Volume 20, Número 2, Abr/Jun - 2016
PESQUISA
Práticas na assistência ao parto em maternidades com inserção de
enfermeiras obstétricas, em Belo Horizonte, Minas Gerais
Ana Maria Magalhães Sousa
1
Kleyde Ventura de Souza
1
Edna Maria Rezende
1
Eunice Francisca Martins
1
Deise Campos
2
Sônia Lansky
3
1 Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, Brasil
2 Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, Brasil
3 Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG, Brasil
Recebido em 02/07/2015
Aprovado em 13/01/2016
Autor correspondente:
Kleyde Ventura de Souza
Email:
kleydeventura@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Discutir práticas na assistência ao parto em instituições de saúde, onde
atuam conjuntamente médicos e enfermeiras obstétricas.
MÉTODOS:
Estudo transversal que teve como fonte de dados a pesquisa Nascer em
Belo Horizonte: um inquérito sobre parto e nascimento,
realizada entre 2011 e 2013. A amostra foi de 230 e 238 puérperas para
práticas no trabalho de parto e parto, respectivamente. A análise deu-se
mediante frequências absoluta e relativa.
RESULTADOS:
Práticas úteis: dieta oral (54,6%), livre movimentação (96%), métodos não
farmacológicos para dor (74,2%), acompanhante (95,4%), partograma (77,4%);
práticas prejudiciais: enema (0), tricotomia (0), posição deitada (66,8%),
Kristeller (9,3%); práticas usadas inapropriadamente: amniotomia (67,1%),
ocitocina (41,7%), analgesia (14%), episiotomia (8,4%).
CONCLUSÃO:
Mesmo em instituições que se empenham na mudança do modelo de atenção
obstétrica, identificaram-se práticas que reproduzem o modelo tecnocrático.
A transformação do modelo de assistência permanece um desafio que requer
esforços conjuntos de gestores e profissionais de saúde.
Palavras-chave: Enfermagem obstétrica; Trabalho de parto; Parto humanizado; Humanização da assistência.
INTRODUÇÃO
No Brasil, testemunha-se, na atualidade, o que se pode denominar de um movimento de transição do modelo de assistência ao parto e nascimento. O foco da mudança parte de um modelo que considera o parto um evento médico e de risco, cujo cenário é o ambiente hospitalar. Em detrimento do cuidado centrado na mulher, no seu protagonismo e autonomia, esse modelo, denominado tecnocrático por Davis-Floyd1, é marcado por intervenções desnecessárias e prejudicais que resultam em altas taxas de cesarianas, e considera o nascimento um evento patológico que precisa ser tratado.
Nesse contexto, a partir da década de 1980, ganhou visibilidade o movimento da humanização do parto que, além da assistência acolhedora e respeitosa à parturiente, propôs a assistência baseada em evidências científicas, um dos marcos mais importantes da transição para mudança do modelo assistencial obstétrico brasileiro. A prática obstétrica baseada em evidências descrita pela Organização Mundial da Saúde2 e, mais tarde, ratificada pelo Ministério da Saúde3 tem como base a classificação de condutas obstétricas no parto normal, a partir de evidências científicas, segundo critérios de utilidade, eficácia e risco. Essas recomendações deram origem às categorias de práticas utilizadas na assistência ao parto normal: categoria A - práticas, demonstradamente, úteis e que devem ser encorajadas; categoria B - práticas claramente prejudiciais ou ineficazes e que devem ser eliminadas; categoria C - práticas em que não existem evidências para apoiar sua recomendação e devem ser utilizadas com cautela até que novas pesquisas esclareçam a questão; categoria D - práticas que são frequentemente utilizadas de modo inadequado2.
Esses documentos destacam, ainda, a enfermeira obstétrica como componente fundamental na assistência humanizada ao parto. Há evidências em estudos científicos internacionais a respeito da melhoria da qualidade da assistência ao parto com a presença dessas profissionais, além de reduzido risco de intervenções como a episiotomia e o parto instrumental, proporcionando mais sensação de controle da experiência do parto pelas mulheres4.
