Volume 20, Número 3, Set/Nov - 2016
PESQUISA
Vivências de familiares cuidadores de pessoas idosas hospitalizadas e
a experiência de intercorporeidade*
Camila Calhau Andrade Reis
1
Edite Lago da Silva Sena
2
Tânia Maria de Oliva Menezes
1
1 Universidade Federal da Bahia. Salvador, BA, Brasil
2 Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Jequié, BA, Brasil
Recebido em 09/11/2015
Aprovado em 20/04/2016
Autor correspondente:
Camila Calhau Andrade Reis
E-mail: mila_calhau@hotmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Desvelar vivências de familiares cuidadores de pessoas idosas hospitalizadas,
tendo como referencial teórico-filosófico a fenomenologia de Merleau-Ponty e
a noção de intercorporeidade.
MÉTODOS:
Estudo fenomenológico, realizado com cinco familiares acompanhantes de
pessoas idosas hospitalizadas, no mês de março de 2014, em um hospital
público no interior da Bahia, Brasil. As vivências foram produzidas por meio
de dois encontros de rodas de conversa, gravadas e submetidas à técnica
analítica da ambiguidade.
RESULTADOS:
Na compreensão das descrições vivenciais emergiu a categoria: experiência do
outro eu mesmo nas relações de cuidado entre familiares
e pessoas idosas hospitalizadas.
CONCLUSÃO:
Compreendemos que o cuidado, por ser intersubjetivo e dinâmico, permite a
vivência de ambiguidades que resultam na experiência de transcendência,
tanto para o familiar acompanhante como para a pessoa idosa hospitalizada.
Assim, o contexto da hospitalização proporciona oportunidades de
intercorporeidade, que podem convergir para ressignificações de vidas e
relações.
Palavras-chave: Idoso; Hospitalização; Cuidadores; Relações familiares.
INTRODUÇÃO
Uma característica comum na dinâmica demográfica atual da maioria dos países do mundo é o envelhecimento das populações1. Espera-se que, em 2040, os países em desenvolvimento tornem-se lar de mais de um bilhão de pessoas idosas, o que inclui o Brasil cujo número de idosos passou de três milhões, em 1960, para pouco mais de vinte milhões em 2010, um aumento de quase 700%2.
Projeções mais conservadoras indicam que em 2020 o Brasil será o sexto país do mundo em número de idosos, com um contingente superior a 30 milhões de pessoas1. Entretanto, a maior parte dessa população convive ou conviverá com doenças crônicas e/ou limitações funcionais que, não raramente, ocasionam descompensações, dependência funcional, frequentes hospitalizações e maior mortalidade3.
Em função dessas características, evidencia-se o aumento progressivo da demanda de pessoas idosas por leitos hospitalares, sendo estes os responsáveis por 23% do total das internações hospitalares que ocorrem no Brasil. Além disso, seu tempo de permanência no serviço, em média sete dias, destaca-se por ser 25% maior que o período de internação das demais faixas etárias4.
Geralmente, o processo patológico que conduziu a pessoa idosa à hospitalização demanda cuidados intensivos e permanentes em virtude do estado de maior vulnerabilidade e da capacidade reduzida de responder a diferentes tipos de estresse característicos desse grupo etário5. Essa situação impõe à família o dever de organizar-se em função do cuidado à pessoa idosa doente, mediante a permanência contínua de um acompanhante durante o período de hospitalização.
A importância da presença do familiar acompanhante para a pessoa idosa hospitalizada é reconhecida por estudiosos da área e também pelo Ministério da Saúde (MS). Em 07 de abril de 1999, foi lançada a portaria nº 280 para garantir a permanência, em tempo integral, aos acompanhantes de pessoas idosas hospitalizadas, bem como os recursos financeiros para sua acomodação6.
Entretanto, ao voltarmos o olhar para a figura do familiar acompanhante, percebemos que é forte no imaginário popular a tese de que tornar-se cuidador de pessoa idosa com fragilidades e dependências, especialmente em situações de hospitalização, constitui-se uma experiência que produz conflitos na vida de quem cuida, com impactos físicos, emocionais e sociais7,8.
