Volume 19, Número 4, Out/Dez - 2015
REFLEXÃO
Educação em Saúde segundo os preceitos do
Movimento Feminista: estratégias inovadoras para promoção da
saúde sexual e reprodutiva
Carla Cardi Nepomuceno de Paiva
1
Alana Stephanie Esteves Villar
1
Maria das Dores de Souza
2
Adriana Lemos
1
1 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro - RJ, Brasil
2 Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora - MG, Brasil
Recebido em 06/05/2015
Aprovado em 21/10/2015
Autor correspondente:
Carla Cardi Nepomuceno de Paiva
E-mail:
carlacardiufjf@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Apresentar uma reflexão sobre a prática educativa em saúde
sexual e reprodutiva, segundo o Movimento Feminista.
MÉTODOS:
Estudo teórico-reflexivo, baseado na literatura e na percepção
das autoras, com intuito de fomentar a discussão sobre as
possibilidades e potencialidades da prática educativa para
promover a saúde sexual e reprodutiva.
RESULTADOS:
A promoção da saúde sexual e reprodutiva, pode ser enriquecida
com os ensinamentos, metodologias e abordagens oriundas do
Movimento Feminista, que consideram a integralidade como
norteadora das ações educativas.
CONCLUSÃO:
Assim, para o delineamento de novas maneiras de intervir neste
contexto da saúde sexual e reprodutiva através da prática
educativa, é válido resgatar as abordagens e a concepção
de integralidade através da valorização do sujeito e das
suas experiências vivida, como era feito pelo Movimento
Feminista.
Palavras-chave: Educação em Saúde; Feminismo; Direitos Sexuais e Reprodutivos.
INTRODUÇÃO
Buscando conhecer os temas abordados nos grupos de Educação em Saúde Sexual e Reprodutiva, foi realizada revisão integrativa no período de julho a agosto de 2014, na base de dados da Biblioteca Virtual de Saúde, sendo identificada uma lacuna entre o que foi proposto pelas diretrizes do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), um marco histórico na atenção à saúde da mulher, pela atual Política Nacional de Atenção à Saúde da Mulher (PNAISM) e o que está sendo oferecido na prática, pois a revisão revelou que grande parte das atividades educativas estão reduzidas à transmissão de informação sobre contracepção e doenças sexualmente transmissíveis. Assim, além de não serem contemplados temas referentes à sexualidade, métodos conceptivos e questões de gênero, entre outras, a realidade e as necessidades dos participantes estão sendo ignoradas1.
Portanto, faz-se pertinente resgatar alguns preceitos da educação em saúde defendidos e divulgados pelo Movimento Feminista, que buscam favorecer a real importância da prática educativa na promoção da igualdade de direitos, cidadania e do respeito no que tange à saúde sexual e reprodutiva, sendo que tais preceitos estão sendo colocados em segundo plano na realidade atual2.
Empregar as ações educativas reconhecendo-as em sua essência e valor, assim como era considerada pelo Movimento Feminista nas décadas de 70 e 80, pode ser uma estratégia de sucesso, para que tal desafio se torne realidade. Esse Movimento defendia que a promoção da saúde deveria ser considerada uma forma de garantir a participação da população para que, de fato, esta alcançasse a melhoria na qualidade de vida e saúde. Assim, a Educação em Saúde como estratégia pautada na integralidade, deve reforçar e estimular a participação do indivíduo como sujeito ativo, consciente, autônomo em relação ao seu corpo, saúde e bem estar, livre para fazer suas escolhas e buscar o atendimento de suas necessidades3.
No contexto da abordagem educativa, a integralidade corresponde a uma assistência oferecida individual ou coletivamente, pautada na escuta ativa e compreensiva, que valoriza a subjetividade do usuário buscando compreender e atender as suas necessidades de modo empático e resolutivo4. É nesse contexto que abordaremos questões inerentes à saúde sexual e reprodutiva segundo a proposta de saúde integral da mulher, estimulada pelo Movimento Feminista e reforçada pelo PAISM, em cujos âmbitos o conceito de "saúde reprodutiva" faz alusão ao preceito da reprodução como direito, e não como dever. Já a "saúde sexual" procura garantir o exercício livre da sexualidade como elemento fundamental da autonomia feminina, no sentido de abarcar uma mudança de olhar e de perspectiva em relação às mulheres que, desse modo, passam a ser consideradas como sujeitos físicos e sociais5.
