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ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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Ministério da Educação
CAPES

Volume 20, Número 3, Set/Nov - 2016



DOI: 10.5935/1414-8145.20160066

PESQUISA

Prática educativa com jovens usuários de crack visando a prevenção do HIV/AIDS*

Agnes Caroline Souza Pinto 1
Eveline Pinheiro Beserra 1
Izaildo Tavares Luna 1
Luiza Luana de Araújo Lira Bezerra 2
Patrícia Neyva da Costa Pinheiro 1


1 Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE, Brasil
2 Faculdade Integrada da Grande Fortaleza. Fortaleza, CE, Brasil

Recebido em 04/11/2015
Aprovado em 29/02/2016

Autor correspondente:
Agnes Caroline Souza Pinto
E-mail: agnespinto@hotmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Relatar a intervenção educativa com jovens usuários de crack visando à prevenção do HIV/AIDS através da metodologia de Círculo de Cultura.
MÉTODOS: Pesquisa de natureza qualitativa, realizada em 2012 com 10 jovens usuários de crack atendidos em uma comunidade terapêutica de Fortaleza-CE. A coleta de informações incluiu: observação participante com diário de campo; registro fotográfico e filmagem; e, como produção do grupo, teatro de fantoches.
RESULTADOS: O Círculo de Cultura permitiu aos jovens desvelar as suas principais vulnerabilidades ao HIV/AIDS, como o compartilhamento de canudos e cachimbos no uso da cocaína/crack e a perda da consciência como influenciadora na diversidade de parceiros e no não uso do preservativo nas relações sexuais.
CONCLUSÃO: A intervenção educativa criou possibilidades para a inserção do(a) enfermeiro(a) no cenário da comunidade terapêutica, a fim de fortalecer articulações em rede para o trabalho de prevenção ao HIV/AIDS entre usuários de crack.


Palavras-chave: Adolescente; Síndrome da imunodeficiência adquirida; Crack cocaine.

INTRODUÇÃO

O crack é um problema de saúde pública de primeira ordem em virtude das graves consequências sociais e de saúde relacionadas ao seu uso, como elevação dos índices de violência, altas taxas de mortalidade, transmissão de doenças infecciosas e desvinculação familiar e social entre os usuários1.

Na mesma década da explosão da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), o crack popularizou-se nos Estados Unidos. Ao final da década de 1980, surgiam as primeiras evidências epidemiológicas do maior risco de infecções sexualmente transmissíveis (IST), inclusive infecções provocadas pelo Vírus da Imunodeficiência Adquirida (HIV), em usuários de crack2.

De acordo com um levantamento feito em 2012 pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), havia no Brasil 384.356 usuários de crack/similares. Desse total, cerca de um terço tinha entre 18 a 24 anos e eram predominantemente do sexo masculino. Esse estudo revelou uma prevalência de infecção pelo HIV entre esses usuários de 4,97%, aproximadamente oito vezes a prevalência de HIV estimada para a população geral brasileira3.

Um dos possíveis mecanismos que explicam a maior prevalência de HIV entre os usuários de drogas não injetáveis (UDnIs) em relação à população em geral é a "ponte" entre populações Usuários de Drogas Injetáveis (UDIs) e UDnIs, que podem transmitir o HIV e outras IST por meio de relações sexuais, além da possibilidade de infecção através do compartilhamento de equipamentos para uso de drogas2.

Além disso, usuários de drogas muitas vezes possuem feridas no nariz e na boca, o que pode facilitar a transmissão viral. Outra explicação pode estar relacionada à elevada frequência de prática sexual desprotegida, principalmente entre os usuários de estimulantes, como por exemplo, o crack, a cocaína e a metanfetamina.

O consumo de crack tem sido associado diretamente com a infecção pelo HIV, e os comportamentos de risco mais frequentes observados são o elevado número de parceiros, as relações sexuais desprotegidas e o sexo comercial, por crack ou por dinheiro, para a compra da droga4,5.

A vulnerabilidade dos usuários de crack ao HIV não se restringe somente ao risco de infecção, mas também à pior evolução da doença. Isso se deve ao fato de que a droga pode diminuir as respostas imunológicas importantes e interferir na capacidade de defesa do organismo contra infecções6.

