Volume 20, Número 1, Jan/Mar - 2016
PESQUISA
Espiritualidade no cuidar de pacientes em cuidados
paliativos: Um estudo com enfermeiros
Carla Braz Evangelista
1
Maria Emília Limeira Lopes
2
Solange Fátima Geraldo da Costa
2
Fátima Maria da Silva Abrão
3
Patrícia Serpa de Souza Batista
2
Regina Célia de Oliveira
3
1 Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ. João Pessoa-PB, Brasil
2 Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa-PB, Brasil
3 Universidade de Pernambuco. Recife - PE, Brasil
Recebido em 18/07/2015
Aprovado em 30/11/2015
Autor Correspondente:
Carla Braz Evangelista
E-mail:
carlabrazevangelista@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Compreender a espiritualidade sob o ponto de vista de enfermeiros que cuidam
de pacientes em regime de cuidados paliativos.
MÉTODOS:
Trata-se de uma pesquisa de campo, de natureza qualitativa, realizada com dez
enfermeiros vinculados a um hospital de João Pessoa (PB). O material
empírico foi coletado mediante entrevista semiestruturada e analisado por
meio da técnica de análise de conteúdo.
RESULTADOS:
Os enfermeiros consideram a espiritualidade como fonte de força, conforto e
fé e que, quando cultivada pelos pacientes em cuidados paliativos, contribui
para melhorar a sua condição e aceitar o processo de finitude. Identificaram
o apoio familiar, perdão, amor, crença, fé e esperança como necessidades
espirituais desses pacientes, as quais podem ser atendidas por eles
utilizando variadas estratégias.
CONCLUSÃO:
Evidencia-se que os enfermeiros reconhecem a importância da dimensão
espiritual no atendimento de pacientes sob cuidados paliativos, no entanto,
ainda existe despreparo para lidar com as questões espirituais.
Palavras-chave: Cuidados paliativos; Espiritualidade; Saúde; Enfermagem
INTRODUÇÃO
Os cuidados paliativos constituem uma abordagem de cuidado que se destina a melhorar a qualidade da vida de pacientes e familiares, que enfrentam uma condição clínica que ameaça a continuidade da existência, por meio da prevenção, da avaliação e do tratamento da dor e do apoio psicossocial e espiritual1.
A dimensão espiritual tem sido reconhecida como um importante recurso interno, que ajuda os indivíduos a enfrentarem as adversidades, os eventos traumatizantes e estressantes, particularmente, relacionados ao processo de saúde-doença, como no caso de pacientes fora das possibilidades de cura2. Desse modo, os princípios dos cuidados espirituais podem ser aplicados aos pacientes que se encontram em cuidados paliativos no decorrer de todas as fases e contextos, independente da cultura, tradição religiosa e referência espiritual3.
A espiritualidade é um termo que pode abranger diversos significados, com enfoques religiosos ou não, por isso pode ser confundido com religião. A religião é conjunto específico de crenças e práticas relacionadas com a fé4, que reconhecem, aproximam e facilitam o acesso ao Sagrado, Divino, Deus e Verdade absoluta. Normalmente, é baseada em um conjunto de escrituras ou ensinamentos, e costuma oferecer um código moral de conduta5. A espiritualidade, por sua vez, é um termo mais amplo que religião e refere-se ao aspecto da condição humana, que se relaciona com a maneira pela qual os indivíduos buscam e expressam o significado e propósito da vida, assim como a maneira que expressam um estado de conexão com o momento, consigo mesmo (self), com o mundo, com a natureza e com o sagrado3.
A espiritualidade é um tema de interesse crescente no campo da saúde e dos cuidados paliativos2,6, e diversos estudos destacam a importância do atendimento dessa dimensão pelos profissionais de Enfermagem6,7. Pesquisa ressalta que os enfermeiros precisam conhecer as necessidades espirituais dos pacientes, para que possam refletir e esclarecer as preocupações que perturbam o equilíbrio espiritual de cada indivíduo6.
A enfermagem, por ser uma profissão que está em contato direto com o paciente, é responsável por um olhar holístico que contempla, no processo de cuidar, as dimensões biológica, psicológica, social e espiritual do ser humano. Sob essa ótica, a compreensão do fenômeno espiritualidade é fundamental para a oferta de uma assistência de enfermagem de qualidade6,7. Na medida em que o ser humano é uma unidade formada por corpo, mente e espírito, torna-se necessário que enfermeiros avaliem a necessidade de intervenção no campo espiritual7.
