Volume 20, Número 2, Abr/Jun - 2016
PESQUISA
O custo da cura: vivências de conforto e desconforto de mulheres
submetidas à braquiterapia
Míbsam Lysia Carvalho Alves Soares
1
Maria Cristina Soares Figueiredo Trezza
2
Silvana Maria Barros de Oliveira
2
Géssyca Cavalcante de Melo
2
Kely Regina da Silva Lima
3
Josete Luzia Leite
4
1 Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira. Recife, PE, Brasil
2 Universidade Federal de Alagoas. Maceió, AL, Brasil
3 Sociedade de Ensino Universitário do Nordeste. Maceió, AL, Brasil
4 Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Recebido em 04/09/2015
Aprovado em 04/03/2016
Autor correspondente:
Míbsam Lysia Carvalho Alves Soares
E-mail: mibsamlysia@hotmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Descrever as vivências de conforto e desconforto de mulheres que se
submeteram à braquiterapia para tratamento de câncer do colo uterino.
MÉTODOS:
Estudo qualitativo, desenvolvido em 2013, embasado na Teoria do Conforto de
Kolcaba e realizado por meio de entrevistas semiestruturadas com oito
mulheres que concluíram o tratamento há, no mínimo, seis meses.
RESULTADOS:
Sobressaíram os seguintes desconfortos: dor do procedimento e dos efeitos
pós-tratamento, no contexto físico; medo do desconhecido e do sofrimento,
falta de acompanhante, estresse por sentir-se constrangida durante o
tratamento, baixa autoestima e trauma psicológico pós-terapia, no contexto
psicoespiritual. As medidas de conforto consistiram no diálogo com o
profissional, administração de medicações e uso da fé e espiritualidade.
CONCLUSÃO:
Os resultados oferecem subsídios para a prática de profissionais de saúde em
relação aos confortos e desconfortos que merecem ser alvo de intervenções na
assistência à mulher com câncer.
Palavras-chave: Braquiterapia; Neoplasias do Colo do Útero; Teoria de Enfermagem.
INTRODUÇÃO
Considerado um problema do ponto de vista da saúde pública, o câncer de colo uterino (CCU) é uma importante causa de morbimortalidade feminina. É o segundo tipo de câncer mais comum entre as mulheres, sendo estimados 15 mil casos para os anos de 2014/20151. Entre as formas de tratamento para o CCU existe a braquiterapia, estabelecida como uma modalidade de radioterapia que emprega materiais radioativos junto ao tumor, por meio de um sistema intracavitário2. Apesar de seus benefícios potenciais, esse tratamento produz efeitos colaterais significativos, que podem desaparecer gradualmente ou se tornar irreversíveis3,4.
A braquiterapia pode provocar alterações consideráveis e desafiadoras ao bem-estar físico e emocional das mulheres - desde a alimentação, higiene, sono, repouso, eliminações fisiológicas, sexualidade e esterilidade, até a rotina de trabalho e relações sociais3,4. A não percepção do significado dessas alterações imprime prejuízos na adaptação ao tratamento e na melhoria das condições de saúde, fato que requer uma atenção dos profissionais voltada aos aspectos físicos, emocionais e socioculturais em um processo terapêutico que vise à assistência holística5, em que se cuida da mulher com CCU e não apenas da neoplasia.
Frente a essas considerações, emerge a hipótese deste estudo: mulheres submetidas à braquiterapia podem apresentar desconfortos variados durante e depois o estabelecimento dessa modalidade terapêutica. Uma vez conhecidos, podem ser sanados ou atenuados por determinadas intervenções.
Este estudo tem como objetivo descrever as vivências de conforto e desconforto de mulheres que se submeteram à braquiterapia para tratamento de CCU. De acordo com o referencial teórico de Katherine Kolcaba, o termo "conforto" é entendido como a condição experimentada pela pessoa que recebe medidas de conforto e vivencia a experiência imediata e integral de ser fortalecida ao atingir alívio, tranquilidade e transcendência. Desconforto, por sua vez, refere-se à ausência do recebimento dessas medidas6.
