Volume 20, Número 3, Set/Nov - 2016
PESQUISA
O apoio da rede social no cuidado domiciliara
Ingrid Meireles Gomes
1
Maria Ribeiro Lacerda
2
Jéssica Alline Pereira Rodrigues
1
Tatiana Braga de Camargo
1
Débora Cristina Paes Zatoni
1
Verônica Silva Nascimento
1
1 Universidade Federal do Paraná (UFPR). Curitiba. Paraná, Brasil
2 Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria. Porto Alegre, Brasil
Recebido em 21/09/2015
Aprovado em 09/03/2016
Autor correspondente:
Ingrid Meireles Gomes
E-mail:
inguide@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Interpretar a vivência do apoio da rede social pelas pessoas envolvidas no
cuidado domiciliar.
MÉTODOS:
Trata-se de uma teoria fundamentada nos dados, com 12 participantes,
pacientes em cuidado domiciliar, membros de redes sociais primárias e
secundárias; realizada na área de uma Unidade de Saúde Estratégia de Saúde
da Família de um município metropolitano do Sul do Brasil. Utilizou-se de
entrevistas semiestruturadas para coleta de dados e análise de dados foi
segundo Glaser.
RESULTADOS:
Elencaram-se quatro categorias que descrevem o fenômeno em estudo
"identificando as fontes de apoio no cuidado domiciliar", "caracterizando as
redes sociais que fornecem apoio no cuidado domiciliar", "compreendendo-se
como parte da rede social que fornece apoio no cuidado domiciliar" e
"percebendo mudanças decorrentes do cuidado domiciliar".
CONCLUSÕES:
Destaque para relevância das redes sociais no cuidado domiciliar, o
enfermeiro como apoio social significante, uso de recursos eletrônicos como
fonte de apoio e necessidade de participação da população.
Palavras-chave: Assistência Domiciliar; Rede Social; Apoio Social.
INTRODUÇÃO
Aspectos como a alteração do perfil demográfico e epidemiológico da população, com consequente ampliação de doenças crônico-degenerativas e da população idosa; a falha no sistema de referência e contra referência, que acarreta em hipertrofia das emergências hospitalares; a busca crescente por melhor qualidade na atenção, com incremento ao conforto e privacidade no domicílio; e ainda a diminuição dos custos e da sobrecarga hospitalar1-3 demonstram que no panorama social atual o cuidado domiciliar (CD) emerge como opção integradora entre rede básica de atenção em saúde e a rede hospitalar, possibilitando maior visibilidade e complementariedade na rede de atenção em saúde como um todo.
O CD envolve atividades, programadas e continuadas, relacionadas à prevenção, promoção, tratamento e reabilitação em saúde4 e o cuidado com a morte, variando em função do contexto em que se insere. Assim, percebe-se que, nesse contexto, busca-se superar a ideia de tratamento da doença, primando pela manutenção da saúde. Para tal, faz-se necessário compreender que o sujeito não existe sozinho, faz parte de uma rede social que influencia e é influenciada por situações de adoecimento. A mudança do local de prestação de serviços em saúde por si só pode não ser capaz de romper com o modelo hegemônico curativista, contudo o CD apresenta um caráter transformador que potencializa a reflexão acerca das concepções de ser humano, processo saúde e doença, bem como o reconhecimento das individualidades e múltiplas relações existentes para concretizar o cuidado2.
Diante da compreensão do CD como alternativa viável para a construção de uma filosofia de cuidado mais abrangente, acredita-se que mesmo sendo considerado como uma interface entre a unidade básica e a rede hospitalar3; há que se refletir que até o momento trata-se de uma tentativa de efetivar essa interface, considerando-se que existem ainda algumas dificuldades no alcance das expectativas que lhe são atribuídas, enquanto política pública de saúde.
Trata-se de assistência prestada por uma equipe interdisciplinar ao binômio paciente-família em seu domicílio, considerando aspectos físicos, psíquicos, históricos, socioeconômicos, culturais e espirituais. Compreende pois, também, a rede social de que o sujeito faz parte e de que pode vir a fazer para o alcance de sua qualidade de vida.