Apesar da emissão de juízo de valor às vivências de cuidado, a fenomenologia de Merleau-Ponty permite-nos entender que o preconceito constituído em torno dessas vivências pode, progressivamente, ser superado. Isso ocorre porque toda vivência é ambígua, o que inclui o fenômeno do cuidado e, neste sentido, não podemos atribuir-lhe o valor negativo, nem positivo9.
Essa percepção de cuidado discutida em uma perspectiva fenomenológica representa uma lacuna do conhecimento no estado da arte da área investigada. Evidenciou-se a necessidade da retomada de discussões acerca do tema com um novo aporte teórico-filosófico, uma vez que as informações produzidas poderiam convergir para a desconstrução de teses enraizadas na sociedade e para uma nova maneira de pensar e perceber as vivências de cuidado.
Assim, os resultados e discussões do estudo poderão abrir caminhos para a criação de novas estratégias de cuidado à pessoa idosa e ao seu familiar acompanhante no ambiente hospitalar. Diante disso, questiona-se: Quais as vivências de familiares cuidadores de pessoas idosas hospitalizadas? O estudo objetivou desvelar vivências de familiares cuidadores de pessoas idosas hospitalizadas.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo qualitativo, originário de situações vivenciais e, dentre as diversas abordagens teóricas que compõem o campo da metodologia qualitativa, optamos por fundamentá-lo na fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty.
Na perspectiva de alcançar o objetivo proposto, ocupamo-nos em estabelecer uma comunicação entre as descrições vivenciais produzidas, os estudos que tratam do envelhecimento humano e a abordagem teórica acerca da intercorporeidade em Merleau-Ponty, a partir da noção de corpo próprio. Para o filósofo, a intercorporeidade alude o entrelaçamento entre os seres humanos e todos os outros viventes, resultado da dinâmica da experiência perceptiva, a qual opera por meio do conjunto dos sentidos em conexão com o mundo10,11.
O cenário de investigação foi um hospital público de grande porte, no interior da Bahia (BA), Brasil. A unidade possui mais de 200 leitos operacionais e é referência para mais de 30 municípios da região Sudoeste do estado. Possui serviços de alta complexidade (neurocirurgia, cirurgia ortopédica e traumatologia, terapia nutricional, terapia intensiva tipo II, cirurgia vascular), urgência e emergência 24 horas e internação nas especialidades de clínica médica (CM), cirúrgica (CC), neurológica (CN), pediatria e banco de sangue. O estudo foi realizado nos setores de clínica médica e neurológica, locais em que encontramos um significativo número de pessoas idosas hospitalizadas. Atualmente, a CM conta com 30 leitos, subdivididos em alas masculina e feminina, com 13 e 17 leitos, respectivamente. Já a CN possui 11 leitos, sendo seis masculinos e cinco femininos.
Foram convidados para colaborar com o estudo 22 acompanhantes, que atenderam ao critério de inclusão: ser cuidador familiar de uma pessoa idosa internada há pelo menos sete dias. Apenas cinco acompanhantes participaram do estudo, pois alguns demonstraram interesse em colaborar, mas não compareceram, e os demais não quiseram participar.
Entretanto, por se tratar de um estudo fenomenológico, a quantidade dos sujeitos pesquisados não é o mais relevante, e sim a profundidade da análise e a discussão a respeito dos depoimentos obtidos, o que permite, inclusive, fazer generalizações. Isso porque a pesquisa fenomenológica concentra-se na descrição do que se desvela da natureza sensível, do mundo dos sentimentos, o qual é potencialmente vivido por todos e faz com que a humanidade tenha um igual. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) disponibilizado em duas vias, ficando uma com o participante e a outra com as pesquisadoras.
