Volume 19, Número 4, Out/Dez - 2015
PESQUISA
Conhecimento das famílias de crianças e
adolescentes com malformação neural acerca dos seus direitos em
saúde
Sarah Vieira Figueiredo
1
Ilvana Lima Verde Gomes
1
Maria Veraci Oliveira Queiroz
1
Déborah Danna da Silveira Mota
1
Ana Carla Carvalho de Sousa
1
Cristiany Macêdo Peixoto Vasconcelos
1
1 Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza, CE, Brasil
Recebido em 26/06/2015
Aprovado em 09/10/2015
Autor correspondente:
Sarah Vieira Figueiredo
E-mail: sarahvfigueiredo@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Compreender o conhecimento das famílias de crianças e
adolescentes com mielomeningocele sobre os seus direitos
em saúde e identificar como tem ocorrido o processo de
orientação acerca das políticas públicas de saúde.
MÉTODOS:
Estudo qualitativo, realizado em hospital de referência
pediátrica no Ceará, onde desenvolveram-se entrevistas
semiestruturadas com 15 famílias, de setembro de 2013 a
fevereiro de 2014. Os dados foram submetidos à análise
categorial temática.
RESULTADOS:
As famílias possuíam pouca informação acerca dos direitos de
seus filhos, aspecto que esteve relacionado às lacunas
existentes na orientação dos familiares por parte dos
profissionais de saúde. Esse desconhecimento repercutiu em
dificuldades econômicas, devido aos altos custos com os
insumos necessários no cotidiano.
CONCLUSÃO:
Conclui-se ser necessário investir na formação dos
profissionais, favorecendo a sua aquisição de competências
para atuar junto às famílias, de modo a contribuir para a
sua apreensão de conhecimentos e autonomia.
Palavras-chave: Pessoas com Deficiência; Doença Crônica; Defesa da Criança e do Adolescente; Políticas Públicas de Saúde; Meningomielocele.
INTRODUÇÃO
As malformações do tubo neural ocorrem na fase inicial do desenvolvimento fetal, entre a terceira e quinta semana gestacional, e acometem o arcabouço primitivo do tubo neural que originará as estruturas do sistema nervoso, como o cérebro e a medula espinhal. Embora esses comprometimentos sejam passíveis de correção cirúrgica, as lesões nervosas são permanentes e apresentam diferentes tipos de complicações1.
No que concerne à incidência mundial desses defeitos congênitos, os dados mostram variação entre 0,79 a 6,39 por mil nascidos vivos2. Entretanto, dados na literatura nacional acerca dessa taxa são escassos, existindo apenas alguns estudos pontuais. Entre esses, um realizado em Minas Gerais demonstrou prevalência de 4,3 por mil nascimentos, entre 1990-2000, e outro, em Recife, constatou prevalência de 5 por mil nascimentos, no período de 2000-20043,4.
Entre essas malformações, a mielomeningocele (MMC) representa aproximadamente 75% dos casos de espinha bífida (defeito que atinge a medula espinhal, bem como as estruturas que a protegem), sendo a forma mais grave em consequência das sequelas decorrentes da exposição do tecido nervoso5,2.
O diagnóstico da MMC durante a gravidez favorece o plano de intervenção precoce, pois, logo ao nascimento da criança, é indicada a cirurgia, mais precisamente nas primeiras 24 horas, com a finalidade de reduzir o agravamento do quadro clínico e possíveis sequelas. Como complicações mais presentes, destacam-se a paralisia de membros inferiores, distúrbios de sensibilidade cutânea, incontinência urinária e intestinal, deformidades musculoesqueléticas e disfunções sexuais5-7.
Em virtude dessas complicações e da necessidade de acompanhamento e tratamento contínuo de saúde das crianças e adolescentes com essa malformação, faz-se necessário o envolvimento dos familiares, pois estes indivíduos cronicamente adoecidos terão de enfrentar diversos desafios na realização de suas atividades de vida diária, sobretudo em virtude dos limites de mobilidade e da possível presença de incontinência fecal e urinária, situações que requerem a realização de alguns procedimentos domiciliares, como a Sondagem Vesical de Alívio (SVA), e utilização de equipamentos de suporte locomotor5,8.