Dessa forma, redes sociais representam as tramas de relacionamentos que o sujeito institui e as características dessas relações sociais5, que interferem, influenciam e são influenciadas pelo comportamento dos indivíduos. O aspecto funcional dessas redes, os recursos efetivamente utilizados, representam o apoio social5.
As redes sociais podem ser caracterizadas em seus aspectos estruturais, tais como tamanho, densidade, composição, dispersão e heterogeneidade; em suas funções, como companhia social, apoio emocional, guia cognitivo, regulação social, ajuda material e de serviços e acesso a novos contatos; e em seus atributos de vínculo, tais como função predominante, multidimensionalidade, reciprocidade, intensidade, frequência de contatos e história6. Podem ainda ser divididas em redes sociais primárias ou secundárias. As primárias são aquelas com vínculos de reciprocidade e confiança, são as relações de parentesco, amizade e/ou vizinhança. As secundárias podem ser formais e/ou informais, de terceiro setor, de mercado ou mistas7.
Não se pretende aqui aprofundar a discussão acerca das redes sociais, reconhece-se que seus limites não estão restritos ao apoio social existente ou ausente, mas que esta é apenas uma das vertentes atreladas ao conceito de redes sociais. Porém, nesta pesquisa buscou-se conhecer este aspecto, o apoio proveniente dessas redes sociais.
O apoio social ofertado em redes sociais apresenta uma ampla gama de benefícios relacionados aos aspectos físicos, mentais, psicológicos, sociais e emocionais. Contudo, nem sempre os profissionais de saúde utilizam o conhecimento sobre redes disponíveis como instrumentos para potencializar a saúde dos indivíduos. Acredita-se que seja papel do profissional de saúde que atua no CD reconhecer esta peculiaridade do cuidado e recorrer a seus benefícios para a saúde em prol dos indivíduos e da sociedade.
Esse é um desafio necessário para a superação do modelo biológico, um passo a mais para a compreensão da complexidade humana. Dessa forma, pode-se evitar que redes com papel colaborativo no tratamento, assim como na prevenção e promoção da saúde, deixem de ser utilizadas pela sociedade por desconhecimento.
Diante do exposto, propôs-se a realização de uma pesquisa, que originou uma dissertação de mestrado intitulada "A vivência do apoio da rede social pelas pessoas envolvidas no cuidado domiciliar", que teve como objetivos: interpretar o significado da vivência do apoio da rede social pelas pessoas envolvidas no CD e construir um modelo teórico que configurasse essa vivência.
Dos objetivos propostos para a pesquisa em questão, a construção do modelo teórico, sobre a referida vivência, pode ser verificado em artigo publicado8. Propõe-se aqui apresentar os dados decorrentes do primeiro objetivo, e, portanto, para este estudo tem-se como objetivo interpretar a vivência do apoio da rede social pelas pessoas envolvidas no CD, a partir das categorias emergentes no modelo teórico supracitado.
MÉTODOS
Tratou-se de uma pesquisa qualitativa, com a utilização do método denominado Grounded Theory ou Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), que tem seu uso ampliado nos últimos anos na enfermagem9. Ele alia técnicas e procedimentos sistematizados de análise à capacidade de desenvolver teorias fundamentadas na realidade social vivenciada, une, dessa forma, a profundidade das tradições interpretativas qualitativas à lógica e rigor das quantitativas9,10.
De acordo com o método, os participantes são selecionados em grupos amostrais (GA) até que se alcance a saturação teórica, sendo a coleta e análise de dados concomitantes e responsáveis por nortear a seleção de próximos participantes e a necessidade ou não da criação de novos GAs. Totalizaram-se 12 entrevistas, porém 11 participantes; visto que foram realizadas duas entrevistas com o primeiro participante do primeiro GA, possibilidade validada pelo uso da TFD.