Cumpre assinalar que as discussões acerca da espiritualidade são imprescindíveis e podem contribuir para o resgate da essência do cuidado integral durante a assistência6 e, apesar das evidências da importância do cuidado espiritual no âmbito dos cuidados paliativos, os profissionais, raramente, dispensam esses cuidados ao paciente com doenças potencialmente fatais8. Para os profissionais de saúde, inclusive os enfermeiros, abordar as questões espirituais, na prática dos cuidados paliativos, não é uma tarefa fácil, pelos seguintes motivos: porque eles possuem uma educação insuficiente a respeito do assunto, falta-lhes tempo, privacidade e confiança6.
Evidencia-se que o sucesso na aplicação de conceitos sobre a espiritualidade na prática clínica do enfermeiro está diretamente vinculado à construção do conhecimento, que fundamenta a assistência, podendo ser realizada por meio do desenvolvimento de novas pesquisas e de habilidades para abordagem do paciente, nos diversos cenários do exercício profissional7.
Nessa perspectiva, são necessárias novas investigações acerca da temática, no intuito de contribuir para a construção de conhecimento em relação aos cuidados paliativos e a espiritualidade e servir de subsídios, para que os profissionais da área de saúde, principalmente os de Enfermagem, possam sentir-se mais seguros para atender o paciente fora das possibilidades de cura.
Assim, os achados desta pesquisa serão de grande relevância, uma vez que possibilitarão um debate mais amplo sobre a temática "cuidados paliativos e espiritualidade" no campo da Enfermagem, o que auxiliará os seus profissionais a planejarem e a desenvolverem uma assistência de enfermagem qualificada e, consequentemente, um cuidado espiritual efetivo, direcionado aos pacientes que se encontram em regime de cuidados paliativos.
Nesse sentido, o estudo proposto contribui para preencher a lacuna do conhecimento quanto à assistência de enfermagem aos pacientes em cuidados paliativos, com enfoque na dimensão espiritual. Para tanto, teve como fio condutor o seguinte objetivo: compreender a espiritualidade sob o ponto de vista de enfermeiros que cuidam de pacientes em regime de cuidados paliativos.
MÉTODOS
Trata-se de uma pesquisa de campo com abordagem qualitativa. Modalidade de pesquisa com objetivo de alcançar informações sobre um determinado problema, para o qual se procura uma resposta9 etem como fonte de dados o próprio campo onde ocorrem os fenômenos10.
A pesquisa foi desenvolvida em um hospital filantrópico, que atende os pacientes oncológicos em regime de cuidados paliativos no Município de João Pessoa (PB). Cumpre assinalar que o hospital possui uma enfermaria que atende pacientes sob cuidados paliativos.
A população do estudo envolveu 40 enfermeiros assistenciais que prestavam atendimentos a pacientes oncológicos no hospital selecionado para o estudo. Para seleção da amostra, foram utilizados os seguintes critérios: estar em atividade durante o período de coleta de dados; ter, no mínimo, um ano de atuação na instituição selecionada para o estudo; ter interesse em participar dele e disponibilidade para fazê-lo. Vale ressaltar que a amostra se deu por acessibilidade e foi constituída por dez enfermeiros, em que a pesquisadora teve acesso durante a coleta dos dados do material empírico.
A coleta de dados ocorreu no período de agosto a outubro de 2014, mediante a técnica de entrevista semiestruturada, usando como instrumento um roteiro com questões, composto de duas partes. A primeira envolveu dados de caracterização dos participantes e a segunda abrangeu questões abertas, visando alcançar o objetivo proposto.
Os depoimentos dos participantes do estudo foram registrados por meio do sistema de gravação, utilizando-se como recurso tecnológico um aparelho de MP3. Para a garantia do anonimato, os depoimentos oriundos das entrevistas foram identificados pela letra "E", relativo a palavra enfermeiro, de E1 a E10.
Depois de feita a transcrição, o material empírico obtido foi analisado mediante a técnica de análise de conteúdo, que compreende três fases: pré-análise, codificação, inferência e interpretação dos dados11.