No Brasil, algumas experiências de instituições que buscam o trabalho integrado entre enfermeiras e médicos na assistência ao parto vêm sendo efetuadas como políticas institucionais, reforçando as políticas públicas até então formuladas. Entretanto, a eficiência e eficácia desses serviços com ênfase nas práticas dos profissionais que atuam nessa perspectiva ainda não são conhecidas de forma sistematizada.
Nesse contexto, o objetivo deste estudo foi discutir as práticas na assistência ao trabalho de parto e parto em maternidades com inserção de enfermeiras obstétricas.
METÓDOS
Trata-se de estudo transversal que utilizou informações do banco de dados da pesquisa Nascer em Belo Horizonte: um inquérito sobre parto e nascimento, realizada em 11 maternidades de Belo Horizonte, Minas Gerais/MG. Esse inquérito, com representatividade para a população do município, empregou o mesmo método, logística e os recursos materiais de um estudo de abrangência nacional intitulado Nascer no Brasil: inquérito sobre parto e nascimento, em que foram incluídas todas as capitais brasileiras, inclusive Belo Horizonte.
Para fins deste estudo, foram selecionadas duas instituições de saúde incluídas na pesquisa desenvolvida em Belo Horizonte, onde a assistência ao parto e nascimento é realizada por médicos e enfermeiras obstétricas. Essas instituições estão localizadas nos distritos Norte e Venda Nova e atendem mulheres, exclusivamente, pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Em uma das instituições, a coleta de dados ocorreu entre os meses de maio e julho de 2011; e na outra, em julho do ano de 2012, executada por enfermeiros, previamente, treinados. As entrevistas foram realizadas com puérperas no decorrer da sua internação hospitalar, pelo menos seis horas após o parto. Dados dos prontuários maternos e do recém-nascido foram obtidos após a alta ou óbito. Puérperas que não entendiam a língua portuguesa, indígenas, deficientes mentais graves, surdas-mudas, desabrigadas e condenadas por ordem judicial foram excluídas. Outras informações sobre o processo de coleta de dados, logística de campo e características dos questionários estão disponíveis em estudo, previamente, publicado5.
A população das duas maternidades cenários deste estudo, portanto, foi de 312 mulheres selecionadas por ocasião da realização de parto e seus conceptos, vivos ou mortos, com peso ao nascer ≥ 500g e/ou idade gestacional ≥ 22 semanas de gestação. Tendo em vista a especificidade das práticas em cada uma das etapas do processo de parto, os dados sobre práticas obstétricas foram organizados em dois grupos distintos: práticas na assistência ao trabalho de parto e práticas na assistência ao parto.
Para a avaliação das práticas obstétricas realizadas no trabalho de parto, foram incluídas apenas as mulheres que tiveram respostas válidas para a experiência de trabalho de parto espontâneo ou induzido, em ambos os questionários (entrevista e prontuário). Dessa forma, a população final de estudo das práticas, nessa fase, foi de 230 puérperas. Para as práticas realizadas no momento do parto, foram excluídas as mulheres submetidas à cesariana (n = 67), além daquelas sem informações sobre a via de parto (n = 05), totalizando 238 mulheres nessa população. Houve, no entanto, variação entre as práticas em função de dados faltosos, tanto para as práticas no trabalho de parto quanto para as práticas no parto.
As variáveis de interesse deste estudo foram práticas obstétricas utilizadas no trabalho de parto e parto. Essas informações foram obtidas a partir do questionário aplicado às puérperas e ainda por meio de consulta ao prontuário materno e organizado em três categorias: práticas, demonstradamente, úteis, práticas claramente prejudiciais e práticas frequentemente utilizadas de modo inapropriado no trabalho de parto, conforme recomendações da OMS2 e do MS3 (Quadro 1).
Categorias | Práticas obstétricas durante o trabalho de parto e parto (sim/não) |
---|---|
Práticas demonstradamente úteis | - Oferecimento de dieta oral |
- Liberdade de posição e movimento | |
- Métodos não farmacológicos p/alívio da dor | |
- Presença de acompanhante | |
- Uso de partograma | |
Práticas claramente prejudiciais | - Enema |
- Tricotomia | |
- Posição "deitada de costas com as pernas levantadas" | |
- Manobra de Kristeller | |
Práticas usadas de modo inapropriado | - Amniotomia |
- Infusão de ocitocina | |
- Analgesia | |
- Episiotomia |
A análise estatística deu-se por meio do cálculo de média e desvio-padrão para as variáveis contínuas, de frequências absoluta e relativa para as variáveis categóricas e foi feita com o auxílio do pacote estatístico Stata MP/12.0.