Os participantes compuseram três GAs: para compor o primeiro grupo idealizou-se quais os sujeitos que teriam maior probabilidade de relatar a vivência no fenômeno, por isso optou-se pelos pacientes que encontravam-se em cuidado domiciliar, os critérios de seleção foram ser adultos ou idosos, que estivessem em CD há mais de seis meses atendidos pela Unidade de Saúde Estratégia de Saúde da Família (USESF) referência para este estudo, com cuidador familiar responsável e que conseguissem se comunicar de forma oral; aqueles que não se enquadraram em qualquer desses critérios não foram considerados. Os sujeitos foram abordados seguindo o cronograma de visitas domiciliares da UBESF; perfizeram esse grupo quatro participantes. O segundo GA foi composto por membros das redes sociais primárias citadas pelos participantes do primeiro GA, com relação de vizinhança, parentesco e/ou amizade, num total de três participantes. O terceiro GA contemplou membros das redes secundárias, citadas nos dois grupos anteriores e no próprio terceiro grupo, que findaram em quatro participantes, sendo uma enfermeira, um médico, um fisioterapeuta e um representante da Secretaria Municipal de Saúde.
Para facilitar a compreensão dos dados, esses participantes receberam ao longo do texto codinomes a partir do GA em que fizeram parte e número da entrevista. Assim, os participantes do primeiro GA foram identificados como paciente, os do segundo GA como membro da rede social primária, e os do terceiro GA como membro da rede social secundária.
O estudo seguiu a resolução nº 466/2012 e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob o registro CEP/SD1198.123.11.08. Os dados foram coletados após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, por meio de uma entrevista gravada semiestruturada, modificada a cada nova coleta, conforme pressupõe o método da TFD. Ocorreu entre janeiro e agosto de 2012, no território da área de abrangência de uma Unidade de Saúde Estratégia de Saúde da Família (USESF) de um município da região metropolitana de Curitiba, Sul do Brasil.
A análise de dados seguiu o modelo proposto por Glaser, descrito em duas etapas: a codificação substantiva, subdividida em codificação aberta e seletiva; e a codificação teórica. A codificação é um processo sistemático em que o pesquisador desmembra os dados e reagrupa-os, de forma a, conceitualmente, alcançar a formulação da teoria ou modelo teórico que explica a realidade em estudo10,11.
RESULTADOS
A codificação dos dados que possibilitou a elaboração do modelo teórico denominado "A vivência do apoio da rede social pelas pessoas envolvidas no cuidado domiciliar", foi descrita por meio de quatro categorias aqui discutidas: "Identificando as fontes de apoio no cuidado domiciliar", "Caracterizando as redes sociais que fornecem apoio no cuidado domiciliar", "Compreendendo-se como parte da rede social que fornece apoio no cuidado domiciliar" e "Percebendo mudanças decorrentes do cuidado domiciliar".
Identificando as fontes de apoio no cuidado domiciliar
Em relação às redes sociais primárias abordam-se as relações de parentesco, vizinhança e amizade, identificadas como de maior intimidade. Nesse contexto, a família é a rede social primária apontada como principal suporte para quem se encontra em CD, sendo citados, em especial, irmãos e cônjuges.
A maior responsabilização do gênero feminino no cuidar é percebida, principalmente, na expectativa de apoio social advinda dos filhos. A falta de apoio é mais aceita quando se trata de filhos do sexo masculino. Quando só existem filhos homens, outras pessoas se motivam a se envolver no CD:
Aí comecei a ajudar e fazer as coisas para ela lá, ajudar, porque os meninos, são só filhos homens que ela tem. "[...]" Coitada, ela é sozinha, só tem filho homem (Membro da rede primária - 7)
Às vezes, a gente tem que estar reunindo a família "[...]" para estar cuidando melhor do paciente, porque, conforme a família precisa mais de ajuda... principalmente quando tem muito homem, não tem mulher para ajudar no cuidado... (Membro da rede secundária - 11) .
Embora a família seja muito valorizada nesse ambiente de cuidado, destacam-se também queixas de falta de apoio por parte de seus membros. Dentre os problemas mencionados, ressalta-se o pedido de recompensa financeira, a realização de cuidados de forma inadequada e brigas entre membros da família quanto às responsabilidades com o CD:
Agora ele e as outras irmãs não estão conversando. Brigaram porque elas foram para praia em janeiro, e ele achou que elas tinham que ficar cuidando de mim, e elas não ligaram. Aí ele achou ruim e brigou com elas. Agora eles não se falam por culpa de ter que cuidar de mim (Paciente - 2).