Ainda de acordo com o referencial citado, a estrutura taxonômica do conforto estabelece que este pode ocorrer nos contextos físico, psicoespiritual, sociocultural e ambiental, e que para cada um há estados de conforto, denominados "alívio", "tranquilidade" e "transcendência"6,7.
O alívio é percebido como o estado de ter um desconforto atenuado ou de satisfação de uma necessidade específica. Tranquilidade é a ausência de desconfortos específicos, estado de calma ou contentamento. Já transcendência é a capacidade de superar desconfortos quando eles não podem ser evitados, levando o indivíduo a suplantar seus problemas ou sofrimento.6
Entre os principais pressupostos da Teoria do conforto utilizados neste estudo, incluem-se:
os seres humanos têm respostas holísticas aos estímulos complexos;
as pessoas lutam para satisfazer suas necessidades básicas de conforto ou para que as satisfaçam;
o conforto melhorado dá ânimo aos doentes para empreender comportamentos de busca de saúde de acordo com a sua escolha;
a integridade institucional baseia-se num sistema de valores orientado para os receptores de cuidados6.
MÉTODOS
Estudo de natureza qualitativa, descritiva e exploratória, realizado com oito mulheres que se submeteram à braquiterapia. Como critérios de inclusão, ter concluído o tratamento por um período mínimo de seis meses e estar em condições físicas para participar da pesquisa. Foram excluídas do estudo mulheres que estavam em fase de cuidados paliativos, que ainda estavam em tratamento ou que tinham realizado braquiterapia para outra patologia que não fosse o CCU.
O Centro de Alta Complexidade em Oncologia localizado no Hospital Universitário de Maceió foi escolhido para ser a fonte de obtenção das participantes por ser referência para o tratamento de câncer em Alagoas, fazendo parte do Programa de Expansão da Assistência Oncológica (Expande) no Brasil. A aproximação das participantes foi realizada por meio de um levantamento nos registros das consultas de enfermagem nos anos de 2011 e 2012, por meio dos quais foram selecionadas as mulheres que atendiam aos critérios de inclusão.
Por meio de telefonemas e visitas domiciliares, explicaram-se os objetivos do estudo e foram feitos os convites para participação na pesquisa. Acordou-se data e local para a realização da entrevista, a depender da preferência da mulher. A coleta dos depoimentos foi gravada em voz, ocorreu entre julho e dezembro de 2013 e seguiu um roteiro composto por perguntas referentes ao conforto e desconforto em submeter-se à braquiterapia, em suas diferentes fases: antes, imediatamente antes, durante a terapia, imediatamente depois e pós-terapia.
As informações obtidas foram analisadas com base no referencial teórico-metodológico de Katherine Kolcaba e organizadas em seu diagrama, que esquematiza a estrutura taxonômica do conforto e estabelece em que contextos podem ocorrer.
Obedecendo aos princípios éticos dispostos na Resolução 466 de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas (Parecer nº 305.171), no ano de 2012. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para assegurar seu anonimato em relação às falas apresentadas neste artigo, as mulheres são identificadas por números.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Participaram do estudo oito mulheres com idades entre 29 e 60 anos, advindas predominantemente de cidades do interior do estado de Alagoas. Observando a situação conjugal antes e depois do tratamento, cinco mulheres conviviam com um parceiro no momento da coleta, enquanto uma era viúva e duas solteiras. Quanto à escolaridade, metade possuía ensino fundamental incompleto, uma nunca havia estudado, duas possuíam ensino médio incompleto e uma, nível superior incompleto. As profissões estavam relacionadas a um baixo rendimento financeiro (auxiliar de cozinha, costureira, do lar e atendente de caixa), sendo que duas mulheres estavam desempregadas e uma aposentada. Em relação à religião, houve predominância (n = 7) de mulheres católicas.
A análise das entrevistas permitiu descrever as experiências de confortos e desconfortos vivenciados nas diferentes fases do percurso terapêutico das participantes.