Este estudo teve parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, sob protocolo CAAE-0246.0.203.000-11, e dos Comitês de Ética das instituições envolvidas.
RESULTADOS
As características sociodemográficas das participantes, deste estudo, são semelhantes entre as mulheres incluídas na análise das práticas obstétricas no trabalho de parto e àquelas incluídas na análise das práticas no parto. Observou-se, em ambos os grupos, que a idade das puérperas variou entre 14 e 42 anos, predominando a faixa etária de 20 a 29 anos. A média de idade nos dois grupos foi de 25,4 anos (± 6,0) e 25,3 (± 5,9), respectivamente. Mais da metade das puérperas cursou algum ano do ensino médio e menos de 4,0% delas chegaram ao ensino superior. A maioria relatou viver em união estável, não ter ocupação remunerada e não ser chefe de família, e em relação à cor da pele, ser parda/morena/mulata (dados não apresentados em tabela).
A Tabela 1 mostra as práticas obstétricas utilizadas na assistência ao trabalho de parto. A análise das práticas claramente úteis e que devem ser estimuladas revelou que a liberdade de posição e movimento durante o trabalho de parto e a presença de acompanhante foram respeitadas pelos profissionais das instituições estudadas em mais de 95% das mulheres. A utilização de métodos não farmacológicos para alívio da dor ao longo do trabalho de parto ocorreu em 74% das puérperas e o monitoramento do seu progresso por meio do partograma aconteceu em pouco mais de 77% delas. Foi oferecida dieta oral durante o trabalho de parto apenas a 55,2% das mulheres.
Práticas obstétricas no trabalho de parto | n | n | % |
---|---|---|---|
Demonstradamente úteis | |||
Oferecimento de dieta | 229 | ||
Sim | 125 | 54,6 | |
Não | 104 | 45,4 | |
Liberdade de movimento e posição | 227 | ||
Sim | 218 | 96,0 | |
Não | 09 | 4,0 | |
Não farmacológicos para alívio da dor | 229 | ||
Sim | 170 | 74,2 | |
Não | 59 | 25,8 | |
Presença de acompanhante | 218 | ||
Sim | 208 | 95,4 | |
Não | 10 | 4,6 | |
Partograma | 230 | ||
Sim | 178 | 77,4 | |
Não | 52 | 22,6 | |
Uso de modo inapropriado | |||
Amniotomia | 164 | ||
Sim | 110 | 67,1 | |
Não | 54 | 32,9 | |
Infusão de ocitocina | 230 | ||
Sim | 96 | 41,7 | |
Não | 134 | 58,3 | |
Analgesia | 229 | ||
Sim | 32 | 14,0 | |
Não | 197 | 86,0 |
Quanto às práticas claramente prejudiciais ou ineficazes e que devem ser eliminadas, constatou-se que a utilização de enema e a tricotomia não foram prescritas às mulheres assistidas nas instituições incluídas neste estudo (dados não apresentados em tabela).
Entre as práticas, frequentemente, utilizadas de modo inapropriado durante o primeiro estágio do parto, verificou-se que a amniotomia foi realizada em 67,1% das mulheres que entraram em trabalho de parto, internadas com membranas íntegras. A prevalência de mulheres que receberam infusão de ocitocina durante o trabalho de parto foi de 41,7%; e 14,0% das mulheres tiveram analgesia no parto (Tabela 1).
Das 238 mulheres que tiveram partos vaginais, mais de 71,6% foram assistidos por enfermeiras obstétricas, contra 28,4% assistidos por médicos, e em cinco desses partos o fórceps foi utilizado.
Entre as práticas claramente prejudiciais no momento parto, foram evidenciadas a manobra de Kristeller (9,3%) e a posição "deitada de costas com as pernas levantadas" para o parto (66,8%). A episiotomia foi realizada em 8,4% das mulheres (Tabela 2).