Desse modo, a MMC é considerada uma doença crônica, por demandar tratamento ininterrupto, cuidado profissional prolongado e internações frequentes9. As doenças crônicas são as principais causas de mortes e incapacidades no mundo, sendo definidas como aquelas que possuem longa permanência, evolução lenta, sendo normalmente recorrentes e que, consequentemente, contribuem para o sofrimento dos indivíduos, das famílias e da sociedade, requerendo atenção contínua e esforços de um conjunto de equipamentos e políticas públicas10.
As famílias representam o suporte social mais envolvido com a criança e o adolescente com doença crônica; em contrapartida, necessitam receber atenção dos órgãos públicos, incluindo os profissionais de saúde e as redes de apoio que favoreçam, além de materiais e insumos para o cuidado, também a troca de informações e o compartilhamento de experiências que venham facilitar o conhecimento e as intervenções terapêuticas para a manutenção de vida saudável dos entes adoecidos.
Desse modo, advoga-se que para a efetivação do cuidado profissional nos serviços de saúde, do cuidado familiar no domicílio e consequente melhoria da qualidade de vida dos usuários com MMC, são necessárias Políticas Públicas de Saúde que forneçam suporte aos seus cuidadores.
O Ministério da Saúde, ao longo dos últimos anos, tem estabelecido algumas leis, decretos e portarias assegurando direitos que favorecem as pessoas que possuem algumas doenças crônicas, como: a Osteogênese Imperfeita, doenças neuromusculares, Síndrome de Down, autismo, entre outras. Porém, há a necessidade de que as políticas públicas existentes sejam avaliadas quanto à sua real implementação e expandidas para as pessoas com outras necessidades crônicas de saúde, como as graves malformações do tubo neural, no caso em discussão - a MMC.
Vale ressaltar que, no Brasil, o movimento pela democratização da saúde, que envolveu o país na segunda metade da década de setenta, favoreceu a construção do projeto da Reforma Sanitária, e, em meio a esse cenário, elaborou-se, em 1988, a atual Constituição Brasileira, que revolucionou ao assegurar, em seu artigo 196, que a saúde é: "direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação"11.
A discussão acerca dos direitos das pessoas com deficiências, provenientes ou não de um adoecimento crônico, precede a essa constituição, mesmo que de forma limitada, sem tantos benefícios. Contudo, as diretrizes referentes às políticas públicas de saúde para essa parcela da população e sua implementação vêm sendo garantidas a partir da referida constituição e os seus desmembramentos.
Assim, pode-se vislumbrar que as crianças e os adolescentes com sequelas de malformação neural possam ser beneficiados, pois, dependendo das características e do nível de sua lesão, apresentam deficiências físicas, têm limitações de desenvolvimento das atividades de vida diária e são dependentes de tecnologias de cuidado. Isto lhes garante legalmente o recebimento de alguns dos direitos das pessoas com deficiências, apesar de não haver políticas específicas para essa parcela da população12,13.
Nesse sentido, destaca-se que quando a população tem conhecimento acerca dos seus direitos garantidos por meio de políticas públicas, é cônscia para julgar situações e lutar pelos seus direitos. Nesses casos, tem também a possibilidade de desempenhar com autonomia o seu papel dentro da sociedade, como cidadãos, o que contribui para a efetivação dessas políticas14.
Desse modo, para que as crianças e os adolescentes com malformações do tubo neural, entre outras doenças crônicas, alcancem os seus direitos, torna-se essencial que as famílias recebam apoio e troca de informações, compartilhamento de experiências para além da doença e do tratamento, bem como orientações sobre as políticas públicas existentes e que ações sejam desenvolvidas para conquistá-las.
Logo, visualizando na prática tantas ocorrências de crianças e adolescentes com MMC, suas demandas de cuidados e necessidades apresentadas, as quais transcendem o tratamento hospitalar, percebeu-se a necessidade de estudar a temática, a envolver o conhecimento das famílias de crianças e adolescentes com MMC sobre os seus direitos em saúde, e quais aprendizados vêm sendo construídos acerca das políticas públicas existentes que contemplam esta condição de saúde.
Assim, a pesquisa teve como objetivos: compreender o conhecimento das famílias de crianças e adolescentes com mielomeningocele sobre os seus direitos em saúde e identificar como tem ocorrido o processo de orientação acerca dessas políticas públicas de saúde.