Vizinhos também são mencionados nos diferentes grupos amostrais, sendo que, normalmente, há um vizinho específico com o qual se fortalece a relação social após o CD, os demais não oferecem apoio significativo. Quando citam amigos, associa-se a esse vizinho mais próximo, sendo que amigos sem relação de vizinhança são pouco referenciados.
As redes sociais secundárias citadas são USESF, igreja e clínica de fisioterapia. Os profissionais que se sobressaem como apoio social no discurso dos membros das redes sociais secundárias são os agentes comunitários de saúde, enquanto para os pacientes e redes sociais primárias são enfermeiros e médicos:
Meu relacionamento mais é com a enfermeira, porque eu a conheço faz uns sete anos mais ou menos. (Paciente- 3).
A USESF evidencia-se como principal rede social secundária, tendo sua valorização ressaltada, embora problemas relacionados a essa rede de apoio sejam citados: o desconhecimento da população sobre o funcionamento e as diferentes categoriais e funções dos profissionais de saúde; a escassez de recursos humanos e materiais, e más condições de trabalho.
Reconhece-se a dificuldade de receber apoio no domicílio, os participantes afirmam que, quando não estavam restritos ao domicílio, obtinham mais cuidados em saúde da USESF; uma vez que tinham a possibilidade de se locomover até a unidade. Percebe-se que o comportamento do serviço ainda está arraigado no modelo de UBS:
Antes, quando eu podia andar, eu ia até a unidade. Uma vez por semana eu ia, mas agora não posso. Só de vez em quando, quando eles vêm que verificam minha pressão [...] Só que minha pressão ela é descontrolada, [...] então eu tinha que ter o acompanhamento semanal (Paciente - 5).
No município onde esta pesquisa ocorreu, os atendimentos de fisioterapia públicos são terceirizados pela prefeitura, serviço que é relativamente de fácil e rápido acesso; acredita-se que esse seja o motivo pelo qual, além da USESF, o apoio fisioterápico seja o único mencionado enquanto rede social com caráter de atendimento profissional.
A igreja também é referenciada como rede social secundária, sob dois diferentes contextos, mais como apoio individual dos membros que dela fazem parte, enquanto amigos ou vizinhos daquele que se encontra em CD, e menos como instituição religiosa em si. Ou seja, quando os participantes mencionam o apoio vindo da igreja, na verdade apontam o apoio das pessoas que conhece a partir da igreja, de forma individual, por laços de amizade, e não pela igreja enquanto instituição. Assim, o apoio citado em relação à igreja tem características de apoio primário e não secundário.
Não tem negócio da igreja não. A igreja ajuda muito, tem a parte dela também né, mas na verdade tem uma irmandade, [...] a gente fala a igreja ajuda, mas ajudar é modo de dizer, quem ajuda são os conhecidos dali. (Membro da rede primária - 8).
O discurso dos participantes aponta que, além do apoio obtido ou esperado diretamente de pessoas, o uso de recursos eletrônicos, tais como o telefone, o rádio e a televisão, emergem como fontes de apoio; são meios que facilitam o acesso ao apoio. Destes, o principal recurso referido é o telefone, considerado relevante ferramenta para quem está em CD, por viabilizar o contato com o exterior. O rádio e a televisão, além de companhia social, são recursos que propiciam apoio espiritual, facilitando o acesso à missas e cultos.
Pondera-se nessa categoria ainda sobre os problemas que a população encontra nas tentativas de obter apoio das redes formais secundárias: os excessivos entraves burocráticos existentes, para que se consiga apoio formal disponível e a inconstância do apoio formal disponibilizado. Fatores que geram naquele que consegue algum apoio formal o medo de perder esse apoio, com consequente sensação de impotência e insegurança e a sensação de ser humilhado ao procurar apoio formal.
Os participantes referem que, no CD, a população acaba por assumir responsabilidades que consideram caber a fontes formais governamentais de apoio, tais como cuidados de saúde, gastos com medicamentos de alto custo e com atendimento médico de determinada especialidade, assim como recursos materiais de longa duração para cuidado no domicílio:
E teve vezes que eles mandaram fazer curativo e eu tomava banho, e ficava com o ferimento desprotegido esperando até eles aparecerem. Não apareciam, ou quando vinham não tinha material. (Paciente - 3).