O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal da Paraíba, conforme CAEE de nº 32194614.2.0000.5188. Foram considerados os aspectos éticos relacionados à pesquisa que envolve seres humanos, estabelecidos na Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, principalmente, no que diz respeito ao Consentimento Livre e Esclarecido dos participantes da pesquisa12.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Participaram do estudo dez enfermeiros. Sete participantes eram do sexo feminino, e três, do sexo masculino, com média de idade entre 21 e 55 anos. A maioria dos participantes declarou ser casado e ter renda superior a três salários mínimos. Em relação a religião, os participantes se incluíram nas duas religiões predominantes em nossa sociedade - a católica (oito) e a evangélica (dois).
Categoria I - Significado da espiritualidade no contexto dos cuidados paliativos
A categoria I possibilitou a construção de duas subcategorias. A primeira se refere à compreensão dos enfermeiros sobre a espiritualidade, e a segunda faz referência à espiritualidade como um recurso que auxilia os pacientes em cuidados paliativos a aceitarem, e a enfrentarem sua situação.
Subcategoria I - A espiritualidade como fonte de força, conforto e fé
Na subcategoria I, os enfermeiros participantes desta pesquisa mencionam a compreensão acerca da espiritualidade. Para os participantes, a espiritualidade é promotora de força, conforto e fé.
É a fé... A fé em Deus. (E1)
É a fé que existe em cada um, a espiritualidade está dentro da gente. (E2)
A força que ele encontra nele mesmo para viver. (E8)
A espiritualidade são aquelas pessoas que crê né? Crê não no que vê [...] crê que de qualquer maneira tem alguém te ajudando, alguém te dando força, alguém te confortando. (E3)
As falas referenciadas revelam que esses profissionais consideram a espiritualidade como algo intrínseco ao ser humano e que está relacionada à fé em Deus ou, simplesmente, em algo em que se acredita e que pode ajudar os indivíduos, promovendo conforto e força.
A espiritualidade é inerente ao ser humano e refere-se à busca humana de sentido para a vida, por meio de uma relação consigo mesmo, com os outros e com o divino. Pode ser o que conforta e fortalece os indivíduos para que continuem a viver e pode envolver uma figura divina ou uma força superior13.
Estudo realizado em Ribeirão Preto teve como objetivo descrever a compreensão de enfermeiros a respeito da espiritualidade e da religiosidade, e concluiu que os participantes compreendem a espiritualidade como uma força que transcende o biológico e que, por vezes, pode estar relacionada a um ser superior7.
A espiritualidade pode existir independentemente de se ter uma religião, conforme cita o enfermeiro 4:
Tem que ter uma fé [...] porque a gente tem que acreditar em alguma coisa independente de religião. (E4)
Para o entrevistado, a espiritualidade apresenta-se com algo em que as pessoas acreditam, podendo existir independentemente de se possuir uma religião. A espiritualidade envolve as necessidades humanas universais e pode ou não incluir a religião13. Por sua vez, a religião corresponde a um conjunto de crenças que envolvem o sobrenatural, sagrado ou divino e códigos morais, valores e rituais associados a essas crenças14.
Para as pessoas que têm um sistema de crenças religiosas, a espiritualidade pode ofertar cuidados e respostas para as questões existenciais, e para os que não têm, pode promover conforto por meio da solidariedade e da compaixão, o que reduz os anseios e os medos associados à dor e ao sofrimento14.
Subcategoria II - A espiritualidade como recurso que auxilia os pacientes em cuidados paliativos a aceitarem e a enfrentarem sua situação
A espiritualidade é uma ferramenta de grande relevância para a prática dos cuidados paliativos, por promover a melhora do quadro de pacientes que se encontram fora das possibilidades de cura e por auxiliá-los a aceitar a situação e continuar a viver, mesmo diante da morte iminente. Isso pode ser demonstrado nos relatos seguintes:
Aquela pessoa que crê em um Deus, em qualquer coisa que vê, ela tem força pra sobreviver. Ela jamais vai pensar que vai morrer. (E3)
A espiritualidade [...] é uma das ferramentas que o paciente tem em melhora do quadro, né? (E4)
[...] os pacientes que tem espiritualidade [...] são pacientes mais fortes. A gente vê que tem pacientes aqui que estão em tratamento há dez anos e não se entregam e que já tem metástase, já tem problema no fígado, no pulmão e estão bem aparentemente, mas todos que a gente vai perguntar têm fé e acreditam [...]. (E5)
Eu acredito que um paciente que é espiritualizado, ele sofre menos. Ele consegue aceitar melhor a situação que está vivendo naquele momento. (E7)
Esses trechos revelam que a dimensão espiritual é um componente essencial na assistência aos pacientes que se encontram sob cuidados paliativos, visto que o conforta diante do problema de saúde. É por meio da espiritualidade que o paciente adquire forças para enfrentar e aceitar a doença.