Ao ponderar a relevância epidemiológica e clínica, além das consequências individuais e coletivas relacionadas ao risco de infecção pelo HIV e implicações na evolução da doença nesse grupo de clientes, é imprescindível que o profissional de enfermagem se aproprie desta problemática e elabore estratégias de prevenção, detecção precoce e tratamento que considerem as particularidades dos usuários de crack/similares.

Diante do exposto, surgiu o seguinte questionamento: Que estratégia educativa a enfermagem pode desenvolver para trabalhar a prevenção do HIV e da AIDS entre os jovens usuários de crack?

Dessa forma, o presente artigo teve por objetivo relatar a intervenção educativa com jovens usuários de crack visando à prevenção do HIV/AIDS, utilizando a metodologia de Círculo de Cultura.

MÉTODOS

Pesquisa de natureza qualitativa, fundamentada na metodologia de Círculo de Cultura7. Este é um espaço de trabalho, pesquisa, dinâmicas e vivências que permitem a elaboração coletiva do conhecimento e a reflexão crítica do meio em que o sujeito está inserido.

A intervenção educativa seguiu as fases do método teórico de Paulo Freire, adaptando-os ao alcance dos objetivos propostos: descoberta do universo vocabular; dinâmica de sensibilização e acolhimento; construção de situações para a problematização - trabalhar a(s) questão(ões) norteadora(s); fundamentação teórico-científica, estimulando a reflexão crítica; síntese do que foi vivenciado; e avaliação8.

Participaram deste estudo dez jovens usuários de crack atendidos em uma comunidade terapêutica de referência da capital cearense, que se dedica ao trabalho de prevenção ao uso indevido de drogas e à recuperação física, psicológica e espiritual do dependente químico, bem como à sua reintegração à sociedade, sem distinção de raça, condição social, política ou denominação religiosa.

Para a seleção dos sujeitos, utilizou-se os critérios de inclusão: sexo masculino, usuários das unidades de tratamento/ambulatório para dependentes químicos e que referiram ter feito uso de crack. Adotou-se como faixa etária de jovens a indicação da Organização das Nações Unidas, que aponta tratar-se de indivíduo entre 15 e 24 anos de idade9.

A coleta de informações ocorreu em dois momentos: visitas à comunidade terapêutica - realizadas nos meses de janeiro a abril - e encontro educativo guiado pelos princípios do Círculo de Cultura, realizado em maio de 2012 - incluindo a observação participante com anotações em diário de campo, registro fotográfico e filmagem e, como produção do grupo, teatro de fantoches.

Ao todo, foram quatro visitas realizadas pela pesquisadora e por uma integrante do Projeto AIDS: Educação e Prevenção, com duração de 1 hora, todas no turno da manhã. O encontro educativo teve duração de duas horas e meia, ocorreu nas dependências da comunidade terapêutica e foi mediado pelas pesquisadoras.

Para análise das informações, recorreu-se à triangulação de dados, cujo processo refere-se à convergência ou corroboração dos dados obtidos pelos diferentes métodos e técnicas utilizados nas pesquisas, visando à qualidade, profundidade e validade da análise qualitativa10.

Propôs-se ainda ao pesquisador uma análise crítica e ampla na interpretação do material empírico extraído. Este processo ocorreu mediante descrição minuciosa dos eventos ocorridos no Círculo de Cultura, a partir dos depoimentos dos sujeitos, observações, participações nas discussões, experiência das atividades realizadas em grupo com ênfase na produção do teatro de fantoches, recurso utilizado para problematização da vulnerabilidade ao HIV/AIDS, e o significado da vivência educativa no Círculo de Cultura pelos envolvidos.

A interpretação do material ocorreu em diálogo com a literatura pertinente à temática, com apreciação de fundamentações teóricas consideradas relevantes e enriquecedoras ao estudo crítico dos discursos.

