas na década de 1996; desde então, muitas transformações ocorreram no mundo do trabalho e na área da saúde, e os profissionais se atualizaram e mudaram seus modos de desenvolver o trabalho. No entanto, essa situação pode ser identificada como uma fragilidade, ou seja, o distanciamento entre o que se faz e o que se prescreve para ser desenvolvido. Desse modo, é preciso pensar na possibilidade de atualizar as ementas e fazer uma reaproximação dos docentes com a proposta pedagógica do curso de enfermagem da instituição em estudo.
CONCLUSÃO
A partir da elaboração deste estudo, verificam-se alguns distanciamentos entre os discursos dos participantes e o que está prescrito nos documentos curriculares, apontando, assim, para uma necessidade de rever a forma e os conteúdos ministrados nas subáreas, para que fiquem em consonância com o Projeto Político Pedagógico da instituição.
Os resultados revelam que há uma multiplicidade de conteúdos inerentes ao campo da Saúde do Trabalhador, a qual é desenvolvida no curso de graduação de enfermagem, havendo destaque para os riscos ocupacionais, a relação e o nexo causal entre saúde-trabalho-adoecimento, e as medidas de proteção do trabalhador. Constata-se, também, que o currículo possui uma carga horária elevada para o desenvolvimento de conteúdos de Saúde do Trabalhador, pois eles são previstos para serem abordados do primeiro ao último período, evidenciando uma perspectiva transversal dos mesmos, no currículo do curso em questão.
Como as ementas não delimitam claramente esses conteúdos, constata-se que alguns planejamentos curriculares e algumas práticas docentes vão além ou ficam aquém do descrito no Projeto Político Pedagógico. Nessa perspectiva, recomendam-se a revisão e a atualização das ementas, além de uma capacitação pedagógica, tanto para (re)ascender à filosofia e à metodologia curricular preconizada no Projeto Político Pedagógico, como também para (re)olhar o currículo a fim de avaliar se há necessidades de ajustes.
Captaram-se também as metodologias de ensino desenvolvidas pelos docentes para abordagem dos conteúdos da saúde do trabalhador, com destaque para a exposição teórica dialogada, a observação do ambiente de trabalho, a prática em estágio e o resgate de conteúdos anteriores. Apreendeu-se também que aspectos do ensino (como o tipo de aula, o tema a ser desenvolvido, a participação discente e os objetivos da subárea) influenciam diretamente na escolha destas metodologias.
Considerando a proposta pedagógica da problematização e a necessidade de aplicar métodos ricos que despertem no estudante o interesse pelo conhecimento e ao mesmo tempo construa o saber a partir da realidade do discente, pondera-se que também é necessário incrementar as metodologias de ensino. Assim, sugere-se inserir dramatizações, técnicas de corte-colagem, uso das novas tecnologias de ensino (quadros interativos), metodologias ativas, grupos de reflexão, convidando profissionais e usuários dos serviços para dinamizar o processo ensino-aprendizagem, entre outros. Tais métodos enriqueceriam o aprendizado ainda mais.
Sugere-se que o corpo docente reafirme, por meio de uma prática pedagógica coerente com o Projeto Político Pedagógico, a abordagem transversal desse conhecimento, integrando os conteúdos da Saúde do Trabalhador com as distintas áreas do conhecimento da enfermagem, pois os resultados mostram que há necessidade de enfatizar essa articulação, assim como a articulação entre teoria e prática.
Igualmente, é preciso que haja analogia entre o que está previsto e o que é real acerca da operacionalização curricular, em que, na prática pedagógica, as subáreas do currículo realmente se articulem. Para tanto, é fundamental que sejam desenvolvidas de modo a assegurarem o desenvolvimento teórico e prático dos conteúdos, garantindo a proposta pedagógica da instituição.
Nesse sentido, cabe destacar as atividades que são desenvolvidas pela comissão de acompanhamento curricular da instituição, cujo principal objetivo é avaliar o desenvolvimento do curso para que ele se mantenha em consonância com Projeto Político Pedagógico da instituição.
Considera-se que os objetivos foram alcançados; porém, há ainda muito a pesquisar sobre o ensino da Saúde do Trabalhador nos cursos de graduação de enfermagem, principalmente, no que se refere à complexidade do ensino e sistematização para o desenvolvimento desses conteúdos.
Referências
* Resultado da dissertação de mestrado intitulada "A Saúde do Trabalhador na formação do enfermeiro em uma instituição pública", elaborada a fim de obter o título de Mestre em Enfermagem, defendida no ano de 2012, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.