Para a produção das descrições vivenciais (coleta das informações), empregamos a técnica da roda de conversa, um recurso metodológico que prioriza as discussões em torno de um tema estabelecido e considera as relações intersujeitos como um rico material de pesquisa12. Deste modo, é possível que os participantes interajam e, por meio do pensar compartilhado, compreendam e ressignifiquem suas vivências. Essa possibilidade de diálogo e influências caracteriza a intersubjetividade inerente aos estudos fenomenológicos13.
Duas rodas de conversa foram realizadas no mês de março de 2014, com duração média de uma hora e trinta minutos cada. Um ambiente reservado, arejado e próximo aos leitos dos idosos hospitalizados foi escolhido para os encontros, que se processaram em quatro etapas: 1. Acolhimento e interação entre as participantes, com dinâmica de apresentação; 2. Exibição de vídeo para reflexão; 3. Abertura da roda, com auxílio de roteiro previamente elaborado; 4. Encerramento, com avaliação da atividade desenvolvida. As vivências desveladas foram gravadas, transcritas e submetidas à analítica da ambiguidade, técnica que não busca analisar ou interpretar vivências, mas perceber ambiguidades que se mostram na experiência intersubjetiva, estabelecida entre pesquisador e participantes do estudo14.
A analítica da ambiguidade foi desenvolvida com base na ontologia da experiência de Maurice Merleau-Ponty e preconiza as seguintes etapas de execução: transcrição e organização do material produzido, realização de leituras exaustivas dos textos, exercício perceptivo das descrições segundo o olhar figura-fundo e objetivação em categorias14.
O exercício perceptivo sob o olhar figura-fundo foi executado neste estudo a partir da compreensão de que a descrições vivenciais desveladas eram figuras que traziam consigo um fundo. Assim, a cada vez que desfocávamos o olhar do contorno de uma descobríamos outras, corroborando a ambiguidade característica da percepção humana e sua incapacidade de estabelecer conceitos e definições.
Nessa lógica, as descrições vivenciais foram, essencialmente, discutidas com a fundamentação teórica de Merleau-Ponty, no que tange à abordagem sobre a percepção do corpo próprio, especificamente na dimensão do corpo do outro. O estudo atendeu às normas para pesquisas envolvendo seres humanos, da resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da UESB, por meio do protocolo nº 518.994/14. Para a preservação do anonimato, os participantes escolheram codinomes relacionados a sentimentos vivenciados nos últimos dias: Saudade, Amor, Tristeza, Ansiedade e Preocupação.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Todos os participantes eram do sexo feminino, com idades entre 33 e 57 anos, e filhas das pessoas idosas que acompanhavam. Esses dados corroboram com outros estudos que discutem a predominância de mulheres na função do cuidado15. Em relação ao estado civil, quatro eram casadas e uma solteira. O tempo de acompanhamento variou entre oito e 60 dias e apenas duas acompanhantes afirmaram revezar o cuidado com outro familiar.
Na experiência intersubjetiva, com as leituras das descrições vivenciais, ocorreu-nos à percepção categorizá-las como: experiência do outro eu mesmo nas relações de cuidado entre familiares e pessoas idosas hospitalizadas. Apesar da organização em categoria, compreendemos que toda tentativa de objetivar algo sobre as vivências relatadas sempre será insuficiente para exprimir por completo seu significado.
Experiência do outro eu mesmo nas relações de cuidado entre familiares e pessoas idosas hospitalizadas
O cuidado faz parte da essência de todo homem, é a base que possibilita considerar a existência humana como humana. Além disso, representa uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento afetivo com o outro16. Em uma perspectiva fenomenológica, cuidar opera na intersubjetividade, o que implica em uma experiência de campo e, por conseguinte, na reversibilidade das percepções envolvidas e no movimento ininterrupto de abertura ao outro17. Deste modo, o cuidar consiste na intercorporeidade e na condução à transcendência, o que, segundo o olhar merleau-pontyano, refere-se à experiência do outro eu mesmo.