O estudo obedeceu aos aspectos éticos e legais da pesquisa, envolvendo seres humanos11, sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará (COMEPE), protocolo nº 303/11. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi assinado pelos jovens e seus respectivos responsáveis. Neste sentido, os jovens foram identificados pelo termo usuário (U), seguidos de número de ordem das falas (U1, U2, U3 e assim sucessivamente).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os dez jovens participantes deste estudo eram do sexo masculino e tinham idades entre 18 e 24 anos. Quanto ao nível de escolaridade, um dos entrevistados tinha o fundamental incompleto, dois completaram o ensino fundamental, cinco adolescentes tinham o ensino médio incompleto e apenas dois cursaram o ensino médio completo.

Quanto ao estado civil, dois eram casados, dois conviviam conjugalmente e seis se declararam solteiros. Em sua maioria, os adolescentes tinham algum tipo de emprego informal e estavam afastados para fazer o tratamento da dependência do crack, uma vez que era impossível se dedicar ao trabalho sob o efeito da droga.

Visitas à Comunidade Terapêutica - levantamento do universo vocabular

A etapa da descoberta do universo vocabular dos jovens compreendeu o primeiro momento, na etapa das visitas à comunidade terapêutica, o que possibilitou a imersão da pesquisadora no cenário de convívio dos jovens, a participação nas atividades realizadas pela instituição, o reconhecimento de sua missão e também das normas e rotinas dos dois tipos de tratamentos (ambulatorial e internação), e ainda o trabalho realizado pelos profissionais que lá atuavam.

No ambulatório, os participantes têm a idade mínima de dez anos e são de ambos os sexos, podem ser pessoas da comunidade que são dependentes químicas ou ainda os ex-internos. O dependente químico participa de atendimentos individuais e de grupos nas seguintes áreas: Psicologia (Psicoterapia), Serviço Social, Terapia Ocupacional e Orientação Cristã. Também é oferecido o supletivo para o ensino fundamental e médio.

No núcleo de internamento são oferecidos os mesmos atendimentos individuais e em grupo, além disso, tem-se a laborterapia, esportes e lazer, oficinas produtivas, visitas familiares e visitas dos internos à casa, que são agendadas. Esse núcleo é exclusivo para homens maiores de 16 anos, que permanecem por um período de sete meses, podendo se estender até nove mediante a avaliação da equipe técnica.

Fatores relacionados ao tratamento do dependente químico, como equipe adequada ao atendimento dos jovens, possibilitando o vínculo e acolhimento, favorecem o envolvimento no tratamento e a execução de atividades mais interessantes e motivadoras aos jovens12.

A aproximação ocorreu por meio de quatro visitas. Ao final da última, foram questionados os motivos que os levaram a usar drogas, se eles sabiam algo sobre o HIV/AIDS e se consideravam-se vulneráveis a essa doença enquanto usuários de drogas. Em seguida, procedeu-se à explanação dos objetivos e das estratégias a serem construídas junto com os jovens que iriam participar.

Foi possível apreender o espaço social de convivência dos jovens, conhecendo seus gostos, preferências, hábitos, histórias e experiências de vida, bem como o modo como se relacionam com outros. As visitas foram primordiais, haja vista a necessidade de conduzir a prática educativa em que o aprender se torne um ato baseado na situação real vivida pelo grupo de jovens, assim como resultado de uma aproximação crítica dessa realidade.

O Círculo de Cultura constituiu um espaço de encontro e descoberta do outro como sujeito e vivências que precisam ser desveladas a partir do diálogo no grupo, da participação nas discussões, da troca de conhecimentos e experiências. Logo, conhecer sua cultura é fator necessário nesse processo13.

Círculo de Cultura - Vulnerabilidade dos jovens usuários de cocaína/crack ao HIV/AIDS

O círculo aconteceu a partir das reflexões que se iniciaram no momento anterior e de acordo com as respostas dos questionamentos feitos a eles na última visita à comunidade terapêutica. A partir dos relatos, evidenciou-se que a maioria dos jovens não possuía conhecimento adequado sobre o HIV/AIDS, conforme o relato de U7, adolescente de 19 anos:

Eu não sei quase nada, somente que aids é uma doença transmissível, que aí a pessoa faz a relação aí pega essa doença, ou é consumindo droga também? (U7)