Apesar das políticas que orientaram os preceitos da prática educativa em saúde sexual e reprodutiva, algumas pesquisas apontam que tal abordagem está sendo relegada a "segundo plano no planejamento e organização dos serviços, na execução das ações de cuidado e na própria gestão"2:848. Dessa forma, concorda-se com a literatura científica quando afirma que, de fato, existe um desafio a ser superado, qual seja, o de se mudar a concepção de educação tradicional6, uma vez que na atualidade, muitas destas práticas estão pautadas no modelo biológico, o que impossibilita o alcance do propósito da Educação em Saúde que, como foi bem assinalado pelo Movimento Feminista, deve garantir a autonomia, a emancipação e a capacitação dos envolvidos a fim de que façam escolhas e tomem decisões apropriadas para promover, manter e recuperar sua saúde.
Assim, o ato de educar em saúde, ou o processo de Educação em Saúde, caracteriza-se por um conjunto de práticas que colaboram para a autonomia das pessoas no seu cuidado e no debate com os profissionais e as esferas governamentais, a fim de alcançar uma atenção de saúde compatível com as necessidades dos usuários do sistema de saúde7.
A saúde sexual e reprodutiva é um dos temas de saúde contemplado pela estratégia educativa desde o Movimento Feminista e do PAISM, sendo considerado essencial para estimular o empoderamento das mulheres no cuidado com sua vida e saúde. A propósito, o Ministério da Saúde orienta que o planejamento familiar deve ofertar atividade educativa, aconselhamento e atividade clínica, considerando a saúde sexual e reprodutiva como um direito de qualquer cidadão8 no âmbito da assistência na atenção primária à saúde, através do Programa Saúde da Família (PSF) criado em 1994 com o propósito de reorganizar a assistência nesse nível de atenção, a fim de reconhecer as necessidades dos usuários para reorientação das práticas de saúde com ênfase sua na promoção9.
A literatura científica consultada10 orienta quanto à ampliação dos temas abordados no planejamento familiar, sugerindo também a incorporação de temas direcionados ao desenvolvimento da família, tais como: planejamento do cuidado com a saúde, orçamento e questões reprodutivas, igualdade de gênero, aspectos afetivos, entre outros. Ainda assinala que a prática educativa é um ponto-chave para a efetividade do planejamento familiar, assim, destaca a importância da utilização de metodologias participativas com técnicas psicoeducativas, pois, desta forma, acredita-se que tal atividade pode colaborar na promoção e na manutenção da qualidade da saúde sexual e reprodutiva10.
O estudo de revisão integrativa de literatura11 acerca do conhecimento da promoção da saúde e prática da enfermeira na Atenção Primária à Saúde (APS), mostrou que dentre as oito publicações analisadas, apenas uma reconheceu a atividade educativa como estratégia a ser utilizada para o alcance da promoção da saúde, fato este que chama atenção e leva a inferir que este assunto e outros a ele vinculados, possam estar sendo relegados a segundo plano ou mesmo sendo abordados inadequadamente na implementação dessa prática.
Desse modo, é possível inferir que, em alguns contextos, as práticas educativas ofertadas no âmbito da saúde sexual e reprodutiva destoaram daquilo que foi proposto pelo Movimento Feminista, haja vista que tal problemática reforça a necessidade de construção de atividade de educação em saúde transversal, por meio de ações contextualizadas de acordo com as necessidades dos participantes, aliadas a saberes e práticas que sejam pautadas no respeito, na dignidade, na humanização e na integralidade11.