MÉTODOS
Este estudo caracteriza-se como qualitativo, consonante com Minayo, para quem esta abordagem se insere no campo da subjetividade, com o universo de significados, crenças e valores; espaço das relações, dos processos e fenômenos de maneira mais profunda, que não podem ser resumidos a variáveis15. Assim, teve-se a intenção de compreender uma determinada situação na perspectiva das pessoas que a vivenciam.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (parecer n° 401.189) do hospital lócus do estudo, unidade de atenção terciária, referência no cuidado à criança e ao adolescente, situado em Fortaleza, Ceará, Brasil. Ressalta-se que os usuários com MMC recebem acompanhamento no ambulatório nas diversas especialidades médicas e de outros profissionais.
Participaram da pesquisa 15 familiares desses usuários, selecionados com base nos seguintes critérios de inclusão: ser o familiar responsável e/ou cuidador da criança ou do adolescente, de forma a compartilhar informações com maior teor de detalhes acerca dos objetivos desta pesquisa, estar presente durante o acompanhamento e tratamento no hospital e apresentar disponibilidade de tempo para participar da pesquisa. Constituíram critérios de exclusão: os familiares apresentarem algum déficit mental que prejudicasse a sua participação nas entrevistas e terem pouco conhecimento acerca do cotidiano da criança ou do adolescente.
Entrevistas semiestruturadas foram realizadas no período de setembro de 2013 a fevereiro de 2014, utilizando-se um roteiro contendo a caracterização dos participantes e perguntas relativas aos seus conhecimentos sobre os direitos em saúde para as crianças e os adolescentes com MMC e em qual situação, como e com quem, obtiveram tais conhecimentos. As entrevistas foram gravadas e transcritas pelas pesquisadoras, preservando-se a originalidade das falas.
Para a análise das informações, optou-se por adotar as recomendações da Análise Categorial Temática de Bardin, que orienta o desmembramento de um texto em unidades e categorias, por meio de reagrupamentos analógicos16. Entre as diferentes formas de categorização, a investigação por meio de temas é considerada eficaz e rápida na perspectiva de aplicaram-se discursos simples e diretos. Assim, foram seguidas as etapas: pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Da fase analítica, resultaram as seguintes categorias temáticas: conhecimento das famílias de crianças e adolescentes com mielomeningocele acerca dos seus direitos em saúde; realidade do processo de orientação aos familiares pelos profissionais de saúde.
Todas as normas da Resolução 466/2012 foram respeitadas e algumas precauções adotadas a fim de proteger a identidade dos participantes, de profissionais citados nas falas, das instituições de saúde e dos municípios de procedência dos entrevistados. Assim, os entrevistados receberam nomes fictícios, e foram substituídos os nomes de pessoas, serviços e localidades citados nas falas por letras, como preceitua a ética em pesquisa.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados iniciais apresentam as características socioeconômicas dessas famílias e as principais complicações clínicas dos filhos acompanhados no serviço pela condição de adoecimento por MMC.
A presença de mães (14) predominou no estudo, pois, em sua maioria, eram elas as principais acompanhantes e cuidadoras, havendo a participação de apenas um pai que exercia este papel. Este aspecto corrobora relatos da literatura que apontam as genitoras como principais cuidadoras e acompanhantes das crianças com necessidades especiais de saúde5,17-19. No que diz respeito à faixa etária, observou-se que esta variou de 18 a 46 anos de idade, com predomínio de participantes entre 30 e 40 anos (10), ou seja, pessoas que podem apresentar maiores experiências de vida.
Em relação ao grau de escolaridade, mais da metade havia cursado o Ensino Fundamental Completo ou Incompleto (8), representando um baixo nível escolar, o que pode ter influenciado na compreensão dos questionamentos durante as entrevistas, visto que houve necessidade de maiores explicações sobre questões do estudo e alguns termos aos participantes. Nesse sentido, alerta-se para o fato desta falta de conhecimento poder limitar a atuação das famílias nas diversas formas de luta, bem como sua compreensão sobre o processo de adoecimento e busca dos direitos à saúde.