Práticas obstétricas no parto | N | n | % |
---|---|---|---|
Claramente prejudiciais | |||
Manobra de Kristeller | 237 | ||
Sim | 22 | 9,3 | |
Não | 215 | 90,7 | |
Posição "deitada de costas com as pernas levantadas" | 238 | ||
Sim | 159 | 66,8 | |
Não | 79 | 33,2 | |
Uso de modo inapropriado | |||
Episiotomia | 238 | ||
Sim | 20 | 8,4 | |
Não | 218 | 91,6 |
DISCUSSÃO
Práticas demonstradamente úteis e que devem ser encorajadas no trabalho de parto
Os resultados do presente estudo demonstram a apropriação, pelos profissionais de saúde das instituições de saúde incluídas nesta pesquisa, de práticas demonstradamente úteis e encorajadas no trabalho de parto, como a liberdade de movimentação, a utilização de métodos não farmacológicos de alívio da dor e o uso do partograma. Práticas claramente prejudiciais, como o enema e a tricotomia, não foram observadas, indicando sua eliminação da assistência prestada às mulheres estudadas. No entanto, práticas intervencionistas, como amniotomia, infusão de ocitocina e analgesia, estão ainda agregadas à assistência desses profissionais.
Estudos recentes de abrangência nacional têm demonstrado que a realidade brasileira ainda clama pela incorporação de práticas obstétricas na assistência ao trabalho de parto, tais como: oferta de dieta oral (25,2%), liberdade de posição e movimento (44,3%), uso de métodos não invasivos e não farmacológicos de alívio da dor (26,7%), presença contínua do acompanhante de livre escolha das mulheres (18,8%) e monitoramento do progresso do parto por meio do uso do partograma (41,4%)6,7.
Os benefícios da movimentação da parturiente durante o trabalho de parto são sustentados por evidências científicas8 e, neste estudo, a liberdade para deambular e se movimentar foi preservada em número quase três vezes maior que em estudo recente e semelhante (29,8%)9. Pesquisas realizadas em diferentes períodos têm revelado mudanças importantes quanto à prática da deambulação. Entre os anos 1998 e 2001, estudos que assumem a centralidade do médico na assistência ao parto salientaram que apenas 11,4 a 20,4% das parturientes tiveram permissão para deambular10,11. Já entre os anos 2003 e 2007, evidenciou-se a participação da enfermeira obstétrica na assistência, com taxa entre 47,6 e 56,2% de utilização dessa prática12,13.
A quase totalidade das mulheres desta investigação permaneceu com o acompanhante de sua livre escolha durante o período de internação, resultados semelhantes aos encontrados em estudo realizado em Centro de Parto Normal (CPN)(13). A similaridade desses achados com os encontrados em CPN, considerados espaços facilitadores para execução de práticas em acordo com as recomendações do OMS e MS14,15, permitiu certificar que a política estabelecida nas instituições incluídas, neste trabalho, assegura o cumprimento, em grande parte, tanto de uma prática baseada em evidência científica, quanto o direito da mulher garantido em lei no Brasil desde o ano de 200516.
Corroborando outras pesquisas, o partograma foi utilizado para a maioria das parturientes11,15. Em Goiânia, o partograma nos prontuários das puérperas foi de apenas 28,5%, sendo que em 13% dos casos não havia qualquer anotação17. Da mesma forma, foi constatado considerável número de utilização incorreta desse instrumento (77,3%), apesar de ter sido encontrado em quase 80% dos prontuários15. As anotações inadequadas podem aumentar mais de duas vezes a taxa de cesarianas, quando o partograma é iniciado na fase latente do trabalho de parto18. Portanto, destaca-se a importância do preenchimento adequado desse instrumento, avaliação não realizada nesta pesquisa.
Neste trabalho, a utilização de métodos não farmacológicos de alívio da dor durante o trabalho de parto reforça a preocupação dos profissionais de saúde envolvidos na assistência em oferecer conforto e apoio às parturientes no enfrentamento da dor. A satisfação da mulher com o seu parto não está relacionada somente à ausência da dor, mas às condições oferecidas para o seu enfrentamento. Os efeitos do suporte à mulher estão associados à duração do trabalho de parto, à redução de cesarianas e de partos vaginais instrumentais, à utilização de analgesia intraparto e melhores índices de Apgar no quinto minuto19.