Caracterizando as redes sociais que fornecem apoio no cuidado domiciliar
Dentre as funções do apoio social citadas, o destaque se dá para o tipo companhia social, referenciado e ressaltado nos três GA, é possível notar que simplesmente ter companhia e não se sentir isolado do mundo social fora do domicílio pode ter um expressivo valor para o paciente:
Porque você, às vezes, precisa mais de um amigo do que de alguém que faça qualquer coisa pra você. Até só de pode me ajudar, me ouvir, estar disponível para sempre que eu precisar. Eu não tenho, então os poucos que aparecem é muito precioso (Paciente - 3).
Acerca do apoio do tipo ajuda material e de serviços, nota-se que envolve uma ampla gama de itens, dos quais se acentuam os cuidados de saúde, com locomoção, com afazeres domésticos e com cuidados pessoais.
Os cuidados de saúde, realizados, principalmente, pela família, seguido dos profissionais da USESF, abarcam desde estímulos motores para reabilitação, dieta específica até procedimentos específicos, tais como curativos. De forma semelhante os cuidados com afazeres domésticos são designados à família.
Os cuidados pessoais são poucas vezes mencionados nas falas dos participantes, o que demonstra a ideia de que a pessoa em CD é, muitas vezes, vista apenas como paciente, como um corpo adoecido, e não como ser humano, que tem necessidades complexas, que superam o físico. Concepção que se perpetua, inclusive, no relato dos próprios pacientes, os quais citam os cuidados em saúde em detrimento dos pessoais. Outros tipos de apoio social também foram citados, porém com menor evidência, tais como apoio emocional, guia cognitivo e de conselhos e acesso a novos contatos.
A respeito do tamanho da rede social que oferece apoio no CD, nota-se que é pequena, ou seja, poucas pessoas fazem parte da rede social que oferece apoio ao CD desses pacientes. Essa informação vai de encontro com a satisfação dos participantes com sua rede, pois, embora alguns participantes apontem a necessidade de mais membros nas redes, quando questionados diretamente sobre sua satisfação com a rede social existente, quase sempre se dizem satisfeitos.
A densidade entre as diferentes fontes de apoio mencionadas pode ser identificada como baixa, praticamente inexiste a conexão e apoio recíproco entre membros de diferentes fontes:
Não, nunca foi tentado assim. Engraçado, o social funciona separado da saúde, deveria de ser junto. Não tem de jeito nenhum interação entre esses serviços. (Membro da rede secundária - 12).
Não, sobre o cuidado dos profissionais das clínicas [de fisioterapia] a gente não tem retorno nenhum. (Membro da rede secundária - 11) .
É possível reconhecer que as redes sociais primárias são multidimensionais, enquanto as secundárias não. A frequência de contatos dentro da rede é citada de forma diversificada, familiares mais próximos e aquele vizinho com papel significativo aparecem como contatos de alta frequência, enquanto a vizinhança, em geral, e familiares com diferentes tipos de parentesco mostram-se como contatos de baixa frequência; outras redes sociais não são mencionadas em relação à frequência.
Compreendendo-se como parte da rede social que fornece apoio no cuidado domiciliar
Quando os participantes atribuem significados pessoais em fazer parte da rede social que fornece apoio no CD, surgem sentimentos, positivos e negativos, assim como motivações. Os sentimentos são ambíguos para os diferentes participantes envolvidos nessa vivência, porém, vale ressaltar que essa ambiguidade é marcante no discurso daqueles que fazem parte de redes sociais secundárias formais. Satisfação e frustração convivem simultaneamente, mormente por meio da percepção sobre a efetividade do trabalho no CD:
Quando a gente consegue as coisas, tem aquele apoio da família, a gente tem uma satisfação, claro! Quando a gente vê que a coisa caminha aquilo vai que é uma beleza. Agora quando a família não atende, não cuida direito, [...] a gente fica frustrado um pouco. Então a gente sofre um pouco (Membro da rede secundária - 11).
Dentre os sentimentos positivos sobressaem-se a satisfação e o prazer em ajudar, o sentir-se importante para alguém e receber afeição pelo apoio oferecido. Já os sentimentos negativos apontam para a sobrecarga de responsabilidades, o temor em atrapalhar mais que ajudar, a insegurança, a impotência e o sofrimento por considerar a situação do paciente em CD como negativa.