No início da primeira roda de conversa, questionou-se às participantes sobre a história pregressa que possuíam com os respectivos familiares idosos hospitalizados. Uma das colaboradoras do estudo, cujo codinome escolhido foi Amor, retomou as seguintes vivências:
[...] minha mãe me batia muito! As minhas irmãs diziam: mãe te persegue porque te ama! E eu falava: ela me ama, mas tem que parar de me perseguir, porque eu preciso ter liberdade. Eu me sentia assim [...] mas, agora, não me sinto mais assim, porque eu vejo a situação que ela está, e só tem a mim para apoiá-la. Minhas escolhas, eu deixo em segundo plano! [...] Eu sempre falo: mãe, a senhora pode agradecer muito a Deus, porque pelas outras filhas que a senhora tem a senhora ia morrer à míngua (Amor).
A fala da colaboradora permite-nos perceber que ela atualiza em seu corpo um passado marcado por agressões, injustiças e consequente carência afetiva. Não obstante tenha sido maltratada por sua mãe na infância e juventude, agora, com o processo de hospitalização da mãe idosa, emerge um horizonte de futuro que aponta perspectivas de gratidão, reconhecimento e demonstração de afeto e amor por parte da mãe, o que permite à cuidadora lançar-se em direção a esse horizonte por meio do cuidado dedicado e constante. Assim, o cuidado se manifesta sob uma perspectiva temporal, a qual reúne, no presente, um passado e um futuro18.
Essas reflexões conduzem-nos ao entendimento de que a experiência do cuidado em contexto hospitalar caracteriza-se pela existência de ambiguidades: ao mesmo tempo em que há uma pessoalidade (dimensão socioantropológica constitutiva do ser pessoa), que se descentra no outro que necessita do cuidado, revela-se uma impessoalidade (dimensão sensível), que conduz à ressignificação do outro (semelhante) e da sua pessoalidade.
A experiência do outro é sempre a de uma réplica de mim e é resultado da ação de usar o corpo (percepção) para explorar e estabelecer uma relação com o mundo, o que, por consequência, conduz a "uma ínfima distância entre mim e o ser que reservava os direitos de outra percepção do mesmo ser"14:223. A mesma cuidadora conduziu-nos a ir mais além na compreensão do fenômeno do cuidado:
[...] eu me sinto vitoriosa porque é minha mãe, então, tenho que fazer o possível para ela orgulhar-se de mim [...] casei-me duas vezes e voltei para casa. Casamento para mim nunca dá certo, sempre voltava à casa de minha mãe, mas eu não tinha outro lugar para ir [...] uma vez, estava com um namorado e ele ficou preocupado porque minha irmã viajou e eu não. Eu disse: Não vou! Vou viajar e deixar minha mãe sentindo dor? Não! Então, ele disse: sua irmã não gosta da mãe, ela não cuida como você cuida [...] e eu disse: ela (mãe) só tem a mim! Tem as outras filhas, mas não cuidam iguais a mim (Amor).
As falas revelam que, provavelmente, a cuidadora vivencia ou vivenciou, ao longo da vida, a situação de desprestígio social e, portanto, expressa, de forma irrefletida, a necessidade de ser valorizada, reconhecida. Quando se dispõe a cuidar da mãe hospitalizada, ela passa a ter uma visibilidade social que não lhe ocorria anteriormente. As sensações de prazer e reconhecimento constituem elementos que mobilizam a cuidadora para estimar-se mais. A participante Saudade, após ouvir atentamente o relato da colaboradora Amor, demonstrou apoio e revelou situação semelhante:
[...] a minha (mãe) nunca foi de me dar carinho. Se ela me desse carinho hoje, amanhã era uma surra. Ela me batia por qualquer coisa! Muito, muito, muito, muito. Chegou ao ponto de, com quase 13 anos eu pedir a Deus para me dar a morte, ou, um casamento. Mas, eu falei com Ele que eu queria mais a morte. E Ele me deu o casamento [...] eu não aguentava mais apanhar! [...] às vezes, eu estou dando banho nela e ela fala: graças a Deus que eu tenho minha filha! [...] ela fala assim: vou te perguntar uma coisa, mas fala a verdade [...] quem é a tua mãe? Então, eu respondo: a minha mãe é você! E ela diz: ah, se eu tivesse uma filha dessas! (Saudade).