Identificou-se que alguns deles não reconhecem ou não sabem se são vulneráveis ao HIV/AIDS por serem usuários de drogas, no caso do estudo, cocaína/crack, embora a maioria afirmasse existir esta relação:

Eu acho que não tem essa relação das drogas com o HIV, porque a pessoa drogada tem consciência do que faz. (U8)

Eu acho que tem, no caso da droga injetável. (U10)

Somos vulneráveis sim, porque existem mulheres que se prostituem para usarem droga, então ela acaba pegando várias pessoas e acaba se infectando sem saber, e a pessoa que não é infectada vai usar aquela mulher de programa, até às vezes também pela droga, ou por troca de droga e acaba se infectando também sem saber. (U1)

Nesse sentido, iniciou-se o círculo exibindo um vídeo educativo sobre os efeitos do crack no organismo. Em seguida, outro vídeo foi exibido: O que é HIV? Essa estratégia teve o objetivo de aprofundar o conhecimento acerca dos efeitos das drogas e sobre o HIV/AIDS a fim de fornecer subsídios para enriquecer as futuras discussões do grupo sobre a temática proposta.

Em estudo utilizando vídeos como provocadores de discussão no Círculo de Cultura, na atividade de vida respiração, verificou-se a percepção da droga como agente nocivo para o jovem, um caminho sem volta com repercussão em diferentes instâncias na vida familiar e social do adolescente, bem como a ideia de método preventivo atribuída a não exposição a elas. Logo, são meios que favorecem a reflexão14.

Ao utilizar os recursos dos vídeos, o processo de tomada de decisões foi facilitado e proveu-se um cuidado, proporcionando ao sujeito espaço de reflexão sobre a problemática da vulnerabilidade deles ao HIV/AIDS15.

Ao final das apresentações dos vídeos, eram promovidas rodas de conversa, perguntando-se aos jovens quais as suas percepções diante do contéudo exposto, o que estes abordavam e quais dúvidas gostariam de esclarecer juntos. Assim, surgiram as seguintes falas:

Tudo o que foi falado no vídeo é verdade, e eu não sabia que eu podia ter tido intoxicação por alumínio por ter fumado crack, foi ótimo saber o que eu sentia de forma mais detalhada e esclarecida. (U4)

Essa questão da higiene é séria mesmo, a gente nem se lembra de se cuidar. (U7)

A gente fica sem querer comer, aliás, não sentimos fome. (U3)

Essa história da adrenalina e dopamina é muito interessante. (U1)

Os fragmentos de falas evidenciam que os jovens já conheciam muitos efeitos do crack no organismo, embora tenham ficado surpresos com a questão da intoxicação por alumínio, da liberação de adrenalina e dopamina e o porquê de eles sempre quererem usar mais droga e não conseguirem parar.

A intoxicação por alumínio pode ocorrer durante o processo de acendimento e queima do crack, que é vendido em forma de pedra e precisa ser esquentado para soltar a fumaça que será inalada ou fumada. É muito comum que o usuário de crack se utilize de latas de refrigerante ou de cerveja para jogar a pedrinha lá dentro. Com um isqueiro, ele esquenta a latinha e, por consequência, a pedra também, o que acaba por liberar essa fumaça que vai ser rapidamente aspirada pelo indivíduo, passando para a corrente sanguínea e, em seguida, para o cérebro, em questão de segundos. Esta forma de consumo faz com que alumínio também se desprenda da lata e faça parte dessa fumaça que é inalada pelo indivíduo. Esse alumínio cai na corrente sanguínea e é distribuído pelo corpo, causando lesões no cérebro, nos ossos e nos rins16. Nenhum dos jovens do estudo relatou saber desta consequência do uso e ficaram surpresos com a possibilidade de estarem intoxicados por alumínio.