Quanto ao estado civil, a maioria era casada ou vivia em união estável (11), situação que se relacionou à dinâmica familiar após a chegada da criança ao lar no pós-parto, dependendo da possibilidade do companheiro(a) auxiliar ou não a família financeiramente e, em alguns casos, contribuir com os cuidados. Houve predomínio de pessoas que não exerciam trabalhos formais (14), sendo que a minoria participava ocasionalmente de atividades na agricultura familiar (4). Em geral, as ações de cuidado do domicílio e dos filhos tiveram destaque, com enfoque na criança e no adolescente com MMC, fato que justificou a impossibilidade de alguns exercerem trabalho formal devido às grandes demandas de acompanhamento aos serviços de saúde e assistência domiciliar.
No que concerne à procedência, apenas dois residiam na capital do Ceará, Fortaleza, e a maioria no interior do estado (7) e Região Metropolitana (6), composta de municípios próximos à capital. No tocante à renda familiar, a maioria (10) vivia com um a dois salários mínimos mensais, tendo destaque o Benefício de Prestação Continuada (BPC) a crianças e adolescentes no valor de um salário mínimo mensal, em virtude de suas deficiências físicas, conforme preconizado atualmente pelo Decreto nº 7.617 de 201120.
Em relação aos filhos dos participantes com MMC, prevaleceu o sexo feminino (10) e a idade variou de três meses a 13 anos. No que diz respeito à escolaridade, das nove crianças e adolescentes na faixa etária obrigatória (a partir de quatro anos) para matrícula no ensino educacional, seis frequentavam a escola21. Os motivos principais para que os pais não tivessem matriculado seus filhos, segundo os seus relatos, estavam relacionados às sequelas da MMC, como a dificuldade de caminhar e crença da família de que o ambiente escolar não era indicado para os seus filhos por apresentarem complicações, bem como devido à ausência de escolas com suporte físico e estrutural que possibilitassem o estudo adequado da criança ou do adolescente. No entanto, tais justificativas chamam a atenção por existirem diretrizes educacionais nacionais que preconizam o acesso gratuito dessas pessoas a um ambiente escolar de qualidade21,22.
Em relação às complicações decorrentes da MMC, observou-se, entre os que já haviam sido detectadas algumas das sequelas (13), maior ocorrência de crianças e adolescentes com incontinência urinária (11) e/ou fecal (10). Este achado corrobora a literatura, pois diversos estudos mostram alta prevalência de defeitos renais e vesicais nas pessoas com MMC, com destaque para a bexiga neurogênica, que requer a realização do esvaziamento intermitente por meio da SVA23,24.
Quanto às complicações de locomoção, quatro ainda não haviam sido diagnosticadas com tal sequela devido à faixa etária, oito não deambulavam e três possuíam uma marcha não funcional, ou seja, deambulavam com dificuldade, necessitando da cadeira de rodas ou de outros suportes para locomoção.
Nesse sentido, destaca-se a importância dos equipamentos que auxiliam essas pessoas na movimentação de seus membros durante a realização de atividades diárias. No estudo, oito utilizavam cadeiras de rodas, quatro possuíam órteses nos braços e/ou pernas e um fazia uso de andador. Ressalta-se que alguns desses usuários, mesmo necessitando desses materiais, não os utilizavam devido à dificuldade financeira para adquiri-los ou até mesmo de acesso a tais equipamentos no serviço público.
Conhecimento das famílias de crianças e adolescentes com mielomeningocele acerca dos seus direitos em saúde
Nessa categoria, apreendeu-se o conhecimento dos familiares sobre os direitos à saúde e, especificamente, na situação por eles vivenciada ao cuidar de um filho em condição especial.
Importante enfatizar que alguns direitos em saúde previstos pela legislação brasileira dão cobertura às pessoas que possuem deficiências e doenças crônicas, como a malformação do tubo neural, apesar de não serem específicos para essa enfermidade. Nesse sentido, a depender das informações e dos conhecimentos que possuem, os indivíduos que apresentam essa patologia e/ou seus familiares terão mais oportunidades de solicitá-los ou, via judicial, lutar por seus benefícios. Ressalta-se que uma vez obtidos tais direitos, essas pessoas terão, consequentemente, melhores condições de sobrevida.
Nesse sentido, observou-se que as famílias possuíam informação deficiente acerca das garantias previstas em lei aos seus filhos. Com maior frequência, citaram o BPC, conforme mostram as falas:
Só o pouco que eu sei é que ele tem direito a um benefício (Priscila).