As vivências permitiram que novos conhecimentos e capacidades aflorassem nas cuidadoras17, de maneira que conflitos de relações interpessoais puderam ser resolvidos e/ou amenizados. Quando questionadas se achavam que outra pessoa da família cuidaria do familiar idoso hospitalizado como elas cuidavam, todas responderam em uníssono que não.
Nesse contexto, enxergamos que as participantes Amor e Saudade experimentam a transcendência, a partir do contexto de cuidado às mães hospitalizadas, e um "investimento" contínuo no cuidado ao outro se instala para, de certo modo, também cuidarem de si. É provável que as cuidadoras não tenham a percepção dessa valorização e cuidado de si, uma vez que a vivência envolve um não saber referente aos sentimentos em relação ao outro e a si mesmo. Assim sendo, as cuidadoras corroboram a noção do cuidado de si irrefletido18.
Em seus escritos, Merleau-Ponty não aborda diretamente o cuidado, como o fez o fenomenólogo Martin Heidegger. Entretanto, a essência dos seus pensamentos permitiu desenvolver as noções de cuidado irrefletido e reflexivo, sendo este último relacionado aos atos indicativos e aquele, aos atos intuitivos18. Ao se apresentar na roda, Ansiedade revela em sua fala uma descrição que desvela o cuidado de si irrefletido:
[...] sou de São Paulo, Campinas! Vim correndo cuidar dela. Eu vim porque, senão, eu ficaria em casa, meu Deus, e se acontecer alguma coisa? Eu não estou vendo, não estou perto [...] e eu ficaria com aquela aflição, então, eu ficaria muito pior lá. Eu tenho que estar perto, vendo como é que ela está (Ansiedade).
A vivência faz-nos compreender que, embora a cuidadora tente explicar o motivo de sua ação, isto é, sair de São Paulo, deixando seu lar, para cuidar da mãe na Bahia, ela nunca conseguirá explicar exatamente. Ela decidiu ficar com a mãe porque, se permanecesse distante, ficaria angustiada, sofrendo e, talvez, até se culpando, caso algo mais grave viesse a acontecer. Deste modo, imediatamente resolveu vir à Bahia para cuidar da mãe e, também, para cuidar de si, ainda que de maneira irrefletida. Assim, não obstante a hospitalização pareça constituir um fenômeno de dor, ansiedades e incertezas, de alguma maneira, contribui para "curas diversas" dos familiares que cuidam.
Acompanhar a mãe ou o pai idoso hospitalizado permitiu às participantes do estudo a vivência de ambiguidades e emoções únicas. Portanto, o outro eu mesmo que insurge nesses relatos é diferente se o processo de saúde-doença das pessoas idosas fosse vivenciado em outros contextos, no domicílio, por exemplo. Assim, a experiência do cuidado é sempre inédita, criativa e conduz, a todo instante, à transcendência.
A intercorporeidade, em uma perspectiva de Merleau-Ponty, leva-nos a compreender que a experiência do outro não é um fenômeno possível apenas ao familiar acompanhante, denominado cuidador. Isso porque o cuidado, por não ser estático, mas dinâmico e intersubjetivo, possibilita também à pessoa cuidada vivenciar ambiguidades e abertura ao outro, o que foi possível identificar em trechos isolados dos relatos a seguir:
[...] eu perdi meu pai cedo e ela (mãe) me maltratou muito! E hoje, só eu que cuido dela [...] mas ela já me agradeceu muito por isso! Ela diz: se eu não tivesse você, não sei onde é que eu estaria [...] porque pelas outras [...] de vez em quando ela me agradece (Amor).