O crack tem efeito anoréxico por reduzir a sensação de fome do indivíduo que, por não se alimentar bem, vai passar a ter deficiência de proteína, vitaminas e sais minerais, deixando o organismo debilitado rapidamente, prejudicando também o sistema imunológico e abrindo possibilidades de infecções de várias maneiras. Além disso, esta droga inibe o sono, deixando o indivíduo sem dormir por longos períodos, até que o corpo não suporte mais este estado de alerta e o sujeito "apague". Quando ele acorda, vai procurar algo para comer, para, em seguida, ir atrás da droga de novo, que é a sua razão única de viver. Ao debater este ponto com os jovens, percebeu-se o quanto a imagem emagrecida de quando chegaram para fazer o tratamento era forte17. Na ocasião do círculo, fizeram "chacota" das suas imagens esqueléticas, mas revelaram que estavam irreconhecíveis de tanta magreza.

Sobre os efeitos do crack no coração, sabe-se que esta droga inibe a remoção da dopamina que é liberada constantemente pelo cérebro, ocasionando também indução da liberação de adrenalina, causando elevação da frequência cardíaca e da pressão arterial, aumentando, assim, o risco de infarto do miocárdio e de derrame cerebral18.

Quanto aos músculos, esta droga causa degeneração irreversível da musculatura, chamada de rabdomiólise. Além disso, sobre o sistema neurológico, o crack provoca lesões no cérebro e consequente perda de neurônios, o que resulta em perda de memória, dificuldade de concentração e oscilações no humor com bastante frequência, levando o sujeito a uma severa instabilidade emocional17,18.

Essas sensações descritas foram evidentes durante o convívio com os jovens, pois, segundo os relatos a seguir, eles não lembravam nem o nome da parceira com quem estavam se relacionando, nem de informações que haviam assistido em uma palestra há uma semana, mostravam instabilidade no humor e dificuldade de concentração considerável:

Eu estou ficando com uma meninazinha, mas nem o nome dela eu sei direito (risos). Não é porque ela não me disse não, é porque eu esqueço. (U2)

Eu assisti uma palestra sobre as DST semana passada e agora não me lembro do que a moça lá falou para que eu pudesse te responder direito. (U6)

Eu queria que a senhora colocasse no nosso encontro atividades que a gente possa se mexer, fazer artesanato, porque a gente se concentra mais. (U10)

Quanto aos agravos da droga, o indivíduo ainda pode apresentar transtornos psiquiátricos, como a psicose, em que o sujeito revela um quadro de transtorno bipolar, a paranoia persecutória ou mania de perseguição, em que ele se sente constantemente perseguido e acha que sempre há alguém querendo prejudicá-lo, que a polícia está atrás dele, tudo de ruim está atrás dele e ele precisa se esconder. As alucinações e os delírios também ocorrem com frequência, conforme relatos dos jovens:

Eu ficava em casa só olhando para a luz dos postes, "noiado". (U4)

Como eu vivia na praia, aí quando eu ia para as festas nas boates, e que eu usava cocaína e ecstasy, eu ficava vendo onda, peixe, as coisas piscando o tempo todo. (U3)

Com relação à atividade sexual, no início do uso da droga, o sujeito se sente sexualmente mais ativo, porém com o passar do tempo ocorre processo inverso e os homens passam a ter dificuldade de ereção, além de perdem gradativamente o interesse pelo sexo, visto que a droga passa a lhes proporcionar maior sensação de prazer do que o ato sexual em si. Neste sentido, os usuários, para conseguirem dinheiro para adquirir droga e continuarem sentindo prazer, acabam praticando a prostituição e tornando-se vulneráveis à contração de IST graves, em particular a AIDS, tendo em vista que a evolução desta doença em um corpo bastante debilitado ocorre de forma rápida. Um fator agravante de tal situação reside em que, em muitos casos, os usuários não buscam tratamento. U2 foi o único que revelou ter tido uma IST:

Só uma vez aí que eu peguei uma DST, que o povo diz esquentamento, mas o médico só me deu uns remédios lá e uma injeção. O médico também não me disse o nome, só passou os remédios. (U2)

Outra consequência do uso do crack é a ausência de hábitos de higiene. Os usuários perdem o interesse por hábitos básicos de higiene, como tomar banho, escovar os dentes, etc. U7 foi o único que falou sobre isso:

Essa questão da higiene é séria mesmo, a gente nem se lembra de se cuidar. (U7)

Mediante as falas e discussões dos jovens sobre as drogas e IST, verifica-se que o conhecimento deles exige a necessidade de um trabalho de intervenção da enfermagem comunitária em favor desses jovens, no controle dessa vulnerabilidade19.