Em relação à oferta de dieta oral durante o trabalho de parto, apesar de duas vezes mais prevalente quando comparado ao inquérito nacional6, similar a outros estudos20, pouco mais da metade das mulheres alimentou-se nesse período do parto. Em São Paulo, a maioria das mulheres, assistidas em CPN peri-hospitatar (99,7%) ou em ambiente hospitalar (86,7%), teve prescrição de dieta livre21.
Práticas claramente prejudiciais ou ineficazes e que devem ser eliminadas do trabalho de parto
Os achados não constataram, nos dois serviços avaliados, práticas de intervenções desnecessárias como o uso de enema e da tricotomia, contrapondo-se aos resultados de outros estudos que, mesmo diante de evidências científicas22,23, a enteróclise e a tricotomia foram prescritas, respectivamente, a 2,8 e 41,1% das parturientes assistidas por médicos em instituições de Goiânia17.
Nesta pesquisa, a amniotomia foi realizada em mais de 65% das parturientes, concordando com outros estudos que, mesmo em CPN também encontraram alta proporção dessa prática13,9. Em contrapartida, em uma maternidade municipal do Rio de Janeiro, onde a assistência ao parto também é oferecida por enfermeiras obstétricas, a amniotomia foi realizada em apenas 5,8% das parturientes24.
A aceleração do trabalho de parto, seja com amniotomia e/ou ocitocina, desempenha importante papel na "cascata de intervenções" e na redução da taxa de parto espontâneo. Neste estudo, assim como a amniotomia, também foi frequente a utilização de ocitocina intraparto. A prevalência dessas práticas foi, inclusive, maior que aquela observada na pesquisa de abrangência nacional6. Altos índices foram também descritos em estudos recentes realizados em uma maternidade do Rio de Janeiro (55,5%)24 e um CPN de São Paulo (54%)9. Em Belo Horizonte, ao compararem a assistência ao parto em três distintos modelos de atenção do SUS, considerou-se também elevada à administração de ocitocina em todas as instituições, embora tenha sido menos frequente no CPN (27,9%). Nas outras duas modalidades, um hospital ganhador do Prêmio Galba de Araújo e outro com modelo tradicional, as taxas foram de 59,5 e 40,1%, respectivamente25.
É perceptível que o uso indiscriminado de ocitocina está presente tanto no ambiente hospitalar quanto no CPN. Essa ocorrência pode ser reflexo da forte influência do modelo tecnocrático sobre as práticas dos profissionais, entre eles, as enfermeiras obstétricas, pois reproduzem, em parte, uma assistência intervencionista. Acredita-se, ainda, que a permanência dessas práticas intervencionistas em ambientes, em que há a atuação das enfermeiras obstétricas também sofra influência da autonomia médica, já que são eles, os médicos, quem prescrevem medicamentos, entre eles a ocitocina.
A ocitocina sintética pode corrigir alterações da evolução do trabalho de parto, porém, tem alto risco de provocar danos à mãe e ao feto26,27. Sua utilização sem monitoramento adequado é uma prática perigosa, por isso foi adicionada à lista de medicamentos de alerta máximo do Institute for Safe Medication Practice nos Estados Unidos28 e o seu uso recomendado com a mínima frequência possível.
A ocorrência de analgesia nas mulheres deste estudo foi superior às taxas observadas em hospitais públicos de Goiânia (7,7%) e em estudo internacional (16%)17,29 e inferior à prevalência desse procedimento encontrada em estudo nacional (33,9%) - cerca de duas vezes menor6. É também inferior à recomendação da utilização de analgesia em 30% dos partos normais, quando esgotados os recursos não farmacológicos para alívio da dor que constam no Termo de Compromisso das Maternidades do SUS/BH e Contrato de Gestão, instituídos pela Comissão Perinatal da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte (SEMSA/BH) como um dos indicadores de qualidade da assistência. Esse documento oficializou o pacto das instituições envolvidas na implementação das boas práticas obstétricas, entre elas as que fazem parte deste estudo.