[...] eu sei que ela tem o benefício, e eu sei também que o dinheiro dela é pra cuidar dela (Marta).
Esses achados divergiram parcialmente do encontrado em outra pesquisa realizada no Ceará envolvendo pessoas com deficiências, na qual se observou que elas apresentavam maior conhecimento acerca dos seus direitos, apesar de também relatarem falhas para a sua plena efetivação25. Ressalta-se, entretanto, que o estudo foi desenvolvido com os próprios adultos com deficiências, que possuíam período maior de experiência na luta pelos seus direitos, o que pode ter influenciado o seu grau de conhecimento.
No presente estudo, o benefício financeiro emergiu como um dos direitos mais importantes para essas famílias, pelo fato da maioria não possuir subsídios para sustentar os seus membros em decorrência do afastamento do emprego formal. Neste caso, a ausência de renda agravou-se após o aumento simultâneo de gastos demandados para o cuidado domiciliar, tratamento e acompanhamento contínuo dos filhos com necessidades especiais de saúde aos serviços de saúde.
O direito ao recebimento de materiais para os cuidados requeridos no domicílio também foi comentado pelos familiares, que destacaram acreditar que as crianças e os adolescentes deveriam ser beneficiados com fraldas pelo governo, por ser um material bastante utilizado, que exige grandes investimentos mensais para a sua aquisição.
Já me falaram que ela tem direito de receber todos esses materiais que ela usa, fralda [...] (Penha).
Eu acho assim, essas fraldas dela, porque eu pago mais de 100 reais nas fraldas dela, sai muito caro (Samara).
A complicação de incontinência urinária pode levar os usuários à necessidade de utilizar a SVA, mas o conforto pode ser ampliado com o uso da fralda descartável. Contudo, a legislação brasileira não garante a oferta desse produto à população com MMC ou outra necessidade especial de cuidados semelhantes, embora possam ser estabelecidos decretos, portarias ou leis, no âmbito municipal ou estadual, que garantam esse tipo de fornecimento. Destaca-se ainda que, no Ceará, não foram encontradas tais normativas. O que podem existir são serviços comerciais que oferecem descontos na compra de fralda para o uso de pessoas com necessidades especiais e entidades filantrópicas que podem oferecer ajuda financeira para esta ou determinadas aquisições de consumo.
Outros direitos em saúde enfatizados e que correspondem legalmente às políticas públicas existentes foram: recebimento de órteses, medicamentos e materiais para a realização da SVA12,26, acesso e atendimento de qualidade nos serviços de saúde, de modo prioritário27,13. Os familiares salientaram também o direito à educação, ao lazer e a transporte para o serviço escolar.
O único direito que eu creio que ela tem, acho assim, tipo essa órtese dela, eu acho que o prefeito, o vereador, alguém tinha obrigação de dar pelo menos a metade (Rafaela).
[Acho que] um atendimento melhor nos cantos [serviços de saúde], porque é meio complicado [...] (Samara).
A saúde em primeiro lugar, a educação, transporte [...] remédio, fralda, material do cate [SVA] (Sandra).
No entanto, esse conhecimento mais amplo, para além da mera compreensão acerca do direito ao recebimento de um benefício financeiro, foi demonstrado apenas por uma pequena parcela dos entrevistados. Além disso, as informações relatadas estavam baseadas sobretudo em suposições, não havendo convicção por parte de alguns familiares de que constituíam, de fato, direitos. Nota-se, portanto, real desconhecimento de muitas famílias, procedentes de diversos municípios do Ceará, acerca das políticas públicas de saúde que podem favorecer os seus filhos cronicamente adoecidos e contribuir para que alcancem melhores qualidades de vida.
Realidade do processo de orientação aos familiares pelos profissionais de saúde acerca dos direitos à saúde
Os resultados mostraram que as orientações recebidas pelos familiares parecem ser limitadas na forma, quantidade e teor dos conteúdos sobre as políticas públicas de saúde, com ressonância no pouco conhecimento dos direitos das crianças e dos adolescentes com MMC. Assim, observaram-se lacunas na forma de orientação e educação dos familiares por parte dos profissionais de saúde, no sentido de possibilitar à família condições para assumir o cuidado digno e a luta pelos direitos sociais e cidadania, os quais transcendem o recebimento de um benefício financeiro mínimo, incapaz de atender às necessidades destes usuários. Na realidade destas famílias, o aprendizado detém-se principalmente no recurso BPC, uma vez que são predominantemente orientadas sobre os procedimentos necessários para obtê-lo.