Diante do exposto, este artigo tem por objetivo apresentar uma reflexão acerca do verdadeiro ideal dessa prática em saúde sexual e reprodutiva, segundo as estratégias de ação orientadas pelo Movimento Feminista, isto porque percebe-se atualmente a necessidade de reestruturar essas práticas para que sejam efetivamente colocadas em primeiro plano nas ações de promoção da saúde sexual e reprodutiva, com observância rigorosa dos preceitos da integralidade. Desse modo, acredita-se que a prática educativa será uma aliada para fortalecer a capacidade de escolha do indivíduo, respeitando sua autonomia e garantindo sua emancipação nesse processo6.
MÉTODOS
Trata-se de estudo teórico-reflexivo, baseado na literatura e na percepção das autoras, buscando discutir sobre as possibilidades de promoção da saúde sexual e reprodutiva através da prática educativa, pela perspectiva do PAISM e do Movimento Feminista, os quais já indicaram a efetividade das metodologias e abordagens participativas, dentre outras estratégias que devem ser consideradas no âmbito da prática educativa.
Foi utilizado referencial teórico relativo à publicações sobre as ações educativas realizadas pelo Movimento Feminista e sobre as propostas do PAISM para a promoção da saúde sexual e reprodutiva das mulheres, por meio de fontes como publicações do Ministério da Saúde, livros e artigos de periódicos científicos disponibilizados na biblioteca virtual SciELO, utilizando os descritores: Saúde da Mulher, Movimento Feminista, Educação em Saúde, saúde Sexual e Reprodutiva. Foram utilizadas fontes publicadas no período de 2005 a 2014. A reflexão ressaltou aspectos referentes aos temas: Educação para autonomia e liberdade: histórico e influências do Movimento Feminista; Experiências dos grupos educativos no Movimento Feminista: contribuições para inovação da abordagem em saúde sexual e reprodutiva.
Educação para autonomia e liberdade: Histórico das influências do Movimento Feminista
Os grupos de mulheres que refletiam conjuntamente sobre o cotidiano do 'ser mulher', foram difundidos pelos Estados Unidos e incorporados ao Movimento Feminista internacional, em 1966. À época, eram grupos considerados autônomos, cujos membros realizavam reuniões semanais nas casas das próprias participantes, cerca de dez mulheres em cada encontro. Utilizavam a técnica dos revolucionários chineses de "Falar da Dor para Reviver a Dor" (e assim, superá-la); dessa forma, era possível o diálogo a respeito das vivências/experiências acerca de temas de interesse das participantes: sexualidade, maternidade, relações afetivas e de trabalho, entre outros12.
O primeiro grupo de feministas do Rio de Janeiro formou-se de forma lenta e tímida, em 1975, como um movimento político específico que recebeu o nome de Centro da Mulher Brasileira (CMB), sendo contrário à opressão histórica, política e capitalista a que eram submetidas as mulheres. O grupo oportunizou o início de trabalhos, reflexões e estudos que abordaram os problemas enfrentados pelas mulheres no Brasil, como o direito da vivência da maternidade como opção, e assim lutaram para que o Estado desenvolvesse ações propositivas em saúde reprodutiva13.
Em 1981, na cidade de São Paulo, Elisabeth Souza Lobo, Maria José de Oliveira Araújo e Maria Tereza Verardo fundaram o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, que teve como propostas o resgate da saúde como uma questão de direito das mulheres e a discussão sobre as questões políticas e pessoais vivenciadas na época. Os primeiros trabalhos do Coletivo realizaram-se em sindicatos, associações de bairros e outras entidades, situados na periferia e nos municípios vizinhos de São Paulo, onde eram ministrados cursos de sensibilização para questões vinculadas à saúde da mulher com o propósito de possibilitar-lhe refletir sobre seu corpo, saúde, contracepção e maternidade, além de estimular a participação de outras mulheres na política em prol de reivindicar melhores condições de vida para todas13.
Com a ampliação dos cursos oferecidos pelo Coletivo, em São Paulo foi desenvolvido um grupo para trabalhar na formação de mulheres, com a finalidade de serem multiplicadoras dos ideais e proposta do movimento. Um resultado de tal atividade é a elaboração do caderno O Prazer é Revolucionário, e de outros materiais educativos referentes aos temas trabalhados nos cursos14.