A oferta menos seletiva de analgesia para as mulheres assistidas nos locais estudados, acompanhada de informações sobre as vantagens e desvantagens desse procedimento, deve ser considerada como prática que contribui para a humanização do parto. No caso deste estudo, é possível inferir que a disponibilidade de práticas assistenciais baseadas nos princípios da humanização pode ter diminuído a demanda por analgesia nas duas instituições estudadas.
Nesta investigação, quase 67% das mulheres deram à luz "deitadas de costas com as pernas levantadas". Embora essa descrição remeta à posição litotômica, a utilização de perneiras para o apoio das pernas não foi identificada nas entrevistas com essas mulheres e é do conhecimento dos pesquisadores, por meio de entrevista com o gestor sobre a estrutura da instituição, que não há tal dispositivo nesses serviços de saúde. Os dados desta pesquisa, no entanto, não permitiram identificar se no momento do parto a posição deitada foi estabelecida, conforme a escolha das mulheres ou se foi indicada pelos profissionais de saúde.
No entanto, cabe considerar que a posição deitada é ainda culturalmente aceita como adequada para o parto, não só por profissionais de saúde, mas, principalmente, pelas próprias mulheres. No Brasil, mais de 90% das mulheres ainda têm seus filhos nessa posição6. Contudo, achados que indicam a apropriação de posições não litotômicas no parto em instituições de saúde do país foram encontrados e indicam o fortalecimento da adoção da posição vertical pelas parturientes, especialmente, em partos assistidos por enfermeiras obstetras (50,6%; 77,8%)30,24. Em um CPN de São Paulo, apenas 13% dos partos foram assistidos em posição horizontal, contra 77,6% assistidos em posição vertical9.
Reforçando a importância do estímulo de posições não litotômicas, estudo qualitativo mostrou que, além das evidências científicas decorrentes de ensaios clínicos e revisões sistemáticas sobre o tema31, as puérperas também percebem como benéfica a adoção da posição vertical para o parto, pois é mais cômoda, favorece a movimentação e a participação da parturiente e reduz o esforço expulsivo32. Certamente, as parturientes passarão a adotar posições distintas quando houver estímulo, especialmente de quem as assiste.
A utilização da manobra de Kristeller foi identificada, neste estudo, em 9,3% das mulheres. Usada comumente em situações como sofrimento fetal, falta de progresso do parto e exaustão materna, essa manobra oferece riscos potenciais que devem ser considerados33. Dessa forma, os relatos dessas mulheres denunciam a conservação de uma prática danosa que, como não deveria ser praticada, é invisível aos registros dos prontuários, assim como são os motivos de sua utilização. Essa conduta desnecessária e arriscada pode ser considerada uma violação ao direito da mulher a sua integridade corporal, uma vez que, além da exposição aos riscos, causa à parturiente o desconforto da dor durante a sua realização.
No estudo de abrangência nacional, cerca de 36% das mulheres referiram terem sido submetidas à manobra de Kristeller6. Esses dados refletem a disseminação dessa manobra na cultura obstétrica brasileira e a dificuldade de mudança no comportamento dos trabalhadores, mesmo em instituições que tentam adotar práticas obstétricas baseadas em evidências, como é o caso das instituições estudadas. Reforçam, ainda, a importância do envolvimento das instituições que prestam assistência ao parto na reestruturação dos seus serviços, bem como na capacitação de seus profissionais para reformulação de antigos conceitos e para o aprimoramento da qualidade da assistência às usuárias.
Práticas frequentemente utilizadas de modo inapropriado durante o trabalho de parto e parto
A taxa de episiotomia, neste estudo, foi menos da metade daquela proposta no termo de compromisso das maternidades do SUS-BH, no qual o valor sugerido é cerca de 20%. Embora, há anos os dados disponíveis na literatura revelem que esse procedimento não cumpre os objetivos que justificariam sua realização de forma rotineira, sejam eles a prevenção de lesões nas genitais da mãe ou na cabeça do recém-nascido, ainda hoje a episiotomia permanece sendo usada de forma abusiva em muitas instituições de saúde.