Fase 1: Antes da braquiterapia
A fase anterior à braquiterapia compreende o período em que a mulher é informada pelo profissional médico de que irá se submeter ao tratamento até a chegada ao serviço de saúde para a primeira sessão. Todas as mulheres deste estudo tomaram conhecimento e iniciaram os procedimentos referentes à braquiterapia logo após terem finalizado a quimioterapia e/ou a teleterapia, isto é, numa ocasião onde se sentiam extremamente frágeis e sensíveis, ainda vivenciando os efeitos colaterais desses tratamentos e suas repercussões em seu ser como um todo.
Os principais efeitos causados pela quimioterapia e teleterapia, e, consequentemente, possíveis de ser encontrados em mulheres que estão iniciando a braquiterapia, são radiodermites, mucosites, xerostomia, fadiga, alterações de humor, incontinência urinária, náuseas, diarreia, constipação, hipotensão, hipertensão, fragilidade venosa, alopécia na região genital (em menor proporção), anemia, anorexia, hiperpigmentação e fotossensibilidade da pele3,4,8,9. As falas das participantes refletem o sofrimento corporal, no contexto físico, ainda no início do tratamento com braquiterapia:
[...] quando eu terminei a radioterapia e a quimioterapia, eu ainda fiquei um pouco debilitada por conta da radio. Eu sentia muito cansaço, era aquele cansaço, aquela canseira... [...] Até pra andar, eu andava com um pouco de dificuldade porque eu estava fraca, aí andava às vezes até me segurando em algumas coisas. (Participante 2)
[...] isso aqui ficou tudo preto meu [aponta para o quadril], o couro chega saía. (Participante 4)
Um estudo realizado com 61 instituições hospitalares de todo o Brasil apontou que as sessões de braquiterapia são realizadas após a teleterapia em aproximadamente 35% dos serviços10. Em pesquisa realizada em Florianópolis, as mulheres acometidas pelo câncer também já se encontravam vulneráveis desde o diagnóstico, sendo que no decorrer do tratamento braquiterápico a condição de fragilidade se potencializou, fato que demanda atenção especial dos cuidadores envolvidos em seu tratamento11.
É importante que as mulheres sejam preparadas para o tratamento e informadas sobre o número e frequência das sessões, e que dúvidas sobre o procedimento sejam esclarecidas, evitando-se respostas evasivas.
Ele [o médico] só explicou para mim que era um tratamento que ajuda mais a combater pra ajudar a não evoluir o câncer. (Participante 4)
Ele [o médico] falou que é um exame qualquer, de ginecologista. (Participante 1)
Quando não preparadas para o procedimento, as mulheres podem interpretá-lo como um tratamento muito simples, uma espécie de trégua em relação ao que já tinham passado anteriormente, o que na prática não acontece. Em relação a isso, existem correntes que compreendem que dizer a verdade é obrigação ética do profissional, independentemente das consequências. No entanto, alguns autores demonstram que nem sempre a verdade é revelada, a depender do posicionamento moral do profissional de saúde12.
Nas participantes deste estudo, o não esclarecimento sobre a terapia acarretou em desconforto no contexto psicoespiritual, gerando medo perante o que para elas ainda era desconhecido, associado ao temor de novamente passar por outros sofrimentos:
[...] ela [a médica] falou que não doía, que não ia me machucar, que não tinha nada, mas mesmo assim eu tinha medo. (Participante 5)
[...] A gente fica logo assustada por causa dos sintomas que já vem sentindo, porque foi muito sangramento que eu tive. (Participante 1)
No contexto ambiental, as mulheres também sofreram influências de pessoas que já realizaram ou iriam realizar o procedimento. Este tipo de intermédio se dava na troca de experiências entre as demais pacientes e seus familiares na sala de espera. Algumas relataram que as conversas tidas antes da braquiterapia as confortaram, no sentido de trazer alívio para suas tensões; porém outras relataram ter ficado ainda mais ansiosas e com medo perante os relatos negativos de algumas pacientes, gerando desconfortos:
[...] Quando a gente fica esperando, as meninas lá ficavam conversando, cada uma dizia uma coisa. (Participante 5)
A indisponibilidade de acompanhantes fazia com que a mulher, por vezes, ficasse sozinha e deslocada durante as marcações de atendimentos referentes à braquiterapia, o que gerava um desconforto no contexto sociocultural:
[...] é muito ruim, porque a gente não tem acompanhamento... Eu me sentia muito sozinha, porque chegava lá e não conhecia ninguém. (Participante 8)
Tal situação pode ser comparada com aquelas em que as mulheres sentiam-se confortadas por terem apoio e acompanhamento da família e amigos:
[...] Eu sempre ia com meu filho, com minha irmã, às vezes com meu esposo... então, eu não tive não muito medo. (Participante 7)
Percebe-se que os desconfortos nesta fase estiveram presentes em todos os contextos definidos por Kolcaba. Como tentativa de gerar alívio à paciente, a medida de conforto consistiu nas orientações dos profissionais de que não precisava sentir medo. Momentaneamente, algumas mulheres sentiram-se mais calmas, mas esse alívio não se estendeu até as outras fases do tratamento, pois, de acordo com Teoria do conforto, ele é dinâmico e nem sempre permanece estável do início ao fim. A transcendência começa a aparecer logo nesta primeira fase, quando as mulheres percebem que, a qualquer custo, deverão se submeter ao tratamento para alcançar a possível cura da doença6,7.