Assim, como observado nesses depoimentos, vários estudos demonstram o benefício da espiritualidade no enfrentamento de doenças potencialmente fatais2,3,14. A espiritualidade é o componente fundamental na prática dos cuidados paliativos por promover o conforto e o alívio do sofrimento de pacientes com doenças em estágio avançado e fora das possibilidades terapêuticas de cura, o que contribui para melhorar o quadro e para a vida desses indivíduos3.
As crenças espirituais tranquilizam o paciente que crê em vida após a morte. Para os enfermeiros desta pesquisa, essa outra vida é um sinônimo de passagem, conforme relatam os enfermeiros 6 e 7:
A importância é o paciente saber que possa existir uma vida além dessa que ele está. Para alguns pacientes sim, avalia até sinais de diminuição do sofrimento dele, que ele vai ter um descanso e esse descanso para quem tem uma religião é um lar de flores, uma passagem boa de tranquilidade. (E6)
[...] os pacientes espiritualizados eles não são revoltados, eles entendem aquilo ali, como uma passagem na vida deles. (E7).
Os depoimentos expressam que esses enfermeiros compreendem que a espiritualidade promove uma passagem tranquila para outra dimensão. Essa ideia de passagem está relacionada a diversas crenças religiosas, advindas do Cristianismo, do Budismo, do Espiritismo, do Judaísmo e do Islamismo15.
A espiritualidade auxilia os pacientes terminais a resistir às pressões e aos desconfortos físicos e psicológicos de tal modo a promover o seu bem-estar até o último momento de sua vida. Desse modo, pode ajudá-los, aos familiares, aos enfermeiros e aos demais profissionais que atuam em cuidados paliativos a enfrentarem com mais tranquilidade as situações de iminência de morte ou a morte em si16.
Categoria II - Necessidades espirituais de pacientes em cuidados paliativos
Para uma melhor compreensão dessa categoria, os depoimentos dos entrevistados foram subdivididos em duas subcategorias. A primeira, intitulada "Necessidades espirituais de apoio familiar, perdão, amor, crença, fé e esperança" e a segunda, "Comunicação, escuta, música, formação de vínculo e colaboração de outros profissionais como estratégias para o atendimento das necessidades espirituais de pacientes em cuidados paliativos".
Subcategoria I - Necessidades espirituais de apoio familiar, perdão, amor, crença, fé e esperança
As necessidades espirituais dos pacientes sob cuidados paliativos, relatadas por alguns enfermeiros entrevistados, são apresentadas nos trechos a seguir:
É familiar, é um apoio familiar. Muitas são abandonadas, então eu acho que precisa desse apoio familiar, crença em Deus também é muito importante. (E5)
A maioria dos pacientes, quando eles estão em fase final, ele tem aquela força de perdoar né? Aquela força de querer que alguém perdoe também as coisas que ele fez. É como ele [...] perdoa ou se alguém o perdoa ele vai em paz, ele segue em paz. Não vai ter mais sofrimento. (E3)
O perdão e também o amor. Eles são muito carentes, às vezes, do amor, do abraço, sabe? (E10)
[...] a busca da esperança, ter esperança que vai dar certo, do pensamento positivo. (E4)
Assim, tem alguns pacientes que gostam muito de igreja, no caso, assim, se forem católicos, aí ele vê a dificuldade assim, de não ir pra uma missa, aí outros já buscam assim a televisão para assistir um programa religioso, quem são crentes que tem outro tipo de religião também gosta muito quando vem os irmãos da igreja dar a palavra para eles, eles, você sente que muda totalmente o comportamento deles. (E6)
O paciente, na maioria das vezes, quando está em sã consciência, ele clama muito pela melhora, é um momento em que ele busca de todas as formas passar daquele momento, então você identifica nesse momento a fé desse paciente. (E2)
Diante desses relatos, fica claro que as necessidades espirituais dos pacientes em cuidados paliativos, presentes nos depoimentos dos enfermeiros, referem-se às necessidades de apoio familiar, de perdão, de amor, de crença, de fé e de esperança. Essas necessidades estiveram presentes em estudo17 que procurou sintetizar as necessidades espirituais consideradas fundamentais encontradas na literatura. De acordo com o autor, a necessidade de crença é a mais expressa nos estudos e pode estar relacionada ou não a uma prática religiosa.