Quanto ao vídeo sobre o HIV, foram surgindo os seguintes questionamentos:

Como é que se faz este teste do HIV? Quais os tipos? A gestante faz como, é o rápido, ou é o normal? Mas, agora eu quero saber de onde veio a AIDS? Ela surgiu como? (U5)

Doutora e qual é a diferença do HIV e da AIDS? Não é a mesma coisa não? (U1)

Essa janela imunológica, não entendi, explica de novo? (U7)

Eu ouvi falar que o vírus da AIDS fica escondido na medula óssea, é verdade? (U8)

A pessoa não morre de AIDS não, morre por causa das doenças oportunistas. (U3)

Agora fiquei preocupado pensando que o cachimbo que eu fumava o crack, se eu compartilhei poderia ter pegue o HIV. (U6)

A maioria deles não sabia a diferença entre o HIV e a AIDS. Isto percorreu toda a discussão sobre o vídeo. Foi possível, com base na curiosidade dos sujeitos, percorrer a AIDS em sua total dimensão de questões. Um estudo que trabalhou a prevenção do HIV/AIDS com adolescentes pertencentes a grupos religiosos20 e outro que trabalhou a mesma temática com adolescentes em situação de rua21 também discutiram estas mesmas questões tratadas com os jovens neste círculo: a diferença entre o HIV e a AIDS, as doenças oportunistas, as formas de transmissão e prevenção, os mitos e tabus, os testes para diagnóstico, a origem desta doença, enfim assuntos pertinentes à temática do HIV/AIDS que depois se afunilavam para cada população específica estudada.

Após essas discussões com base nos vídeos, utilizou-se a dramatização para auxiliar o processo de desconstrução e (re)construção coletiva. O grupo foi convidado a elaborar e apresentar duas dramatizações com a utilização do teatro de fantoches, tendo sido dividido em três subgrupos. O primeiro representou a seguinte situação: o uso de drogas e a não contaminação pelo HIV; o segundo representou o uso de drogas e a contaminação pelo HIV; e o terceiro representou os jurados para julgar a melhor apresentação.

A primeira apresentação: o uso de drogas e a contaminação pelo HIV com a música de forró ao fundo da apresentação (Figura 1).

Figura 1. Preparação e dramatização sobre o uso de drogas e a contaminação pelo HIV elaboradas pelos jovens durante o Círculo de Cultura.

José: E aí, Marcela, tudo bem? A festa tá boa, né...Vamos tomar uma? Marcela: Vou não, hoje você não vai me pegar não. Se quiser vamos só dançar. José: Pois então bora dançar. Marcela: Aí, meu Deus, ele já tá me beijando.... João: Olha aí, galera, tudo bem? Vamos comprar uns bagulhinhos que eu tenho aqui para vender? José: Bora, bora sim, né, Marcela? Marcela: Não eu não quero nada. João: Olha eu tenho maconha, pedra da boa e cocaína. José: Pois me dá cinquenta conto aí de pedra cara. João: Na hora meu chapa. José: Tá aqui, falou. Olha aí gatinha, comprei cinquenta conto de pedra pra nós usar ó. Vamos para o banheiro nós dois, bora? Marcela: Ai, eu vou, bora. José: Eita negócio bom, doida, bora logo pra um motel, bora? Marcela: Vamos, vamos sim, tô doidona. José: Bora namorar logo Marcela, tira a roupa que eu tô doido. - Marcela sem nem pensar tira logo a roupa. - E os dois transam loucamente, e nem citam a possibilidade de usarem o preservativo. Fim!

A seguir, apresenta-se a segunda dramatização: o uso de drogas e a não contaminação pelo HIV (Figura 2).

Figura 2. Preparação e dramatização sobre o uso de drogas e a não contaminação pelo HIV elaboradas pelos jovens durante o Círculo de Cultura.