Fase 2: Imediatamente antes da braquiterapia
Esta fase, que teve uma duração curta, porém inexata, compreende desde o momento de preparo da mulher, já no serviço de saúde para iniciar o procedimento, até a sua colocação na mesa de braquiterapia. A paciente passa a ter um sentimento de suspeita com relação ao que haviam lhe informado sobre o tratamento. No contexto psicoespiritual, ela entra em uma fase de dúvida e apreensão por perceber que o procedimento é mais complexo do que lhe foi informado.
A enfermeira me deu um analgésico pra eu tomar, acho que foi dipirona, e me passou xilocaína, aquela anestesia local. Aí eu me despertei, e pensei: 'então o negócio vai ser sério'. (Participante 1)
Reconhece-se que este é, sim, um procedimento complexo, e que, portanto, exige um preparo psicológico da mulher para que não se sinta surpresa no momento em que a braquiterapia de fato iniciar. Há um aumento da aflição e a permanência do medo em relação ao procedimento não experimentado, embora existam esforços para eliminar tais tensões. Como consequência, é comum observar nas mulheres aumento da pressão arterial, que em alguns casos resistiria à administração de medicações, bem como aumento da sudorese, mãos frias, entre outros sintomas:
Toda vez que eu ia lá, ela [a enfermeira] ficava perguntando se eu estava com medo, [...] ficava gelada, fria, chega suava as mãos e não tinha jeito para eu me controlar, todas as vezes ela me dava remédio, mas a bicha [a pressão] não baixava de jeito nenhum. (Participante 5)
Conforme notado, nesta fase o principal desconforto é, predominantemente, o de natureza psicoespiritual, que acaba gerando desconfortos físicos por meio de sintomas característicos da ansiedade, sendo fundamental seu rápido reconhecimento, pois propicia o planejamento de intervenções específicas para cada paciente.
A principal medida de conforto para tal ainda é acalmar a mulher, conversando e aliviando os sintomas físicos com terapia medicamentosa. O conforto no contexto psicoespiritual refere-se ao autoconceito, à visão que se tem de si mesmo e do sentido que se lhe atribui à vida em suas relações com o mundo e com um ser superior7. Como toda patologia leva o indivíduo a vivenciar uma situação de crise e a romper com o equilíbrio físico, a pessoa doente demanda uma nova estruturação psicológica para suportar este momento.Este fato por si só é gerador de angústias que podem se tornar acentuadas na fase do tratamento que se segue13.