O enfermeiro 6 revela que os pacientes sob cuidados paliativos têm necessidade de crença religiosa porque, diante do processo de adoecimento e internação, eles já não podem mais ir à igreja, por isso procuram outros modos de atender a essa necessidade, seja assistindo à televisão, seja recebendo visitas de religiosos.
Estudo demonstrou que doentes em fase final, na maior parte das vezes, manifestam necessidades de conversar com um padre, um pastor ou outro líder espiritual, e que essa necessidade de apoio espiritual pode se manifestar a qualquer momento, no entanto, é mais frequente quando se está próximo do momento final. A vontade de conversar com um ente religioso e de assistir à missa na TV foi considerada pelo autor como necessária de ser identificada pelo enfermeiro, entretanto, primeiramente, é preciso conhecer a orientação religiosa do doente. Além disso, o referido estudo ressalta que tais enfermeiros consideram o apoio religioso muito benéfico para a vida dos pacientes, pois, na medida em que sua necessidade de crença religiosa é atendida, eles se sentem mais confortados, perdoados e em paz consigo mesmos18.
O perdão surge como uma necessidade tão importante quanto às crenças religiosas e espirituais por fazer com que os indivíduos que se encontram com doenças, potencialmente, fatais possam morrer sem culpa e não sofram mais. É como se a doença que estão experienciando fosse um castigo divino, e o perdão pudesse libertá-los desse castigo e diminuir o sofrimento pelo qual estão passando. Esse entendimento é mostrado no trecho seguinte:
Eles acham que tão passando por isso como se tivesse pagando. Então, ele acha que a partir do momento que ele perdoar, o sofrimento dele vai diminuir. (E3)
Em tempos remotos, acreditava-se que as causas das doenças oncológicas e terminais eram devidas a um castigo divino e para que os pecados fossem purificados. Essas noções punitivas relacionadas às doenças persistem no imaginário social19.
O relato do enfermeiro 1 demonstra que o abandono familiar proporciona um sofrimento físico e psíquico aos pacientes fora das possibilidades de cura, o que prejudica o seu quadro de saúde.
Quando a família não atua e abandona é totalmente diferente. O paciente sente muito mais dor [...], se sente abandonado, ele chora mais, a dor aumenta, aqueles cuidados que você faz, a gente não vê aquele conforto que é esperado. (E1)
Esse trecho revela que o abandono familiar é uma das queixas espirituais apresentadas por pacientes e enfermeiros. Pesquisa mostrou que 18% das comunicações não atendidas por enfermeiros referiram-se às situações de medo da morte por parte do paciente e do abandono familiar, o que pode prejudicar o atendimento da necessidade de apoio familiar. Essa necessidade parece fortalecer suas condições e minimizar os sintomas relacionados à doença3.
Nesse sentido, a relação entre o enfermeiro e o paciente fora das possibilidades de cura deve estar centrada no amor. A necessidade de amor também foi identificada pelos entrevistados. Para o enfermeiro 10, essa necessidade foi considerada importante pelo fato dos pacientes sob cuidados paliativos se apresentarem muito carentes.
Alguns enfermeiros ainda destacaram as necessidades de fé e de esperança como necessidades espirituais encontradas nos pacientes sob cuidados paliativos. Cumpre assinalar que elas podem contribuir para aumentar a confiança do paciente na melhora de seu quadro, mesmo diante de um processo terminal.