Vale lembrar que na proposta do PAISM, a saúde integral da mulher foi estimulada pelo Movimento Feminista, e dessa forma, além de ser baseada nas premissas de determinação social do processo saúde e doença, também abarcava as perspectiva de gênero, como organizador social que dá suporte à desigualdade entre mulheres e homens. Neste sentido, foi dada grande ênfase às práticas educativas visando o autoconhecimento e as questões de saúde mental, a partir do reconhecimento de que grande parte do sofrimento psíquico feminino estaria relacionada às pressões que a cultura de gêneros exercia sobre as mulheres15. Porém, tal proposta se fez incompleta na medida em que não incluiu o reconhecimento do impacto da subordinação sobre a saúde e a busca de modos de romper com esta situação.
Desde 1985, o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde buscou desenvolver um trabalho de atendimento à mulher, denominado "medicina suave". Neste modelo de atendimento, os tratamentos naturais buscavam prepará-la para conhecer seu próprio corpo, e assim consideravam a autonomia da mulher no cuidado com sua saúde. Tal experiência possibilitou uma aproximação maior da mulher e do serviço de saúde, fato este que desvelou problemas sociais e familiares (coerção sexual, estupro, gravidez indesejada, desrespeito aos direitos trabalhistas e humanos, violência emocional entre outros) enfrentados por elas em sua vida cotidiana. Assim, além do tratamento dos agravos de saúde aparentes, como infecção vaginal e problemas de contracepção, o Coletivo criou grupos de reflexão e atendimento em saúde mental para que tais necessidades fossem atendidas16.
A força do Coletivo Feminista fez com que as mulheres ganhassem voz e pudessem iniciar a exposição de suas reflexões nos jornais. E assim foi que no Jornal da cidade de São Paulo publicaram matéria intitulada Nós, Mulheres, na qual abordaram os direitos da mulher e o "relacionamento da mulher e homens no seio familiar"13:62. Estas ações possibilitaram o desenvolvimento de outros grupos de reflexão, constituídos também por mulheres provenientes da Europa, que "estudavam sobre a saúde, direito, educação, sexualidade"13:63.
Os grupos de reflexão criados pelo Movimento Feminista tornou-se um espaço solidário e de cuidado, onde as mulheres compartilhavam vivências corporais "na menarca, na menstruação, na sexualidade, na gestação e parto, na contracepção e no aborto"16:84. Tais reflexões e conhecimentos fizeram com que elas reivindicassem "o controle do corpo por meio da contracepção e do direito ao aborto legal"16:84. A experiência nesses grupos de reflexão ajudou na elaboração das ações educativas para promoção da saúde sexual e reprodutiva propostas pelo PAISM, elaborado em 1983, sob concepção e influências do Movimento Feminista. A integralidade defendida pelo Movimento representava o contexto social, psicológico e emocional das mulheres a serem atendidas17.
Deve-se ressaltar que o PAISM, teve como base de ação programática, as influências do Movimento Feminista e também dos movimentos sanitaristas de saúde pública, no que se refere à adoção da concepção de integralidade. Assim, o Programa é tido como fruto do processo de luta pela democratização do país, respeito às liberdades individual e civil13.
Neste contexto, para ofertar a integralidade sob a perspectiva do PAISM, as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde devem ser realizadas para atender as necessidades de saúde das mulheres de uma forma geral18. Por conseguinte, o PAISM redirecionou a saúde da mulher, de um modelo centrado no período gravídico-puerperal para uma proposta de modelo de assistência integral clínico - ginecológica e educativa, com enfoque no aprimoramento do controle pré-natal; no parto e no puérperio; na abordagem dos problemas presentes desde a adolescência até a terceira idade; no controle das doenças transmitidas sexualmente; no câncer cérvico-uterino e mamário e na assistência para concepção e contracepção17,19,20.