As pessoas tidas como fontes de apoio, seja por sua ação particular ou enquanto instituição, reconhecem o valor do apoio que oferecem e afirmam que participar da rede social que dá apoio no CD torna-as referência para outros que também precisam de apoio, avultando-se, assim, a rede social daquele que apoia:
Depois que comecei a cuidar dela [paciente em CD], vem muita gente pedir ajuda, conselho. Tem senhorinhas que vem pedir para a gente sempre estar rezando juntas. É... eu ajudo, tem uma e outra que sempre vem pedir. Sempre estou no meio delas (Membro da rede primária - 6).
Afirma-se que a existência de redes sociais que fornecem apoio no CD facilita essa prática e que a existência de uma rede pode ser muito importante para outra, complementando-se. Para os pacientes o valor do apoio social também é reconhecido, destaca-se essa valorização em relação a sua melhora física ou emocional, ao aumento da sobrevida e na resolução de problemas pessoais e sociais. A influência para os familiares é pouco refletida, estando atrelada, principalmente, à possibilidade de melhora do paciente.
Motivações para fazer parte da rede social do sujeito em CD são variadas, com destaque para a benevolência, obrigação moral e proximidade da pessoa em CD, sendo ainda apresentados como motivos: empatia pela pessoa adoecida, existência de vínculo forte anterior à necessidade de CD, obrigação profissional, paciência e vínculo familiar. Refere-se à oferta de apoio ao outro como forma característica da personalidade:
Mas isso é deles [equipe da USESF] mesmo. "[...]" Pessoal é assim, a maioria quer ajudar os pacientes por si mesmo (Membro da rede secundária - 11).
O sujeito que está na situação de paciente, assume também o papel de fonte de apoio dentro de sua rede social, em especial para aquele que convive na mesma residência e que passou a assumir responsabilidades antes exclusivas do paciente; porém, também, há casos em que o paciente se mantém numa relação de co-dependência com outro:
Então a gente tinha uma paciente que a gente visitava em casa e o filho era alcoólatra. Ela queria cuidar desse filho, e era ela quem precisava de cuidado, a situação era cíclica (Membro da rede secundária - 11).
Nessa categoria, aborda-se ainda o papel dos participantes na busca por apoio disponível. Percebe-se que os participantes queixam-se de falta de apoio, sem que haja em contrapartida a procura, desses mesmos indivíduos, por formas de apoio disponíveis, mesmo quando estes têm acesso à informação de como obter a ajuda necessária. Mantendo uma postura passiva em relação ao apoio que pode desfrutar:
Já falaram para nós que tem um local que eles vêm pegar ela em casa, leva, fica até meio dia. Mas a gente não foi atrás. E então é só isso aí, fica só naquele tem tem tem [...] Aí fazer igual outro disse, oferecer em casa ninguém vem (Membro da rede primária - 8).
Percebendo mudanças decorrentes do cuidado domiciliar
Esta categoria aborda mudanças tanto para o paciente em CD, como para aquele que é apoio a este paciente. Para os pacientes, as mudanças percebidas podem ser entendidas como mudanças sociais, tais como o fortalecimento ou diminuição de vínculos, e para um único participante, também o início de novas relações; mudanças pessoais, no que tange à modificação de sentimentos desses pacientes, em especial, a fluência de sentimentos negativos; e por fim, mudanças operacionais no cotidiano desses participantes, acerca da restrição ao domicílio, o aumento nos gastos com saúde e a maior dependência de outras pessoas:
Não vou, a igreja é perto "[...]" mas não vou mais, porque agora eu dependo de condução pra ir. (Paciente - 4)
Eu acho que o dinheiro que eu poderia investir numa alimentação melhor, ou em outra coisa, tem que estar tudo indo com o medicamento. (Paciente - 5).