Subcategoria II - Comunicação, escuta, música, formação de vínculo e colaboração de outros profissionais como estratégias para o atendimento das necessidades espirituais de pacientes em cuidados paliativos
Esta subcategoria revela as estratégias utilizadas pelos enfermeiros para atenderem às necessidades espirituais dos pacientes sob cuidados paliativos. Dentre elas, destacam-se a comunicação verbal, a escuta, a música, a formação de vínculo e a colaboração de outros profissionais, conforme os relatos a seguir:
Pronto tô fazendo a visita aí eu percebo aquele paciente choroso né? Desesperançado, já achando que não tem mais jeito. E assim, quando eu tenho espaço, quando eu tenho espaço, eu entro cadê a fé, né? Começo a falar de coisas boas, que vai dar tudo certo. (E1)
É nesse momento que a gente vai focar a espiritualidade para trazer esse conforto, falar de Deus, então é muito importante. (E2)
A gente tem que atender a expectativa do paciente. Então assim, às vezes, é só escutar. (E4)
Muitas vezes, saber ouvir, porque o paciente não tem com quem desabafar então eu passei seis anos trabalhando em enfermaria e eu só fazia escutar. (E5)
Esses depoimentos denotam a importância da comunicação verbal e da escuta durante o atendimento da dimensão espiritual de pacientes que se encontram fora das possibilidades de cura. Isso se justifica porque, muitas vezes, o paciente se encontra desesperado e angustiado diante do processo de adoecimento e, nesse caso, precisa de uma palavra positiva, uma palavra de fé ou, simplesmente, de alguém para ouvi-lo.
A comunicação se configura como um elemento eficaz do cuidado de pacientes fora das possibilidades de cura, desse modo, é uma das habilidades que deve ser empregada pelo enfermeiro ao longo do atendimento aos pacientes que se encontram sob cuidados paliativos20, até mesmo para tratar de questões espirituais.
A comunicação, como estratégia empregada pelos enfermeiros entrevistados para atenderem às necessidades espirituais de pacientes, também, envolveu leituras bíblicas e oração, segundo os depoimentos a seguir:
Faço leitura, oração, pego aquele verso do salmo. (E09)
Eu chego, aí eles chegam muito, assim, muito baixo astral aí eu começo a ler a palavra pra eles. (E10)
A oração e as leituras de textos sagrados, como a Bíblia, o Alcorão e a Torá, por exemplo, podem ser utilizadas para atender às necessidades espirituais dos pacientes em cuidados paliativos e promover seu relaxamento21. A música também foi relatada por um dos enfermeiros entrevistados.
[...] quando a gente tem tempo mesmo para prestar essa assistência a gente gosta de colocar uma música na hora do banho do paciente, uma música religiosa, certo? Tem vez que eles gostam que a pessoa cante o hino então vai depender muito do paciente e da necessidade mesmo que ele está precisando. (E6)
Esse depoimento demonstra que a música é um recurso que promove o bem-estar espiritual do paciente e faz com que seu cotidiano fique mais leve diante da situação de morte iminente.
Estudo de revisão mostrou que o uso da música no ambiente de cuidados paliativos, pode promover o conforto, melhorar a qualidade de vida dos pacientes fora das possibilidades de cura e ajudar na relação da família com a despedida do ente querido22.
Cumpre assinalar que alguns entrevistados citam a colaboração de outros profissionais para ajudarem no atendimento da dimensão espiritual, como no caso do psicólogo e de assistentes espirituais de diversas religiões:
Se eu ver que o meu limite não pode passar daquilo, eu chamo alguém em busca de uma ajuda. Eu chamo o psicólogo, chamo alguém, se for um espírita eu chamo alguém da parte espírita, se for um católico eu chamo alguém da parte do catolicismo entendeu? Eu respeito à religião de cada um deles. (E3)
A gente tem voluntárias aqui da igreja católica e da evangélica, que passam nas enfermarias, muitas trazem a unção dos enfermos, leem a palavra, tocam, louvam a Deus, pra levar um pouquinho de conforto e de alguma maneira tentar alegrar, porque, infelizmente, a gente trabalha num hospital onde não tem muita alegria, a gente todo dia perde paciente, então o ambiente por si só é muito pesado. (E5)
Esses trechos destacam que, para atender à necessidade do paciente, pode ser necessário o auxílio de outros profissionais, inclusive de religiosos, porém a vontade do paciente e a sua religião precisam ser respeitadas. Por essa razão, os profissionais que atuam em cuidados paliativos devem estar atentos às demandas dos pacientes e seus familiares, respeitando as diferentes crenças e possibilitando sua livre expressão, caso esse seja o desejo do paciente23.