[...] na minha casa, o xodó do meu pai era a que estava aqui hoje (irmã). Ele ficou doente e tudo só pedia para ela! E nós ficávamos com ciúmes! Ele perguntava por que minha irmã não tinha ido ficar com ele [...] eu sentia que ele não gostava de mim e eu ficava triste. Eu sentava e pensava: será que pai está gostando que eu fique aqui? Mas agora não [...] agora, quando saímos, nos agradece, é uma alegria! Ele diz: como meus filhos cuidam bem de mim! Não tem mais escolha não! Ele viu que todo mundo faz do mesmo jeito que o outro faz, tem o mesmo carinho! Eu me sentia rejeitada, agora mais não (Tristeza).
As vivências mostram que a ressignificação entre mãe/pai e filhas ocorre de forma espontânea pela intercorporeidade da vivência cuidativa. A experiência do outro é perceptível no momento em que a pessoa idosa passa a reconhecer e a valorizar mais os filhos após os cuidados recebidos durante a hospitalização.
Todos nós, de alguma forma, sentimo-nos ligados uns aos outros, formando um todo orgânico único, diverso e inclusivo. Esse todo remete-nos a um elo que tudo sustenta e dinamiza. Portanto, construímos o mundo a partir de laços afetivos, e isso faz com que as pessoas e as situações tornem-se portadoras de valor. Preocupamo-nos e tomamos tempo para dedicar-nos a elas; sentimos responsabilidade pelo laço desenvolvido entre nós e os outros16. Nesta perspectiva, as relações pregressas entre mãe/pai e filhas, independentemente do modo como ocorriam, geraram vínculos afetivos ao longo dos anos e a categoria do cuidado recolhe todo esse modo de ser, permitindo o estreitamento de vínculos.
Dessa forma, estamos em constante transcendência a cada vivência, a cada experiência. Isso porque o mundo no qual nos inserimos está sempre em formação e mostra-se sempre em perspectivas, arrastando consigo todas as demais, sem que as tenhamos de elaborar18. Isto significa dizer que o meio sempre nos permite captar algo, e essa percepção traz consigo o anúncio de uma coisa que é bem mais do que aquilo que se revela19.
Mediante o entendimento sobre a dinâmica da percepção, acrescemos a ideia de que crenças, tradições e princípios adquiridos em uma esfera sociocultural também não são estáticos, mas passíveis de serem transformados e adequados, conforme o que a realidade lhes impõe; aspecto que, também, caracteriza transcendência. Preocupação, em um dado momento da discussão, ao comentar sobre o pai idoso hospitalizado, revela as mudanças que ocorrem nos entes a partir da realidade vivenciada:
Quando se é pequeno, a gente manda nos filhos, ele (pai) falou. E agora os filhos mandam na gente! Eles dizem que depois que eles ficam velhos, a gente manda neles! (Preocupação).
Após a fala de Preocupação, Tristeza demonstra apoio ao relato e complementa a ideia:
[...] cuidar da mãe é fácil, e do pai, que fica com vergonha da gente? Ele fala, oh minha filha, eu nunca fiquei pelado na sua frente [...] mas, hoje [...] ele está precisando da gente. Eu falo, oh pai, o que é isso! A gente nunca viu o pai da gente pelado. E agora a gente dá banho, coloca para urinar, troca fralda, faz tudo! Eu falo, oh pai, não é para ficar com vergonha não! Todo mundo faz! Porque o filho homem tem até mais liberdade, mas a mulher não tem não, não é? (Tristeza).
Filhas cuidando dos pais hospitalizados é uma situação extremamente comum na rotina das instituições de saúde, mesmo porque a mulher é historicamente vista como a "grande cuidadora", que possui o dever moral instituído de cuidar de toda a família20. Entretanto, para os envolvidos no cuidado, o lidar com a exposição de fragilidades e da nudez, em especial nas situações que envolvem pai e filha, requer rompimentos de tradições culturais incorporadas em ambos ao longo da vida. Esses rompimentos também representam a experiência do outro eu mesmo. Imaginamos que, para o homem que depende do cuidado de outrem, essa experiência seja mais difícil e envolva sentimentos ambíguos, bem como conflitos internos.