O PAISM enfatizou a importância de ações relacionadas aos cuidados básicos de saúde e, por conseguinte, das "ações educativas". O Movimentos Feminista solicitou que fossem contempladas ações de educação sexual21, pois assim resguardariam o Programa das influências das políticas natalistas, enfatizando principalmente a importância do planejamento familiar como forma de conceder às mulheres e aos homens, autonomia e liberdade sobre a vida sexual e reprodutiva20.
O Programa divulgou, então, diversos materiais educativos que contemplavam os temas referentes à saúde sexual e reprodutiva, sendo que a didática de discussão dos mesmos, na prática, baseou-se na mesma utilizada pelas feministas, nomeada de metodologia de trabalho feminista aplicada ao processo educativo, que considerava a integralidade como eixo, pois, nesta perspectiva de educação, o saber é articulado à experiência de forma dialogada, na medida que aborda com flexibilidade os temas da saúde que compreendem desde o conhecimento do corpo, sexualidade até a reprodução, doenças, questão de gênero, relacionamento familiar, entre outras questões reveladas, segundo as necessidades dos participantes e suas visões acerca dos referidos temas, possibilitando transformações e mudanças20.
Experiências dos grupos educativos no movimento feminista: contribuições para inovação da abordagem educativa em saúde sexual e reprodutiva
O Movimento Feminista fez a prática educativa avançar no sentido de permitir o desvendar das necessidades de saúde das participantes dos grupos educativos por ele promovidos5. Nesses grupos de vivências, identificaram que a reprodução ou sexo torna-se uma prática social que se expande em diferentes contextos dinâmicos e com vários significados que, por sua vez, são transformados segundo a época, a cultura, a sociedade, a política e os costumes da população.
Assim, a prática educativa deve ser valorizada como um espaço de troca de experiências tendo como princípio capacitar e encorajar transformações no sentido de serem vividas com saúde e autonomia, visto que a troca de experiências e vivências das usuárias permite concretizar o desenvolvimento da consciência do Ser humano como um indivíduo livre, informado e digno de direitos22.
Nessa linha de pensamento, os grupos educativos e as consultas individuais eram realizadas pelo Coletivo Feminista sob vários formatos, como seminários e oficinas, entre outros, com a proposta de valorizar a experiência das pessoas. Tais ações reconheciam que as participantes tinham uma experiência, uma realidade de vida singular, preceitos esses que garantiam o sucesso do grupo22. Desse modo, valorizavam a educação em saúde em sua totalidade, e não só como transmissão de conhecimentos. Assim, as participantes eram orientadas em suas escolhas, encorajadas a refletir sobre suas convicções, sem nenhum tipo de imposição de ideias e/ou valores. O espaço era utilizado para construir, em conjunto, o conhecimento sobre o corpo, a alimentação saudável, a prevenção de doenças, as opções sexuais e reprodutivas. Desse modo, as participantes tornavam-se ativas no processo de promoção e autonomia da saúde22.
A reflexão empregada como metodologia de trabalho grupal, considerando a realidade de vida de cada uma, possibilitava a troca de ensinamentos sobre tratamentos de saúde e seus efeitos, vantagens e desvantagens, entre outros aspectos que colaboravam para a promoção da saúde das participantes. Dessa forma, percebe-se que a missão do grupo ia além de auxiliar a mulher nas questões de saúde e dos seus direitos, como também possibilitava o desvendar de suas potencialidades, sendo encorajadas a vencer suas limitações. Assim, o grupo oferecia muito mais do que uma assistência em saúde sexual e reprodutiva, mas sim o empoderamento e a valorização da cidadania, dos direitos humanos e do respeito à diversidade e à individualidade humana22.
Outro grupo do Movimento Feminista conhecido como SOS-Corpo, com sede em Recife, Pernambuco, criado em 1980, também promoveu ações educativas no âmbito da saúde integral da mulher. Como os demais grupos descritos anteriormente, este promovia o discurso das mulheres sobre suas experiências corporais22. Assim, elaborou materiais didáticos educativos e informativos que pontuavam a importância do conhecimento do corpo para, então, desvelar a identidade. Logo, eram contadas e discutidas as experiências corporais na primeira infância, a menstruação, as gestações, os partos e a sexualidade22. Os documentos que retratam tal grupo mostram que o desconhecimento do corpo, além de causar angústia, é responsável pelos sentimentos negativos vivenciados no processo de gestação, puerpério e amamentação.