Fase 3: No momento da braquiterapia
Esta fase compreende à braquiterapia propriamente dita, ou seja, desde a colocação do aplicador no canal vaginal da mulher pelo médico até o momento em que a máquina é desligada. A paciente de fato entra em contato com o procedimento, percebe que está sendo observada por profissionais do sexo oposto (e em alguns momentos, por estagiários) enquanto permanece em posição ginecológica durante toda a seção. Esse desconforto foi mais um motivo de angústia e constrangimento, pois as mulheres tinham que se sujeitar a um momento de invasão de sua privacidade física:
[...] Agora o problema é que uma senhora da minha idade (velha, né?), tudo tem vergonha, aí eu ficava toda sem graça. (Participante 5)
Após a preparação da paciente pela enfermagem e posicionamento da mesma pelo técnico responsável, em alguns casos houve mais um motivo de intenso desconforto antes que a braquiterapia se iniciasse de fato: a espera pelo médico:
[...] Aí com isso ainda vem a demora do médico, e eu lá, com as pernas pra cima, já tava com o cóccix que eu nem aguentava mais nem mexer. (Participante 2)
O conforto no contexto ambiental depende dos cuidados da enfermagem com o ambiente, que se reflete na comunicação verbal e não verbal com os pacientes6, intervenções para aliviar a angústia, tratamento respeitoso e manobras que visem acalmá-los, além das influências externas - temperatura do ambiente, sons e ruídos, aroma e luminosidade14.
Outro motivo de sofrimento nesta fase foi o temor do choque elétrico e a dor presente do início ao fim da seção em quase todas as mulheres entrevistadas. Algumas comparam essa dor à perda da virgindade, a um parto normal. Segundo elas, o incômodo se estende por todo o corpo por terem que se manter imóveis, em posição ginecológica.
[...] Mas eu ali chorando muito de dor, porque eu não aguentava mais estar ali naquela posição, nem estar naqueles ferros, até o momento que acabou. (Participante 2)
[...] Mas eu tinha medo de choque! Porque eu sabia que aqueles aparelhos estavam ligados na energia, né! [...] eu ficava com aquele medo de me queimar, de dar choque [...] (Participante 5)
O medo pode ser definido como um temor a algo que se apresenta como um perigo real para a integridade física ou psicológica. O mesmo não é sinônimo de ansiedade, uma vez que esta é caracterizada como um temor, porém neste temor não existe um objeto real15.
Quando a braquiterapia se inicia de fato, após a chegada do médico, a mulher se sente decepcionada, pois se encontra em situação de grande sofrimento, sem alguém que a acompanhe:
[...] Mas aí eu me enganei totalmente. Eu chorei do início ao fim. (Participante 2)
[...] Eu não gostei muito não! Foi horrível! (Participante 3)
[...] Eu pensei de não resistir por causa da dor! (Participante 1)
A teoria do conforto refere que uma pessoa pode sentir desconforto e, no entanto, sentir-se tranquila, pois a sensibilidade ao desconforto é relativa para cada pessoa e depende também de fatores como o limiar de dor individual, as experiências anteriores e sua história de vida6,7.
Talvez o conceito mais completo que se aplique aqui seja o de "dor total", pois a mesma aplica à dor uma visão multidimensional, o conceito de Dor Total, em que o componente físico da dor pode se modificar sob a influência de fatores emocionais, sociais e também espirituais16.
Observa-se um pouco da angústia dessas pacientes quando, por exemplo, devido à estenose, efeito comum da braquiterapia, o colo precisa ser rompido manualmente pelo profissional. É quando as mulheres recorrem a um ser superior, clamando por ajuda, ou buscam dentro de si uma força capaz de fazê-las superar tal situação:
Aí ele [o médico] colocou a pinça, tentou romper a primeira vez, e não conseguiu, porque eu gritei muito, eu não aguentei! Eu disse: "doutor, o senhor está me matando!", e ele disse: "Você tem que passar por isso". (Participante 1)
[...] Aí eu falei assim: "Jesus, vem aqui, que eu não aguento mais! (Participante 1)
Eu continuei o tratamento porque eu gostava muito da minha vida... de viver, da minha família... e eu tenho uns sonhos ainda aí para realizar. (Participante 5)
Percebe-se que a espiritualidade é uma expressão da identidade e do propósito da vida de cada um mediante a própria história, experiências e aspirações. O alívio do sofrimento acontece, portanto, à medida que a fé permite transformações na perspectiva pela qual o paciente e a comunidade percebem a doença grave17,18.