Para aquele que é apoio social ao paciente em CD também existem mudanças pessoais, tais como a diminuição na frequência de contatos com sua própria rede social, alteração da rotina, necessidade de conhecimento de novas tarefas, cuidado do outro em detrimento de si:
O que ela fazia tocou para eu fazer, praticamente tudo no começo. Tive que aprender. (Membro da rede primária - 8)
Eu fico aqui em casa, mas meu pensamento está ali. Está ali na casa dela, será que a fulana [paciente em CD] está bem? Será que está tudo bem lá? Então a gente fica com a cabeça preocupada ali e não consegue fazer nada pra mim (Membro da rede primária - 7).
DISCUSSÃO
A questão do gênero feminino intrincada ao cuidar remete à condição da mulher no papel de cuidadora natural; sobre isso pondera-se que a visão da necessária disponibilidade da mulher se inicia com os gestores públicos12, situação ratificada nesta pesquisa que demonstra que nas redes sociais secundárias se espera a presença de uma mulher para realizar o cuidado. Isso precisa ser repensado, visto que nem sempre existe uma figura do sexo feminino disponível para tal função, e quando isso ocorre, exime-se o homem de assumir tal responsabilidade e considera-se um domicílio sem cuidador, situação que inviabiliza a adequada realização do CD profissional. Assim, reforça-se socialmente uma característica de discriminação sexual.
Estudos que apresentam os principais profissionais de saúde citados como fonte de apoio, assim como esta pesquisa aponta médicos e agentes comunitários de saúde13-15; em um estudo15 o enfermeiro é apontado e, ainda assim, pondera-se sobre seu real papel, visto a marcante confusão da população quanto aos papéis profissionais dentro da enfermagem. Destaca-se, nesta pesquisa, o papel significativo de oferta de apoio social propriamente do enfermeiro, pois os participantes citaram os nomes dos profissionais, o que possibilitou às pesquisadoras terem ciência de que falam especificamente dos enfermeiros.
A ausência de menção do enfermeiro enquanto apoio social relevante em outros estudos carece de reflexão, principalmente quando nota-se que em estudos que refletem sobre o papel desse profissional, essa relação é preponderante16-18. Tem-se aí um paradoxo entre o que se espera desse profissional e o que ele tem representado efetivamente na comunidade. Esta pesquisa, no entanto, que demonstra o destaque do enfermeiro a partir do discurso da própria população, pode demonstrar que talvez esteja havendo uma aproximação entre o esperado e o efetivado por esse profissional em sua prática na ESF. Ressalta-se que se fazem necessárias novas pesquisas que possam confirmar essa hipótese.
A compreensão dos recursos eletrônicos como fonte de apoio social merece ser aprofundada, principalmente pelo constante desenvolvimento de novas tecnologias e pela facilidade crescente de utilizá-las como ferramentas de comunicação. Embora se proponha a utilização desses recursos como possibilidade de ampliação do apoio disponível, inclusive para os familiares18, pondera-se que, para que sejam efetivos como apoio social, esses recursos precisam ser utilizados de forma adequada13.
Em relação ao tipo de apoio, ajuda material e de serviços nota-se na literatura15, corroborando com os achados desta pesquisa, a predominância de atividades práticas em prol do paciente. O que demonstra que, mesmo no domicílio, que é um ambiente de cuidado distinto por viabilizar ações direcionadas para a integralidade e singularidade do ser humano1, frente às atividades práticas do cuidar do corpo, a preocupação com as subjetividades e mesmo com o cuidado de si são muitas vezes esquecidas.
O despertar de novos sentimentos em consequência do CD é comum, sejam eles positivos ou não, lidar com eles da melhor maneira possível é importante para que a prática do CD evolua. Isso deve ser compreendido tanto por pacientes como pelos membros da rede, que também tem seus sentimentos modificados. Com predomínio de sentimentos ambíguos, os significados do cuidar atribuído a cada cuidador variam de acordo com o contexto de vida experenciado19, sendo possível, ainda assim, perceber que os cuidadores percebem o CD como oportunidade de aprendizagem, crescimento e realização pessoal20.
Embora se reflita sobre a ambiguidade de sentimentos no CD, normalmente, associa-se essa vivência ao cuidador informal, em especial ao familiar19. Nesta pesquisa, no entanto, diferentemente, essa ambiguidade se destacou dentre membros de redes secundárias, os profissionais de saúde, que, assim como os familiares, também influenciam e sofrem influências pelo CD que prestam.