As reuniões do SOS-Corpo visavam, sobretudo, a troca de experiências, quando se discutia o conhecimento do corpo, as doenças que acometem a mulher, os medos, tabus e a vergonha acerca da consulta ginecológica. Para abordar o auto-exame, as participantes eram colocadas em dupla a fim de que aprendessem a fazer o exame umas nas outras. No exame preventivo, denominado Papanicolaou, as mulheres tinham a oportunidade de ver que o colo do útero e a vagina são rosados e bonitos. Os temas eram trabalhados segundo a necessidade do grupo, perpassando pelos direitos, política, violência, relações familiares, sexualidade, trabalho, entre outros22.
Foi revelado por tal experiência que, posteriormente ao processo educativo, as mulheres se tornaram mais atentas quanto à sua saúde e à relação com o profissional de saúde, pois o ato de se conhecer e de se observar sem preconceitos, fez com que buscassem o serviço de saúde de forma mais consciente.
A prática educativa feminista aceita o princípio de que "ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo"2:39, logo, acreditam que um processo educativo que visa a integralidade da saúde deve considerar as transformações do corpo, da mente, da fisiologia e da saúde23.
Dessa forma, a pedagogia feminista, com a utilização das metodologias construtivas e participativas empregadas valorizando a igualdade, é entendida como princípio e prática que visa conscientizar indivíduos através da construção e da partilha do conhecimento, a fim de garantir a equidade e o direito à cidadania entre mulheres e homens na sociedade.
A pedagogia feminista pode colaborar muito para fortalecer os grupos educativos que são oferecidos atualmente pela APS, pois sua metodologia considera que a ação educativa é um instrumento de política para redução das desigualdades, que se configura segundo as necessidades da população; assim, valorizam o conhecimento, a realidade e a experiência dos participantes dos grupos através de métodos que propiciem a participação ativa dos integrantes, como dinâmicas de incentivo ao trabalho em equipe, oficinas, seminários e módulos participativos, com eventos que estimulem a participação e o diálogo, geradores de processos de auto-estima, autonomia e empoderamento; elaboração de cartilhas e manuais interativos, entre outros recursos didático24.
Logo, ao entender a educação como um processo de troca de saberes, oriundo de reflexão, questionamento e autoconhecimento, é possível empregar seus resultados para transformar uma dada realidade, seja na sociedade, na vida pessoal e/ou profissional.
Para fortalecer o espaço educativo, a pedagogia do movimento feminista sugere a elaboração de um roteiro para o planejamento e realização das oficinas e outras atividades de cunho educativo, sendo que este planejamento deve prever: momentos de apresentação dos objetivos do trabalho do grupo e dos integrantes, dramatização do tema, diálogo para conhecer a vivência de cada pessoa em relação ao tema abordado; reflexão crítica/política conjunta; discussão da ação coletiva; avaliação e encaminhamentos; registro dos depoimentos e, no final, a elaboração do relatório da oficina25.
Quanto à postura das coordenadoras e facilitadoras dos grupos treinadas para tal, a pedagogia feminista orienta que as atividades devem possuir objetivos claros, de modo que sejam enfocados também as regras de convivência no grupo, os horários e outras orientações julgadas pertinentes. Outra sugestão é que as técnicas e dinâmicas aplicadas sejam participativas, de modo a estimular a interação entre os participantes; além disso, aponta que no início dos grupos, deve ser estabelecido um contrato de sigilo das informações pessoais abordadas, a fim de estabelecer o respeito, a ética e de garantir a privacidade de todos25.
A pedagogia feminista ainda esclarece que, para o bom andamento e aproveitamento do tempo da atividade grupal, é importante o profissional de saúde, além de ter uma fala concisa e clara, deve garantir a palavra a todas as pessoas presentes, sem demonstrar suas opiniões pessoais, julgamentos e outros comportamentos autoritários25.