Da mesma forma, o desejo de curar-se da doença ou a vontade de continuar vivendo propiciam uma força às pacientes que permite o seguimento da terapêutica.
Fase 4: Imediatamente após a braquiterapia
Esta fase compreende desde a saída da mulher da sala de braquiterapia até os dias subsequentes, em que ela vai para casa e retorna para realizar as outras seções. Foi comum observar que algumas participantes, após a primeira experiência de grande sofrimento na braquiterapia, sentiram raiva e desesperança, a ponto de desejarem abandonar o tratamento:
Quando foi um dia, o médico foi me tocar pra me olhar, eu não deixei! Eu tive que relaxar... A psicóloga veio conversar, pra poder... E não sou eu só não! (Participante 5)
Mas já fiquei com aquele problema psicológico, de voltar outra vez, pensando que eu iria sentir o mesmo, né? Que iria acontecer a mesma coisa. (Participante 1)
Após a sessão, alguns efeitos da braquiterapia, dos mais simples aos mais complexos, começam a surgir, dificultando a realização de atividades diárias pela mulher:
Dá diarreia, os flatos são horríveis! Podre! É tipo uma ferrugem... sai podre. (Participante 4)
[...] da segunda em diante eu fiquei do clitóris até o reto todo cheio de bolha! Todo estourado, como se tivesse queimado. (Participante 2)
Como já relatado anteriormente, são comuns o cansaço e o desânimo, mas quando as pacientes possuíam algum ente querido que as fortalecia e a incentivava a continuar, elas encontravam mais uma motivação para insistir no tratamento, apesar de todas as dificuldades enfrentadas:
Ela [acompanhante] chegava e me dava força, me dava ânimo, dizia, "reaja, não fique assim não, você vai vencer". (Participante 1)
[...] Agora eu fui por ela [mãe] e pela minha filha, porque se dependesse de mim eu tinha morrido, não tinha ido não. (Participante 2)
Percebe-se que os principais desconfortos desta fase foram de natureza física, destacando-se sangramentos, ardor, dor, bolhas na genitália, náusea, vômito, infecção urinária e fraqueza, também encontrados em estudo que avaliou a qualidade de vida de mulheres com CCU19. Além disso, desconfortos psicoespirituais como o estresse, a baixa autoestima e o trauma após a primeira seção são característicos dessas mulheres. A intervenção mais utilizada pelos profissionais e familiares consistiu em incentivar a mulher para que chegue a um estado de transcendência e continue o tratamento, apesar dos desconfortos.
Fase 5: Pós-braquiterapia
Esta fase compreende a saída da mulher da sala de braquiterapia, após a última seção. A maioria dos desconfortos observados na fase imediatamente após a braquiterapia permaneceu. Foram destacados problemas como estenose vaginal, fístulas, incontinência e infecção urinária, dor, dispareunia, coitorragia, diarreia e náusea:
E fiquei pensando até hoje, às vezes quando vou soltar gases, não solto pelo ânus, vem pela vagina. Nossa, que coisa esquisita! (risos) (Participante 1)
Depois que eu terminei o tratamento eu fiquei muito magra, porque tudo eu tinha diarreia! Por isso que até hoje eu não almoço em qualquer canto, eu fico com vergonha! (Participante 8)
Toda vez que eu tenho relação, sangra. Eu passei a ter muita infecção de urina. (Participante 4)
A toxicidade intestinal aguda manifesta-se por náuseas, vômitos, diarreia e dor tipo cólica, que desaparecem duas a três semanas após o fim do tratamento. No período de seis meses a cinco anos após o término da radioterapia, pode ocorrer diarreia, dor tipo cólica, náuseas, vômitos, má absorção, fibrose progressiva, perfuração, formação de fístulas e estenoses3.