Luiz: Oi, gatinha, vai pra onde? Bora ali mais eu? Gatinha: Pra onde? Luiz: Numa parada. Gatinha: E vai dar certo? Luiz: Vai, é pra gente fazer amor. Gatinha: E é. Mas você tem camisinha? Luiz: Tenho não, mas eu posso mandar o meu amigo Chicão ir comprar. Vai lá Chicão. Chicão: Tô indo agora, meu patrão. - E, nisso, o Chicão foi comprar e não voltou mais, enquanto isso eles usaram drogas e ficaram muito loucos. Gatinha: Ah, meu filho, sem camisinha não vai dar certo. Aqui meu filho, o carrinho só entra protegido. Luiz: Meu irmão, eu vou matar o Chicão, ó doido. - Mesmo sob o efeito das drogas eles não tiveram relação sexual por conta que a Gatinha não quis de forma alguma sem preservativo. Fim!

Na avaliação dos jovens, o teatro com os fantoches foi a melhor e a mais divertida forma de aprender. O desafio de planejar e apresentar uma dramatização de pouca duração foi bastante motivador e, ao mesmo tempo, marcado por várias dificuldades apresentadas pelos jovens, no que diz respeito à desenvoltura de encenar, mesmo com os fantoches. Mas, ao final da criação, percebeu-se o quanto foi prazeroso para eles retratar nas dramatizações o contexto da realidade na qual estavam inseridos.

No âmbito da Enfermagem, o teatro é uma prática comumente utilizada na educação em saúde da população que visa à criatividade e à comunicação, em uma perspectiva lúdica, facilitando o processo de ensino-aprendizagem. Esse método permite também introduzir um trabalho educativo com temáticas diversificadas em um ambiente alegre e descontraído, gerando expressões carregadas de liberdade22.

Na opinião dos jurados, o grupo dois foi melhor, deixando todos muito felizes e satisfeitos.

Foi muito legal, e é porque nós não temos experiência, mas da próxima ainda vai ser melhor. (U5)

Foi muito divertido, enquanto estávamos aprendendo, estávamos dando muitas gargalhadas com a atuação dos colegas. (U10)

O estudo com os meninos em situação de rua também utilizou a dramatização como forma de aprendizado para falarem sobre comportamento de risco e comportamento seguro diante das IST/AIDS. Para eles, esta atividade foi motivadora, uma vez que entre os adolescentes havia um que tinha experiência circense e estava acostumado com este tipo de criação, apresentando habilidades na construção de pequenas peças teatrais, fazendo, assim, que o interesse e a criatividade dos colegas aumentassem, tornando a atividade bastante prazerosa, como também foi para o grupo em estudo21.

Por meio dos personagens criados a partir dos fantoches, os jovens encenaram formas de contaminação ou não ao HIV e teceram uma apreciação crítica e reflexiva desta realidade, como se constata nos seguintes relatos:

Quando eu me drogava, eu me "relacionava" muito, tive relação com pessoas que usavam cocaína/crack, e me submeti a relações sexuais em troca de dinheiro ou de drogas, contudo usei preservativo em todas as relações. (U1)

Penso que algumas situações vivenciadas por mim poderiam ter facilitado a infecção pelo HIV: ao fazer tatuagem de forma caseira, quando usava drogas e quando levou várias facadas em uma briga. (U2)

Eu tive relação sexual com mulheres usuárias de crack. (U3)

Acredito que existe associação entre ser usuário de drogas e a infecção pelo HIV, uma vez que o indivíduo fica vulnerável por causa do efeito da droga, e que às vezes a pessoa queria ter relações sexuais, transar com alguém e não se lembrava de querer se proteger, de usar camisinha. (U5)

Eu acredito que por não ter tido relação sexual, não tive nenhum risco de pegar este vírus. (U7)

Eu me envolvi sexualmente com muitas prostitutas e mulheres usuárias de drogas. (U8)

Em suas falas, os jovens revelaram um cenário preocupante, onde o consumo de drogas, em especial o crack, tem sido fortemente associado a uma possível infecção pelo HIV. Os comportamentos de risco mais observados foram o elevado número de parceiros, as relações sexuais em troca de dinheiro ou de drogas e a perda da consciência, que favorece a não utilização do preservativo. Além disso, nenhum dos adolescentes relatou saber da possibilidade de contaminação pelo HIV através do compartilhamento de canudos e cachimbos para o uso da cocaína e crack, respectivamente.