Nos estudos realizados em serviços de saúde brasileiros entre os anos 1998 e 2007, as taxas desse procedimento se mantiveram entre 54,9% e 89,99%10,25,34-36 nos estabelecimentos onde os partos eram assistidos, exclusivamente, por médicos. Estudos internacionais, entre 1997 e 2007, com a participação desses mesmos profissionais na assistência ao parto demonstraram que as taxas de episiotomia variaram de 04 a 100%37,38. Nos Estados Unidos, isoladamente, evidenciou-se declínio de 60,9% em 1979 para 24,5% em 200439.
Os dados encontrados em pesquisa nacional caracterizam um modelo de assistência tecnocrático e revelam, ainda hoje, a prevalência dessa prática na assistência ao parto nos serviços de saúde do Brasil (56%)6. Em contrapartida, pesquisas têm demonstrado que a episiotomia tem sido aplicada de forma mais criteriosa em algumas instituições, principalmente, quando há a participação exclusiva ou majoritária de enfermeiras obstétricas na assistência ao parto. Nesses estudos, realizados entre 2001 e 2008, a episiotomia variou entre 16,1 e 31,45%9,13,24,30,40, índices, porém, ainda consideravelmente mais altos que os deste estudo, que foi de 8,4%.
CONCLUSÃO
Os resultados revelaram empenho das equipes que integram a assistência ao parto e nascimento das instituições avaliadas, visando à assistência humanizada e à utilização de práticas baseadas em evidências científicas. Foram destacadas práticas apoiadas no modelo humanizado, tais como o direito a acompanhante, a liberdade de posição e movimento, a utilização de métodos não farmacológicos de alívio da dor e o uso de partograma. A extinção das práticas de enema e de tricotomia nessas instituições, bem como a baixa prevalência de episiotomia, mostrou, mais uma vez, consonância com as recomendações da OMS e do MS.
Por outro lado, embora também estimulada pela OMS e pelo MS, foi dada menos importância à oferta de dieta oral durante o trabalho de parto. Outras práticas baseadas no modelo tecnocrático foram reveladas: a realização de amniotomia, o uso de ocitocina no trabalho de parto, a utilização da manobra de Kristeller e a posição deitada no momento do parto.
Os resultados mostraram, ainda, ser incisiva a participação das enfermeiras obstétricas na assistência ao trabalho de parto, parto e nascimento nos cenários de estudo. O predomínio dessas profissionais na assistência obstétrica reforça a sua importante contribuição no que se refere à prática assistencial, em concordância com a OMS, o MS e os princípios da humanização. Ao mesmo tempo, propõe que elas têm peso importante quando determinadas práticas obstétricas são ou não respeitadas.
Acredita-se que, mesmo em instituições que apoiam a inserção das enfermeiras obstétricas na assistência ao parto e ao nascimento, a transformação do modelo assistencial ainda é um desafio e requer esforços de gestores, profissionais de saúde e da sociedade. Particularmente, em relação à inserção de enfermeiras obstétricas, é imprescindível o apoio institucional, compromisso dos gestores com políticas públicas, formação qualificada e autônoma condizente com o seu papel na mudança do modelo e atuação comprometida com os preceitos éticos e legais da profissão.
Propõe-se, ainda, que a avaliação da qualidade da assistência não deve estar pautada, exclusivamente, pelo cumprimento das práticas obstétricas demonstradamente úteis e recomendadas por organismos internacionais e nacionais. Destaca-se, portanto, a importância de estudos voltados para conhecer a satisfação das mulheres e/ou sua centralidade quanto ao cuidado que lhes é prestado na assistência ao parto. Também, precisam ter visibilidade os aspectos encobertos nas relações entre as disciplinas profissionais de enfermagem e medicina no contexto do cuidado obstétrico, numa perspectiva de mudanças paradigmáticas, tais como as questões de gênero e de classe, a condição da mulher na sociedade - a mulher-parturiente e a mulher-enfermeira. Ainda outros, circunscritos à formação profissional, aos processos de gestão e de trabalho e à qualidade das relações interpessoais.
REFERÊNCIAS