Outra recomendação é seguir a sequência das atividades programadas no tempo proposto para os grupos, segundo as necessidades que se apresentarem, além de fomentar a troca de vivências e manter a ordem nas atividades, para que no final as participantes possam avaliá-las tendo como finalidade a elaboração de um relatório25.
Assim, segundo as experiências dos espaços educativos, foi perceptível que garantir a participação de todas nos círculos, propiciou ricos momentos de debates, diálogos e confiança, assim valorizando o corpo a corpo e o olho no olho. Desse modo, nas oficinas de autoconsciência, foi possível conhecer o interior e o intuitivo das participantes, como também acompanhar a evolução dos seus pensamentos críticos nas análises das concepções dialogadas nos grupos25. Dessa forma, foram desconstruídos alguns preceitos culturais socialmente impostos, mitos e preconceitos, permitindo que todas as participantes pudessem se expressar de forma livre25.
Torna-se possível inferir, portanto, que os referidos grupos coordenados pelo Movimento Feminista tinham como característica comum a utilização do espaço de vivência e a troca de saberes para construir o conhecimento, e com isso, eram concretizados os seus objetivos de valorizar a cidadania, o direito, o empoderamento, o respeito e a dignidade de cada mulher, como um Ser único, com limitações e potencialidades dignas de respeito e atenção. E assim, cada participante foi despertada para fazer valer os seus direitos sociais e as questões de gênero.
O Movimento Feminista, valendo-se de diferentes metodologias, estratégias, dinâmicas de grupo, entre outras formas de elaborar as atividades educativas, aponta potencialidades de certo modo inovadoras, uma vez que, atualmente, alguns preceitos identificados em antigas práticas, estão sendo esquecidos.
Dessa forma, tomando como modelo as ações educativas do Movimento Feminista, o enfermeiro pode aprimorar e reestruturar essa prática educativa no campo da saúde sexual e reprodutiva, no sentido de garantir e atender as necessidades de homens e mulheres utilizando recursos didáticos simples mas que, em sua essência, valorize o Ser humano e suas experiências, bem como ofereça a quem necessitar o acompanhamento devido, assegurando o direito de viver uma vida reprodutiva e sexual segura, saudável, livre e satisfatória.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sintetizando o que foi exposto, a prática educativa ofertada nos moldes do Movimento Feminista mostrou que é possível promover a saúde da população no que tange à saúde sexual e reprodutiva. Contudo, é preciso que os profissionais de saúde, em especial, os enfermeiros, estejam abertos a construir este espaço que garanta cidadania, autonomia, empoderamento e troca de conhecimento. Logo, pensar na prática educativa em primeiro plano, enquanto promotora dos direitos sexuais e reprodutivos, como também da saúde e bem estar, requer um trabalho em equipe dos profissionais envolvidos nessa atividade.
Assim, se faz mister relembrar os preceitos e a forma como tal prática educativa era oferecida pelo Movimento Feminista, pois os relatos e saberes divulgados nas vivências que apontam métodos, técnicas pedagógicas, temas e conhecimentos acerca desta atividade, vislumbram que é possível reconhecer e atender as necessidades dos participantes que buscam este tipo de atendimento no serviço de saúde.
Diante do "hiato" entre a prática de tempos atrás e a que está sendo ofertada atualmente, vale pensar a respeito das possíveis causas que propiciaram tal mudança, como: processo de trabalho, ausência da participação do movimento social nos serviços de saúde, ideologia individualista, valorização da técnica e da tecnologia em detrimento do investimento nas relações humanas. Essas são apenas algumas questões cujas respostas talvez possam ser conhecidas em futuras pesquisas, até porque a elaboração ações educativas de forma planejada, dinâmica e contextualizada, que reconheça e valorize a experiência do participante, compreendendo e respeitando o Ser humano em sua integralidade, contribuirá para o fortalecimento do vínculo e da sua aproximação do serviço de saúde, oportunizando a participação social e o fortalecimento do papel social e profissional do enfermeiro.
REFERÊNCIAS