A enfermagem tem um papel importante na promoção da saúde dos indivíduos, uma vez que favorece a reflexão sobre seus modos de vida, a fim de transformá-los em sujeitos capazes de tomar decisões saudáveis, como também a serem protagonistas na luta por seus direitos. É importante o debate da situação real vivenciada por grupos específicos para que o indivíduo busque identificar a vulnerabilidade em seu contexto.

Para Freire, ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria. É preciso reinsistir em que não se pense que a prática educativa vivida com afetividade e alegria prescinda da formação científica séria e da clareza política dos educadores e dos educandos. A prática educativa é isso: afetividade, alegria, capacidade científica, domínio técnico a serviço da mudança ou, lamentavelmente, da permanência do hoje23.

Neste sentido, os jovens avaliaram o encontro com diversos sentimentos despertados naquele dia:

Eu amei o dia de hoje, quando é o dia que a senhora vem, a gente acorda 5h da manhã. (U5)

Foi muito legal mesmo. (U4)

Percebeu-se, nas dramatizações, que os participantes mostraram fielmente a vulnerabilidade dos usuários de drogas, principalmente os de crack, quanto ao HIV/AIDS. A partir dessa vivência, os jovens entenderam a relação entre ser usuário de drogas e o aumento da vulnerabilidade à infecção pelo HIV/AIDS.

É importante considerar, no tratamento de abuso de substâncias, estratégias baseadas em terapia, incluindo a comportamental e terapias baseadas na família, para a utilização de medicamento, bem como medidas de educação para as diversas situações de vulnerabilidade que podem vivenciar. Dentre estas, a do contágio ou transmissão das IST24.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento deste estudo possibilitou realizar uma intervenção educativa com jovens usuários de crack sobre a vulnerabilidade destes ao HIV/AIDS na comunidade terapêutica.

Evidenciou-se que a abordagem desta temática para os jovens é muito complexa, principalmente porque esse assunto mexe com a intimidade destes. Para quebrar esta barreira, procurou-se utilizar um recurso pedagógico dinâmico e lúdico, aproximando-se da realidade deles, a fim de que se sentissem à vontade e participassem de forma espontânea, sem medos e vergonhas dos companheiros, fazendo com que o conhecimento fosse construído de forma colaborativa durante a intervenção educativa.

A problematização proporcionada pelo Círculo de Cultura permitiu aos jovens usuários de crack o desvelar de suas vulnerabilidades ao HIV/AIDS, visto que o conhecimento prévio destes jovens acerca do HIV/AIDS era incipiente e com predominância de mitos. Logo, com a discussão grupal, foi possível reconhecerem que o compartilhamento de canudos e cachimbos para o uso da cocaína/crack e a perda da consciência favoreciam ao não uso do preservativo durante as relações sexuais e à multiplicidade de parceiros, aumentando, assim, o risco de infecção pelo HIV/AIDS.

A intervenção educativa criou possibilidades para a inserção do enfermeiro no cenário da comunidade terapêutica, a fim de fortalecer articulações em rede para o trabalho de prevenção ao HIV/AIDS entre usuários de crack.

É importante destacar as limitações do estudo, a saber: os jovens não possuíam em seu processo contínuo de tratamento práticas reflexivas que os levassem a adotar uma postura proativa durante as ações desenvolvidas e a falta de continuidade das atividades educativas com a finalidade de favorecer um processo de recuperação desses sujeitos.

Ressalta-se a necessidade da realização de outros estudos com uma amostra mais representativa e que utilizem instrumentos que possibilitem a avaliação do Círculo de Cultura como estratégia metodológica que favoreça a construção de espaço crítico-reflexivo acerca da prevenção do HIV/AIDS entre jovens usuários de crack.

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* Extraído da dissertação "Círculo de Cultura com jovens usuários de cocaína/crack visando a prevenção do HIV/AIDS", apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Ceará (UFC), em 2013.

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