A Dra. J, antes deu sair daqui, ela me deu um atestado, me explicou tudinho como era, que eu procurasse o benefício, que ela ganhava (Marta).
Até agora só soube do benefício e foi a doutora que me falou (Mara).
Observou-se que, entre os profissionais de saúde, o médico foi o principal orientador acerca dos direitos, em virtude de ser ele o responsável por elaborar o atestado, com o laudo do problema de saúde do usuário, para que as famílias consigam receber o benefício financeiro no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), tendo tido assim, maior destaque em relação ao fornecimento de informações sobre o BPC.
Salienta-se que para que os usuários tenham de fato acesso aos seus direitos, sendo asseguradas as políticas públicas a seu favor, torna-se imprescindível uma maior divulgação acerca de sua existência, de modo a fazê-los serem conhecidos pelos profissionais de saúde e pela população14.
O serviço social, apesar de ser um setor relacionado a esse tipo de orientação, foi citado por uma minoria dos entrevistados. Nesse sentido, destaca-se que, de acordo com a lei de regulamentação profissional, consta, entre as competências dos assistentes sociais, orientar grupos populacionais e indivíduos no intuito de identificar recursos e de utilizá-los na defesa e no atendimento de seus direitos28. Todavia, por meio das experiências dos participantes dessa pesquisa, não se percebeu grande atuação desses profissionais no que se refere à orientação sobre os direitos das crianças e dos adolescentes com MMC na maioria das instituições de saúde onde eles são acompanhados.
Destaca-se também a importância do cuidado integral, segundo o qual todos os profissionais participam de forma ativa, com uma visão abrangente, das necessidades do sujeito que está sendo cuidado, incluindo aquelas não diretamente ligadas à doença presente. Essa concepção inclui o cuidado pós-alta e todas as orientações necessárias sobre os cuidados domiciliares e direitos desta criança/adolescente, conforme as Leis e Normas brasileiras.
Um serviço de saúde de reabilitação sobressaiu nas falas dos familiares, como sendo de grande importância em relação às orientações, indo além de apenas informá- los sobre os benefícios financeiros, por fornecer outros dados acerca dos vários direitos e esclarecer suas dúvidas, como quanto à forma de apropriação, conforme revela a fala:
O hospital X [HR] me deu um papel com tudo o que ela precisava e as leis que têm na constituição. Aí eu levei para a prefeitura, isso está com uns quatro anos. Até lá eu não recebia nada, eu comprava. Muito tempo eu comprava, aí o HR me orientou a ir na secretaria. Ele me deu uma lista com todos os direitos, foi a minha salvação (Jane).
O relato mostra que a referida instituição de saúde teve papel importante na vida dessas famílias, visto que, embora seus filhos já fossem acompanhados em outros serviços de referência pediátrica desde o nascimento, não haviam recebido orientações sobre todos os direitos a eles assegurados. Destaca-se que a falta de orientação desde o início impôs grandes desafios no cotidiano dessas pessoas, obrigadas a despender altos valores para a compra de materiais indispensáveis ao tratamento com a SVA, medicações essenciais na presença de sequelas, entre outros insumos para o cuidado diário, e transporte aos serviços de saúde, direitos esses garantidos por lei.
Uma das mães verbalizou o longo período, de aproximadamente quatro anos, para que tivesse acesso às informações sobre as políticas públicas vigentes que poderiam beneficiar a sua filha e aos caminhos legais para alcance dos seus direitos. Enfatiza-se, portanto, que apesar do BPC ser de grande importância e auxílio para essas famílias, outras orientações são igualmente fundamentais aos familiares que lidam com diferentes sequelas da MMC.
Tal afirmação ganha força quando se observa que o benefício, por si só, revelou-se incapaz de suprir todas as demandas desses sujeitos, expressando a magnitude da importância dos familiares serem capacitados sobre a legislação, de forma clara e em linguagem simples, para que possam viver com melhor qualidade.