Apesar das diversas conquistas sociais da mulher nos últimos anos, ainda vivemos em uma sociedade predominantemente patriarcal, que define o homem como presença hegemônica, pautada pela supremacia e submissão feminina, em um contexto que o define como o "chefe de família", responsável pelo sustento da casa, dos filhos e da esposa21. Assim, tornar-se dependente e expor sua nudez às filhas, no contexto de hospitalização, representa para o homem idoso uma ruptura com a visão da masculinidade enraizada em seu ser. É um outro eu mesmo que desiste da imponência do sexo masculino e assume a fragilidade do ser humano, a vulnerabilidade que vivencia, e a necessidade de ser cuidado, portanto, experimenta a transcendência.
A partir dos vividos e sentimentos desvelados, é importante que todos da equipe de saúde, especialmente os profissionais de enfermagem, tenham sensibilidade para perceber os sentidos, ideias, concepções e valores que os acompanhantes atribuem ao cuidado22. Isso possibilitará o delineamento de estratégias para a efetivação do cuidado humanizado que alcancem não apenas a pessoa idosa hospitalizada mas também o seu familiar acompanhante.
CONCLUSÃO
Ao entendermos que a vivência da percepção em Merleau-Ponty mostra-se como uma oportunidade contínua de tornarmo-nos outro, não podemos mais conceber a tese de que cuidar da pessoa idosa hospitalizada constitui-se uma experiência que "adoece" o familiar cuidador e causa-lhe sofrimento. Essa tese, sustentada pelo mundo sociocultural no qual nos inserimos e reiterada por muitos na produção científica gerontológica, não pode ser defendida como única verdade.
As descrições vivenciais, discutidas na perspectiva da intercorporeidade e experiência do outro eu mesmo, conduziram-nos a um novo olhar sobre a condição de cuidador. Desvelaram-se situações em que a experiência de cuidar do pai/mãe idoso hospitalizado propiciou aos cuidadores o respeito à dignidade, a afetividade, o amor ao próximo e a inserção social.
Percebemos que os sentimentos ambíguos que se exprimem durante o cuidado irão nortear as relações estabelecidas e são movidos por uma orientação intencional que, em muitos momentos, encontra-se velada: o cuidador não percebe que o cuidar do semelhante é também um cuidado de si. Apesar de em alguns momentos o cuidado envolver mera obrigação moral, em outros, revela-se como uma forma de cuidarmos de nós mesmos, seja para tratar ressentimentos, ansiedades ou medos, por exemplo.
Além disso, enxergamos que as pessoas idosas hospitalizadas, receptores do cuidado, também experimentam a possibilidade de ressignificação da vida e das relações, tornando-se outro diante do contexto de fragilidade vivenciado. O domínio hospitalar constitui-se como um espaço coletivo, que oferece a oportunidade de experiências intercorporais peculiares, as quais, geralmente, convergirão para a vivência de transcendência.
Estudos dessa natureza, que permitem a escuta de familiares de usuários do serviço público de saúde, são relevantes para a reorientação de políticas, planejamento e implementação de práticas de cuidado mais humanizadas, que visualizem a saúde não apenas do sujeito submetido ao tratamento mas também dos familiares que o acompanham e auxiliam no processo de restabelecimento.
Como limitações do estudo, destacamos a participação reduzida de cuidadores familiares nas rodas de conversa promovidas. Possivelmente, isso ocorreu pelo receio em se distanciar dos familiares idosos hospitalizados por um período de tempo prolongado.
Desse modo, na certeza da incompletude do conhecimento, concluímos que muito ainda há a ser desvelado dos vividos em contexto hospitalar.
REFERÊNCIAS
* Artigo extraído da Dissertação de Mestrado: "Vivências de Familiares Acompanhantes de Idosos Hospitalizados: Um Olhar Fenomenológico" (2014).