Nas mulheres entrevistadas foram também observados outros desconfortos sistêmicos até então não encontrados na literatura. Eles parecem associados à dor neuropática, que por ser incomum, trouxe dúvidas e surpresa tanto para as pacientes quanto para os profissionais:
Depois desse tratamento, eu fiquei com os pés que parece que eu saí de uma sala de cirurgia agora. É tanta dor; é capaz de eu desmaiar de dor. (Participante 1)
A dor neuropática pode ser definida como um tipo decorrente de lesão total ou parcial ou alteração da função em qualquer parte do sistema nervoso periférico (nervo, plexo ou raiz) ou do sistema nervoso central (encéfalo ou medula). Pode ser percebida de forma superficial ou profunda e geralmente é descrita como dor contínua em queimação e ardência ou intermitente em pontada, choque, que espeta, em agulhada20.
Observa-se também a interferência de uma sequela física como a estenose vaginal no contexto sociocultural imerso nas relações de sexualidade. No período pós-braquiterapia, vários efeitos têm relação direta com a sexualidade da mulher, uma vez que se sentem incapazes de realizar o ato sexual em si. Geralmente há tentativas de realização, no entanto relata-se pouco êxito, causando grande estresse e sofrimento tanto para a mulher como para seu parceiro:
E relação sexual, até hoje, se eu for ter, Ave Maria! Sou casada, mas não consigo de jeito nenhum! Aí deixei pra lá. (Participante 8)
Ele tem medo também, porque vê a situação. A gente namora assim, só no comecinho, mas não consegue chegar lá dentro. E ainda fica ardendo, aí eu uso o creme e no outro dia passa, aí a gente vai levando a vida assim. (Participante 5)
A estenose vaginal parece ser a causa biológica da disfunção sexual relacionada à radioterapia na pelve feminina, pois o ressecamento e o estreitamento da luz vaginal levam à dor e ao sangramento durante o ato sexual e à consequente diminuição da libido e do prazer, o que afeta a resposta sexual que compreende o desejo, a excitação, o orgasmo e a resolução4.
Assim, esta é uma importante necessidade que merece atenção dos profissionais de saúde, uma vez que a atividade sexual constitui um dos índices pelo que se mede o nível de qualidade de vida, constituindo motivo de alegria ou tristeza com todas as suas nuances na vida da mulher4.
Após o tratamento, a mulher percebe que alguns dos efeitos deixados pela braquiterapia permanecem e não há uma terapêutica eficaz capaz de eliminar tal desconforto. Há uma sensação de desesperança que paira sobre a paciente, fazendo-a se sentir desenganada pela medicina, uma vez que tenta de todas as formas encontrar uma solução para o seu desconforto, e não encontra alguém capaz de ajudar:
As paredes são tudo ressecadas, porque ela queima, né?! (Participante 8)
A saída da paciente de todo o processo de tratamento é tão importante quanto o período de realização, requerendo uma assistência multidisciplinar que supra as necessidades da mulher de forma holística, a fim de auxiliá-la na adaptação ao seu novo estilo de vida.
CONCLUSÕES E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA
Considera-se que os objetivos deste estudo foram alcançados, pois por meio das entrevistas realizadas, foi possível elencar os principais desconfortos nos contextos físico, psicoespiritual, sociocultural e ambiental vivenciados pelas mulheres entrevistadas em todas as fases do processo de braquiterapia.
É importante salientar que os momentos de desconforto se sobressaíram quando comparados àqueles em que a mulher chegou ao alívio, transcendência ou tranquilidade. Esta disparidade mostra a lacuna existente nesse tipo de assistência, que supervaloriza a "cura" e parece não oferecer de modo suficiente um suporte para o manejo dos efeitos colaterais advindos do tratamento.
Assim, acredita-se que essas pacientes devam ser assistidas de forma holística por uma equipe multiprofissional, contemplando os desconfortos enfatizados nas falas das participantes, para que em todas as etapas do processo elas sejam ouvidas e seus desconfortos sejam assistidos, em especial pela equipe de enfermagem que presencia a maior parte dos momentos vividos pela mulher com CCU, seja no preparo para o procedimento ou no acompanhamento pós tratamento.
A relevância deste estudo também se mostra pelo fato de ter se utilizado de uma teoria de enfermagem para a sua realização, o que contribui na disseminação de uma parte do conhecimento científico próprio da profissão voltado para a assistência, com vistas ao seu aprimoramento.
REFERÊNCIAS