Todavia, observa-se, por parte de alguns profissionais de saúde, pouca atenção à orientação de usuários em relação aos seus direitos, talvez por desconhecimento ou até mesmo ausência de capacitação sobre tais políticas. Nesse sentido, a presença de fragilidades relacionadas a esclarecimentos, ou mesmo à educação sobre os direitos socais, torna-se especialmente preocupante na instituição onde foi realizado o presente estudo, uma vez que nesse local muitos profissionais atuam continuamente com crianças e adolescentes cronicamente adoecidos.
Quando eu saí daqui, a nefrologista só me deu um papel com o número da sonda para eu comprar [ao ser questionada sobre o recebimento de informações sobre os direitos da criança, após a alta hospitalar do serviço de referência] [...] Ela passou muito tempo usando antibiótico e remédio para os rins, muito tempo eu comprava [por desconhecer que possuía o direito ao seu recebimento, mesmo sendo acompanhada em serviço de referência] (Jane).
Apesar de vigorarem normativas que garantem o recebimento de medicamentos e material terapêutico para a realização da SVA, conforme Decretos nº 3.298 e nº 7.50812,20, por muitos anos essas famílias enfrentaram grandes obstáculos financeiros para oferecer tratamento e cuidados adequados à criança, por desconhecerem direitos previstos há décadas na legislação brasileira. Para Soares, Moreira e Monteiro, no Brasil existem leis que garantem direitos mínimos às pessoas com deficiências, entretanto são pouco conhecidas por grande parte da população, o que afeta sua eficácia e aplicabilidade29.
Acredita-se que os profissionais de saúde que acompanham usuários cronicamente adoecidos desde o seu nascimento devam constituir a principal fonte de orientação para as famílias. Assim, devem esclarecer sobre o cuidado diário, tratamento, adoecimento, processo de reabilitação e, também, acerca dos benefícios que têm direito, promovendo a troca de informações e ampliando o seu grau de compreensão sobre as políticas públicas de saúde.
Entretanto, conforme observou-se neste estudo, ainda tem prevalecido o caráter biomédico na assistência desses profissionais, o que torna necessário um olhar além da doença e do corpo físico, ou seja, mais integral, humano, envolvendo as diversas dimensões do viver das crianças e dos adolescentes com necessidades especiais.
Nesse contexto, o que tem sido visto nas instituições de saúde são profissionais pouco comprometidos com os usuários e princípios do SUS, situação que torna urgente reformular a formação profissional em saúde, de modo a alterar os modelos assistenciais vigentes. Para tanto, os cursos devem priorizar a formação de pessoas tecnicamente competentes para cuidar de forma humanizada, ética, responsável e com qualidade30.
Pesquisa semelhante evidenciou que a maior parte dos responsáveis por crianças e adolescentes com espinha bífida havia recebido orientações relacionadas a alguns benefícios legais nos serviços de saúde, embora apenas pouco mais da metade tenha sido orientada por profissionais de saúde. Assim, torna-se necessário enfatizar ações sociais sobre o tema entre esses profissionais, a fim de que possam fomentar a divulgação das informações em seu contexto de atendimento17.
Além dos profissionais de saúde, os parentes com maior grau de orientação e escolaridade podem representar fonte de informações para as famílias, assim como outras pessoas responsáveis por indivíduos com necessidades especiais, a mídia televisiva, as redes sociais e instituições de apoio em saúde.
Eu soube, acho que foi assistindo televisão, aí eu perguntei se ele [médico] podia dar [atestado], aí ele disse que dava (Safira).
Lá tem uma associação, é muito boa, a metade das coisas que eu aprendi até hoje foi através da associação medular e cerebral que tem no Município H, aí a gente entrou nessa associação, tem o presidente que é uma pessoa muito legal, ele tem ensinado muita coisa, através dele foi que eu entrei nesses direitos, nesses poucos direitos que eu tô sabendo (Ezequias).
Em contexto semelhante, pesquisa desenvolvida no Rio de Janeiro com o intuito de compreender o acesso a alguns benefícios legais, demonstrou que 33,75% dos responsáveis por pessoas em adoecimento crônico receberam tais informações na sala de espera de serviços de saúde, durante conversa com outros familiares, e 12,5% por meio da mídia17.