Uma responsabilidade, por vezes, atribuída exclusivamente aos profissionais de saúde, ou às instituições que eles representam, é a oferta de apoio formal. Contudo, não depende apenas da equipe de saúde a responsabilidade por conseguir apoio utilizando-se das redes. Essa responsabilidade deve ser compartilhada, cabe ao paciente e/ou familiar/cuidador buscar as fontes de apoio disponível de que toma conhecimento. Embora se reconheça que a facilidade que os participantes tem em fazer contato com os recursos disponíveis influencie o alcance do apoio existente18.
Percebe-se uma postura passiva daqueles em CD. Espera-se que a fonte de apoio venha até o domicílio, sem, entretanto, demonstrar interesse em consegui-lo. Aqui existe uma questão de responsabilização, a população que se queixa, deve desempenhar uma ação conjunta com a macroestrutura da qual reclama.
Embora nessa pesquisa a importância do apoio social para a família tenha sido descrita pela influência que isso traz para o paciente e apenas indiretamente para os familiares; é importante ponderar que as redes sociais apresentam grande relevância para a família e cuidador18,20.
Assim, é possível perceber que, embora se saiba que o CD influencia também a vida familiar, não há a percepção dos participantes de que o apoio da rede social é capaz de minimizar as dificuldades desses participantes e até mesmo impedir o adoecimento físico ou mental advindo do cuidar no domicílio. Redes sociais, tais como grupos de apoio a familiares ou mesmo que auxiliem na aquisição de materiais, que atuem como companhia social, não apenas para o paciente, dentre outras, poderiam potencializar a prática do CD, à medida que viabilizam a manutenção da saúde do cuidador, auxiliando ainda no seu preparo para o cuidado.
CONCLUSÕES
Acredita-se que esta pesquisa tenha possibilitado a compreensão da vivência do apoio da rede social pelas pessoas envolvidas no CD, permitindo vislumbrar suas nuances, dificuldades, facilidades e necessidades, principalmente, por apresentar o diferencial de incluir os diferentes atores envolvidos na vivência em estudo, e não apenas pacientes. Assim, espera-se contribuir para instrumentalizar os enfermeiros a aproveitar das possiblidades que o reconhecimento e utilização das redes sociais podem oferecer para o CD.
Embora se saiba que nem sempre a rede social tenha impacto positivo na vida dos indivíduos e, concretamente, represente apoio social, a relevância das redes sociais para a saúde das pessoas se destaca nesta pesquisa, seja pelo fator positivo associado à presença de uma rede capaz de incentivar o alcance do bem estar, manutenção e recuperação da saúde; ou também pelas influências negativas de redes deficitárias. Isso se reflete de maneira especial no CD, situação em que paciente e até mesmo cuidador ficam mais restritos ao lar, limitando as interações sociais.
Vale ressaltar a importância de se compreender o uso de recursos eletrônicos como fonte de apoio social e da influência das redes também para os cuidadores. Aspectos os quais se sugere que sejam abordados em novos estudos. Pondera-se sobre a necessidade de que enfermeiros se atentem e tenham ações direcionadas ao cuidado ao cuidador, principalmente no domicílio, a fim de minimizar o adoecimento físico, mental e emocional deste.
O reconhecimento do enfermeiro enquanto apoio social relevante é outro aspecto que merece aprofundamento, a fim de ratificar a aproximação entre o esperado e o concretizado por este profissional na ESF, ressaltada nesta pesquisa.
Por fim, destaca-se a necessidade de participação política e consciência cidadã também dos profissionais e instituições formais, mas em especial da população, que mantém uma postura acrítica e passiva frente às necessidades. Falta à população reconhecer seu papel na construção da cidadania, mais que conhecer sobre seus direitos, buscar por eles ativamente.
Viver em sociedade representa mais que um aglomerado de vidas particulares, significa um todo que envolve cada particular num emaranhado de relações, que mesmo indiretamente, repercutem umas nas outras. Faz-se necessário pensar no bem para a coletividade.
REFERÊNCIAS
a Manuscrito baseado no estudo: Gomes IM. A vivência do apoio da rede social pelas pessoas envolvidas no cuidado domiciliar [Dissertação de mestrado]. Curitiba (PR): Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal do Paraná; 2012.