Corroborando os achados da presente pesquisa, estudo18 realizado em Portugal com enfermeiros que atendiam pacientes em estado terminal mostrou que, com o intuito de proporcionar algum conforto espiritual para o doente, recorrem a um capelão ou assistente religioso.
O depoimento de E2 relata uma vivência profissional com paciente terminal, que ele afirma não conversar tanto com o paciente sobre religião:
[...] da parte religiosa, eu tenho falado muito pouco, porque eu sinto que ele tem medo quando se fala em alguma coisa voltada para a religião. [...] de Deus eu tenho falado muito pouco, porque ele não tem essa abertura, ele aceita, não dá muito espaço. (E2)
Esse trecho mostra a falta de preparo desse enfermeiro para lidar com as questões espirituais dos pacientes que se encontram fora das possibilidades de cura, pois, quando o profissional encontra uma negação do paciente sobre questões religiosas, demonstra uma limitação e não aborda mais o assunto.
Outros estudos também evidenciam a falta de preparo dos profissionais para abordarem as questões espirituais de pacientes fora das possibilidades de cura18,24. Por isso, os profissionais de saúde precisam ser treinados, para atender às questões espirituais dos pacientes. Esse treinamento poderia ser ofertado pelos próprios profissionais que atuam nos serviços de capelania dos hospitais24.
Em situações de doença, as pessoas podem expressar suas necessidades espirituais nas formas mais sutis. Assim, a pessoa doente e a família podem se beneficiar da assistência espiritual, se os enfermeiros valorizarem essa dimensão de cuidados e realizarem uma abordagem sistematizada, competente e rigorosa. A satisfação dessas necessidades converte-se em um acontecimento dinâmico, acompanhado de uma sequência de mudanças que envolvem a pessoa doente, as pessoas significativas e os prestadores de cuidados de saúde25.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados obtidos nos permitem compreender que a espiritualidade foi considerada, pelos enfermeiros participantes do estudo, como uma dimensão importante na assistência paliativa. Para eles, a espiritualidade traduz uma fonte de força, conforto e fé, possibilitando, assim, uma melhora no quadro clínico de pacientes em regime de cuidados paliativos por facilitar a aceitação e o enfrentamento deles no tocante ao seu processo de adoecimento.
O estudo destaca que os enfermeiros percebem o apoio familiar, o perdão, o amor, a crença, a fé e a esperança como as principais necessidades espirituais dos pacientes, e para atender a essas necessidades, eles empregam estratégias, por exemplo, a comunicação que, a eles, configura-se como um elemento necessário à promoção da saúde, já que possibilita a obtenção de informações imprescindíveis ao tratamento paliativo, e que contribui para minimizar os sentimentos e emoções relacionadas ao processo de finitude.
Além da comunicação, outras práticas, como a escuta, a música, a formação de vínculo e a colaboração de outros profissionais, também foram citadas. A utilização de diversas estratégias, no decorrer da assistência paliativa, demonstra que quase todos os enfermeiros participantes, desta pesquisa, se sentem em condições de oferecer um cuidado espiritual, com exceção de um enfermeiro que demonstrou certo despreparo para atender às necessidades espirituais do paciente, tendo em vista sua dificuldade de abordar questões religiosas.
Ante o exposto, considera-se que esta pesquisa é de grande relevância para o campo da Enfermagem, porquanto poderá estimular seus profissionais a refletir sobre a necessidade de atender à dimensão espiritual do paciente que se encontra em regime de cuidados paliativos e que necessita de uma assistência que possibilite o alívio do sofrimento espiritual. Além disso, poderá fortalecer as leituras críticas a respeito da temática e subsidiar novas investigações, visto que essa dimensão deve ser mais bem explorada no âmbito acadêmico.
Assim, sugere-se que novas pesquisas possam ser desenvolvidas no sentido de averiguar como os próprios pacientes que se encontram recebendo a assistência paliativa, compreendem a dimensão espiritual, com a finalidade de identificar suas necessidades espirituais e auxiliá-los melhor, mediante a oferta de um cuidado humanizado. Sugere-se, ainda, a realização de pesquisas que ressaltem o desenvolvimento da espiritualidade dos próprios profissionais de Enfermagem, uma vez que ela foi considerada importante ferramenta a ser utilizada na assistência paliativa, no cotidiano da profissão.
REFERÊNCIAS