No que diz respeito às redes informais de orientação, estudo realizado com jovens brasileiros e americanos que possuem espinha-bífida mostrou que eles buscavam apoio nestes espaços, bem como entre amigos, com o propósito de obter informações acerca dos seus direitos, o que acarretou sérios problemas, em virtude da aquisição de informações errôneas e, muitas vezes, desatualizadas. Por outro lado, os jovens americanos dispunham de outras fontes, mais acessíveis e confiáveis, para obtenção das informações (escolas, instituições de saúde e associações), assim facilitando a conscientização dos seus direitos29.
Em relação às informações adquiridas sem a orientação de profissionais de saúde, observou-se que muitas também estavam centradas no benefício financeiro. Sem dúvida, o acesso a este benefício tem sido facilitado, e constitui uma das primeiras orientações fornecidas às famílias e que estas buscam apropriar-se, por representar auxílio essencial para aquelas com baixo nível socioeconômico.
Assim, revela-se fundamental capacitar os profissionais de saúde para a atuação com crianças que apresentam vários tipos e graus de deficiência física e mental, por meio da implementação de disciplinas que abordem o SUS e suas políticas públicas de saúde, sobretudo para essa população excluída da sociedade em decorrência de limitações orgânicas e sociais.
Além disso, torna-se imperativa também a efetivação, em todos os serviços da rede de atenção à saúde, de um processo de educação permanente para os profissionais, a fim de que possam orientar as famílias sobre os benefícios previstos nas políticas públicas de saúde, aos quais as crianças e adolescentes com necessidades especiais têm direito. Desse modo, haverá maior grau de compreensão dos familiares e, portanto, mais acesso aos benefícios e melhor qualidade de vida.
CONCLUSÃO
A pesquisa possibilitou compreender o conhecimento dos familiares participantes do estudo acerca das políticas públicas de saúde vigentes no Brasil para crianças e adolescentes com malformações neurais graves, como a MMC. Observou-se entendimento parcial dos direitos, enfatizada na garantia de benefício financeiro mensal para os usuários com deficiências decorrentes das complicações neurológicas, ainda que em alguns casos tenham obtido esta informação tardiamente. São diferentes as fontes de informações que os tornam cientes desse benefício, além daquelas provenientes dos profissionais de saúde, entretanto, ainda insuficientes e com fragilidades, no que diz respeito a busca por aprofundar o conhecimento dessas famílias.
Desse modo, os aspectos observados neste estudo permitem inferir que o desconhecimento das famílias e/ou do próprio usuário sobre seus direitos impõe ainda mais dificuldades e desafios ao cotidiano dessas pessoas, pois precisam lutar constantemente para aquisição de medicamentos, materiais de higiene, equipamentos de locomoção e demais insumos necessários ao tratamento da criança e do adolescente com MMC.
As fragilidades no processo de orientação e educação familiar por parte dos profissionais de saúde, atuantes nos serviços da rede de atenção à saúde, parece influenciar no conhecimento dessas famílias, uma vez que muitos participantes demonstraram não saber o que existe de políticas públicas de saúde em prol dos usuários com situações de doenças crônicas, neste caso, doenças neurológicas congênitas. Tais doenças apresentam poucas perspectivas de recuperação das deficiências, mas significativas possibilidades de reabilitação e melhoria da qualidade de vida e, portanto, as pessoas por elas afetadas devem ser contempladas em várias instâncias dos direitos sociais e cidadania. Certamente, a situação identificada nos serviços de saúde torna-se obstáculo para que estas famílias tenham mais empoderamento e possam usufruir de seus direitos, visto que não são devidamente orientadas sobre como devem agir para alcançá-los.
Diante do exposto, faz-se necessária a aquisição de competências e habilidades por parte dos profissionais de saúde, a fim de que possam atuar junto a essas famílias, assim favorecendo seu maior empoderamento no que diz respeito aos aspectos clínicos do tratamento, amparados por políticas públicas de saúde, tornando-os cidadãos mais autônomos e sujeitos dos direitos sociais existentes no país. Para tanto, acredita-se que a formação desses profissionais deve ser ancorada em debates e conhecimentos acerca do SUS e suas diretrizes, e os próprios serviços de saúde devem proporcionar, permanentemente, programas de capacitação para esses importantes atores no processo de orientação e educação das famílias, sobre as políticas públicas e direitos dos usuários.
AGRADECIMENTOS
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa de iniciação científica fornecida para o desenvolvimento deste estudo.
REFERÊNCIAS